a pesquisa como prÁtica institucional: a disciplina … · com a imigração, também houve o...
TRANSCRIPT
Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 5498
A PESQUISA COMO PRÁTICA INSTITUCIONAL: A DISCIPLINA DE PROJETO DE PESQUISA
NA FUNDAÇÃO LIBERATO NOVO HAMBURGO/RS (2009)1
Deise Margô Müller2
José Edimar de Souza3
Introdução
Instalada na década de 1960, em Novo Hamburgo/RS, a Fundação Escola Técnica
Liberato Salzano Vieira da Cunha representa importante ação do projeto desenvolvimentista
que se institui no Brasil no contexto de urbanização e industrialização do mundo pós-guerra.
Conforme já contextualizado em outros estudos, como em Souza e Müller (2014), Novo
Hamburgo é um município gaúcho situado na região metropolitana de Porto Alegre. Em 5 de
abril de 1927, emancipou-se da vizinha São Leopoldo, e, em 1930, foi instalado o primeiro
Grupo Escolar da comuna. A história do lugar registra influência e contribuição da
colonização germânica. Esse aspecto se associa à evidência de escolas comunitárias,
utilizadas pelos primeiros moradores como forma de promover um tipo de instrução
primária que atendesse minimamente às necessidades dos moradores. (SOUZA, 2012).
Com a imigração, também houve o desenvolvimento da indústria local e o tratamento
do couro: a produção do calçado conheceu, entre as décadas de 1950 a 1970, o seu período
áureo. O destaque no ramo calçadista rendeu ao município o título de “Manchester
Brasileira”, diante de outros municípios como Lawrence, que perdeu espaço no mercado de
consumo, visto que o calçado em Novo Hamburgo era produzido a baixo custo [...]”.
(SELBACH, 2009, p. 10). O município tem sua economia associada à indústria calçadista,
aspecto indispensável para escolha da instalação de uma escola técnica industrial na região.
A Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha resume a intenção do
poder público e congrega esforços de uma iniciativa que envolve o governo nas três esferas da
União. Esse acordo foi firmado em 1957, mas apenas em 1966 é que a estrutura das aulas
1 Agradecemos à instituição estudada, por disponibilizar acesso a seus arquivos, e ao Programa CAPES/PROEX pelo financiamento dos estudos.
2 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação da UNISINOS. E-mail: <[email protected]>.
3 Doutor em Educação com estágio de pós-doutorado na Unisinos. Professor Adjunto no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul. E-mail: <[email protected]>.
Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 5499
iniciou na instituição, primeiramente, com um curso de auxiliar de laboratório de química –
o funcionamento oficial começou um ano depois. Assim, a história da escola se iniciou com a
constituição da primeira turma de alunos do curso Técnico em Química, cujas atividades
foram iniciadas em 12 de abril de 1967.
Nossa investigação, para este estudo, buscou conhecer os primórdios que conduziram a
prática da pesquisa associada ao cotidiano da instituição. A prática da pesquisa e a visão
científica encontram-se ancoradas nos primeiros tempos de vida dessa cinquentenária
entidade. A Fundação Liberato, como é identificada pela comunidade, possui quatro cursos
técnicos oferecidos de forma integral ao Ensino Médio (Química, Eletrônica, Eletrotécnica e
Mecânica), além dos cursos subsequentes e de especialização pós-médio. Nesse sentido, o uso
da metodologia científica como prática pedagógica é um diferencial que caracteriza e
identifica a instituição, a qual é reconhecida internacionalmente.
Embora, oficialmente, tenha sido institucionalizada em todos os cursos diurnos,
somente em 2009 a disciplina de projeto de pesquisa foi implementada. No entanto, a
pesquisa como prática pedagógica tem sido, desde os primeiros tempos, metodologia
escolhida pelo corpo docente, conforme se evidencia nos trabalhos de conclusão de curso.
Esse aspecto, associado à organização das feiras científicas – Feira Interna, posteriormente
MOSTRATEC- Mostra Brasileira de Ciências e Tecnologia / Mostra Internacional de Ciências
e Tecnologia –, estimula o envolvimento e a construção do conhecimento científico pelos
alunos dos diferentes cursos da Liberato. Para André Chervel (1990), as disciplinas escolares
são criações espontâneas e originais do sistema escolar. As matérias ensinadas constituem
parte da cultura formativa da escola. Nesse sentido, o objetivo deste trabalho é analisar e
compreender o processo de institucionalização da disciplina de projeto de pesquisa no
currículo escolar dos cursos técnicos integrados ao Ensino Médio, na Fundação Liberato, em
2009. Além disso, busca-se historicizar o uso da metodologia científica em sala de aula –
prática essa assumida, ao longo do tempo, pela escola.
Percurso Teórico-Metodológico
A História Cultural, conforme expõe Chartier (1990), intenta descrever as relações dos
acontecimentos, lidando com as representações que as pessoas estabelecem ao vivê-los e
contá-los: a história existe no passado, mas com vistas ao presente. A história percebida por
esse prisma foge dos absolutismos consagrados de verdade única, investindo no estudo das
interpretações e das diferenças possíveis de representações, nas distintas épocas dos
acontecimentos, considerando o momento em que se está realizando a análise histórica. Ao
Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 5500
estudar a ocorrência da disciplina Projetos de Pesquisa na Fundação Liberato, o artigo
intenta fazer o que Chartier apresenta, quando propõe contar uma história possível a partir
das representações estabelecidas na análise dos indícios encontrados.
Viñao Frago e Escolano (2001) entendem a história da escola como instituição,
realidade material e cultura, possível de ser investigativa pelas práticas que se materializam
no espaço e no tempo, no modo de se estruturar e construir um ritmo de trabalho ou uma
forma de organização, que se traduzem em uma anatomia cotidiana. E, ao refletir sobre o
processo de institucionalização da Fundação Liberato, cabe referir que “[...] a instituição
escolar e o ensino só merecem esse nome quando se localizam ou se realizam num lugar
específico.” (VIÑAO FRAGO; ESCOLANO, 2001, p. 69). Vinão Frago (1995) ainda acrescenta
que é no espaço escolar que acontecem e se processam as mudanças enredadas pelas práticas
e pelos discursos escolares construídos, resultando em um sentido de valores e aprendizagens
que consolidam as práticas – no nosso caso, a inclusão de um método de ensino cujo enfoque
é a pesquisa.
Para descrever as mudanças curriculares e o contexto que levou à implantação da
disciplina, foram encontrados indícios documentais na escola que organiza a feira. Trata-se
de documentos oficiais, tais como documentos informando etapas para a elaboração do Plano
Político Pedagógico da instituição, relatos escritos da organização das reuniões, esquemas e
organogramas diversos para implantação do plano político-pedagógico e memorandos
internos da escola, bem como de documentos não oficiais, como rascunhos do planejamento
do curso de química. Neste trabalho, consideram-se os documentos sob o viés da história
cultural, em que a noção de documento é tudo aquilo que pode tocar a memória e apresentar,
ao presente, situações e valores do passado que possam ser contemporaneamente
rememorados. Como cita Legoff (1990, p. 541), trabalha-se com “tudo o que a habilidade do
historiador lhe permite utilizar para fabricar o seu mel”, quais sejam, os indícios para se
narrar a história possível partindo desses documentos.
A partir da análise documental, buscou-se identificar o modo como, em diferentes
lugares e momentos, uma determinada realidade social é construída a partir da elaboração de
quadros e esquemas que pudessem elucidar o processo histórico da implantação do
componente disciplinar Projeto de Pesquisa. Como já argumentado em outro estudo – Souza
(2013) –, são as “lentes”, definidas pelo historiador que, a partir do seu esforço analítico, vão
fazer o desenho da história, construindo, involuntariamente omitindo partes ou extrapolando
fatos, ou mesmo contando fragmentos de um todo maior.
Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 5501
O Caminho até a Disciplina Projetos de Pesquisa
Essa disciplina encontra-se nos componentes curriculares dos cursos diurnos da escola,
no 1º e no 2ºano, desde 2009. Ao historicizar essas mudanças curriculares, encontramos um
curso percursor na inclusão desse componente na grade de disciplinas. Na mudança
curricular ocorrida em 2002, o curso de química incluiu a disciplina com o nome de Projetos
de Pesquisa, com um período semanal no 2º ano do curso (CUNHA, 2002). A manipulação
dos primeiros documentos encontrados suscitou duas perguntas: o que levou a essa mudança
curricular? Por que esse curso inclui essa disciplina em 2002 em sua grade curricular?
Mudança curricular de 2002
A Lei de Diretrizes e Bases de 1996, no Artigo 12, trata das incumbências dos
estabelecimentos de ensino, indicando, no 1º parágrafo, que a instituição deve promover a
elaboração e a execução da sua proposta pedagógica. O Artigo 13, que descreve as
incumbências dos docentes, define que estes têm a responsabilidade de participar da
elaboração da proposta pedagógica da instituição, bem como de elaborar o seu plano de
trabalho para atender as diretrizes da escola.
Infere-se que, para dar conta da legislação vigente, durante o ano 2000, a Fundação
Liberato realiza uma grande movimentação para construir sua proposta pedagógica. Para tal,
busca assessoria externa na figura do Professor Danilo Gandin, especialista em planejamento
escolar:
No ano de 2000, a Comunidade da Fundação Liberato viveu intensa programação, envolvendo todos os segmentos (professores, funcionários, alunos e pais) para a elaboração do seu Projeto Político-Pedagógico, tendo como ideia-força o lema “Na construção de uma escola para os próximos 500”. (CUNHA, p. 2, 2001)
O Centro de Planejamento e Avaliação (CPA) da instituição foi o responsável pelo
processo de discussão e elaboração do Plano Político Pedagógico (PPP). Esse setor elaborou,
juntamente com a assessoria externa e outros setores da escola, diagramas e cronogramas
que esclarecessem e instrumentassem a comunidade a compreender por que e para que
deveria ser feito o PPP da Fundação Liberato. A seguir, segue um exemplo mostrando o
organograma da legislação envolvida –documentação encontrada no Centro Pedagógico da
escola.
Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 5502
Figura 1 – Organograma da Legislação para o PPP Fonte: Pasta do Centro Pedagógico
Ao longo do ano 2000, foi feito um trabalho ativo com diversas reuniões envolvendo a
comunidade escolar, a fim de dar conta das etapas do planejamento; em documento
encontrado também no Centro Pedagógico da escola, verificamos outro organograma seguido
pela escola para elaboração do seu PPP:
Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 5503
Figura 2 – Organograma para a elaboração do PPP Fonte: Pasta do Centro Pedagógico
Pode-se concluir que o diagrama acima foi utilizado pela comunidade escolar para
elaborar seu PPP, em janeiro de 2001:
[...] a comunidade escolar concluiu a filosofia da Fundação Liberato, primeira etapa do projeto, no dia 03 de outubro. A segunda etapa, o diagnóstico e necessidades destacadas do mesmo teve seu fechamento em discussão promovida no dia 1º de novembro. No dia 09 de dezembro, a comunidade reuniu-se para definir as políticas estratégicas (programação), os objetivos gerais e específicos, a partir das necessidades apontadas pelo diagnóstico, a terceira etapa do Projeto Político-Pedagógico. Essa etapa teve continuidade no dia 03 de janeiro de 2001, a fim de concluir o grande projeto para a educação que a Fundação Liberato quer construir nos próximos anos, explicitando a filosofia, a concepção e a política de educação da nossa escola. (EQUIPE DIRETIVA, 2001).
No início do ano letivo de 2001, a Fundação Liberato tem sua política pedagógica
estabelecida, partindo do texto norteador construído depois de diversas discussões com a
comunidade, durante o ano anterior. No texto do Plano Político Pedagógico, lemos, em 44
páginas, a filosofia construída na escola, por meio da sistemática adotada para a construção
do documento. O conteúdo do PPP expõe as reflexões realizadas pela comunidade escolar e
Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 5504
registra as intenções da escola para suas metas e princípios de educação. Apresenta um breve
histórico da instituição e de como foi construído o documento.
O PPP apresenta uma programação que descreve suas políticas e estratégias, que foram
agrupadas em 10 itens:
1. Que a prática do diálogo fortaleça a integração; 2. Que o apoio pedagógico aos professores e alunos aprimore o processo de aprendizagem; 3. Que se desenvolva o zelo pelo patrimônio; 4. Que se busque uma atuação de comprometimento social; 5. Que a busca de parcerias com os diversos segmentos da sociedade favoreça o crescimento da Instituição; 6. Que exista respeito às diferenças; 7. Que se resgate os valores primários do ser humano; 8.Da política de formação continuada; 9. Que a educação pela pesquisa desenvolva a busca do conhecimento; 10. Que a integração entre os segmentos da Instituição construa coletivamente as grandes decisões. (CUNHA, p.31, 2001)
Em cada um desses itens, são descritas ações que possam efetivar o alcance da
estratégia listada. Nesse ponto, nosso olhar passa a buscar as referências ao ensino pela
pesquisa e ao uso da metodologia científica em sala de aula. Uma vez que esse tem sido o
norte da atuação da Fundação ao organizar suas feiras de ciências, inferimos que sejam os
motivadores da existência de uma disciplina específica para lidar com essa demanda.
Neste sentido, encontramos a política de número “9. Que a educação pela pesquisa
desenvolva a busca do conhecimento” (CUNHA, p. 34, 2001). Essa estratégia lista 4 ações
para dar conta dessa demanda: (i) espera-se que, adotando o ensino pela pesquisa, o aluno
venha a exercer o que também a LDB 9394/96 preconiza: o aprender a aprender; (ii) que,
adotando a metodologia científica, as ações escolares sejam unificadas, desenvolvendo-se os
princípios dessa metodologia em sala de aula; (iii) que seja implementado o uso da
metodologia científica desde as primeiras séries de cada curso; (iv), e, finalmente, que, por
meio do embasamento teórico necessário à aplicação do método científico, seja possível
avaliar processos educacionais complexos, aumentando a visão globalizada da educação.
(CUNHA, 2001)
Chervel (1990) constrói a argumentação de que a escola não é uma mera reprodutora
do sistema e reflexo da sociedade, e, nisto, originam-se as discussões da importância de
historiar as disciplinas escolares e sua construção. Nessa argumentação, o mesmo autor
coloca que os sistemas escolares podem assumir um papel de estruturantes na sociedade,
justamente pelo papel que as disciplinas escolares exercem: “[...] as disciplinas são criações
espontâneas e originais do sistema escolar [...}”(CHERVEL, p.184, 1990), por isso o sistema
escolar é detentor de um poder criativo insuficientemente reconhecido, mas este pode ter
objetivos de duplo sentido – “[...] de fato ele forma não somente os indivíduos, mas também
Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 5505
uma cultura escolar que vem por sua vez penetrar moldar, modificar a cultura da sociedade
global.” (CHERVEL, P.184, 1990).
A argumentação apresentada acima pode ser conferida na historicização da
implantação da disciplina que ora estamos discutindo, chamada Projetos de Pesquisa. Infere-
se que A Liberato vem convivendo com a organização de feiras científicas desde a década de
1970, quando ocorrem as primeiras exposições na escola, que vão desde mostras de trabalhos
realizados a feiras de ciências, com a aplicação rigorosa do método científico. Essa
convivência leva à instauração da MOSTRATEC - Mostra Brasileira de Ciências e Tecnologia
/ Mostra Internacional de Ciências e Tecnologia. Isso reflete na elaboração do PPP da
instituição, uma vez que a elaboração do planejamento pedagógico exige uma etapa de
diagnóstico da realidade na qual a escola está inserida e que essa realidade mostra
professores exigindo de seus alunos a aplicação do método científico de forma rigorosa, para
se tornarem concorrentes quando da participação das feiras. Tal aspecto faz com que a escola
defina políticas e estratégias para lidar com essa realidade.
Essa configuração leva-nos às perguntas iniciais: o que levou a essa mudança
curricular? Por que o curso de química inclui essa disciplina em 2002 em sua grade
curricular? A mudança curricular em 2002 é consequência da elaboração do PPP, da LDB
9394/96 e dos demais decretos que vieram para regulamentar o ensino profissionalizante.
Em um documento intitulado “Plano de Curso: chamado à reflexão”, elaborado pela
equipe diretiva da instituição, informa-se:
Apontador de caminhos e referenciador que orienta o trabalho individual e coletivo, em 2001, a nossa atividade consiste em operacionalizar o Projeto Político Pedagógico. Assim, estamos com três etapas em andamento, simultaneamente: Elaboração dos Planos de Estudos, Planos de Cursos,
Avaliação e Regras de Convivência. (EQUIPE DIRETIVA, 2001).
Nesse mesmo documento, retomam-se as estratégias apresentadas no PPP e chama-se
a atenção para aquela comentada acima, sobre trabalhar com a estimulação do “[...]
desenvolvimento da pesquisa como parte integrante do currículo, propiciando embasamento
teórico para trabalhar com a metodologia científica, adotando-a a fim de produzir e buscar o
conhecimento[...]” (EQUIPE DIRETIVA, 2001).
A razão pela qual houve a mudança curricular de 2002 foram a adequação às demandas
legais e a operacionalização do PPP. Percebe-se, nos documentos, que esse percurso para a
construção dos novos planos de curso também foi longo e envolveu a comunidade interna da
escola, especialmente o corpo docente, agora reunidos por área de interesse, ou seja, por
curso.
Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 5506
Um dos documentos a que tivemos acesso mostra as cópias de slides utilizados em uma
das reuniões do curso de química. Nesse texto, é esboçado um histórico das mudanças
curriculares no curso e é feita a previsão de implantação e acompanhamento do novo plano
de curso. Apresentam-se também as motivações para as mudanças e o objetivo do curso.
Figura 3 – Apresentação do curso de Química Fonte: Pasta do Centro Pedagógico
Ainda nesse documento, observamos, pela descrição do perfil do técnico em química,
que este deveria ser um técnico generalista, apresentando competências gerais. Dentre elas,
está o objetivo de fazer com que o aluno desenvolva pesquisas embasadas em metodologia
científica. Abordam-se as características das mudanças de foco, em avaliar por competências,
sugerindo-se que o curso está discutindo como fazer isso e que uma das formas seria
apreender novos métodos de ensino que envolvam projetos, pesquisas, seminários e
valorização do perfil empreendedor.
Percebe-se que, na construção do novo plano de curso, o curso de química adota o uso
da metodologia científica como norte da sua estratégia de ensino para alcançar seus objetivos
de desenvolver um aluno crítico e empreendedor. Para tal, ele aponta na sua programação a
inclusão da disciplina de Projetos de Pesquisa e, ao final do curso, uma atividade, para os
alunos de quarto ano, chamada de Empresas Virtuais. Essa atividade tem o intento de fazer
os alunos pesquisarem todo o processo de instalação de uma empresa na área de química,
fazendo com que as duas características do perfil sejam concretizadas: o empreendedorismo
e a metodologia científica.
Ocorre, no ano 2000, uma mudança em alguns aspectos da instituição, no que compete
aos planos de cursos e à sua forma de ensinar, mas percebe-se que, nas mudanças, há um
espelhamento daquilo que já acontecia na escola; mas agora, de forma mais sistemática, isso
Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 5507
se integra ao plano de curso. Tal aspecto reafirma aquilo que Chervel (1990) dizia sobre as
disciplinas serem espontâneas do sistema escolar e advindas das mudanças e vivências desse
ensino, o que também é ressaltado por Viñao Frago (2008):
A instituição escolar não se limita, pois, a reproduzir o que está fora dela, mas sim, o adapta, o transforma e cria um saber e uma cultura própria. Uma dessas produções ou criações próprias, resultado da mediação pedagógica em um campo de conhecimento, são as disciplinas escolares. (VIÑAO FRAGO, p. 189, 2008).
Sabe-se, por exemplo que o curso de química já realizava trabalhos de pesquisa antes
de 2000, pois a existência das feiras de ciências levava a esse movimento. Se existe uma feira
na escola, é necessário ter trabalhos para nela expor, então havia o incentivo para que os
alunos desenvolvessem pesquisas para irem para a feira.
Nos demais cursos da escola, havia essa iniciativa. A química vem definir um trabalho
de final de curso a partir das Empresas Virtuais, mas antes disso os alunos interessados em
realizar pesquisa tinham o acompanhamento de um professor orientador e participavam das
feiras; esse trabalho era desenvolvido extraclasse e por quem tinha interesse. O curso de
mecânica institui o Projeto de Integração Disciplinar – PID – em 1998; esse programa tem
por objetivo desenvolver um projeto de pesquisa como conclusão do 3º e do 4ºano; tal
trabalho seleciona quem vai para a feira da escola. O curso de eletrotécnica desenvolve o
Projeto de Máquinas; sua primeira edição é 1996; em 1998, ele passa a fazer parte do
currículo das 4ªs séries do curso. O curso de eletrônica tem o Trabalho de Conclusão – TC –
que se inicia como uma iniciativa de dois professores, em 1989, integrando duas disciplinas, e
acaba por ser o trabalho final das 3ª e 4ª séries, envolvendo todas as disciplinas.
Mudança Curricular de 2009, inclusão da disciplina de Projetos em todos os Cursos
A mudança curricular de 2009 ocorre, novamente, pela adequação a uma nova
legislação, que é apresentada pela resolução CNE/CEB nº1/2005 – a Lei Federal nº 11645 de
2008 sobre a implementação da sociologia e da filosofia –, a Lei Federal nº11684, sobre as
questões de estágio, e a Resolução CNE/CEB, sobre o Catálogo Nacional de Cursos, de julho
de 2008.
Com a justificativa de adequação à legislação ocorre novamente um estudo, agora
envolvendo os cursos para revisão do plano de curso, com vistas a regulamentá-lo conforme
as leis e aproveitando para atualizar o que grupo achasse necessário. Quanto a esse período,
não foram encontradas documentações que nos expressassem como foi o processo; o que
temos para análise são os textos finais do plano de curso, de cada um dos cursos diurnos. Por
Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 5508
eles, empreendemos que houve a inclusão da disciplina Projetos em todos os cursos; embora
se tenha tirado do nome a palavra pesquisa, o conteúdo expresso nas súmulas é o mesmo
ministrado anteriormente pelo curso de química, ou seja, a intenção, com essa disciplina,
continua a mesma, mas passa a ser distribuída em duas séries de 1º e 2º ano.
Considerações Finais
A Liberato destaca-se pelo reconhecimento de seus formandos no mercado de trabalho
nas mais diversas áreas de atuação e pela organização de Feiras Científicas; como sugere
Hobsbawm (1984), trata-se de um legado patrimonial, “uma tradição”. Então, a prática de
realização dessas feiras leva à concretização da tradição de ensino pelo uso da metodologia
científica e pela implantação da disciplina de Projeto de Pesquisa. Em 1978, ocorre a primeira
Feira Interna de Ciência da Fundação Liberato – FEICIT. Em 1985, a feira passa a receber
trabalhos de outras escolas do Rio Grande do Sul, nascendo, assim, a Mostra de Criatividade
em Ciências, Artes e Tecnologia – MOSTRATEC. O próximo passo foi a nacionalização da
feira, em 1990, quando esta passa a receber trabalhos de todo o Brasil. Atualmente, a feira é
internacional, recebendo trabalhos de mais de 25 países e de todos os estados brasileiros,
como se percebeu no decorrer do nosso estudo.
Esses aspectos contribuíram para que os profissionais que atuam no ensino médio
técnico da instituição criassem formas de implantar e de desenvolver os conhecimentos sobre
os métodos de pesquisa com seus alunos. Esse esforço se reflete no modo como a discussão e
a elaboração de ações, projetos e iniciativas acontece no interior do espaço escolar. A
mobilização em prol da qualidade e do sucesso na aprendizagem não é algo harmonioso, mas,
mesmo diante das tensões e das discussões que acompanham as reformas e as
transformações do currículo escolar, percebe-se que a escolha pela pesquisa tem sido uma
unanimidade entre os docentes.
O processo de institucionalização do uso da metodologia científica, como forma de ação
pedagógica, acontece no desenrolar de eventos e reflexões que se estabelecem desde a criação
da escola, quando há representações de um mito fundador de uma instituição de referência
na região (MÜLLER, 2016), até as mudanças curriculares impulsionadas pela LDB 9394/96.
Então, é implantada a disciplina de Projetos, que deve iniciar os jovens do ensino médio
técnico na seara da pesquisa científica, formando cidadãos criativos, críticos e proativos na
resolução de problemas que envolvam as áreas tecnológicas, nas quais a escola atua.
Viñao Frago, ao discutir os estudos sobre as disciplinas escolares, enfatiza que, em um
contexto mais amplo do estudo da cultura escolar, devem-se considerar as “causas e modos
Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 5509
de mudança nos conteúdos ou exercícios próprios de uma disciplina, assim como dos
processos de “disciplinarização” ou transformação de um saber em objeto de ensino.”
(VIÑAO FRAGO, p. 189, 2008). Como esta investigação é parte de um estudo maior da tese,
que considera estudar a instauração da cultura escolar e do uso da metodologia científica
desta instituição, sabemos que aquilo que foi discutido neste artigo aponta para um maior
aprofundamento destas análises, buscando inclusive mais indícios que ajudem a tecer essa
história.
Referências
CHERVEL, A. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, 2, 177-229, 1990. CHARTIER, R. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990. LEGOFF, J. História e Memória. Campinas: UNICAMP, 1990. MÜLLER, Deise M.. Ensino pela Pesquisa na Fundação Liberato: Construção de uma Escola Técnica, Um Percurso de mais de uma década – 1956 A 1967 IN: CONGRESSO LUSO-BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO-INVESTIGAR, INTERVIR E PRESERVAR: CAMINHOS DA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO LUSO-BRASILEIRA, XI., 2016, Faculdade de Letras- Universidade do Porto. Porto: NORPRINT, 2016. 407 p. 800 CD-ROM. ISBN: 9799898351562. SELBACH, Jéferson Francisco. Cumplicidade e tradição: a Novo Hamburgo dos anos 40 e 50 na pena do cronista Ercílio Rosa. São Luís/MA: EDUFMA, 2009. SOUZA, José Edimar de; MULLER, Deise Margô. O Ensino Técnico em Novo Hamburgo: notas de pesquisa para contar uma trajetória institucional. Revista Didática Sistêmica, v. 16, p. 12-20, 2014. SOUZA, José Edimar de. Memórias de Professores: Histórias de ensino em Novo Hamburgo/RS (1940/2009). 1. ed. Porto Alegre: Evangraf, 2012. SOUZA, José Edimar de. “Civilizar o rural?”: memórias de práticas em torno da aula pública municipal no Morro Dos Bois–Novo Hamburgo/RS (1933-1952). Revista HISTEDBR On-Line, v. 13, n. 50, 2013. VIÑAO FRAGO, Antônio. Historia de la educación y historia cultural. Posibilidades, problemas, cuestiones. Revista Brasileira de Educação. Set./Out./Nov./Dez./1995, n.0, p. 63-82. VIÑAO FRAGO, Antônio; ESCOLANO, Agustín. Currículo, espaço e subjetividade: a arquitetura como programa. Tradução Alfredo Veiga-Neto. 2.ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. VIÑAO FRAGO, Antônio. A história das disciplinas escolares. Tradução: Marina Fernandes Braga. Revista brasileira de história da educação n° 18 set./dez. 2008
Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 5510
Documentos consultados
CUNHA, F. E. T. L. S. V. D. Plano de Curo Técnico em Química Integrado ao Ensino Médio. Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha. Novo Hamburgo, 2008. CUNHA, F. E. T. L. S. V. D. Projeto Político-Pedagógico: Na construção da Escola para os próximos 500. Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha. Novo Hamburgo, 2001. CUNHA, F. E. T. L. S. V. D. Centro de Planejamento e Avaliação- CPA. Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha. Novo Hamburgo, s/d. CUNHA, F. E. T. L. S. V. D. Projeto Político Pedagógico- Organograma. Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha. Novo Hamburgo, s/d. EQUIPE DIRETIVA. Planos de Estudos e Planos de Curso: chamado à reflexão. Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha. Novo Hamburgo, 2001.