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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ARTES
MOIRA JUNQUEIRA GARCIA
A PERSONAGEM CÔMICA DAS PEÇAS MELODRAMÁTICAS
ENCENADAS PELO CIRCO NERINO
Campinas
2015
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES
MOIRA JUNQUEIRA GARCIA
A PERSONAGEM CÔMICA DAS PEÇAS MELODRAMÁTICAS
ENCENADAS PELO CIRCO NERINO
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Instituto de Artes da Universidade Estadual de
Campinas como parte dos requisitos exigidos
para obtenção do Título de Mestra em Artes da
Cena, na Área de Concentração Teatro, Dança
e Performance.
Orientadora: Prof.ª Drª Larissa de Oliveira Neves
Este exemplar corresponde a versão final da Dissertação de Mestrado defendida pela aluna Moira Junqueira Garcia e orientada pela Profa. Dra. Larissa de Oliveira Neves.
Campinas
2015
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus por me permitir percorrer esta longa estrada acadêmica de
descobertas e transformações. Aos meus pais Solange e Paulo pelo incentivo aos estudos e desenvolvimento
intelectual. Ao meu companheiro e amor João Levi que sempre me apoiou e contribui,
sobremaneira, para uma reflexão mais crítica acerca do trabalho. Aos nossos frutos:
Olívia e Rebeca, duas bênçãos em nossas vidas. À Larissa por todo apoio, orientação e inúmeros ensinamentos conquistados nesta
trajetória. A todos os meus familiares dos quatro cantos do país: São Paulo, Campo Grande e
Fortaleza. Aos meus amigos de graduação, em especial: Fernanda Jannuzzelli (pelas
conversas e afinidades temáticas), Hosana Mariotti, Gabriela Guinatti, Aline Olmos e
Letícia Frutuoso. Ao grupo Letra e Ato pelos aprendizados e trocas, em especial a Elen de Medeiros
por ministrar a disciplina que mais contribui para este trabalho. Aos professores Mario Alberto de Santa e Mario Fernando Bolognesi, pelas
importantes contribuições no exame de qualificação. A todos os colegas e professores de graduação em Artes Cênicas da Unicamp, em
especial ao professor Rubens Brito, pelo ponta pé inicial na cultura popular, a
Roberto Mallet, pelos inúmeros ensinamentos de arte e vida, a Luiz Monteiro,
cearense arretado que me apresentou o circo na prática. A Elder, Luiz, Bento, Benê,
Dalvina, Letícia, Neuza, Márcia, Rodolfo, Vinícius e demais funcionários do Instituto
de Artes. A Verônica Tamaoki pela generosidade em que me acolheu e apresentou ao
universo do Circo Nerino. A Ronita Avanzi e, em especial, a Roger Avanzi por terem me possibilitado uma boa
conversa sobre a incrível história do Circo Nerino.
A Walmir dos Santos e sua esposa Marisa.
Ao Centro de Memória do Circo. E, finalmente, à FAPESP pelo incentivo financeiro que viabilizou este estudo.
A gargalhada é o sol que varre o inverno do rosto humano.
Victor Hugo
RESUMO
Esta pesquisa analisa a personagem cômica das peças melodramáticas
encenadas pelo Circo Nerino em meados do século XX. A personagem cômica,
quando presente, costuma dinamizar e apresentar novos aspectos à dramaturgia
melodramática majoritariamente tensa e complicada. Este tipo de história é bastante
apreciada pelo público, e por isso muito encenada nos circos brasileiros da época e
atuais. Visando compreender melhor a temática, escolhemos o Circo Nerino para
complementar a análise textual com elementos da encenação e realização cênica.
As três peças que integram este trabalho foram selecionadas devido à importância
da personagem cômica e ilustram muito bem o que se pretende analisar com este
trabalho. Por fim, os títulos das obras analisadas nesta dissertação:...E o Céu Uniu
Dois Corações, Jerônimo, o herói do sertão e A Mestiça.
ABSTRACT
This research analyzes the comic character of melodramatic plays staged by
Circus Nerino in the mid-twentieth century. The comic character, when present,
usually streamline and introduce new aspects to melodramatic drama mostly tense
and complicated. In the past this type of story was well appreciated by the public, so
far staged in Brazilian circuses of the time. To better understand the issue, we chose
the Circus Nerino to supplement textual analysis with elements of staging and
performing such plays. The three pieces that integrate this work were selected
because of the importance of comic character and illustrate very well what we want to
analyze this work. The titles of the works studied in this thesis: ...E o Céu Uniu Dois
Corações, de Antenor Pimenta, staged in 1949; Jerônimo, o herói do sertão de
Joaquim Silva, staged in 1955 and A Mestiça de Agenor Garcia, staged in 1950.
ÍNDICE
1 - INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................... 12 2 - O CIRCO NERINO E O TEATRO MELODRAMÁTICO ....................................... 14
2.1 - O Circo Nerino .............................................................................................. 14
2.2 - O Melodrama ................................................................................................ 26
2.3 - O Melodrama no Brasil ................................................................................. 31
2.4 – Os tipos do circo-teatro ................................................................................ 35
2.4.1 – Galã e ingênua ....................................................................................... 44
2.4.2 – Centro e dama central ........................................................................... 45
2.4.3 – Cômico e caricata .................................................................................. 45
2.4.4 – Baixo cômico e sobrette ......................................................................... 47 3 - ... E O CÉU UNIU DOIS CORAÇÕES .................................................................. 49
3.1 – A trama......................................................................................................... 49
3.2 – Análise da trama .......................................................................................... 53
3.3 –Personagens ................................................................................................. 58
3.4 – Análise das cenas e personagens cômicas ................................................. 63
3.4.1 – Primeiro ato a comicidade do surdo ....................................................... 63
3.4.2 – Segundo ato a comicidade do gago ....................................................... 65
3.4.3 –Terceiro ato a comicidade do tolo ........................................................... 71
3.4.4 – Quarto ato o declínio da comicidade ...................................................... 79
3.4.5 –Quinto ato fim da comicidade.................................................................. 81
3.5 – Encenação do Circo Nerino ......................................................................... 81 4 – JERÔNIMO, O HERÓI DO SERTÃO ................................................................. 86
4.1 – Os autores e a história ................................................................................. 86
4.2 – Personagens ................................................................................................ 91
4.3 - O popular sertanejo ....................................................................................... 95
4.4 – A personagem cômica de Saci ................................................................... 101
5 – A MESTIÇA ....................................................................................................... 117
5.1 – Os autores e a trama .................................................................................. 117
5.2 - Escravos e senhores ................................................................................... 127
5.3 – A recriação do romance para o palco ......................................................... 135
5.4 – Análise dos momentos cômicos .................................................................. 139
6 – CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 156
7 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................. 164
8 – ANEXOS ........................................................................................................... 172
12
1- INTRODUÇÃO
Esta dissertação de mestrado estuda a personagem cômica das peças de
circo-teatro, mais especificamente as que encontramos nos dramas circenses. Para
realizar esta análise, foram selecionadas três peças do repertório encenado pelo
Circo Nerino: ...E o Céu Uniu Dois Corações, Jerônimo, o herói do sertão e A
Mestiça. Estas peças apresentam um grande destaque para as personagens
cômicas, as quais desempenham uma relevante participação dramatúrgica.
O começo da pesquisa se deu através de um levantamento bibliográfico dos
três principais temas que tangenciam a temática: o circo-teatro brasileiro, o
melodrama e a comicidade. Concomitante foi feita uma pesquisa no Centro de
Memória do Circo em que se buscou localizar o material primário sobre o Circo
Nerino. A intenção de escolher um circo como pano de fundo foi de contextualizar a
dramaturgia em alguma representação, uma vez que se trata de um gênero
dramatúrgico destinado à cena. Nesse sentido, foi dada uma maior preferência a um
circo do passado, cujo repertório melodramático era mais amplo e recorrente na
programação semanal do que se comparado aos circos-teatros atuais. O Circo
Nerino apresenta tais características, e sua contribuição foi muito engrandecedora
para realizar as análises dramatúrgicas realizadas neste trabalho.
As principais fontes utilizadas sobre este circo foram a literária, principalmente
a partir do livro Circo Nerino de Roger Avanzi e Verônica Tamaoki, visual (através de
inúmeras fotos e imagens) e também a partir de duas entrevistas realizadas com
Roger Avanzi e Walmir dos Santos. A escolha de entrevistar apenas estes dois
artistas se deu por protagonizarem a dupla de herói e personagem cômica das peças
analisadas. Com Anita Garcia formavam o trio das principais peças de circo-teatro
que, ao longo de cinquenta e um anos, agradou muitos espectadores de todo o país.
Além deste material foi realizado um levantamento e estudo de peças de
circo-teatro, dramas e comédias, visando conhecer a dramaturgia e histórias. Após a
leitura de inúmeros textos deste gênero foi possível selecionar três peças,
priorizando também os aspectos das encenações que eram realizadas no Circo
Nerino, no começo do século XX. Dessa forma foi possível reconhecer
13
características gerais deste estilo dramático e contextualizá-lo em uma encenação
do passado.
Esta, portanto, é uma pesquisa dramatúrgica e teórica sobre a encenação do
circo-teatro brasileiro, mais especificamente a personagem cômica dos dramas
circenses. Este trabalho lança uma lupa nestas personagens, buscando
compreender suas relações com o enredo, com a dramaturgia e a encenação. Para
isso foi feita uma divisão e em seguida uma análise dos momentos cômicos de cada
texto, buscando definir a comicidade e analisá-la dentro de um contexto específico
de representação.
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2 - O CIRCO NERINO E O TEATRO MELODRAMÁTICO
2.1 - O Circo Nerino
Dentre os muitos grupos circenses do começo do século XX, o Circo Nerino
foi escolhido para este estudo por diversos motivos. Primeiramente, por seu marco
na história brasileira, pois foi um circo de grande porte que percorreu boa parte do
território nacional durante cinquenta e um anos. Em segundo lugar, pela parte
cômica de seus espetáculos, que era muito desenvolvida, principalmente através de
seu grande ícone, o palhaço Picolino. As encenações teatrais, por outro lado,
também eram famosas, e se desenvolveram especialmente depois do casamento
entre Roger Avanzi e Anita Garcia, uma importante atriz dramática do Circo Garcia.
Neste outro circo, o teatro desempenhava um papel central nas apresentações e, a
partir desta união, a noiva, juntamente com seus pais, passou a integrar o Circo
Nerino. Seu pai, Agenor Garcia, se tornou um importante ensaiador1 e foi
responsável pelo desenvolvimento de inúmeros aspectos da encenação, inclusive
por incorporar um palco ao interior da lona.
O Circo Nerino foi fundado em Curitiba no ano de 1913, pouco menos de
oitenta anos do primeiro circo formalmente organizado chegar ao país, o de
Giuseppe Chiarini (SILVA, 2007:58). No final do século XIX, os circos europeus
vieram para o Brasil atraídos pelo crescimento econômico proporcionado pela
borracha e pelo café. Alguns deles resolviam permanecer no país, e para isso
integravam ao espetáculo tendências e costumes locais. Um importante trabalho que
aborda as origens do circo é o livro Circo-teatro: Benjamim de Oliveira e a
teatralidade circense no Brasil, de Erminia Silva. Para a autora, o encontro dos
artistas estrangeiros com as experiências nacionais produziu um espetáculo
diversificado, de relevante mistura artística. Esta mixórdia cultural foi um importante
fator, apesar de não ter sido o único, que possibilitou a permanência destes grupos
no país, por dialogar com os interesses e referências do público local.
1 O ensaiador era uma espécie de diretor do espetáculo. Responsável por orientar o elenco
em relação ao contexto da peça, organizar a movimentação em cena e toda sua composição espacial.
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A mudança que se operou nas pantomimas é um exemplo disso. O enredo
das pantomimas trazidas pelos circos europeus era bem esquemático, baseado em
roteiros de ações, e pautado na figura do Arlequim da commedia dell´arte. No Brasil,
os artistas circenses criaram inúmeras histórias a partir destes roteiros, em que
mantinham as principais estruturas e personagens, mas variavam a trama, inserindo
características locais. Adicionavam ao nome original algum elemento novo desta
recriação, e assim conseguiam aumentar o repertório e se manter mais tempo na
mesma cidade. Dificilmente algo é reproduzido dentro dos circos, pois sempre há o
processo de apropriação e ressignificação do original, além de o contato com o
público gerar mudanças significativas na encenação final.
Os circos, sobre tudo do começo do século XX, costumavam se organizar
como circo-família, e mesmo quando determinado integrante não tinha aptidão para
realizar algum número, ainda havia a possibilidade do teatro, além de todas as
inúmeras funções dos bastidores. Os saberes diversos que compunham o universo
circense eram transmitidos entre os integrantes de maneira rotineira e natural, desde
montar e desmontar a lona, até os números artísticos. Erminia Silva (2009) comenta
sobre a importância da tradição para o circense, que costumava ser transmitida
oralmente e era formada a partir de um coletivo. A tradição circense familiar é um
dos fundamentos principais desta arte, especialmente no início do circo no Brasil.
O Circo Nerino se enquadra neste momento da história, em que a estrutura
familiar, a tradição e a transmissão oral formavam a base de sustentação da arte.
Inclusive o término desta companhia se deu em decorrência da crise na organização
familiar, com a sobreposição de interesses pessoais ao coletivo. Como a história da
acrobata principal do Nerino, Alice Avanzi Silva, que deixou a companhia para
integrar outro circo, a fim de assinar um contrato e ganhar salário.
Meu esteio no circo eram tio Roger e tia Anita. O certo, a meu ver, era eles assumirem a direção do circo. Porque o sistema da minha avó e do tio Gaetan já estava ultrapassado. Eu não recebia salário, por exemplo. É verdade que tinha tudo o que precisava – casa, comida, roupa, médico e dentista quando necessário – mas queria também autonomia. (AVANZI e TAMAOKI, 2005: 312 e 313)
Dentro da estrutura familiar, Alice, neta do Nerino e de Armandine, tinha
privilégios e recebia determinado tipo de tratamento, porém distante dos seus
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parentes as relações sociais eram diferentes. Esta situação retrata uma das grandes
mudanças, em que relações trabalhistas foram necessárias para compor um
espetáculo com um número razoável de apresentações. Entretanto, antes de narrar
o término e os problemas enfrentados por esta companhia, melhor será começarmos
pelo início desta história.
No dia primeiro de janeiro de 1913 estreava pela primeira vez, na capital do
estado do Paraná, o Circo Nerino. Ao longo dos cinquenta e um anos seguintes
percorreu o vasto território brasileiro se auto anunciando como “o circo das
multidões”. De norte a sul do país, viajou de trem, navio, barco e por último de
caminhão, por estradas de terra, em lugares afastados e interioranos. Por ser uma
das poucas atrações artísticas que chegavam às cidades afastadas e interioranas, o
circo conseguia permanecer por alguns meses em uma mesma cidade. Oferece um
espetáculo diversificado e heterogêneo que atraí muitos espectadores, pertencentes
a variadas classes sociais.
O Circo Nerino integra a história circense brasileira do século XX, através do
seu palhaço principal, Picolino, representado há pouco tempo atrás por Roger Avanzi.
Um circo reconhecido e apreciados pelos números de variedades, habilidosamente
executados pelos artistas, e por seu circo-teatro. O espetáculo, como o de diversas
companhias circenses do período, era dividido em duas partes: a primeira com
números de variedades e a segunda com a apresentação de uma peça teatral.
Este circo se estruturou a partir da junção de duas famílias: os Avanzi e os
Ribolá. A primeira com os irmãos Nerino e Felipe e a segunda com os irmãos
Armandine, Gaetan e Myris. Os últimos participavam de um circo de cavalos familiar
na França, porém no ano de 1911 foram surpreendidos por uma tempestade de neve
que atingiu e matou os animais. Então passaram a trabalhar em Paris como
saltimbancos, mas a vida artística da família se tornou difícil e por isto resolveram se
separar. Reneé e Gaetan foram com a mãe para a África, e Myris e Armandine foram
com o pai para a América do Sul. Alguns anos depois se encontraram no Brasil e os
irmãos voltaram a trabalhar juntos no Circo Nerino. Cada um dos irmãos
desempenhou importantes funções na companhia: Armandine e Gaetan dirigiam o
circo, essenciais na condução e administração da empresa, além de trabalharem
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nas duas partes do espetáculo. Myris se casou com Arthur Fernandes, um grande
ator que ensaiou inúmeras peças representadas pela companhia.
A segunda família, Avanzi, não era tradicional de circo, os pais de Nerino e
Felipe trabalhavam nos bastidores do teatro e vieram para o Brasil com uma
companhia de ópera italiana. Decidiram permanecer no país devido ao avanço da
gravidez de Maria Avanzi e passaram a trabalhar no Teatro Polytheama, que no
começo do século XX foi considerado o maior teatro do estado de São Paulo. Dessa
forma, as apresentações que ocorriam neste teatro foi a escola de formação dos
irmãos fundadores do circo que, mesmo sem participar das apresentações, assistiam
aos espetáculos e acompanhavam de perto a arte da representação. Era comum
haver variados estilos desde ópera, teatro, até números de variedades com palhaços
e outros artistas. Dessa forma, os irmãos tiveram, neste período, referências
importantes que, de forma substancial, formaram os artistas que viriam ser. No
começo da carreira, Nerino e Felipe formavam juntos a dupla de Clown Branco2 e
Augusto3. No início, o Augusto era realizado por Felipe (figura 1), porém, como ele
era muito inconstante e às vezes sumia do circo, foi substituído, pois não era
possível que o palhaço principal se ausentasse. Dessa forma, Nerino, que antes
fazia o Clown Branco (figura 1),assume o Augusto principal e cria o conhecido
palhaço Picolino:
Picolino em italiano quer dizer pequenino, uma pessoa pequena – de estatura, é claro. Como meu pai era miudinho, um artista português com quem ele trabalhara em sua juventude só o chamava de Picolino. Quando ele passou de clown para excêntrico, lembrou-se do português e achou que Picolino era um bom nome de palhaço. (AVANZI e TAMAOKI, 2004: 29)
2 “O Clown Branco tem como característica a boa educação, refletida na fineza dos gestos e a elegância nos trajes e nos movimentos. Ele mantém o rosto coberto por uma maquiagem branca, com poucos traços negros, geralmente evidenciando sobrancelhas, e os lábios totalmente vermelhos. A cabeça é coberta por uma boina em forma de cone. A roupa traz muito brilho. O tipo, assim, recupera, no registro cômico, a elegância da tradição aristocráticas, presente na formação do circo contemporâneo.” (BOLOGNESI, 2003: 72)
3 “No Augusto, tudo é hipérbole. A roupa é larga, os calçados são imensos, a maquiagem é exagerada e enfatiza sobremaneira a boca, o nariz e os olhos. Esta figura, que está presente na atualidade do circo brasileiro, é fruto direto da sociedade industrial e de suas contradições.” (BOLOGNESI, 2003: 78)
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Figura 1 – (Esq.) Felipe Avanzi. (Dir.) Nerino Avanzi. Fonte: AVANZI e TAMAOKI, 2004: 28
O
palhaço Picolino tinha muita importância para este circo, fora herdada desde Felipe
passando por Nerino e seguindo com seu filho, Roger Avanzi. Os artistas
procuravam manter as mesmas qualidades da personagem, principalmente porquê
funcionavam no contato com o espectador. Nerino, aos 70 anos, em virtude de um
problema grave na perna causado por um eczema, precisou se afastar do picadeiro,
então seu filho assumiu sua função. Esta é uma característica marcante do
aprendizado circense: o saber e a criação artística não são individuais, mas
transmitidos de geração em geração, tal como aconteceu com o palhaço Picolino,
como podemos ver na figura de número dois. Os elementos que funcionavam na
relação com o público (o figurino, a maquiagem, as principais ações) se mantinham e
não havia a intenção de recriá-los. Em muitos relatos do livro Circo Nerino, de
Verônica Tamaoki e Roger Avanzi,os espectadores comentam a presença marcante
de Picolino, muitos dizem que iam ao espetáculo somente para assisti-lo.
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Figura 2 - Roger Avanzi Filho, Nerino Avanzi e Roger Avanzi Fonte: AVANZI e TAMAOKI, 2004: 261.
Figura 3 - Garrafinha e Picolino II Fonte: Acervo pessoal de Walmir dos Santos
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Através do casamento de Armandine Ribolá e Nerino Avanzi surge a união
artística destas duas famílias que, um ano após o matrimônio, culminou na criação
do Circo Nerino. Antes de se aventurarem na empreitada de construir um novo circo,
as duas famílias trabalhavam juntas no Circo Chileno, que começara sua temporada
no Brasil. Estavam em Curitiba quando Nerino, Armandine, Felipe e mais dois
artistas decidiram se desligar da grande companhia que era o Circo Chileno para
montar seu próprio circo. Um fator importante ressaltado por Roger no livro Circo
Nerino como impulso para esta empreitada foi o fato de ter muita madeira no Paraná,
já que montar um circo de pau fincado era um empreendimento custoso. Na figura
quatro podemos ver a primeira formação do Circo Nerino, um pouco mais de dez
anos da data de sua fundação.
Figura 4 – Primeira formação do Circo Nerino Fonte: AVANZI e TAMAOKI, 2004: 36 e 37.
Desde o começo o espetáculo era dividido em duas partes: a primeira de
variedades (na qual apresentavam atrações de pirâmide humana, números de
equilíbrio, trapézio, corda bamba, números de palhaço, entre outros), e a segunda,
que passou por muitas modificações, desde as comédias mudas representadas pelo
palhaço, até se consolidar com o teatro, permanecendo até o último espetáculo da
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trupe. Logo na fundação do Circo Nerino, na segunda parte do espetáculo eram
encenadas comédias mudas de Picolino. Também tiveram episódios de luta livre, em
que lutadores locais eram desafiados, e um período de circo-cinema.
Antigamente, o espetáculo circense no Brasil era apresentado em duas partes. Na primeira, levava-se a acrobacia, malabarismo, trapézio, bailados, cavalos, entradas e reprises de palhaço, e na segunda, teatro. Tudo começou com o palhaço – o palhaço é sempre o culpado de tudo -, com as comédias, tipicamente circenses, cujo enredo sempre gira em torno dele. Meu pai dizia que no início essas comédias eram mudas, só tempos depois passaram a ser faladas. O repertório de comédias apresentado pelas diversas companhias que circulavam pelo país era praticamente o mesmo, o que mudava eram os nomes. A Casa dos Fantasmas, por exemplo, era levada também como Casa Mal-Assombrada ou O Esqueleto. E frequentemente o nome do palhaço era incorporado ao da peça. Então ficava assim: Picolino na Casa Mal-Assombrada; Piolin, Professor de Clarinete; Chimarrão e o Doutor Redondo; e por aí vai. (AVANZI e TAMAOKI, 2004: 33)
Figura 5 – (Esq.) Cartaz do Circo Nerino. (Dir.) Picolino protagonizando peça. Fonte: AVANZI e TAMAOKI, 2004 (Esq.) 66. (Dir.) 321.
Na figura acima vemos um cartaz de uma peça protagonizada por Picolino e a
outra é do Picolino atuando nas comédias de picadeiro. Este foi um fenômeno que
aconteceu em diversos circos do período e ainda podemos observar nos circos-
teatros atuais: mudar o título da comédia adicionando o nome do palhaço principal
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do circo, como mencionado no fragmento acima. Para Erminia Silva, a origem da
junção teatral com a circense não se deu a partir de uma combinação casual, mas
de algo que já vinha se processando nos circos. Os palhaços, das pantomimas
mudas, também se apresentavam com algum instrumento musical na primeira parte
do espetáculo. De acordo com a autora, aos poucos a fala adentrou no momento
musical e influenciou as pantomimas cômicas de alguma maneira. Erminia traça,
através da trajetória do conhecido palhaço Benjamin de Oliveira, o princípio do
casamento tão bem-sucedido entre o circo e o teatro. Esta união evidencia uma
característica interessante do espetáculo circense: agregar diferentes linguagens e
manifestações artísticas, sempre considerando o gosto e aceitação do público.
No Circo Nerino o teatro integrou definitivamente a programação diária, depois
de algumas tentativas de preencher a segunda parte com outras atrações. O
sucesso teatral foi tão grande que o fez permanecer até o último espetáculo da trupe,
no ano de 1964. A primeira peça com texto teatral foi O Mártyr do Calvário ou A
paixão de Cristo, encenada em 1930, amplamente representada em diversos circos
da época. Como o público pedia para assistir esta narrativa, o Nerino resolveu
encená-la, mas sem a pretensão de se tornar um circo-teatro, porém devido ao
enorme sucesso, mais a frente se tornou também um circo-teatro. Nas fotos a seguir,
retiradas do livro Circo Nerino, podemos observar como eram os figurinos e cenários
desta montagem.
Figura 6.A - A paixão de Cristo Figura 6.B – A paixão de Cristo Fonte: AVANZI e TAMAOKI, 2004: 93 Fonte: AVANZI e TAMAOKI, 2004: 104 e 105
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Figura 6.C – A paixão de Cristo
Fonte:AVANZI e TAMAOKI, 2004: 120 e 121
Somente no ano de 1937, com a peça O Signal da Cruz, cujo enredo era
baseado em um filme, o teatro passou a ser uma constante em todos os espetáculos.
Neste ano ensaiaram diversas peças, visando formar um primeiro repertório teatral
para a segunda parte do espetáculo. Antes disso, o circo apresentava o cinema,
porém, em Taubaté, recebeu a visita dos exibidores de filmes da cidade, a fim de
saber se aquele espetáculo era de circo ou cinema. Como o cinema não tinha
sucesso, eles devolveram os projetores alugados e o Nerino deixou de ser circo-
cinema. Na praça anterior, em São José dos Campos, encontrou com o famoso
Circo-Teatro Pavilhão Arethuzza, conhecido por seu teatro dramático com destaque
para a atriz Aretusa Neves. O encontro de grandes circos era visto sempre com
receio, como podemos observar pelo depoimento de Roger:
Mas, para mim, uma das competências de um circo não é deixar que a disputa de uma competência se transforme numa guerra. Não precisa colar seu cartaz em cima do cartaz do outro. Nesse quesito o Arethuzza e Nerino foram bastante competentes. É verdade que a diferença entre os espetáculos da companhia atenuou a disputa. Porque enquanto o forte do Nerino, que tinha como chamariz um palhaço, eram as comédias, os dramas faziam a fama do Arethuzza, que tinha como chamariz uma atriz dramática, Aretusa Neves. (AVANZI e TAMAOKI, 2004: 79)
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Estas ocasiões, de encontros entre circos, eram propícias a trocas artísticas, e
o Nerino pode observar, nesta ocasião, como o repertório dramático do Arethuzza
fazia sucesso. Alguns meses depois, em Bicas (MG), estrearia O Signal da Cruz, e
nos meses seguintes encenaria sete peças do primeiro repertório teatral da
companhia. No começo, as peças eram realizadas no picadeiro e não contavam com
o auxílio do ponto. Este, além de soprar as deixas, controlava as entradas e saídas
dos atores e era responsável pela iluminação, sonoplastia, subida e descida da
cortina, auxiliando em toda a encenação. Esta função passou a ser utilizada
amplamente nos circos a partir da necessidade de formar um vasto repertório
dramático, que permitisse variações diárias. O Circo Nerino passou a utilizar este
recurso no ano de 1949, a partir da instalaçãodo palco, realizada por Agenor Garcia.
Podemos ver na figura de número sete atravésda planta baixa deste circo, já com o
advento do palco.
Figura 7– Planta baixa do picadeiro com palco Fonte:AVANZI e TAMAOKI, 2004: 205.
Agenor e sua filha pertenceram ao famoso Circo Garcia, amplamente
reconhecido por seu repertório teatral, Anita era uma grande atriz de circo-teatro e
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seu pai o ensaiador e adaptador de peças. Dessa forma, o Circo Nerino foi
presenteado com duas personalidades que contribuíram para o desenvolvimento e o
aprimoramento teatral. Neste momento, a temática das peças deixou de ser
majoritariamente sacra e apresentou preocupações relacionadas ao cotidiano da
época, despertando ainda mais o interesse dos espectadores. Roger Avanzi, em
entrevista, comentou sobre a importância da recepção do público na escolha do
repertório semanal:
Levávamos a Paixão de Cristo também, a vida de Jesus. Quase todos os circos apresentavam a vida de Jesus, mas só na semana santa, sexta-feira santa, e nós levávamos sempre, porque estávamos no Nordeste e Norte e eles eram muito religiosos, naquele tempo hoje mudou muito. Tinha cidades que a gente tinha que dá duas sessões e o povo fica esperando fora do circo para assistir a segunda sessão. (Roger Avanzi em entrevista realizada em 18/03/2014) A presença (ou influência) circenses nas suas atividades não pressupunha só saber fazer exercícios acrobáticos, engolir espadas ou comer fogo (o que já não era pouco), mas também a forma de combinar e unir tudo isto em espetáculos capazes de atender a ‘plebe e a burguesia, o escravo e a família, o aristocrata e o homem de letras’. Os circenses, no seu nomadismo, ocupavam, então, diversos espaços, desde praças até variados palcos teatrais. (SILVA, 2007: 70)
Conforme enfatiza Erminia Silva, atender aos interesses de um público
eclético sempre foi uma prerrogativa da arte circense, capaz de encantar desde os
mais pobres à elite burguesa e, inclusive, intelectual. Em qualquer fase de sua
história o circo sempre foi um espetáculo agregador tanto de público quanto de
atrações. A relação entre espetáculo e público é recíproca e dependente, pois é feito
para agradar e se molda a estas necessidades.
A comunicação entre o público e artistas circenses, em diversos momentos,
se dava pelo rádio, e o Circo Nerino tinha sua própria estação, apesar de não ter
autorização oficial para funcionamento. Porém como “o serviço de rádio transmissão
no país ainda era criança” (AVANZI e TAMAOKI, 2004: 82) foi possível manter por
alguns anos a transmissão. Em diversos momentos da história deste circo o rádio foi
um polo agregador entre artistas e público, o que permitia o intercâmbio de
interesses e informações, além de os artistas circenses participarem das origens do
rádio se apresentando e usufruindo deste importante meio de comunicação.
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A relação estreita que o circo busca estabelecer com seu público é
responsável por trazer um dinamismo ao espetáculo e atualizá-lo de acordo com as
mudanças sociais em curso. Como, por exemplo, no começo do século XX, a
preferência do público pelo gênero melodramático. Atualmente, porém, a situação
que se observa em diversos circos é diferente, pois a preferência é voltada para as
comédias protagonizadas pelos palhaços e personagens cômicas. O Circo de Teatro
Tubinho, em atividade desde 2001, transforma, com facilidade, antigos dramas em
comédias, dialogando com a preferência dos espectadores. Quando assim feito, a
personagem cômica do melodrama ganha destaque e importância na encenação
final do espetáculo, a ponto de se tornar a protagonista da história. Muitas vezes, o
nome do palhaço principal do circo é incorporado ao título da peça, tal como era feito
no começo do circo-teatro brasileiro com as comédias de picadeiro.
Esta pesquisa selecionou um momento da história em que o melodrama era
mais apresentado e apreciado pelo público. Geralmente este estava inserido na
segunda parte do espetáculo, na parte teatral, nas peças que os circenses chamam
de drama. Os dramas eram assim chamados por apresentar histórias cujo tom
cômico não era preponderante, e faziam parte deste momento melodramas,
tragédias, autores clássicos, autores nacionais – principalmente da comédia de
costumes 4 representada nos edifícios teatrais. Como este trabalho tem o enfoque
de estudar a personagem cômica do melodrama foi uma prerrogativa escolher um
circo do passado, cujo repertório era mais dramático e não tinha o tom cômico
preponderante que percebemos atualmente.
2.2 - O Melodrama
O melodrama surgiu na Itália, no século XVII, ligado à ópera italiana,
designava na época um drama inteiramente cantado (THOMASSEAU, 2005: 16),
responsável por juntar texto e canção. Chegou à França, no contexto da Revolução
Francesa, e se popularizou principalmente após o édito de liberação da construção
de teatros públicos, em 1791, ocasião que permitiu a qualquer cidadão representar
4 A comédia de costumes foi um gênero dramático inspirado em Molière que se desenvolveu
e destacou no Brasil, no final do século XIX e começo do XX. Caracteriza-se pela criação de tipos e situações da época, apresentando sempre uma sutil sátira social.
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peças de todos os gêneros dramáticos nestes edifícios. Esta medida possibilitou que
o teatro fosse frequentado por diferentes classes sociais, uma vez que seu histórico
era de um ambiente elitizado e restrito. Desse modo, os melodramas despertaram a
atenção popular e das elites sociais, pois buscavam conciliar diversas ideologias e
reconstruir valores nacionais. Pixerécourt, conhecido dramaturgo do gênero,
comenta que se lançou na carreira teatral motivado por ideias religiosas e morais e,
para ele, o melodrama era um meio de instrução para o povo.
Jean-Marie Thomasseau, em seu livro intitulado O melodrama, distingue as
inúmeras fases do gênero e suas principais características. A primeira delas é a do
Melodrama Clássico (1800-1823), em que os criadores buscaram estabelecer regras
de construção dramatúrgica com a intenção de conquistar um estatuto literário e
teatral reconhecido. Na época, havia um predomínio das regras e convenções
criadas durante o teatro clássico francês, apesar de o drama romântico já apontar
como uma nova dramaturgia. As leituras classicistas de Aristóteles, até então,
predominavam como sendo o expoente de construção dramatúrgica e as
convenções teatrais eram permanentemente debatidas e comentadas. A inspiração
original era vista com muitas ressalvas e deméritos, por isso os autores
melodramáticos se viam obrigados a justificar e definir minuciosamente sua criação.
Dessa forma, mantiveram obediência à regra das três unidades5, entretanto
buscavam dialogar com os diversos públicos que compunham o cenário teatral da
época, através de uma linguagem mais popular e comunicativa. Um dos objetivos
deste gênero, no início de sua criação, era conciliar a tragédia e a comédia em torno
de um enredo cuja temática geralmente se apresentava violenta e complicada.
A segunda fase é a do Melodrama Romântico (1823-1848), em que
observamos uma grande mudança na mentalidade coletiva, com o declínio dos
valores tradicionais, cívicos e guerreiros (Thomasseau, 2005: 63). Novos elementos
são introduzidos na temática e na tipologia do gênero, como a transformação dos
bandidos, antes banidos e rechaçados, em heróis, uma vez que novos tipos sociais
se popularizavam através dos romances. Uma tônica é dada ao exagero e à
desmedida, a paixão amorosa inflama o palco. Algumas temáticas, impensáveis
5 A regra das três unidades diz respeito à interpretação da Poética de Aristóteles pelos doutos
franceses do século XVIII. Nestes estudos, intelectuais franceses comentavam sobre os quesitos necessários para a construção dramática: obedecer às unidades de tempo, espaço e ação.
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durante a fase do melodrama clássico, se tornam cada vez mais presentes, como o
adultério, filhos bastardos, crianças perdidas e reencontradas. As três unidades não
são mais essenciais e o enredo passa a apresentar diversos lugares e ambientes,
através de telões pintados.
A fase posterior é chamada por Thomasseau de Melodrama Diversificado
(1848-1914) e subdivide quatro inspirações melodramáticas deste período. A
primeira delas é o Melodrama Militar, Patriótico e Histórico, influenciado pelas
guerras do Segundo Império e pela retomada da expansão colonial francesa. Este
tipo romantiza e narra episódios históricos dentro do contexto melodramático,
apresentando à população uma versão particular dos fatos. Nestes textos, um
ofegante episódio de perseguição conseguia atrair e conquistar muitos espectadores
aos bulevares da época.
As questões de família serão abordadas no Melodrama de Costumes e
Naturalista6, as quais, a partir da ascensão de novos estratos sociais, apresentam
um diálogo, principalmente amoroso, entre as diferentes classes sociais. Neste tipo
de melodrama, as reivindicações dos movimentos anarquistas, dos protestos
operários e a ascensão do socialismo, influenciaram sobremaneira as histórias deste
período. Nas fases anteriores, a possibilidade de uma pessoa pobre melhorar sua
condição financeira era algo impensável e somente nesta se tornou possível. Este
tipo de situação correspondia diretamente às necessidades e interesses do público,
e se encaminhou, em muitos textos, para uma estética naturalista. Na qual a
representação visa dar a ilusão de realidade e a interpretação dos atores também,
inclusive é comum dizermos que há uma quarta parede, invisível, no palco, que
separa os espectadores dos artistas.
Outro tipo, da divisão proposta por Thomasseau, era o Melodrama de
Aventura e de Exploração, influenciado pelas invenções científicas e os novos
territórios que a tecnologia possibilitou descobrir. Os espaços “exóticos”, como as Américas, exerceram grande fascinação nos autores, por criar uma atmosfera de
epopeia e de perigos, cenário ideal para as intrigas do gênero. O último tipo é o
Melodrama Policial e Judiciário, época de popularização dos jornais policiais que
6 “A representação naturalista se dá como sendo a própria realidade, e não como uma transposição
artística do palco. B. DORT a define como ‘tentativa de construir a cena num meio coerente e concreto que, por sua materialidade e fechamento, integra o ator (ator-instrumento ou ator-criador) e propõoe-se ao espectador como a própria realidade”(1984:11)”(PAVIS, 2005: 261)
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exageravam, ou mesmo falsificavam, notícias com o intuito de aumentar as vendas,
na França eram conhecidos como canards. Os melodramas se inspiravam em casos
relatados por estes jornais, explicitando e intensificando uma característica presente
nesta dramaturgia: o herói, perseguido injustamente, depois de muitas situações
desfavoráveis consegue, no último ato, comprovar sua inocência.
Uma importante característica desta dramaturgia é de acompanhar os
movimentos teatrais e sociais mais modernos, que a permite perdurar tantos séculos
e ser representada até os dias atuais em teatros, circos e nos meios digitais. O
diálogo com os espectadores tanto em relação à temática quanto à linguagem é o
aspecto motivador dos autores e encenadores deste estilo. Pixerécourt, dramaturgo
francês da época de fundação, é conhecido por valorizar os aspectos da encenação
de suas peças e por realizar uma comunicação direta e eficaz com o público. Todos
estes fatores contribuíram para a perpetuação deste estilo, o qual se adaptou com
facilidade a diversos espaços de representação, inclusive ao espetáculo circense.
O enfoque na encenação se deve, principalmente, à simplicidade da estrutura
dramática, a qual Ivete Huppes identifica como bipolar, em dois níveis: horizontal e
vertical. Horizontalmente opõe personagens representativas de vícios e virtudes, em
que as personagens negativas geralmente se mostram mais dinâmicas do que os
heróis, porém, ao final da trama, a virtude é reestabelecida e a boa ordem é
confirmada. Verticalmente alterna os sentimentos de desolação e desespero com os
de serenidade e euforia. A tensão é apresentada pelo conflito principal e se mostra
crescente ao logo da história, muitas vezes é suspensa por acontecimentos que se
relacionem indiretamente com o curso da narrativa, com o objetivo de distrair a
atenção do espectador e aumentar o impacto diante das terríveis ações. As
personagens cômicas participam destes momentos e são responsáveis por gerar
euforia e apresentar diferentes nuances ao enredo majoritariamente dramático. Uma
vez que o esquema básico se apresenta limitado, a criatividade dos autores se
focará na construção da intriga, com o objetivo de criar diferentes emoções e
sensações, principalmente através da surpresa iminente. A pretensão é envolver a
plateia na ilusão teatral através de arranjos visuais e sonoros, além da possibilidade
de o autor desdobrar o enredo conforme achar necessário e pertinente.
O número de personagens pode variar conforme a demanda da narrativa,
porém há tipos que sempre estarão presentes, tais como o vilão (que pode ser
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desempenhado por mulheres), a vítima, o herói e o bobo. As características físicas e
o comportamento de cada tipo7 devem ser imediatamente identificados pelos
espectadores e não variam no decorrer da trama, por isso são definidos assim e não
como personagens. Um exemplo é o estereótipo do vilão que se veste de preto ou
cores escuras, geralmente tem os cabelos negros e o rosto pálido, suas maléficas
intenções se mantêm invariavelmente ao longo de toda a história. Pode também
haver um vilão cuja aparência é de honestidade e de grandeza e, portanto, se
caracterizará de outra maneira, porém seu fim será mais trágico e violento do que o
primeiro devido a sua dissimulação. Mesmo quando assim ocorrer, algum outro
elemento cênico ou do enredo indicará a falsidade deste tipo, como, por exemplo, a
utilização de uma música de suspense na sua entrada. A heroína, em contrapartida,
é delicada, bondosa, sensível, sua voz é suave e se veste de tons claros. Estas
características criam códigos claros com os espectadores, que se manterão de um
melodrama para outro.
Os quatro principais tipos, segundo Jean-Marie Thomasseau, são: o vilão,
personagem mais dinâmica da trama, geralmente atua como o principal motivador do
enredo. A inocência perseguida (mais comum ser desempenhada por mulheres, mas
também pode ser um herói) personagem pura e virtuosa, personificação da moral,
sofre as ações impiedosas do vilão. A personagem cômica, responsável por
desencadear o distanciamento em relação à história, atuando de maneira oposta à
dramática, gera momentos de descontração e euforia. O pai nobre (que também
pode ser representado por uma mulher mais velha) resguarda a moral e representa
uma autoridade que, devido à idade e a experiência, impõe respeito.
A moral é um dos aspectos mais importantes deste gênero, que, desde sua
criação, motiva os autores a criarem obras cujo enfoque é cultivar bons hábitos
sociais e culturais. Os valores familiares, relacionados à pátria e à religião cristã são
os mais ressaltados nas peças melodramáticas, principalmente através da exaltação
das personagens virtuosas em detrimento dos vícios representados pelos vilões e
seus companheiros. Os bons costumam gerar uma identificação com os
espectadores, apresentam um apreço pelo dever, muitas vezes em detrimento da
7“Há criação de um tipo logo que as características individuais e originais são sacrificadas em
benefício de uma generalização e de uma ampliação. O espectador não tem a menor dificuldade em identificar o tipo em questão de acordo com o traço psicológico, um meio social ou uma atividade.” (PAVIS, 2005: 410)
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própria vontade, pois os interesses coletivos se sobrepõem aos particulares. Os
maus, por sua vez, têm a característica de satisfazer os próprios desejos, os quais
costumam estar em conflito com alguma outra personagem. Aos oprimidos resta
confiar na Providência Divina e na justiça para aplacar as inúmeras desgraças
vividas.
Cada uma das fases do gênero apresenta a verticalidade em algum aspecto
moral que determinada sociedade precisaria conquistar. Ao colocar em embate
personagens boas e más, o autor apresenta valores sociais que deseja suprimir,
através dos vícios dos vilões, e exaltar, com os heróis. Thomasseau menciona um
trecho do livro Livro dos Cento e Um de Pixerécourt que ilustra, de maneira resumida,
os aspectos morais que os autores desejavam atingir:
Não podemos negar ao melodrama a justiça de reconhecer que é ele que nos reconta melhor e mais frequentemente os assuntos nacionais, gêneros de espetáculo que deve ser representado em todos os lugares. Ele dá à classe da nação que mais deles necessita belos modelos de atos de heroísmo, traços de bravura e fidelidade. Ele instrui assim a tornar-se melhor, mostrando, mesmo em meio a seus prazeres, os nobres caracteres desenhados em nossos anais (...). O melodrama será sempre um meio de instrução para o povo, porque ao menos este gênero está a seu alcance. (THOMASSEAU, 2005: 49)
2.3 - O Melodrama no Brasil
A vinda da família real portuguesa para o Brasil, no ano de 1808, promoveu a
construção de edifícios teatrais e o costume de frequentar estes espaços começou a
se desenvolver entre a população livre.
A identificação das raízes portuguesas do teatro brasileiro é importante para a matéria a ser tratada aqui, porque ajuda a localizar um gosto comum em ambos os países: o gosto que está situado na origem do teatro mais popular da época, ou seja, o melodrama de temática sentimental. Esta tendência tinha chegado de Portugal através da França e veio para o Brasil mais rapidamente em função das excursões das companhias teatrais. As canseiras das viagens transatlânticas tinham que encontrar compensação à altura. Não admira, portanto, que as companhias escolhessem o repertório de aceitação mais imediata e com essa iniciativa acabassem influenciando a sedimentação de valores estéticos. (KIST, In. FARIA, 2012: 75 e 76)
32
Reconhecer as raízes portuguesas, com fortes influências francesas, dessa
vertente do nosso teatro contribui para compreender alguns pontos, principalmente
referentes ao gosto popular. Ivete Susana Kist, no texto citado acima, menciona
algumas obras de dramaturgos do século XIX, que não são tão reconhecidas pela
história teatral convencional, como tendo sido influentes para o estabelecimento da
nossa dramaturgia. Entretanto começa descrevendo a importância de Gonçalves de
Magalhães, o conhecido precursor do teatro romântico.
O posicionamento estético de Magalhães oscilava entre a tendência
neoclássica (representada pela tragédia) e o romantismo (através do drama histórico
e, sobretudo, do melodrama). Os autores dramáticos deste período que mais
buscavam dialogar com o público apresentavam uma tônica melodramática
acentuada, e os outros, que se propunham satisfazer um público mais erudito,
acharam na tragédia maior substrato.
Tanto o melodrama como o drama histórico se distanciam da contenção clássica, que dita as regras da tragédia. Desenvolvendo histórias cheias de meandros e de surpresas, ambos requerem cenários complexos. Ficam para trás os austeros paços reais das tragédias mais conhecidas, o despojamento do espetáculo, a ação concentrada no tempo e no espaço, envolvendo um número pequeno de personagens, pouca ação física e linguagem versificada. Ao contrário, os personagens dos dramas e melodramas se deslocam por espaços variados e têm nos arranjos cênicos um forte aliado para caracterizar os sentimentos que os envolvem. Iluminação, movimento, figurinos e múltiplos elementos plásticos são convocados para compor cenários impressionantes. (KIST, In. FARIA, 2012: 78)
Luís Antônio Burgain é um exemplo de autor que buscava conciliar a
encenação de suas peças com o gosto popular dos espectadores, para isso,
escreveu muitos dramas históricos e melodramas. Suas tramas se localizam em
épocas passadas e em geral são inspiradas em assuntos portugueses e brasileiros,
o que bastava para a temática ser considerada nacional, uma vez que a maioria dos
escritores da época não ambientavam suas tramas no Brasil. Outra característica
relevante para popularização de seu trabalho era o fato de alternar momentos de
seriedade com os de comicidade, descontraindo e dando um especial colorido à
encenação. Outro autor deste período foi Martins Pena, que antes de se dedicar às
comédias, escreveu cinco melodramas, porém, ao contrário do que se imagina, não
havia nenhuma abertura cômica. Ele nomeava suas peças de “dramas”, apesar dos
33
indícios melodramáticos, entretanto neste período era comum haver esta confusão,
por ser o momento de estabelecimento do gênero e também devido a um relevante
episódio:
A confusão atravessou o Atlântico e chegou ao Brasil. Em 1836, quando João Caetano encenou dramas de Victor Hugo e Alexandre Dumas (O Rei Se Diverte e A Torre de Nesle, respectivamente) e melodramas como Trinta Anos ou A Vida de um Jogador e Os Seis Degraus do Crime, o primeiro crítico teatral brasileiro, Justiniano José da Rocha, colocou-os todos sobre a mesma rubrica de dramas românticos. Assim, não admira eu nossos primeiros autores dramáticos importantes, Luís Carlos Martins Pena e Luís Antônio Burgain, tenham escritos melodramas, chamando-os de dramas. (KIST, In. FARIA, 2012:78)
Esta ausência de clareza entre os estilos dramatúrgicos era muito comum
também no ambiente circense, uma vez que muitos melodramas são chamados até
hoje de dramas pelos artistas. Não havia a necessidade de nomear e seguir os
padrões de determinada dramaturgia, mas de absorver aquele material, ressignificá-
lo e apresentar ao público, despertando-o o interesse. Dessa forma criavam os
dramaturgos circenses, cuja autoria e definição de gênero, eram para eles
secundários, uma vez que o que importava mesmo era a relação com o público.
Voltando ao teatro e autores representados nos edifícios teatrais, o que era
mais apreciado na obra de Burgain era a maneira incrível de alternar momentos
cômicos com dramáticos, resultando disso uma maior predileção do público. Outros
autores como Antônio Gonçalves Teixeira e Souza, Antônio de Castro Lopes,
Francisco Antônio de Vernhagen e Pedro José Teixeira também participaram do
advento e estabelecimento do teatro romântico no país, oscilando entre o gosto
antigo da tragédia neoclássica e os dramas e melodramas.
O melodrama passa a oferecer, para um público distante da linguagem cênica
de palco, um espetáculo total, no qual a representação tem importância equivalente
à história e com ela entrelaça quatro sentimentos básicos: o medo, o riso, o pesar e
o entusiasmo. Principalmente por ser um espetáculo que busca envolver
emocionalmente os espectadores e lhe manter atento e envolvido, a encenação e o
texto se aliam a fim de obter sucesso junto ao público. Os autores citados acima
tiveram que aceitar esta demanda popular e, para isso, mudanças significativas no
enredo e no espetáculo foram necessárias. Este período foi bastante relevante para
34
a construção da identidade cultural do país que, ao dialogar com o gosto popular,
tornou a difusão do teatro mais fácil.
Nesse sentido, cabe ressaltar a importância da comédia para o
estabelecimento das artes cênicas brasileiras. Neste momento a representação era
inspirada no Iluminismo francês tanto no que diz respeito à função pretendida
(através da ideia de adensamento cultural e tentativa de civilizar povoações
diferentes), quanto à forma artística. Isto ocasionou um grande descompasso, pois
nem o contexto histórico e nem essa forma artística faziam parte de nossa realidade
brasileira. Os princípios liberais da Revolução Francesa estavam distantes da
sociedade brasileira, além de a população ter pouca relação com a representação
cênica de palco, embora os autores teatrais conhecessem muito bem a arte europeia.
Não por acaso o gênero teatral que mais floresceu entre nós foi a comédia,
estruturalmente apoiada na fratura, nos equívocos e na instabilidade de suas
relações, tal como o contexto brasileiro se apresentava.
A comédia de costume, como viria a ser chamada, versava sobre os hábitos
da época, satirizando alguns pontos frágeis da nossa cultura em formação. O século
XIX, no Brasil, foi um período de muitas transformações relativas à política, a
questões sociais e culturais, até mesmo relacionadas à estruturação física das
capitais. Foi o momento da conquista da independência, abolição da escravidão,
consolidação de um regime democrático, e a comédia foi para muitos uma maneira
de comentar os aspectos sociais abalados por estas mudanças. A comédia tinha
mais liberdade do que o drama para abordar assuntos diversos, favorecida pelo tom
jocoso e despretensioso. Além disso, e assim como os melodramas, eram preferidas
pelo grande público e se desenvolveram de modo mais constante no nosso país.
Melodramas e comédias foram os gêneros dramáticos mais apreciados por
grande parte da população brasileira do período e fundaram alguns dos princípios da
arte representativa nacional. Podemos dizer que não era algo novo e totalmente
desconhecido da população, pois neste período também começaram a chegar os
circos europeus. Antes disso havia alguns artistas que apresentavam números de
variedades, superação humana e pantomimas em feiras e festas populares.
Herdeiros da commedia dell’arte, apresentavam um espetáculo variado, em que
habilidades humanas eram testadas e havia o momento da encenação de histórias,
que eram baseadas em um roteiro de ações.
35
A commedia dell’arte italiana girava em torno de figuras cômicas e havia
sempre um casal de namorados, que dialogavam com o gosto posterior pelo
melodrama e por histórias cujos conflitos giram em torno da dupla. Na origem desta
manifestação artística utilizavam-se máscaras, porém no circo, anos depois, os tipos
serão caracterizados sem esse adereço, salvo pela pequena máscara do palhaço,
com seu nariz vermelho. A interpretação dos atores circenses é bastante estilizada e
esquemática, remontando a esta origem popular europeia.
Fernando Neves8, em entrevista concedida à dissertação de mestrado de
Fernanda Jannuzzelli, comenta sobre as “máscaras” criadas para o circo, cuja
origem remonta à commedia dell’arte italiana. Apesar de não ser inventada a partir
de um objeto, Neves comenta que a “máscara” circense seria formada a partir da
maquiagem, dos adereços e figurinos para caracterizar determinado tipo. Os
circenses, além de recriá-las à sua maneira, acabavam adaptando para a realidade
de cada país, transformando de acordo com os tipos locais. Como um exemplo,
Fernando menciona a do negro criada no Brasil: o rosto pintado, a peruca, utilização
de luva e meias pretas. Este figurino era padrão de um circo para outro, realizava
uma identificação imediata com o tipo representado, e por isso Neves o chama de “máscara”.
Os melodramas e comédias, representados nos teatros brasileiros do começo
do século XIX, bem como os saltimbancos influenciaram sobremaneira a construção
do espetáculo circense do final do século XIX e começo do XX. O circo-teatro
utilizará esta dramaturgia, que já estava próxima da população brasileira, para
construir suas histórias e apresentações, visando dialogar com os interesses e o
gosto de seu público.
2.4 – Os tipos do circo-teatro
Este trabalho se destina a estudar a personagem cômica das peças
melodramáticas, geralmente representada por um empregado ou uma personagem
humilde. É muito comum nestas tramas haver personagens ricas e pobres em
8 Fernando Neves nasceu no Circo Teatro Pavilhão Arethuzza e viveu durante sua infância
neste circo.
36
contraste, e o cômico, na maioria das narrativas, integra o último núcleo social. A
presença do cômico demonstra outra compreensão dos acontecimentos cênicos,
menos grave e intensa, tal como expresso pela maioria das personagens dramáticas.
Sua fala é coloquial e costuma ser carregada de algum sotaque regional, destoando,
dessa forma, da maneira formal de se expressar, comum às demais personagens.
Geralmente este tipo, dentro do contexto melodramático, é interpretado pelos
palhaços da primeira parte do espetáculo circense (em que se apresentam números
artísticos variados), que não seja o mais importante da companhia. No Circo Nerino,
o excêntrico principal, Picolino, não participava dos dramas, por ser uma figura muito
característica da primeira parte, porém costumava protagonizar as peças cômicas.
Os clowns que faziam dupla com ele, Arthur Fernandes, Júlio Avanzi, Hernani Avanzi
e Walmir dos Santos, eram os que geralmente representavam as personagens
cômicas dos melodramas.
Há de se levar em conta que o intervalo entre a primeira e a segunda parte do espetáculo era curto demais para tirar a maquiagem, a roupa de palhaço e caracterizar outro personagem. E também não é muito bom o palhaço do circo representar papéis dramáticos. O Arrelia conta que ele estava representando Jesus em A Paixão de Cristo quando um moleque o reconheceu e gritou: - O Cristo é o Arrelia! O Cristo é o Arrelia! (AVANZI e TAMAOKI, 2004: 82)
Podemos dizer que existe uma grande semelhança entre os palhaços da
primeira parte, e daqueles que protagonizavam as peças cômicas, com as
personagens cômicas dos melodramas. Bolognesi, ao traçar a etimologia da palavra
clown, indica características comuns entre estas duas figuras cômicas: “Sua matriz
etimológica reporta a colonus e clod, cujo sentido aproximado seria homem rústico,
do campo. Clod, ou clown, tinha também o sentido de lout, homem desajeitado,
grosseiro (...).” (BOLOGNESI, 2003: 62). Ainda de acordo com este autor, na
pantomima inglesa o termo designava o cômico principal com funções de um serviçal.
E no contexto circense se refere ao artista que participa de cenas curtas explorando
sua tolice. Estas definições se aproximam do perfil tanto do palhaço quanto da
personagem cômica do melodrama, ambos representados no Circo Nerino, na
primeira e segunda parte do espetáculo respectivamente. Ambos suscitarão os
momentos engraçados a partir do seu jeito desajeitado e tolo, como
37
sublinhado pela definição acima. O palhaço despertará o riso, essencialmente a
partir da sua desenvoltura corporal, e o outro provocará o chiste através da fala e os
equívocos decorrentes dela.
A primeira parte do espetáculo, no Nerino e em muitos circos do período, se
destinava a apresentação de números variados de risco e superação humana,
alternados com entradas de palhaços, em um amplo espaço cênico explorado em
diversas as direções. A lona favorecia a verticalidade necessária à execução de
alguns números, tais como trapézio, acrobacias, a corda bamba, atrações estas
bastante conhecidas neste circo. Nas fotos abaixotemos algumas ilustrações da
primeira parte do espetáculo do Circo Nerino, as quais nos ajudam a compreender
alguns aspectos abordados por este tipo de espetacularidade, majoritariamente
visual e cênica.
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Figura 8 - Fotos da primeira parte do espetáculo do Circo Nerino Fonte: Acervo pessoal de Walmir dos Santos
39
Figura 8 A – (Esq.)O atirador de facas: Gaetan Ribolá e Amandine Ribolá. (Dir.) Alice Avanzi Silva, na corda bamba, e Hernani Avanzi.
Fonte: AVANZI e TAMAOKI, 2004. (Esq.) 22. (Dir.) 234.
Figura 8 B – (Esq.) Acrobacia: Gaetan Ribolá (no alto), Alice Avanzi Silva (no ar) e Roger Avanzi. (Dir.) O equilibrista: José Américo e Vick Américo.
Fonte: AVANZI e TAMAOKI, 2004. (Esq.) 311. (Dir.) 184.
40
A extensão do espaço determina uma linguagem artística transversalizada, na
tentativa de abarcar e comunicar com todos os espectadores presentes. Diversos
elementos do espetáculo terão este objetivo, tais como: o figurino dos artistas,
através do colorido, paetês e adornos; as atrações que costumam explorar diversas
direções do espaço; a interpretação diferenciada e estilizada nas peças de teatro; os
números de palhaço, que exploram ações cômicas e usam uma maquiagem e roupa
exageradas.
Na primeira parte do espetáculo, as trocas de aparelhos dos números
acrobáticos costumam ser executadas na frente do público. Nestes momentos, o
palhaço entra para distrair os espectadores enquanto os técnicos realizam a
montagem dos equipamentos. A construção artística se torna então aparente, mas
isto não diminui o entusiasmo e expectativa em relação aos desdobramentos do
espetáculo. A apreensão do público se dará através dos números de risco e
superação humana, executados em ordem progressiva de dificuldade. A figura do
apresentador, junto com a música, ressalta as dificuldades e emoções diante dos
números que desafiam os limites, principalmente corporais, do homem.
Todos estes elementos caracterizam a estética circense de maneira particular,
ao criar um espetáculo essencialmente visual, que ressalta as emoções e sensações.
Através da oposição entre o sublime e admiração, dos números de habilidade; e do
grotesco e risível, dos números de palhaço, o espectador percorrerá diversos e
opostos sentimentos. O espetáculo apresenta ao imaginário do público habilidades
humanas impensáveis, atuando na fantasia e revelando novas possibilidades ao
cotidiano limitado.
A representação teatral, realizada usualmente na segunda parte do
espetáculo, está inserida dentro deste contexto específico que impõe aos artistas
alguns procedimentos. Como a estilização da linguagem cênica, necessária para
estabelecer uma comunicação com os diversos espectadores que se encontram
amplamente distribuídos no espaço. A interpretação dos atores, de tipos
reconhecidos pela plateia, é ampliada e visa criar uma comunicação direta e clara.
Faz o público acompanhar a história de maneira onisciente, porém sendo
constantemente surpreendido pelos desdobramentos inimagináveis, deixando-o
motivado e instigado em assistir à representação.
41
Para criar este vínculo, os atores utilizam a prática chamada de triangulação
com os espectadores, descritas por Carlos Alberto Soffredini9da seguinte forma:
O público é o vértice de maior peso no triângulo. É o CÚMPLICE na representação. É o CENTRO dela. É para ele que se CONTA a história, portanto ele é o dono dessa história. Muitas vezes ele conhece dados dela que ou um ou os outros dois vértices do triângulo (os atores) desconhecem. Ele conhece o caráter e a intenção de cada personagem, uma vez que cada ator, ao entrar em cena, deve ter como meta REVELAR o seu personagem, a intenção dele e, é claro, a sua ação dentro da ação (história). A partir dessa CUMPLICIDADE com o público, dessa CENTRALIZAÇÃO nele, dessa DOAÇÃO a ele da ação (história, representação) é que se estabelece a base do jogo teatral. Os gregos já sabiam disso. E as velhas peças românticas abriam margem para esse jogo através do A PARTE, que, em última análise, é a forma tosca a partir da qual, elaborando, nós chegamos ao processo do TRIÂNGULO. E infinitas são as possibilidades desse jogo. Uma delas é a CIÊNCIA: por exemplo, o MOÇO declara seu amor para a MOÇA. Mas o público já está ciente de que o MOÇO está mentindo (por revelação anterior ou no momento mesmo da ação). Dessa forma, a posição de cada um dos personagens, a sua ação e reação ficam ampliadas, teatralizadas. Outra é a SURPRESA: por exemplo, a um dado momento se descobre que o MOÇO está mentindo para descobrir algo que a MOÇA esconde (de que o público pode ter ciência ou não). Dessa forma os personagens mudam de repente, teatralmente, de posição perante ao público. (SOFFREDINI, 1980: 4)
Sendo corroborado por Rubens Brito, que participou das primeiras pesquisas
de Soffredinni junto aos circos de periferia:
Conseqüentemente, a triangulação propõe ao ator um tipo de interpretação no qual não basta que ele “seja” a personagem, mas que ele “seja” a personagem e a revele para o público. Essa é a razão pela qual Soffredini remete esse fenômeno ao teatro brechtiano. (...) A triangulação nas peças circenses é explícita e executada com muita naturalidade. O espetáculo se desenvolve de forma a incluir a platéia no jogo cênico, especialmente nas comédias; nos dramas se observa o mesmo fenômeno, embora a técnica triangular se atenue em benefício da objetivação da “dramaticidade” do enredo. (BRITO, 2006: 82)
A representação de circo-teatro está estreitamente relacionada com a criação
de efeitos, previamente articulados, visando criar determinadas reações no jogo com
a plateia. Para isso, a forma como o ator se colocará em cena, a sua entrada e saída,
a pausa dada para determinada fala, a gestualidade do tipo representado, tudo isso
será bem ensaiado e pensado. A encenação é teatralizada em diversos âmbitos,
principalmente no que concerne à forma, e a triangulação explicita isto. É
9 Carlos Alberto Soffredini foi umdramaturgo e diretor brasileiro muito ligado à cultura popular
brasileira, especialmente ao circo brasileiro.
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interessante observar que os dramas, apesar de manterem essa vertente
interpretativa, fazem-no de forma atenuada, conforme explicitado no texto acima de
Rubens Brito.
O figurino no melodrama circense também é bastante exuberante, por
dialogar, de maneira evidente, com as características dos tipos e sublinhar os
principais traços da figura ficcional. Isto permite compreender visualmente a trama
dentro deste amplo espaço circense. O mesmo efeito é buscado pela cenografia,
através dos telões pintados. O cenário é bidimensional e representa, de maneira
esquemática, as diversas locações do enredo, tal como era feito nos edifícios
teatrais das principais cidades brasileiras do período. A entrada e a saída das
personagens são trabalhadas visando um efeito específico para a representação, do
qual os artistas têm total consciência. As personagens boas e protagonistas, por
exemplo, ocupam o centro do palco, enquanto os vilões deslizam pelas margens da
cena.
Novamente reforçamos que estas características teatrais sevem para dialogar
com o espaço em que estão inseridas, mantêm relação com a linguagem utilizada na
primeira parte do espetáculo circense e desenvolve uma comunicação eficaz com
um público, pouco acostumado às casas de teatro. Esta mesma linguagem foi
apropriada pelos programas de rádio e televisão, transformada de acordo com as
particularidades do meio, porém mantendo a característica fundamental de realizar
uma difusão cultural passível de ser compreendida por um vasto e heterogêneo
público.
O teatro segue algumas convenções precisas como as descritas acima, tanto
nas peças encenadas nos circos quanto nos edifícios teatrais da época. Era muito
semelhante à forma da encenação e alguns recursos utilizados, como, por exemplo,
a caracterização dos tipos de personagens. A partir das décadas de 1920 e 1930 os
circos-teatro passaram a representar uma peça diferente em cada apresentação,
visando com isso permanecer mais tempo na mesma cidade. Este foi um momento
importante em que começou a se estabelecer alguns procedimentos para abarcar a
rotatividade dos textos. Os atores passaram então a interpretar os mesmos tipos de
papéis, de uma peça para outra, geralmente condizente com o seu temperamento
pessoal e características físicas.
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Dentro do contexto circense, era comum os mais velhos observarem as
crianças da companhia e definirem, de acordo com as atitudes e comportamentos
apresentados em situações cotidianas, qual seria o tipo de cada uma. Esta maneira
de proceder favorecia o desempenho do ator, a montagem de diversas peças pela
companhia e a compreensão do público em relação à história, que logo identificava o
tipo apresentado.
Os velhos dramas românticos, no seu maniqueísmo desvairado, continham sempre determinados “tipos” de personagem. Os atores, dependendo do seu tipo físico somado à sua personalidade, se especializavam em cada um desses “tipos”. A forma de representar esses personagens se tornou tradicional e os atores, especializados, passaram a receber o nome do tipo que representavam. Assim, toda Companhia tinha a sua “ingênua”, o seu “galã”, a sua “dama-galã”, o seu “vilão”, a sua “sobrete”, o seu “cômico” e etc. (Sem dúvida os ancestrais desses “tipos” estão na commedia dell’arte italiana: o Arlequim, a Colombina, o Pantaleão, etc) Rompida a primeira casca do “tipo”, observamos que havia mais no ator que o representava. Assim, uma “ingênua” não era somente um tipo físico e uma personalidade, mas um estado-de-espírito da atriz. Entrando imbuída desse estado-de-espírito a atriz REVELAVA, já no seu primeiro passo em cena, o seu personagem. Sem equívocos, sem fumaças, sem meios tons: sim o EXATO. (SOFFREDINI, 1980: 6)
As companhias circenses, assim como muitas companhias teatrais,
costumavam ter pelo menos um ator para cada tipo, o que lhes permitia representar
uma gama extensa de repertório dramático, formado basicamente por melodramas e
comédias. Os enredos e detalhes das histórias variavam, entretanto os tipos eram
sempre comuns. Para compreender melhor a análise dos três melodramas que
integram este trabalho é interessante observar alguns aspectos dessa construção
cênica. Nesse sentido um estudo sobre os tipos se faz necessário, pois eles
desempenhavam um papel relevante para o intérprete de circo-teatro.
Em 1947 Otávio Rangel publicou, no Rio de Janeiro, um livro intitulado
Técnica Teatral, que aborda diversos aspectos da construção cênica dos teatros, tais
como: iluminação, cenografia, os tipos dos atores, entre outros. Por haver um grande
diálogo entre o circo e o tipo de teatro descrito por Rangel, adotaremos algumas
definições deste autor para compreender a encenação dos circenses do começo do
século XX. Otávio Rangel, além de escritor, também foi ensaiador e funcionário do
SNT (Serviço Nacional de Teatro) nas cadeiras de Tecnologia e Arte de Representar.
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Antes de apresentar a classificação dos tipos, Rangel comenta sobre a
importância do Teatro Realista para a definição da estética teatral da época. A
intenção era realizar uma imitação da vida, porém com o intuito de embelezá-la e
idealizá-la, tal como o período do Classicismo nas artes. De acordo com este modelo,
o amor, temática bastante utilizada nos circos e teatros da época, deve ser
apresentado através de um casal jovem e bonito. Os homens que desviassem
demasiadamente dos padrões de beleza interpretariam outros tipos, que não o galã
da história. Estas características são intituladas por Rangel de “convenções”, tais
como a tonalidade da voz, a maquiagem, a indumentária, os cenários e vários outros
aspectos cênicos da encenação. Cada um deles criava códigos e significantes, no
jogo com o espectador, desenvolvidos com o intuito de serem compreendidos.
Fernando Neves, remanescente da família tradicional circense Circo Teatro
Pavilhão Arethuzza e artista contemporâneo, também apresenta uma definição
bastante minuciosa destes tipos. A partir dos textos encenados pelo Arethuzza e da
descrição dos atores destinados a representar cada personagem, Fernando pôde
reconhecer alguns procedimentos de criação da sua família e realizar uma
classificação. Sua compreensão dialoga com as noções apresentadas por Rangel,
com a diferença de se tratar mais especificamente do meio circense do que teatral.
As definições formuladas nesta pesquisa são, portanto, embasadas nestas duas
referências e também nos quatro tipos melodramáticos identificados por
Thomasseau:
2.4.1 – Galã e ingênua
Costumam protagonizar as histórias e são representados por um casal de
jovens bonitos e simpáticos, que despertam a admiração do público. As
características físicas dos atores se assemelham, em muitos casos, com as
apresentadas pelo texto dramático, em que a mulher apresenta gestos e atitudes
delicadas, e o homem se demonstra corajoso, forte e educado. Até mesmo as cores
do figurino dialogarão com estas qualidades, sendo claras e sóbrias.
A idade dos atores que representam estes tipos varia entre 18 e 40 anos. No
Circo Nerino a ingênua geralmente era interpretada por Anita Garcia ou por Teresa
Avanzi Silva; e o galã por Roger Avanzi. Anita era uma atriz bastante conhecida do
Circo Garcia que, em virtude do casamento com Roger, passou a integrar a
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companhia Circo Nerino. O recente casal era muito jovem e bonito, facilitando assim
o convencimento e envolvimento do público. Teresa era ainda mais nova e começara
há pouco tempo sua carreira teatral, sendo comum a jovens atrizes iniciarem com a
representação deste tipo. Em muitas circunstâncias, principalmente quando Anita
não podia, o papel da ingênua lhe era atribuído.
2.4.2 – Centro e dama central
Realizado por atores mais velhos, geralmente com mais de 50 anos e donos
do circo. A idade tem importância, neste caso, porque os papeis destinados a este
tipo costumam exigir experiência teatral, por apresentar um grande destaque na
trama. Este tipo pode representar o importante papel de vilão/vilã ou estarem
vinculados ao núcleo bom da peça, na figura do pai nobre ou, para as mulheres, em
personagens que despertam o enternecimento dos espectadores.
O ator central, no Circo Nerino e em muitos os outros circos da época, era
representado pelos donos da companhia: Gaetan Ribolá e Armandine Ribolá. O
Nerino Avanzi, fundador da companhia, atuava, na primeira parte do espetáculo,
como palhaço principal, o que dificultava sua participação na segunda, devido à
necessidade de troca de figurinos e maquiagem, além de ser uma figura muito
marcante para o espectador.
2.4.3 – Cômico e caricata
Representam as personagens cômicas da narrativa, que, apesar de não
estarem caracterizados como palhaços no teatro melodramático, são apreciados da
mesma forma. Apresentam gestos grosseiros, raciocínios tolos e impróprios para o
decoro social e subvertem as regras coletivas mais elementares. Costumam
desempenhar personagens pertencentes a uma classe social mais baixa, como
criados, cozinheiros, soldados, motoristas, escravos, vendedores ambulantes, entre
outros.
Este par geralmente é interpretado por atores criativos e transgressores, tal
como o palhaço apresentado na primeira parte do espetáculo, que constantemente
não seguem o roteiro pré-estabelecido, criam piadas inusitadas e jogos com o
espectador. Os cômicos do Circo Nerino usualmente eram interpretados pelos atores:
Arthur Fernandes, Júlio Avanzi, Hernani Avanzi, Paulo Sobral e Walmir dos
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Santos, todos formavam, na primeira parte do espetáculo, dupla com Picolino; com
exceção de Paulo, que atuava como cantor. Na figura abaixo aparecem Roger de
Picolino II,atuando com o palhaço Garrafinha, interpretado por Walmir dos Santos.
Figura 9 - Palhaço Garrafinha e Picolino II Fonte: Acervo pessoal de Walmir dos Santos
É interessante observar a quantidade de atores homens em contraposição
com a atriz caricata. No Circo Nerino, inclusive, não havia palhaças na primeira parte
de variedades, entretanto há algumas pesquisas acadêmicas atuais que visam
desconstruir esta ideia do palhaço como uma figura majoritariamente masculina.
Entretanto neste momento da história e neste circo específico, a mulher participava
de maneira modesta, atuando como descrito por Walmir do Santos, em entrevista
concedida para este trabalho:
O Roger tinha uma montagem em que aparecia uma pessoa, estava ele e a Anita, aparecia uma dizendo: “Poxa, você saiu de casa, não deixou dinheiro, os filhos passando fome.”. Quer dizer, Anita era mulher dele, como é que tem uma outra lá cobrando o dinheiro do leite das crianças? Aí fica aquele negócio, ela fica brava e ele quer resolver. Aí de repente aparece outra: “Ô seu canalha, você saiu de casa, me deixou sozinha, a criança está lá chorando, eu não tive um tostão para comprar o leite.”. Já eram duas, todas as duas reclamando da mesma coisa! Aí ele tem um desfecho: “Vamos resolver o problema?” – tudo cômico, né? – “Você está falando que é minha mulher e está passando fome. Você também. Vamos fazer uma coisa?
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Vamos dividir o tempo. Segunda, terça e quarta eu vou ficar com você. Quinta, sexta e sábado eu fico com a outra.”. Aí um gaiato grita: “E o domingo?”. Aí ele responde: “O domingo estou de folga.”. (risos) Quer dizer... São desfechos, né? Em cena, no palco, você não tem esse tipo de desfecho, mas no picadeiro você pode fazer. (...) Ele vestido de palhaço, as mulheres não, as mulheres são madames. (Entrevista realizada no dia 04/02/2015)
Através deste trecho fica evidente a posição das mulheres nas
representações, chamadas por Walmir de madames. Até mesmo nos textos teatrais
daquela época as personagens cômicas, em sua maioria, são homens. Na peça
Jerônimo, o herói do sertão encontramos uma mulher desempenhando o papel da
dona do bar, mas não há indicações cômicas para esta personagem. Ela poderia ser
interpretada pela Sobrette da companhia, que integra o último par de tipos do circo-
teatro, descrito a seguir.
2.4.4 – Baixo cômico e sobrette
São os tipos dos atores chamados no meio circense de escadas, parceiros do
ator cômico, responsáveis por construir a piada para ele arrematar. O masculino é
chamado de baixo cômico e a mulher de sobrette. De acordo com o trabalho de
Otávio Rangel, o baixo cômico corresponde ao cômico, e não existe esta diferença
de um ser o armador da piada para o outro, Fernando Neves é quem apresenta esta
distinção, o que torna mais complexa esta divisão dos tipos. Os quais se relacionam
à maneira de o ator criar em cena: o baixo cômico e a soubrette realizam com
habilidade as marcas cênicas e apresentam uma precisão importante para a
construção e repetição do espetáculo. Já o cômico é irreverente e desrespeitará boa
parte do roteiro de ações estabelecidos por seus parceiros.
É possível perceber uma grande semelhança entre os tipos representados
nos circo-teatros e os tipos dos melodramas, o que reflete o casamento bem-
sucedido que foi, e ainda é, este tipo de espetacularidade. No melodrama, segundo
Thomasseau, os tipos recorrentes são o vilão, o herói, a vítima, o bobo e o pai nobre.
Todos aparecem na divisão acima, porém com outra nomenclatura, referente ao
universo circense e teatral.
Definir os tipos presentes nesta representação popular e brasileira nos
ajudará a analisar as três peças que integram a pesquisa. Mesmo com a intenção de
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estudar somente a personagem cômica, é importante conhecermos todos os tipos
existentes para compreendermos melhor como eram realizadas as encenações dos
espetáculos de circo-teatro do início e meados do século XX.
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3 - ...E O CÉU UNIU DOIS CORAÇÕES
E o Céu Uniu Dois Corações é uma obra dramatúrgica de autoria do brasileiro
Antenor Pimenta, fundador do Circo de Teatro Rosário, escrita em 1942 para ser
realizada nos circos-teatros. Esta peça foi encenada no Circo Nerino no ano de 1949,
e em diversos circos do período, sendo representada até hoje, com muito sucesso.
O texto utilizado para esta análise é a versão original do autor, publicada no livro de
Daniele Pimenta, Antenor Pimenta: circo e poesia: a vida do autor de – E o céu uniu
dois corações.
3.1 – A trama
O primeiro ato se passa no bar de Velasco, um senhor surdo, e a história se
inicia com suspense e a instauração de uma crescente tensão. De La Torre, o vilão
da trama, e Francisco, seu comparsa, entram em cena para esperar por Perdinari,
um rico industrial e dono de muitos imóveis na cidade. Sabem que neste dia
Perdinari está recolhendo seus aluguéis, dentre eles o de Velasco, além de ter
sacado uma grande soma de dinheiro do banco para realizar uma viagem. De La
Torre planeja roubar e matar Perdinari, e culpar Fernando, seu antigo chofer. Este
último fora demitido devido a um acidente em que pegou o carro do patrão sem
autorização, pois sua filha, Neli, precisava ser levada às pressas ao médico. Na volta
do consultório, Fernando bateu em um poste, que caiu em cima do carro,matou sua
esposa e deixou sua mãe cega. Por isso teve a carteira de motorista cassada, foi
despedido, não consegue mais emprego na cidade e deve cuidar sozinho de sua
mãe e da filha pequena. Velasco se apieda com a triste situação da família e lhes
serve comida todos os dias. De La Torre, sabendo disso, arma uma cilada para
Fernando.
O chofer chega ao bar antes do antigo patrão, acompanhado de sua mãe e
filha, ainda criança. De La Torre lhe oferece, cinicamente, um emprego e também
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pede para guardar uma arma, pois vai a uma reunião e não gostaria de levá-la.
Fernando prontamente aceita a proposta e pega o revólver, sem imaginar que este o
incriminará mais à frente.
Em seguida Perdinari entra em cena e revela que, além de trazer muito
dinheiro, está com seu testamento, no qual indica seu filho, Alberto (na época uma
criança), para ficar com toda sua fortuna depois de se casar. Este dado aumenta
ainda mais o interesse de De La Torre em concretizar seus planos, principalmente
através da possibilidade de ficar com a guarda do menino. Há uma cena cômica
entre Velasco e Perdinari que gera certa descontração antes do assassinato
eminente e da crescente tensão. De La Torre se aproveita deste momento, saca um
revólver e atira no industrial, sob protestos e contestações de Fernando.O plano do
vilão é bem sucedido, Perdinari é morto e seu antigo chofer vai preso injustamente.
De La Torre, além de roubar o dinheiro de Perdinari, toma posse do testamento e diz
ao policial que o italiano, antes do assassinato, lhe confiara a guarda de seu filho.
O segundo ato ocorre na casa pobre de Neli e D. Santa, onze anos se
passaram. Fernando continua preso e Neli, sua filha, tornou-se uma moça que
trabalha e cuida da avó. Ao começar o ato estão em cena D. Santa e Marli, sua
ajudante nos serviços domésticos e companheira. As duas, através de uma conversa
despretensiosa, informam o público sobre os principais acontecimentos ocorridos
nos anos que se passaram. Juca, principal personagem cômica da peça, gago e
irmão de Marli, interrompe o diálogo e se apresenta em uma cena engraçada que
será analisada mais adiante.
Avó e Marli se retiram para o quarto, então Neli e Alberto entram em cena.
Comentam sobre o plano de se casarem, ele lhe entrega um presente e diz que só
poderia abrir caso ela lhe contasse um sonho que tivera. Neli narra com detalhes um
sonho premonitório das desgraças que se sucederão e em seguida se surpreende
com um lindo vestido de noiva, porém os dois devem esperar a formatura de Alberto
para se casarem. Mesmo conscientes das dificuldades existentes para o casamento,
principalmente pelo fato de serem filhos de dois supostos inimigos e por pertencerem
a classes sociais distintas, prometem lutar por esta união.
Juca interrompe a conversa do casal e Alberto sai de cena. Ao ficar sozinha
com a avó, Neli confidencia sobre seu namoro e o acordo dos dois em se casar dali
a cinco meses, também menciona que ele pretende curar os olhos da avó, pois está
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terminando o curso de medicina, e quer soltar seu pai. D. Santa fica feliz por Neli e
esperançosa com as novidades trazidas por esta união. O ato termina com muita
expectativa de que as injustiças serão reparadas.
O terceiro ato se passa alguns meses depois, na casa de Alberto, durante sua
festa de formatura. De La Torre planeja casar Alberto com Adélia, cujo passado é de
condutas duvidosas, porém se trata da filha de um rico português, Benevides, o que
desperta a ambição do tutor. Ele se diz arruinado financeiramente e pede um
empréstimo ao português que, em virtude do casamento, concede o dinheiro. O
comparsa Francisco é substituído pelo seu neto, também Francisco, pois o avô,
devido a remorsos pelos crimes praticados, resolveu se mudar para Portugal.
Durante todo este ato, De La Torre, com a ajuda do comparsa, fará o que estiver ao
seu alcance para concretizar o casamento.
Na abertura do ato, o vilão comenta sobre uma carta endereçada a Francisco,
o avô, em que menciona o crime de Perdinari e lhe faz algumas recomendações.
Francisco Neto percebe a imprudência de mandar a missiva porque poderia ser
interceptada, De La Torre concorda e a deixa sobre a mesa. Seu criado lhe traz
outra carta, de Neli endereçada a Alberto. Ele aproveita a oportunidade para
adulterar a carta, mudando seu destinatário, como se a mesma fosse destinada a
seu comparsa. De La Torre insinua que a moça já se entregara a Francisco e mostra
a carta a Alberto. Ele fica muito decepcionado e acredita cegamente nas palavras de
seu tutor, dessa forma, consente com o casamento proposto.
Enquanto isso, Juca, emissário de Neli, espera por uma resposta e, por não
obtê-la, entra à força na casa e se encontra com Benevides. Em uma cena cômica,
os dois não reconhecem qual das duas cartas é a resposta, por isso Juca pega
ambas (a adulterada e a endereçada a Francisco). É perseguido pelo criado, mas
consegue fugir com as provas. Por isso, De La Torre arranja o casamento às
pressas e decide mandar Alberto para Portugal no dia seguinte. Com aparente
desapontamento diante do casamento arranjado, Alberto confirma aos convidados
seu noivado com Adélia.
O quarto ato se passa depois de cinco meses, perto do retorno de Alberto de
Portugal. De La Torre está muito preocupado em recuperar as cartas para que o
rapaz não as veja e saiba a verdade a seu respeito. Por isso, procura Neli e sua avó,
acompanhado de seu comparsa Francisco Neto, e as ameaça para conseguir as
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provas que o incriminariam. Ao longo dos meses transcorridos ele perseguira a
heroína a ponto de deixá-la desempregada e mendigando na porta de uma igreja
com a avó cega. Este ato todo se passa na porta desta igreja.
Neli, apesar das inúmeras desgraças, se mostra esperançosa em relação ao
amado e entra na igreja para rezar. Sua avó permanece do lado de fora e pede uma
esmola para Alberto, que regressara antes do esperado. Ele a reconhece e pergunta
pela neta, então a avó revela todas as injustiças sofridas. O rapaz examina seus
olhos e lhe promete operar no mesmo dia, ela fica muito grata pela ajuda, porém não
o enxerga e desconhece quem seja. Em seguida, Alberto se encontra com Juca e
Marli e finalmente conhece a verdadeira versão dos fatos transcorridos, além de ter
provas, através das cartas que o gago lhe entrega. O herói pede que não contem à
amada sobre seu retorno, pois pretende lhe fazer uma surpresa.
A avó sai com Juca para operar e deixa Neli sozinha em cena. Ela está
desolada, pois o amigo prometera entregar as cartas para o vilão, mediante um
pagamento. Ao se deparar com De La Torre, e novamente sofrer ameaças, conta-lhe
que vai se matar, então pela primeira vez ele se mostra solícito e lhe oferece uma
arma. Durante o diálogo tenso entre os dois, ele menciona o possível regresso de
Alberto e reacende o amor e a esperança na heroína. Assim, com a mesma arma
que lhe dera, Neli o ameaça. Francisco neto interrompe a conversa e a apunhala
pelas costas, porém, antes de morrer, Marli lhe conta que Alberto já regressara e as
surpresas que pretendia fazer para a amada. Neli pede para ser enterrada com o
vestido de noiva que o amado lhe dera e diz que o esperará no céu. Este é o fim do
quarto ato, muito dramático e tenso.
O quinto ato é ainda mais trágico, pois no momento em que tudo é resolvido
para esta triste família, realiza-se ao mesmo tempo o velório de Neli. Alberto traz D.
Santa recém-operada, ela ainda está vendada e por isso não vê a neta no caixão,
então ele pede a Marli que a leve para o quarto para poupá-la do sofrimento.
Fernando sai da cadeia e ao entrar na casa não consegue conter seu desespero
diante do ocorrido, dessa forma D. Santa toma conhecimento da morte. Alberto pede
para ficar a sós com a amada e, neste momento, o vilão e seu comparsa entram na
casa, os dois discutem e Francisco sai de cena. A polícia prende De La Torre e
perguntam pelo comparsa, para prendê-lo também. Ele aparece na janela, atira em
Alberto e sai fugido, porém os policiais e Juca conseguem capturá-lo. Alberto morre
53
feliz por ver que Neli veio buscá-lo. Em seguida, há uma bonita apoteose em que o
casal sobe uma escada de nuvens e se encontra finalmente no céu.
3.2 – Análise da trama
Desde o início, a narrativa busca envolver o espectador na história, a partir da
apresentação de situações cujo enfoque principal consiste em causar fortes
emoções. Convida o espectador a se identificar com determinadas personagens e a
participar dos acontecimentos como se partilhasse de seus destinos. O enredo é
complexo e repleto de informações que desde o princípio serão determinantes para
a compreensão da trama. A primeira cena se inicia a partir da apresentação dos
planos ambiciosos do vilão contra inocentes vítimas, e é notório o quão
inescrupuloso e ardiloso ele é.
Já no primeiro ato, De La Torre consegue prejudicar Fernando e sua família,
matar Perdinari e ainda se tornar tutor de seu filho. Percebemos através deste breve
resumo que se trata de um início bastante turbulento e, por isso, peculiar. Mesmo
que seja comum aos melodramas principiarem de maneira tensa e conflituosa, esta
peça mostra uma verticalização neste aspecto. O espectador é levado de um
sobressalto a outro, que lhe impede de fazer uma análise crítica sobre a sucessão
dos fatos. Para Huppes: “O melodrama, de sua parte, é generoso na composição. Acumula elementos plásticos e golpes de enredo, sem a preocupação demasiada
em subordiná-los aos imperativos da lógica.” (2005: 128). Devido à rapidez e
articulação dos acontecimentos, não há espaço para o questionamento das ações
de De La Torre, o espectador é envolvido sentimentalmente por elas e torce para
que seus planos fracassem.
No momento da entrada de Perdinari o público já imagina e espera o que virá,
mas deseja assistir como se dará o assassinato e se algum fator o impedirá. A
dramaticidade da cena cresce com o comentário do italiano sobre sua pretensão em
recontratar Fernando, por ser um excelente funcionário, e justificar a demissão como
uma punição provisória em relação à desobediência das normas da fábrica. A
piedade no público aumentará ainda mais quando De La Torre comenta o boato, por
54
ele inventado, de que o empregado deseja matá-lo, porém o italiano não acredita
que Fernando seja capaz de matar nem mesmo uma mosca.
Estas informações reacendem no público a esperança de que algum dado
novo possa reverter as ações do vilão. Em seguida há uma mudança de enfoque do
assassinato para um desentendimento cômico entre Velasco e o industrial. Antes de
sua resolução, o vilão atira e mata Perdinari, surpreendendo o público quanto ao
momento do tiro e a possibilidade de mudança da situação. Este é um procedimento
comum dos melodramas: anunciar um importante acontecimento, porém antes de
sua execução apresentar outras possibilidades que não chegarão a se concretizar,
como a possível readmissão do funcionário. Além de incluir, nestes momentos de
tensão, cenas cômicas que tirem o foco da problemática, criando sempre a
importante oposição entre apreensão e relaxamento.
Para abarcar esta complexa narrativa, grandes espaços de tempo separam
alguns atos: onze anos do primeiro para o segundo, e cinco meses do terceiro para o
quarto. Os principais acontecimentos transcorridos entre estes períodos são
narrados através da confidência10
entre duas personagens, visando contribuir para a
compreensão da história. Antenor Pimenta, além de optar por este procedimento, e
não pelo aparte11
, escolhe um interlocutor que ouve a narrativa pela primeira vez.
Este fator permite que ele esboce mais reações e se encontre na mesma posição do
público, muitas vezes fazendo indagações semelhantes às imaginadas pelos
espectadores. Como ocorre no segundo ato durante a conversa de abertura entre D.
Santa e Marli, na qual a segunda realiza este papel.
Neste mesmo ato, Neli narra com detalhes um sonho que tivera com Alberto,
no qual antecipa aspectos importantes da história. No sonho, os dois andavam por
uma estrada cheia de flores que conduzia a um portão, o Reino da Felicidade, porém,
de repente, uma tempestade os surpreendeu e separou. Ela então seguiu sozinha
para o reino e somente adentrou o portão depois de reencontrar Alberto.
10 Os apartes, monólogos e confidência são utilizados amplamente no melodrama, se
referem a falas que visam completar o retrato das personagens principais e situações. A confidência necessariamente é dita para outra personagem – o confidente.
11 Fala direcionada para o público, a qual as demais personagens não escutam. Tem a característica de romper com a ilusão teatral por revelar claramente a construção cênica.
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Dessa forma, a história é preparada para o desfecho trágico que terá mais à frente,
com a morte dos dois, que é indicado também através do nome da peça. Ao longo
da encenação, entretanto, o espectador possivelmente esquecerá a possibilidade de
morte do casal, pois estará envolvido na trama, torcendo pelo sucesso desta união.
Antecipar informações é uma característica do gênero melodramático que
favorece a onisciência do público em relação à história. Entretanto, ao mesmo tempo
que existe a preocupação em adiantar informações, o espectador é envolvido pela
narrativa e a consciência da trama permanece em segundo plano. Esta, porém,
serve para gerar expectativas e instigar um olhar atento até os últimos momentos da
peça. Assim como o sonho de Neli, De La Torre, na abertura da maioria dos atos,
apresenta seus planos, através de uma conversa com seus parceiros, e deixa o
público ansioso para saber como se dará a execução destas ideias, e torcendo para
o seu fracasso. Estes diálogos possibilitam a transmissão de muitas informações que
dinamizam a história e a tornam mais complexa, quando comparada à maioria das
narrativas do circo-teatro brasileiro.
O principal aspecto da trama, que mais instigará os espectadores a
acompanharem motivados e atentos, são os impedimentos que o casal principal
sofrerá para ficar junto. Este tipo de situação é muito comum nos melodramas,
folhetins, novelas de televisão, porém devemos ressaltar que nesta peça há uma
importante diferença:
As questões de família: crianças perdidas e reencontradas, heranças, duelos, ciúmes, casamentos, matrimônios desiguais faziam parte, desde muito, da temática do melodrama. Com a ascensão de novos estratos sociais o diálogo castelo-choupana vem para o centro da cena. Os direitos de precedência e os preconceitos familiares e sociais são estudados sob a forma de quadros de costumes pintados com bastante justeza. (THOMASSEAU, 2005: 103)
O trecho acima se refere a uma fase do melodrama na qual é classificado por
Thomasseau como de Costumes e Naturalista, em meados do século XIX. Neste
momento, o gênero desenvolve e apresenta histórias com diferenças sociais em
diálogo. Existiram textos que preconizaram a reconciliação entre as classes sociais,
porém o mais comum era sublinharem o contraste entre os ambientes e as pessoas.
Percebemos algumas semelhanças do melodrama tradicional francês com o circo-
teatro brasileiro, explicitado, nesta peça, através do fato de os amamentes se
56
gostarem e quererem se unir, independentemente de sua diferença social. O castelo,
casa de Alberto e De La Torre, e a choupana, casa de Neli e D. Santa, entram em
cena, revelando ambientes sociais com particularidades distintas. Entretanto é
justamente a diferença social que trará a desgraça ao casal, pois De La Torre quer
casar Alberto com uma moça rica para que sua fortuna possa aumentar e não
consente que case com uma pobre, ainda mais se tratando de Neli. O contraste
social costuma aparecer com frequência nos temas de histórias melodramáticas
circenses, no cinema e em algumas peças teatrais, inclusive em todas as peças
estudadas por esta pesquisa.
Dessa forma, esta história dialoga com um público formado por diferentes
classes sociais frequentadores do circo no começo e meados do século XX. Este
tipo de espetáculo, desde seu surgimento, com os saltimbancos, até os
apresentados em ambientes fechados, agrega distintos públicos e busca agradar a
todos eles de alguma forma. O melodrama terá ampla aceitação no espetáculo
circense por partilhar deste princípio, uma vez que “prenuncia a arte que se declara
como artifício. A arte que é matéria construída por um homem com o objetivo de
produzir determinadas reações em outros homens – os consumidores – a quem
deseja agradar.” (HUPPES, 2000: 30). Huppes também comenta sobre a
responsabilidade do autor em dosar os elementos que provocam sofrimento e
aqueles que geram risadas, e assim conseguir agradar e atrair ainda mais os
espectadores, tal como era feito com a catarse grega desde a antiguidade.
Nesse sentido, percebemos que a construção da heroína apresenta uma clara
intenção de cativar a plateia, pois o autor equilibra aspectos opostos de sua
personalidade com as situações por ela vividas. Antenor opta por torná-la mais
carismática e atraente para o público, uma vez que, diante dos acontecimentos da
narrativa, poderíamos esperar uma moça sofredora e angustiada. Ao contrário, ela
se demonstra bem-humorada, simpática e afetuosa, uma heroína alegre e positiva.
Estes aspectos, junto com o fato de ela ser independente e ativa, a distanciam da
heroína convencional, apresentada pela maioria dos enredos, e permitem observar
uma maior singularidade na personagem. Ela nos surpreende quando, no quarto ato,
revela o impulso de se matar e em seguida ameaça o vilão com uma arma.
Geralmente este tipo tem a característica marcante de consentir, embora
amargurada, com a situação em que se encontra e não agir em oposição. Mesmo
57
que Neli não realize nenhuma destas ações, incabíveis neste gênero, ela cogita
estas possibilidades e por isso se distancia das convenções mais esperadas do
gênero.
Dona Santa também apresenta características que nos surpreende e cativa. É
a personagem representativa da dramaticidade da peça, diante dos infortúnios
vividos, apesar de muitas vezes demonstrar um otimismo reconfortante. Revela um
grande anseio pela felicidade de sua família, o que parece estar em oposição às
sucessivas desilusões e à realidade imposta através das ações do vilão. Podíamos,
neste caso, encontrar uma personagem amargurada e pessimista, entretanto suas
falas revelam uma forte emotividade que, juntamente com a fragilidade de sua figura,
emocionará o público. Até mesmo no momento em que ela tira a venda, no último
ato, e enxerga a neta no caixão, diz uma longa fala muito dramática e ao mesmo
tempo esperançosa, reação esta que surpreende o público. É a única personagem
que demonstra um sentimento mais leve diante da morte da neta, pois diz que Deus
a chamara para acabar com seu sofrimento. Dessa forma, apresenta os valores
religiosos da época, que confortam, como a apoteose seguinte, a reação atônita
decorrente da tragédia.
A apoteose concilia os corações aflitos dos espectadores por acompanharem
e torcerem pela união do casal e se verem frente a uma tragédia irreconciliável.
Então virá a apoteose, apaziguadora e reconfortante: Neli, vestida de noiva, desce
uma escada de nuvens para buscar o amado, então os dois sobem lentamente para
o céu. Com isso os aspectos religiosos e morais eram reforçados e estavam em
diálogo com a população brasileira de meados do século XX.
O final trágico das histórias melodramáticas é bastante comum e causa um
maior impacto nos espectadores, comentado por Huppes (2000: 38) por ser mais
eficaz em garantir fortes emoções. Os espectadores saem do teatro refletindo em
qual ponto a história poderia ter sido revertida e, portanto, esse tipo de final gera
mais comentários e desdobramentos. Esta narrativa garantia sobremaneira este
aspecto, tamanha é a dramaticidade do desfecho.O final é trágico, através da morte
dos amantes decorrida dos impedimentos familiares para a sua união. Duas famílias
inimigas por conta da morte de Perdinari, no primeiro ato, cujos filhos se amam e
pretendem, mesmo com todos os problemas, ficar juntos.
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Esta trama nos lembra a história de Romeu e Julieta de William Shakespeare,
tanto no que se refere à problemática principal quanto ao seu desfecho. Talvez por
isso que ...E o Céu Uniu Dois Corações se tornou um texto representado através de
gerações, sendo ainda encenado nos dias atuais dentro dos circos-teatros brasileiros.
A peça, por não abordar um fato histórico datado, atravessa os costumes e épocas,
dialogando com o inconsciente coletivo do amor proibido e preterido pelas opostas
famílias. Um amor individual que ignora as barreiras sociais, representado através de
conflitos e oposições familiares.
3.3 –Personagens
De La Torre, segundo a análise de Daniele Pimenta (2005: 153), é
classificado como um cínico absoluto, por ser o principal motivador das ações do
espetáculo e suscitar a maioria dos acontecimentos relevantes para a trama, apesar
de a história não ser contada de sua perspectiva. O vilão é a personagem que
pratica o mal em proveito próprio, sem medir as consequências negativas para os
outros. De La Torre, em especial, apresenta ações muito cruéis e planos sórdidos
que dependem sempre da submissão e apoio de seus parceiros Francisco, avô e
neto. A motivação de suas ações será a ambição de riqueza, em detrimento alheio,
sem que para isso tenha que trabalhar e fazer qualquer esforço.
O cínico se refere a uma nomenclatura utilizada pelos circenses para
denominar o vilão, interpretado pelo ator que, de acordo com os tipos apresentados
no capítulo O Circo Nerino e o teatro melodramático, mais se adequasse ao efeito
pretendido pela trama. Dependendo da idade da personagem, das características
apresentadas pelo dramaturgo e sua importância no enredo, seria destinado a um
intérprete correspondente a estes atributos. No caso desta peça provavelmente seria
destinado ao centro da companhia, por ser uma personagem complexa e importante.
O ator central costuma ser experiente na arte da representação, apresenta uma
idade um pouco mais avançada, ambas qualidades condizentes com esta trama. No
geral, um bom cínico conquista a rejeição da plateia, ainda mais se tratando de De
La Torre, único responsável pelas inúmeras desgraças sofridas pelo casal. Na
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montagem do Circo Nerino, quem o interpretou foi Heros Arruda, ator experiente e
ensaiador de algumas peças da trupe.
Francisco avô e neto são os comparsas de De La Torre, sem os quais não
conseguiria colocar em prática suas vilanias. Trabalham com ele em momentos
diferentes da história e têm grande importância dramatúrgica. Desempenham a
função de interlocutor das confissões e planos, responsáveis por deixar o público
ciente e apreensivo pelo andamento do enredo. Também realizam a importante
função de ajudar De La Torre na execução de seus intentos. Entretanto não
apresentam características que os particularizem, nem suas falas demonstram forte
personalidade.
O fato de existirem duas gerações, avô e neto, tem um importante fundamento
dramatúrgico. Na situação em que De La Torre adultera a carta de Neli, ele precisa
justificar a falsa traição da moça com um jovem rapaz, no caso Francisco Neto, seu
atual comparsa. O avô aparece somente no primeiro ato, e escreve a carta de
confissão, que será responsável por solucionar parte da trama.
O herói da peça é conhecido por defender o mais fraco e agir em contraponto
com o vilão. Assim podemos compreender as ações de Alberto, as quais geralmente
estão em oposição às de De La Torre. Filho de um rico industrial, Perdinari, que fora
criado, sem saber, pelo assassino de seu pai. É apaixonado por Neli, filha de
Fernando, homem culpado e preso pela morte do italiano. Não tem o perfil típico do
herói absoluto, responsável por movimentar a trama, uma vez que a história
apresenta um vilão preponderante.
As ações de Alberto, principalmente no começo do espetáculo, são
submetidas às de De La Torre, devido ao próprio contexto conflituoso em que está
inserido: um jovem criado pelo seu principal inimigo e amante de Neli. Ganha a
empatia do público mais à frente ao mostrar-se, em oposição às artimanhas de De
La Torre, comouma personagem mais ativa que combaterá suas perversas ações,
principalmente depois da viagem a Portugal. Sua trajetória é de amadurecimento e
suas ações visam restaurar a justiça, através das cartas e provas, portanto sua
conduta não é motivada pela vingança.
Alberto seria representado pelo galã do elenco, o qual deveria ser jovem. Segundo o catálogo de tipos de Otávio Rangel, deve apresentar uma “beleza
consensual” a todos. Se isto não fosse possível, poderia apresentar uma simpatia
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irradiante, ser carismático ou sedutor. Na obra de Rangel existem oito subtipos de
galã e Alberto se enquadra no galã amoroso, o qual se expressa em nome do amor
e suas ações dependem da amada. A característica fundamental deste sentimento é
a de ser guiado pelo bom senso, respeito e desprovido de sensualidade. O galã do
Circo Nerino geralmente era interpretado por Roger Avanzi, filho de Nerino, quem
representou Alberto nesta montagem.
O par amoroso de Alberto é Neli, a heroína da peça, destinada a sofrer nas
mãos do vilão até ser salva pelo herói. Daniele Pimenta destaca o diferencial e o
traço marcante desta personagem:
(...) bem humorada e simpática, afetuosa, mas prática, diferente da heroína sofredora que se poderia esperar depois das situações por ela vividas. Essa construção faz com que a empatia do público pela personagem se confirme. (PIMENTA, 2005: 162)
Destoa um pouco da heroína convencional, sofredora e conformada, também
pela sua coragem na maneira de enfrentar as situações adversas e pertencer a uma
outra classe social, o que possibilita mostrar o ambiente e as relações dos menos
favorecidos economicamente. Como ela está apaixonada apresenta um otimismo e
alegria reconfortantes para o espectador, responsável por gerar a identificação com
a plateia. Além de apresentar a possibilidade da relação e conciliação, ao menos no
imaginário das pessoas, entre as duas classes sociais, desde que seja por
sentimentos amorosos.
A heroína seria interpretada pela ingênua da companhia, que se tratava de
uma atriz jovem, entre os 15 e 20 anos, podendo estar em fase de amadurecimento
profissional. As qualidades que a intérprete deveria apresentar, para facilitar a
identificação com o público, é a delicadeza, beleza, serenidade, elegância, discrição
e sua voz deveria ser límpida e suave. É uma figura que está sempre presente nos
melodramas. A ingênua do Circo Nerino nesta peça foi Tereza Avanzi Silva uma
jovem atriz, muito bonita e simpática.
A avó de Neli, mãe de Fernando, é a personagens que carrega a maior carga
dramática na peça, em contraponto com a heroína bem-humorada e simpática. Sua
condição reflete isso, por ser cega devido ao acidente de automóvel que matara sua
nora e arruinara sua família. D. Santa é responsável pela empatia do público.
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Seu anseio pela felicidade da família em contraste com as sucessivas desilusões, a força da emotividade de suas falas em contraste com a fragilidade de sua figura, tudo isso emociona o público e se constitui em um desafio para as atrizes que a representam. (PIMENTA, 2005: 159)
A cegueira acentua a fragilidade e contribui para a concretização de algumas
situações dramáticas, como a conversa dos amantes no segundo ato. Nesta
situação, permanece em seu quarto com Marli enquanto sua neta conversa
tranquilamente com Alberto, na sala de sua casa. É um desafio para as atrizes que a
interpretarão, porque seus sentimentos e falas são contrastantes, alternando
fraqueza e força constantemente. Devido a esta dificuldade, a atriz da companhia
destinada a este papel seria a dama central. Geralmente são intérpretes mais
maduras, e este seria o último papel destinado a elas. Interpretam personagens que
normalmente exigem muita sensibilidade e conhecimento cênico, e D. Santa é um
excelente exemplo. No Circo Nerino era interpretada por Armandine Ribolá Avanzi:
atriz mais madura e dona da companhia junto com seu marido, Nerino Avanzi.
Em contraposição a ela, Juca, o cômico da peça, moleque responsável por
criar momentos agradáveis de descontração. Apresenta-se como uma personagem
muito carismática, principalmente por se vincular ao núcleo do bem e ser amigo de
Neli. A comicidade desta personagem ocorre através de sua dificuldade em falar e
se expressar naturalmente e também por apresentar uma ingenuidade somada a
uma tolice que o particularizam. A partir da leitura das peças circenses deste período,
em especial as melodramáticas, é possível reconhecer que os momentos cômicos
são criados a partir da fala e comunicação das personagens, como por exemplo, a
gagueira de Juca e a surdez de Velasco. Esta é a maneira mais aparente de
comicidade revelada pelos textos, principalmente por ser o instrumento que o autor
tem para criar e expressar estes momentos de descontração necessários ao gênero
melodramático.
Sua simplicidade e ingenuidade são seu grande trunfo. Age
despretensiosamente, interfere e modifica a história, mas sempre com leveza e
simpatia. Juca, assim como a maioria das personagens cômicas dos melodramas,
tem a possibilidade de transitar entre os núcleos do bem e o mal, por ser “neutro”
neste jogo de opostos característico da trama melodramática. Também é
responsável por fazer oposição à D. Santa, nas situações em que suas falas são
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muito dramáticas. Esta personagem foi interpretada por Walmir dos Santos, o
palhaço Garrafinha, que entrou no circo em Maceió e permaneceu até o último
espetáculo da trupe. Mais à frente voltaremos a falar com detalhes de sua figura.
Benevides e Adélia são pai e filha portugueses que aparecem somente no
terceiro ato da peça. O primeiro será engraçado por suas estultices, já que, apesar
de ter muito dinheiro, é ignorante e atabalhoado. Não sabe ler e por isso confunde,
junto com Juca, as cartas numa cena cômica muito interessante. Sua filha é leviana
e apresenta um jeito espalhafatoso, principalmente no trato com os homens, postura
inaceitável para a mulher “honesta” da época. Devido à conduta moral duvidosa é
passível de graça e não conquistará a admiração da plateia. Aprende com alguns
rapazes expressões brasileiras que seu pai não entende e com isso o faz de bobo.
Ambos são responsáveis pela comicidade do terceiro ato, formada principalmente a
partir da incompreensão na fala e nas diferenças culturais entre o Brasil e Portugal.
Adélia e Benevides foram interpretados por Anita Garcia Avanzi e Gaetan
Ribolá. Anita era uma importante atriz do Circo Garcia que, após o casamento com
Roger, mudou-se com os pais para o Circo Nerino. Gaetan Ribolá não esteve entre
os fundadores do circo, mas o encabeçava, junto com Armandine e Nerino a
empresa. Era um artista muito importante tanto da primeira parte do espetáculo (de
variedades) quanto dos dramas. Percebemos que Adélia e Benevides eram
personagens de destaque por serem representadas por estes dois relevantes atores
da companhia, mesmo que apareçam somente no terceiro ato.
Outras quatro personagens que não são principais, mas auxiliam
demasiadamente o dramaturgo a contar esta história são: Perdinari, Fernando, Marli
e Velasco. O primeiro é um italiano e rico industrial. A história se intensifica a partir
do seu assassinato e se desenrola decorrente disto. Demonstra ser uma pessoa
bastante correta, como podemos perceber através da fala na qual afirma que aplicou
uma punição em Fernando, mas tem a intenção de recontratá-lo, em uma posição
superior, por reconhecer seu valor.
Fernando é pai de Neli e filho de D. Santa. Foi acusado injustamente pelo
crime da abertura da peça, aparece no primeiro e no último ato. É um homem muito
honesto, trabalhador, e preocupado com a família. Daniele Pimenta (2005:163)
comenta que ele é apresentado com falhas que o humanizam e o distanciam de ser
o herói da história, apesar de ser uma importante vítima do vilão. Seus erros ficam
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evidentes principalmente quando demonstra revolta contra Perdinari, pela demissão,
e por se sentir humilhado em aceitar a comida de Velasco.
Marli é a irmã de Juca que realiza o papel de ajudante e confidente de D.
Santa, entretanto há pouca informação a seu respeito. A última personagem é
Velasco, o dono do bar em que Perdinari é morto. Velho e surdo, apresenta uma
enorme impossibilidade de compreensão, a qual gera os momentos cômicos do
primeiro ato. Observamos haver uma personagem responsável pela comicidade em
cada ato da peça, salvo o último, no qual não há abertura para a descontração.
3.4 – Análise das cenas e personagens cômicas
3.4.1 – Primeiro ato a comicidade do surdo
Na abertura da peça, antes de Fernando e Perdinari entrarem em cena, há
um diálogo cômico entre Velasco e De La Torre. O engraçado nesta conversa é o
desentendimento provocado pelo problema de surdez do primeiro. Henri Bergson,
em seu ensaio sobre a comicidade, comenta sobre o cômico de caráter, que se
relaciona com essa característica de Velasco:
A verdade é que a personagem cômica pode, a rigor andar em dia com a moral estrita. Falta-lhe apenas andar em dia com a sociedade. (...) Um vício flexível seria menos fácil de ridicularizar que uma virtude inflexível. É a rigidez que parece suspeita à sociedade. (...) Quem quer que se isole expõe-se ao ridículo, porque a comicidade é feita, em grande parte, desse isolamento. Assim se explica por que a comicidade é tão frequentemente relativa aos costumes, às ideias – aos preconceitos de uma sociedade, para darmos nomes às coisas. No entanto, cumpre reconhecer, para mérito da humanidade, que ideal social e ideal moral não se diferem essencialmente. Podemos, portanto, admitir que, em regra geral, são exatamente os defeitos alheios que nos fazem rir, - desde que acrescentemos, é verdade, que esses defeitos nos fazem rir em razão da sua insociabilidade, e não da sua imoralidade. (BERGSON, 2007: 103 e 104)
De maneira resumida, Bergson concluí que o riso é produzido a partir do
isolamento social de um indivíduo que apresenta um comportamento rígido. Nesta
perspectiva, o fato de Velasco não ouvir é uma característica que o limita
socialmente e o afasta das pessoas, por não ter a flexibilidade auditiva necessária
para travar uma conversa dinâmica, além de desencadear uma série de equívocos
64
na comunicação e durante a maior parte do tempo permanecer à margem dos
acontecimentos mais importantes do primeiro ato. Ao final do primeiro diálogo da
peça, além de Velasco não compreender adequadamente o que De La Torre lhe diz,
ainda acha que ele seja surdo também. Como podemos observar no diálogo
seguinte:
TORRE – (mais alto) Este whisky não é falsificado? VELASCO - Ah!... Sou sim senhor. TORRE - (admirado) Hein?!... VELASCO - Hein!?... TORRE - (a Francisco, irritado) Não há nada pior do que conversar com uma pessoa surda. (une a palavra ao gesto, indicando o ouvido) VELASCO - (a Francisco, apontando Torre) Ele é surdo!... Ah, bom! (volta ao balcão) (PIMENTA, 2005: 203 e 204)
Nesta passagem é cômica a confusão que Velasco, por não ouvir bem,
comete ao achar que De La Torre lhe perguntara alguma coisa a seu respeito,
quando na verdade indagava sobre o uísque servido. Em seguida há uma passagem
ainda mais engraçada, quando o dono do bar se equivoca ao compreender que o
seu interlocutor seja surdo. Com isso, Velasco demonstra não ter consciência de seu
problema auditivo, principalmente por agir sem considerar esta questão. A
inconsciência é destacada por Bergson como uma premissa relevante para a
personagem cômica.
A surdez também possibilita que De La Torre apresente suas intenções, como
a de matar Perdinari, na presença de Velasco. Esta é uma característica
interessante desta personagem: estar presente em cena a maior parte do tempo sem
interferir na história e nem intimidar as demais personagens. Dessa forma, parte da
construção cômica se dará a partir de suas ações cênicas ou atividades, como
enxugar os copos do bar, que podem se tornar risíveis dependendo da maneira que
forem realizadas. Sendo interpretado pelos palhaços, já havia a propensão de tornar
estas ações ainda mais engraçadas por meio de sua atuação específica.
Após a entrada de Perdinari e sua conversa com De La Torre, responsável
por aumentar ainda mais a tensão deste ato, Velasco volta à cena e comete um
equívoco relacionado ao pagamento do aluguel, numa cena cômica muito
interessante. O diálogo apresenta um movimento crescente no desentendimento do
italiano com o dono do bar. Quando o primeiro lhe pede água, Velasco entende se
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tratar do dinheiro, depois quando questiona faltarem cem cruzeiros, ele confunde e
traz a água. Porém, na terceira vez, Perdinari já está muito nervoso e lhe fala de
maneira “quase desesperada”, de acordo com a rubrica, gesticulando muito.
PERDINARI - Per la Madonna! Toda vez que venho aqui e o empregado não está, é assim. Me deixa quase louco! (entra Velasco, trazendo água) Eh!... não estou falando?... (apanha o copo, põe sobre a mesa e, quase desesperado) Faltam cem cruzeiros! (pausa) Cem fiorins!! (pausa) Cem massones!!! (corta. Rápido para Torre) Que é que eu vou falar mais? TORRE - Fala-lhe por sinais. PERDINARI - (abrindo as duas mãos) Faltam cem cruzeiros! Não foi isso que eu pedi. Faltam cem cruzeiros. VELASCO - Ah! Dez copos d’água? (vai a sair e Perdinari segura-o) PERDINARI - Não! (explica a frase mais com gestos do que com palavras) Aqui faltam cem cruzeiros! VELASCO - Ah, faltam cem cruzeiros? Eu vou buscar. Por que não falou antes? (sai) (PIMENTA, 2005: 223 e 224)
A crescente irritação de Perdinari em contraste com as reações passivas de
Velasco se torna cômica. Principalmente ao final, quando o surdo finalmente
compreende e lhe pergunta por que não dissera antes aquilo que tanto se esforçava
para dizer. A cena toda é criada para este desfecho inusitado e, portanto, ainda mais
engraçado: o italiano gesticulando e perdendo a paciência em contraponto com
Velasco, que não percebe os equívocos que comete. Novamente se trata do cômico
suscitado através da inconsciência de seu defeito físico e dos equívocos
desencadeados pela surdez.
Outro aspecto interessante diz respeito ao momento em que este diálogo está
inserido. Antes da entrada de Velasco, De La Torre e Perdinari conversavam a
respeito de Fernando e sua possível readmissão. O diálogo cômico interrompe o
sentimento de compaixão em relação a Fernando e distrai o espectador do foco do
assassinato, e, quando este finalmente acontecer, após esta conversa, criará um
impacto ainda maior nos espectadores.
3.4.2 – Segundo ato a comicidade do gago
A apresentação de Juca, a principal personagem cômica desta história, ocorre
após a conversa entre D. Santa e Marlina abertura do segundo ato. Ele cumprimenta
as personagens e em seguida é questionado se já é noite. Devido a sua gagueira,
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se confunde para responder, pois ele entrara em cena para chamar sua irmã para ir
embora, mas como é interrompido muitas vezes não se faz entender.
JUCA - (entrando) Boa... boa... boa noite. MARLI E SANTA - Boa noite. SANTA - Já é noite?! JUCA - Já... já... SANTA - Ah, já? JUCA - Não. SANTA - Não? JUCA - Já... já... MARLI - Mas o que é isso, Juca? Uma hora você diz quejá é noite, outra hora você diz que não? JUCA - Pois... num... num... num deixa eu... acabá defalá! Já... já... já são mais de 6 horas... MARLI - Então! Já é noite! JUCA - (irritado) Mas... mas deixa eu acabá de falá! MARLI - Então, fala logo, Juca. JUCA - Já... já... são mais de seis horas... MARLI - Mas você já falou isso, Juca! JUCA - (muito irritado) Ma...ma...ma... (num repentenervoso, se despenteando todo) Mais deixa eufalá! (Marli mostra-se irritada, D. Santa sorri)Já... já... já são mais de 6 horas e.. e... e... a...mamãe manda dizer que... que... que... logo que... que... que... a Neli chegá é para você ir para casa. (PIMENTA, 2005: 241 a 243)
Desde sua entrada em cena, pretende falar a seguinte frase: “Já são mais de 6 horas e a mamãe manda dizer que logo que a Neli chegar é para você ir para
casa.”. Porém, ao cumprimentá-las com “boa noite”, D. Santa o interrompe para lhe
perguntar se já é noite, mas como ele é gago provavelmente se concentrara para
falar e assim ignora o que D. Santa dissera. Em seguida ocorre uma série de
equívocos engraçados, pois as falas de Juca coincidem com as perguntas feitas por
D. Santa. É cômico o que a concentração demasiada de Juca ocasiona e se
assemelha com a análise de Vladimir Propp sobre o cômico gerado pelas situações
inesperadas:
Usando uma expressão um tanto paradoxal, é possível dizer que a distração é consequência de alguma concentração. Entregando-se com exclusividade a um pensamento ou preocupação, a pessoa não presta atenção aos seus atos, executa-os automaticamente, o que leva às consequências mais inesperadas. (PROPP, 1992:95)
Propp concorda com a premissa bergsoniana de o cômico ser gerado por
alguma ação mecânica, desconsiderando a maleabilidade da vida, como o fato de
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Juca se concentrar demasiadamente na sua fala e desprezar as perguntas de D.
Santa. Este é um traço forte desta personagem ao longo de toda a peça: quando sua
concentração está na fala muitas situações cômicas são geradas, por ignorar as
interferências externas. É engraçado também o fato de sua resposta corresponder à
pergunta feita, pois ele se preparara para falar o que a mãe pedira: “Já são mais de
6 horas...” e o início desta frase também serviu de resposta às perguntas de D. Santa. Este tipo de comicidade se assemelha com a análise de Bergson da
comicidade de palavras, mais precisamente com as interferências: “(...) a
interferência, quer dizer, de dar à mesma frase dois significados independentes que
se sobreponham.” (BERGSON, 2007: 87).
Outro elemento cômico desta cena está na crescente irritação de Juca (que
inclusive se despenteia todo de raiva) em relação às interrupções feitas pela irmã. O
jogo de intromissão, e a tentativa de completar as falas entrecortadas de Juca,
acontecem ao longo de toda a peça. Muitas vezes através da suposição, feita pelas
personagens, daquilo que Juca tenta falar. Nesta cena, Marli, por ser sua parente,
expressa a irritação com o irmão, atitude que as demais personagens não
apresentam de maneira evidente, devido à educação polida e decoro das relações,
característico do gênero. A impaciência em relação a Juca é algo comum na
conversa com um gago, responsável por gerar momentos engraçados.
Antenor conseguiu exprimir muito bem a dificuldade de Juca em formular
frases simples, e soube usá-la gerando interrupções e equívocos interessantes.
Como no momento seguinte deste diálogo, em que quase conta para D. Santa, e
para o público, que Neli e Alberto estão namorando. Nesta passagem, além da
cegueira de D. Santa, sua dificuldade de falar contribui para que sua irmã o
interrompa a tempo. Eles falam baixo (a ponto de o público ouvir e D. Santa não) e
Marli lhe pede para não contar. Neste momento o público, antes de D. Santa, fica
sabendo da relação do casal.
SANTA - Escute-me, Marli. Há pouco você disse-me que Neli,às vezes, fica muito alegre, tão feliz como se avida fosse um mar de venturas... Estive pensandopor que seria?... Ela sempre foi tão triste... JUCA - Ah... a s... a s... a senhora não sabia? (Marli leva-o para o canto) É por... que... ela... ela... MARLI - (a meia voz) Cale-se! JUCA - Por... por quê?
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MARLI - (baixo) Não quero que lhe diga. JUCA - (idem) O quê?... Vo...Você num sabe o que eu iafalá! MARLI - (idem ) Ia dizer-lhe que Neli está namorando oSr. Alberto, filho do Sr. De La Torre. JUCA - (idem) Taí! A...Agora você acertou. MARLI - (idem) Pois bem, não lhe diga. JUCA - (idem) Por... quê? MARLI - (idem) Porque Neli não quer. Ela mesma é quelhe quer dizer. JUCA - (idem) Tá... bom. En...tão eu num falo. Maisque... eles tão namorando, tão mesmo. SANTA - Perdoe-me a pergunta, Marli. Mas por que estãovocês conversando baixinho? MARLI - É o Juca que está me contando umas coisas, massem importância. (PIMENTA, 2005: 243 a 245)
O melodrama geralmente antecipa os próximos acontecimentos da trama
como uma forma de atiçar a curiosidade dos espectadores, e manter seu interesse
na história. Anunciar o próximo ato sem revelá-lo por completo faz com que o público
fique ansioso pelo que virá, como ao juntar amorosamente Alberto e Neli, filha do
suposto assassino do pai de seu amado. Podemos observar, através desta união, a
construção intrigante da história, que busca incessantemente despertar o interesse
do público.
Neste trecho, Juca realiza a importante função dramática de manter o
espectador onisciente da trama, característica do gênero melodramático. Toda a
encenação é criada visando estabelecer o diálogo com o público no sentido de
agradá-lo e de lhe instigar o interesse. Tanto o melodrama quanto as outras atrações
do circo se assemelham por prezar a relação de troca com os espectadores,
explicitada através da interpretação dos atores com a utilização da triangulação com
o público. O critério de escolha para o repertório dramático, para as atrações
circenses, até mesmo as piadas feitas pelos palhaços, sempre será de acordo com o
gosto popular. Esta particularidade possibilita que estas manifestações artísticas se
mantenham atualizadas, por se recriarem junto com o interesse mutável do público.
Dessa forma, conseguem acompanhar as mudanças sociais e as novas tendências
culturais, sempre no sentido da apropriação e ressignificação.
Em seguida da conversa cômica de abertura do segundo ato, finalmente Neli
e Alberto entram em cena, e então o interesse do público, em ver a figura dos dois
jovens namorados, finalmente é realizado. Nesta situação, o gago deflagra tudo o
que pensa em relação à amiga de maneira cômica e descontraída, sem prezar pela
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boa educação. É comum a personagem cômica transgredir a norma social e fazer
graça disso e Juca não se importa com as regras sociais de cordialidade, não é
polido em seus comentários, fala de maneira direta e grosseira, se comparado a
maioria das personagens da trama. Quando Neli entra em cena e diz que não tem
ninguém em sua casa, Juca lhe responde: “Num... num... num tem ninguém aqui
uma ova!En...tão eu n...num sô ninguém?” (PIMENTA, 2005: 246). Esta maneira de
falar é característica de muitas personagens cômicas: falar de maneira objetiva e
debochada, sem a polidez dos padrões de educação vigente, e isto suscitará o riso.
Neli, por outro lado, responde com gentileza, de acordo com seu tipo de heroína: “Oh! Desculpe, Juca. Não tinha visto você.”.
A fala mais debochada e direta revela outra forma de se comunicar
socialmente, e também demonstra que o mundo não é feito somente de cordialidade
e formalidade. Aproxima-se de uma fala mais cotidiana e popular e por isso gera
mais empatia com a plateia. Esta maneira de se expressar é engraçada
principalmente por ser dita por Juca, uma figura muito simpática, e ajudante do
núcleo do bem da história, que por isso conquistará a admiração do espectador.
NELI - Oh! Desculpe, Juca. Não tinha visto você. JUCA - É a...assim mesmo. Por...que tá namorando o...seu Alberto, já... já nem enxerga os amigos. NELI - Desculpe Juca. (a Alberto) Alberto apresento-te aqui o meu amiguinho Juca, a quem estimo como se fora um irmão. Juca, este é o Alberto, o meu namorado. Creio que já o conhecede vista. ALBERTO - (apertando a mão de Juca) Muito prazer. JUCA - O... o... ALBERTO - O mesmo? JUCA - O... o... o... NELI - Já sei. O prazer é todo seu. JUCA - Não. NELI - Não? JUCA - N... num é isso... que eu quero falá! ALBERTO - (sorrindo) Fale. JUCA - O s... o s... NELI - O senhor! JUCA - (muito irritado) Ma...ma...ma... (num repente,nervoso, mexendo outra vez todo o cabelo) Maisdeixa eu cabá de falá! O s... o seu nome éA...Aberto mesmo? ALBERTO - Ah, sim! Meu nome é Alberto Perdinari. JUCA - Mu...mu... ALBERTO - Muito prazer? JUCA - Taí! A...a...gora acertou. NELI - Vovó está lá dentro, Juca? JUCA - Tá. NELI - Escuta...Eu queria...
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JUCA - Já sei. É... é... (apontando os dois, dá umarisadinha maliciosa) É pra mim dá o fora. Eu vô...n...um... é preciso mandá. (sai rindodiscretamente) (PIMENTA, 2005: 246 a 248)
Outro aspecto de sua figura nos é revelado por falar aberta e francamente
com Neli sobre o fato de ela ter se afastado dele por que começou a namorar. A
maneira direta de apresentar seu descontentamento é cômica, principalmente por
falar na frente do próprio namorado. Em seguida, novamente é engraçada a situação
de Juca tentar falar frases muito simples como “O seu nome é Aberto mesmo?”,
“Muito prazer”, ser interrompido e se irritar com a impaciência das demais
personagens. Ao perguntar o nome do herói, o gago diz uma frase de duplo sentido,
indagando se ele é aberto, fala esta que pode servir de material cômico ao ator que
a realiza. No final deste trecho, interrompe de maneira grosseira, para o contexto
melodramático, o que Neli ameaçara lhe pedir, dizendo que “vai dar o fora” antes
que ela precise pedir.
No momento da despedida do casal, Juca, que ficara fora da casa, interrompe
dizendo que não pode ficar no sereno porque está com o calo doendo. Esta frase
pode revelar certa ingenuidade da personagem, porém parece se valer desta
desculpa como uma forma de justificar que está se sentindo mal e quer ir embora.
Demonstra um raciocínio de certa forma esperto, mesmo que ingênuo, para sair da
situação incômoda que se encontra. Esta fala é engraçada principalmente por
revelar uma conexão alógica feita por Juca com o fato de o sereno não ter nenhuma
relação com a dor no calo. Propp comenta a respeito do riso de atitudes alógicas,
que nos ajudará a analisar esta fala:
Ao lado do fracasso daquilo que se deseja por causas externas ou internas, há casos em que o fracasso se deve à falta de inteligência. A estultice, a incapacidade mais elementar de observar corretamente, de ligar causas e efeitos, desperta o riso. Nas obras literárias, assim como na vida, o alogismo pode ter dupla natureza; os homens dizem coisas absurdas ou realizam ações insensatas. (PROPP, 1992: 107)
De acordo, portanto, com o trecho acima percebemos que o alogismo
cometido por Juca está no que ele diz, com o fato de não ligar corretamente causa e
efeito. O raciocínio revelado por esta fala é de o aumento da dor no calo ser devido
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ao sereno e isto não é correspondente, por isso se torna engraçado. Quando Alberto
finalmente deixa a cena, Neli chama Marli com um assobio e pede para Juca dizer
que fora ele que assobiara. Quando D. Santa pergunta quem assobiara, Juca diz
que foi ele, porém em seguida revela a verdade: diz que foi Neli e ela pediu para
dizer que tinha sido ele. Dessa forma, expõe a situação que deveria ter sido
acobertada: Neli assobiou para avisar Marli. Este tipo de colocação geralmente
suscita o riso por surpreender o público e as personagens em cena e gerar uma
situação constrangedora.
Na hora de se despedir para sair de cena, Juca gagueja e só consegue
concluir a sua fala depois de Marli ter deixado a casa, cumprimenta todos e sai
correndo. Como não houve nenhum motivo que o fizesse agir assim, esta maneira
de se retirar torna-se descabida, e só poderia ser realizada desta maneira pela
personagem cômica da peça. Termina então a participação de Juca neste ato que,
em muitos momentos, contribui para o andamento da história mesmo que
aparentemente a atrapalhe. Ele é responsável por desviar a atenção do público da
trama que aos poucos se complica e intensifica. Neste ato, Juca reforça o fato de ser
um moleque ingênuo e tolo que age despretensiosamente dentro deste conflituoso
enredo.
3.4.3 –Terceiro ato a comicidade do tolo
Neste ato, Adélia e Benevides são os principais responsáveis pela comicidade.
Desde o começo a portuguesa se mostra muito debochada na maneira de falar e
agir. e, durante uma conversa com seu pai, utiliza inúmeras gírias que acabara de
aprender no Brasil. Benevides não entende o discurso da filhaporque não conhece
as gírias usadas e por interpretar literalmente o que a filha diz e não perceber que se
trata de figura de linguagem. Como podemos ver na cena a seguir:
ADÉLIA - Oh, papai! Mas isto aqui é bom! Eu quisera nãovoltar mais para Portugal. A coisa aqui é boa! Édo balaco-baco!... BENEVIDES - É do quê? ADÉLIA - É do balaco-baco. Aqui é cocoreco e pronto. BENEVIDES - (aparte) Ela está ficando maluca! (alto) O que écoroquéco? ADÉLIA - Cocoreco é bico de pato. Quer dizer que aquinão tem conversa mole pra boi dormir, não! BENEVIDES - Escuta; o que é que tem o bico do pato com aconversa do boi?
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ADÉLIA - (depois de rir) Qual! O senhor não manja mesmonada. Para falar com o senhor só mesmo àportuguesa. BENEVIDES - É lógico! Tu vens falar em baco-baco, emcoroquéco, em bico de boi, conversa de patoquando está dormindo! Vou lá entender essenegócio?... ADÉLIA - (depois de rir) O senhor não emboca uma! Osenhor não pode mesmo entender. No Brasil olero-lero é diferente. (pausa) Então, já cuidoudo casamento? BENEVIDES - Já falei ao Sr. De La Torre. Ele consente e disseque o filho gosta de ti. ADÉLIA - Eu bem o sabia! Não há homem que resista auma bela cachopa portuguesa!... BENEVIDES - Escuta aqui, minha filha, mas fala direito. Nãoenrola a língua, não. Tu amas esse rapaz? ADÉLIA - Eu gosto dele, mas amar não! Amor hoje em diaé manga de culete. BENEVIDES - Manga de culete? Taí. É por isso que eu nãogosto de modernismo. Nos meus culetes, eu nãodeixo por manga! ADÉLIA - Creio que desta vez acertei a mão! BENEVIDES - Acertou a mão aonde? ADÉLIA - Causarei inveja a todas as minhas patrícias.Mulher de um médico! Qual, papai, vou casarcom ele! É o meu pedaço! BENEVIDES - (espantado) Quê?! Falta um pedaço ao rapaz?Pois olha, eu não sabia. ADÉLIA - Fique sabendo agora. Mas com ele, papai, a conversaé outra. O Albertinho gosta de romantismo.E nessa matéria eu sou mestra. (PIMENTA, 2005: 272 a 275)
Percebemos que Adélia não considera as falas de seu pai, pois ao explicar
uma gíria utiliza outra no lugar, dificultando ainda mais a compreensão. Apesar de
Benevides conhecer algumas das palavras ditas pela filha, não compreende o
sentido atribuído a elas e por isso pensa que ela enlouqueceu. Este é um tipo de
comicidade ressaltada por Bergson e Propp, que se encontra justamente no jogo de
significados das palavras e expressões, que determinada cultura julga engraçado.
Poderíamos dizer que a maioria das palavras apresenta um sentido físico e um sentido moral, conforme a tomemos em seu sentido próprio ou no figurado. (...) Obteremos efeito cômico se fingirmos entender uma expressão no sentido próprio quando ela é empregada no sentido figurado. Ou ainda: Quando nossa atenção se concentra na materialidade de uma metáfora, a ideia expressa se torna cômica. (BERGSON, 2007: 85 e 86)
De acordo com o trecho acima, o diálogo se torna complicado por Benevides
interpretar o que sua filha diz no sentido literal, enquanto ela emprega o figurado.
Neste trecho é explorada a característica do tipo do português na cultura brasileira.
Muitas expressões nacionais utilizam o sentido conotativo que, somente através do
contexto, pode ser interpretado corretamente. Entretanto o povo português tem a
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fama de utilizar a fala estritamente no sentido denotativo, e disso resultam muitos
equívocos cômicos amplamente explorados pelas “piadas de português”.
Para o pai, o diálogo não tem coerência e por isso acredita que sua filha
enlouqueceu e fica muito preocupado. Entretanto, Adélia se aproveita desta situação
e o faz de bobo, pois não tem a intenção de se fazer compreender, isto também é
cômico. Ela se aproveita desta situação e encarna o tipo da filha que manda nos pais
e faz o que quer. Vladimir Propp comenta que é muito comum nas cenas da
literatura mundial e dos contos populares russos a situação de uma personagem
fazer a outra de boba, para isto é preciso haver uma personagem esperta e outra
ingênua. Adélia realiza o primeiro papel e se mostra, em oposição a seu pai,
articulada, pois em pouco tempo já se familiarizou com a diferença entre as línguas e
expressões. Também demonstra um caráter discrepante com o tipo feminino,
representado pela ingênua doce e recatada, demonstrado na sua maneira de agir e
se comunicar, como ao aprender as gírias com os homens e utilizá-las desta
maneira desenvolta. Esta conversa apresenta um crescente no desespero do
português, diante da incompreensão, o que aumenta ainda mais comicidade da cena.
Pai e filha são surpreendidos por Alberto e em seguida os pretendentes ficam
sozinhos em cena. Adélia se mostra muito interessada no rapaz, e lhe faz
declarações de amor, na forma de um jogo com as palavras, como fizera com seu
pai. Benevides entra silenciosamente em cena e ouve apenas uma frase, fora de
contexto, dita pela filha: “Pois eu desejava ser uma vela de cera”. Diante do que
viera antes, tem a certeza de que a filha enlouqueceu, e para se certificar pergunta a
todas as personagens que encontra: “Tu achas que uma mulher pode virar vela de
sebo?”.
Esta frase é repetida muitas vezes pela personagem ao longo do ato, e se
tornou um bordão de Benevides, reconhecido, inclusive, pela plateia. Daniele
Pimenta comenta, em seu livro, depoimentos de que os espectadores faziam a
pergunta junto com Benevides e assim estabeleciam um diálogo direto com o artista.
Os depoimentos se referem a apresentações feitas no circo-teatro dirigido por
Antenor Pimenta, porém é possível que reações similares ocorressem nos demais
circos brasileiros. Como podemos perceber nos comentários sobre as interferências
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do público feitos por Roger Avanzi na entrevista realizada para a pesquisa, no dia 18
de março de 2014:
No circo era muito vulgar isso, porque ia muita plebe, muito povo baixo. Tinha camarotes que eram pessoas de primeira classe, as cadeiras. Mas na geral, que chamavam de poleiro, sempre iam pessoas sem instrução e eles gostavam de mexer com os artistas e de achar graça na peça. Então tinha que fazer força para aguentar aquela plateia revoltosa. Mas sempre nos saímos bem no circo. O circo era mais difícil que no teatro. O teatro é mais sossegado. (...) No teatro uma atenção fantástica, e no circo era mais esculhambado. Parece que iam no circo só para se divertir, dizendo coisas que vinham na cabeça deles, o povo baixo da geral. Mas a gente tinha que aturar. Depois com a continuação dos espetáculos, nós íamos, vamos dizer, domando esse povo para eles saberem assistir. Falávamos muito com eles e ia melhorando. (...) Uma vez eu assisti em um circo aqui em São Paulo, quando eu vim passear aqui tinha um circo aqui em São Paulo e levava peças. E acontecia coisas assim: a moça tinha que roubar, parece que era O mundo não me quis parece, ela ia no cofre uma coisa em silêncio, né? Não falava nada, ai abria e tirava, aquele negócio, né? E ela era muito magra, magrinha, bem magrinha. Aí de repente tinha um gozador, era circo. O gozador que estava assistindo, e eu estava assistindo também, Eu fiquei bobo. Ele gritou: Saí daí. Bem forte. Saí daí, bacalhau de porta de venda!Bacalhau de porta de venda! E assim saiam essas piadas, né? (Entrevista realizada com Roger Avanzi em 18/03/2014)
Nesta fala, Roger se refere a dois espaços de representação: o circo e o
teatro, o último referente aos edifícios teatrais das principais cidades brasileiras do
período. Este local costuma ser elitizado, em decorrência de apresentar um preço
maior, e ser um lugar com regras claras de comportamento, o público tende a manter
o silêncio e também há menos interação entre os espectadores. O circo, em
contrapartida, permite uma maior relação por ser um espetáculo de entretenimento e
também devido à maneira da disposição física do público em relação aos artistas. O
tipo de atração exibida favorecia este tipo de relação, por estabelecer um jogo cênico
claro e direto com a plateia. Este tipo de reação, diante das diversas apresentações,
complementa e dialoga com as atrações, trazendo novos nuances para o espetáculo.
Como a fala de Benevides repetida exaustivamente ao longo da peça, a qual o
público conseguia prever e por isso dizia junto com o ator. Apesar de esta relação
mais livre com os artistas às vezes atrapalhar, como narra Roger na fala acima,
mencionando que eles atuavam como uma espécie de formadores de público.
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A próxima cena cômica deste ato ocorre entre Benevides e Juca, e prepara a
resolução da trama através do equívoco das cartas. O gago espera por uma
resposta da carta de Neli e, por demorar, entra à força na casa, se encontrando com
Benevides. O português está muito preocupado com sua loucura, novamente indaga
a todas as personagens se o acham maluco e Juca é o primeiro a dizer que não. Por
isso consegue sua proteção diante da ameaça do criado em colocá-lo para fora,
chama-o de amigo e lhe convida para sentar. Então lhe indaga seu famoso bordão
sobre a possibilidade de uma mulher virar vela de sebo, dessa forma Juca revela ao
público, através do aparte, que o português está sim maluco.
Neste diálogo, Antenor utiliza o recurso do aparte, o qual lhe possibilita revelar
o lado de Benevides, eufórico por ter encontrado alguém que não o acha maluco, e o
de Juca, que o acha maluco, mas, como tem sua proteção, não pode contrariá-lo.
Dessa forma, o descompasso e desentendimento de ambos ficam evidentes e isto
será muito cômico, principalmente no jogo com o espectador. Nesta peça, há pouca utilização do aparte (fala de uma personagem direcionada
para a plateia) pelo autor, por pretender criar uma história envolvente, sem
demonstrar a construção cênica. Antenor, segundo Daniele Pimenta (2005: 58 e 59),
considerava a interpretação dos atores de circo muito artificial e estereotipada, e
destacava o problema de acústica como responsável por este exagero. Por isto
procurava uma nova forma de representação para a sua companhia, cujo resultado
deveria ser o mais próximo do real, visando aumentar a identificação12
do público
com a história. Seu palco era equipado com microfones, a fim de que os atores não
recorressem à impostação nas suas falas. Apesar desta preocupação, dificilmente
um melodrama apresentado dentro do ambiente circense será confundido ou
encarado como realidade. Entretanto esta pretensão de Antenor revela uma
preocupação em tornar a encenação verossímil13
, com a possibilidade de
12 A identificação é um processo de ilusão em que o espectador imagina ser a
personagem representada. Segundo Nietzsche, o prazer da identificação advém do encantamento que ela produz, sendo este o fenômeno dramático fundamental: “ver-se a si próprio transformado diante de si mesmo e então atuar como se na realidade a pessoa tivesse entrado em outro corpo, em outra personagem.” (NIETZSCHE, 1992: 60)
13 “O verossimilhante é um elo intermediário entre as duas ‘extremidades’, a teatralidade da ilusão teatral e a realidade da coisa imitada pelo teatro. O poeta busca um meio de conciliar as duas exigências: refletir o real fazendo-o verdadeiro, significar o teatral criando um sistema artístico fechado em si mesmo.” (PAVIS, 2005: 429)
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identificação por parte do espectador. Os dramas circenses costumam ser feitos
para comover a plateia, levá-la as lágrimas e provocar fortes sentimentos.
A cenografia também completa esta intenção do autor, pois era diferenciada
por não utilizar telões pintados, mas mobília e uma ambientação completa para os
cenários. Antenor se preocupava em construir um espetáculo bonito para os olhos,
algo grandioso e impactante. Esta peça ressalta ainda mais este aspecto por
apresentar uma diversidade de ambientes e cenários, tais como: um bar, casa pobre
de Neli e D. Santa, casa rica de Alberto e De La Torre e a frente de uma igreja. Era
um grande desafio uma companhia circense, principalmente para uma que buscava
reproduzir os ambientes reais no palco, pois possuir móveis e ambientes para todos
estes espaços não era uma tarefa fácil.
Voltando ao aparte utilizado por Juca, identificamos este como um recurso
dramatúrgico em que o ator se direciona ao espectador e por isso o distancia da
identificação com as personagens. É interessante perceber sua aparição no contexto
de uma cena cômica dito pela personagem de Juca. O riso, em muitas cenas,
apresenta o elemento de distanciamento por se destinar à inteligência, pois muitas
vezes para rirmos é necessário “anestesiar o coração” (BERGSON, 2007). Esta cena
realiza o distanciamento em relação a história, tão importante no gênero
melodramático, como podemos ver ainda em sua continuação:
BENEVIDES - Faça-me o favor. Tu achas que eu estou maluco? JUCA - Não... O senhor tá co intestino da cabeça estragado. BENEVIDES - Isto sim, mas maluco não estou! Tu és meu amigo! JUCA - Eu...eu... BENEVIDES - Não diga nada. Um abraço!... (Abraça-o) JUCA - Eu...eu... BENEVIDES - Outro abraço! (torna a abraçá-lo) JUCA - Eu...eu... BENEVIDES - Outro mais! (abraça mais uma vez) JUCA - (levanta-se e afasta-se, aparte) O homem é loucoferóis!
BENEVIDES - Olhe, meu amigo, disponha de mim no quequiseres. JUCA - Eu...eu... venho buscar a resposta da carta queeu trouxe pro senhor A...A...Aberto. (PIMENTA, 2005: 300 e 301)
Apesar de Juca não ser o criado de Benevides, neste momento ele assume
este papel através da condição de ter que agradar-lhe mesmo que pense o contrário,
para que assim possa permanecer na casa. É muito comum na literatura a
77
figura cômica do criado, o qual pertencente a uma classe social mais baixa e se
utiliza da sua esperteza para lidar com as demais personagens. Benevides, em
contraposição, pertence a uma classe social mais abastada, não tem estudo e é
muito tolo, por isso apresenta muitas atitudes insensatas ao longo da trama. Este
momento é o clímax da loucura do português, pois sua última esperança de
sanidade, revelada no contato com Juca, se mostra falsa. É cômico o descompasso
das ações e reações das personagens e, principalmente, o fato de Benevides
abraçar avidamente Juca, sem que ele entenda seus motivos.
Os inúmeros abraços, em seguida a fala de que o português está inteiramente
ao seu dispor, indica uma tendência homoafetiva. Anteriormente, em um diálogo com
sua filha, ele já indicara esta possibilidade quando Adélia diz querer se casar com
Alberto e Benevides lhe responde que ele também deseja. Somente a partir da
indagação de sua filha esclarece que deseja o casamento dela com o rapaz. A
comicidade gerada a partir da sugestão homoafetiva e, em algumas peças, a
apresentação de personagens homossexuais, é um recurso cômico amplamente
utilizado no circo-teatro. Também encontramos em inúmeros programas televisivos
posteriores, tais como em A praça é nossa, Os trapalhões e Chico City.
Diante desta disposição apresentada por Benevides, Juca aproveita a
oportunidade e diz que veio buscar a carta de Alberto, então o português ajuda a
encontrá-la. Na mesa está a carta que De La Torre enviaria a Francisco avô, e no
chão está a de Neli adulterada. Entretanto nenhum deles consegue ler, Juca diz não
conseguir porque foi escrito a tinta e ele só sabe ler a lápis. Esta fala é muito
engraçada por mostrar um ilogismo: não tem relação o material utilizado para
escrever a carta com o seu conteúdo. Ao invés de Juca revelar a verdade, de que
não sabe ler, ele usa uma explicação qualquer, impensada e ilógica, por isso
engraçada. Benevides continua esta mesma piada, ao dizer que não consegue
entender porque só sabe ler o português de Portugal. Juca o contesta afirmando
serem línguas parecidas, então o português completa: “Porque no Brasil o lero-lero é
diferente.” (PIMENTA, 2005: 302). É surpreendente, e cômico, ouvi-lo utilizar a
expressão dita por sua filha, pois anteriormente ele se demonstrava confuso quanto
ao significado, e agora já fala a expressão no contexto correto. Por não conseguirem
ler, Juca guarda as duas cartas e, antes de ir embora, Benevides novamente lhe faz
a incansável pergunta: “Tu achas que uma mulher pode virar vela de sebo?”. Então
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finalmente Juca, depois de conseguir o que procurava, fala que ele está maluco sim.
Com esta afirmação, Benevides se desespera e resolve se internar num hospício,
pois não lhe resta dúvida de sua insanidade. Para finalizar o diálogo cômico, Juca
diz ironicamente: “Ô portugueis! Eu vou estudar o seu caso” (PIMENTA, 2005: 304).
A história se solucionará mais à frente devido ao engano das cartas, um
procedimento comum nos melodramas. A carta funciona como um deus ex machina
responsável por solucionar parte das inúmeras peripécias da trama aparentemente
irreconciliáveis. Este é um recurso dramatúrgico que surgiu com o teatro grego, mas
se modificou com o passar do tempo e integrou outros gêneros literários,
principalmente no melodrama cuja tragédia foi bem influente. Patrice Pavis, em seu
Dicionário de Teatro, comenta sobre as diferenças na utilização deste recurso na
comédia e na tragédia:
A comédia usa de subterfúgios aparentados ao deus ex machina: reconhecimento ou volta de uma personagem; descoberta de uma carta, herança inesperada etc. Neste caso, uma parcela de acaso é admitida nas ações humanas. Para a tragédia, em compensação, o deus ex machina não é efeito do acaso e, sim, o instrumento de uma vontade superior; é mais ou menos motivado, sendo artificial ou inesperado apenas na aparência. (PAVIS, 2005: 92)
No equívoco das cartas, este recurso foi utilizado de acordo com a comédia
por envolverem personagens com ações ocasionais, e não por vontade divina, como
na tragédia. As peças melodramáticas sacras geralmente não apresentavam
personagens cômicas e nem situações engraçadas. Para haver comédia é preciso
transferir aspectos elevados para um plano corporal, este pensamento é
compartilhado por Bakhtin, Bergson e Propp. É cômico: “(...)todo incidente que
chame nossa atenção para o físico de uma pessoa quando o que está em questão é
o moral.” (BERGSON, 2007: 38). Portanto quando os aspectos morais, como no
melodrama e na tragédia, são a tônica da cena não há o riso: é preciso corporificá-
los para isto. Os bufões da Idade Média durante as cerimônias de iniciação dos
cavaleiros, por exemplo, uma das formas de satirizar era rebaixando ao corpo
aspectos da ideologia e cerimonial cavalheiresco, e assim conseguiam provocar o
riso franco dos espectadores.
Apesar de o melodrama ter muitas semelhanças com a tragédia clássica
grega, este é um dos pontos que os diferencia: a possibilidade de inserção de
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elementos cômicos diante de situações trágicas, tal como ocorre em Shakespeare
ou em Nelson Rodrigues. Como, por exemplo na peça de análise, o fato de uma
dupla cômica, por obra do acaso, ser responsável pela solução de uma trama
complexa motivada por um perverso vilão. Este ato termina com o anúncio do
casamento entre Alberto e Adélia que, no dia seguinte, partirão para Portugal junto
com Benevides. Dessa forma, De La Torre consegue adiar o conhecimento de
Alberto das cartas, em posse de Juca e Neli.
3.4.4 – Quarto ato o declínio da comicidade
Na montagem realizada pelo Circo Nerino, neste ato havia um momento
cômico, logo no início, com a entrada de Neli na igreja. Dona Santa permanece
sozinha na parte de fora, para pedir esmola, então Juca entra em cena. Segundo a
descrição de Walmir dos Santos, em entrevista realizada para esta pesquisa, ele
tinha um objeto que o ajudava a criar a comicidade neste momento:
E tinha uma cena muito engraçada, essa cena ela passava na frente da igreja.
A velha estava na igreja, ela foi com a neta pra pedir esmola na porta da
igreja. E a neta entra na igreja. Aí chega o Juca e vai encontrar com a Santa.
Aí começa a falar com a D. Santa, fazendo graça, gaguejando. Aí depois ele
deixa a D. Santa lá, e entra na igreja, com a latinha, fazendo barulho. Dá um
tempo e ele volta, ao invés de ele voltar com a latinha, ele volta com um
sininho. Aí a D. Santa pergunta para ele: “Juca, que houve? Você está com
um sininho?” E ele diz: “Pois é, D. Santa, eu entrei o padre me roubou minha
latinha, eu roubei o badalo dele.”. A plateia dava risada. (Entrevista realizada com Walmir dos Santos em 04/02/2015)
Esta situação cômica foi criada nesta encenação e, por agradar muito a
plateia, permaneceu em todas as apresentações. É interessante observar a
simplicidade da construção deste momento, pois a partir de um objeto simples, como
uma latinha, criou uma situação cômica com a senhora, com o padre e,
principalmente, com a plateia. Ao analisarmos somente o texto, não temos acesso a
aspectos cênicos como esse e, sendo esta uma arte essencialmente representativa
e construída por inúmeros outros criadores, vários acréscimos são feitos durante as
apresentações. Por isso, é comum haver elementos, como os descritos acima,
criados pelos artistas durante os ensaios e apresentações, visando estabelecer um
diálogo estreito com a plateia.
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A participação de Juca neste ato, apesar de reduzida, é muito importante, pois
ele é o responsável por planejar a maneira de prender De La Torre. Através de uma
ideia simples, característica da personagem cômica, conseguirá, no ato seguinte,
aprisionar o ardiloso vilão. Juca propõe enganá-lo dizendo que entregará as cartas
no dia seguinte em sua casa e pede a Alberto que leve a polícia no local. O herói
aprova a ideia e assim será concretizado o plano.
Há apenas uma circunstância cômica apresentada pelo texto de Antenor
Pimenta, quando De La Torre ameaça matar D. Santa e consegue a confissão de
Neli de que as cartas estão com Juca. Ao encontrá-lo o ameaça com um revólver e,
mediante um pagamento de dinheiro, Juca concretiza seu plano: diz que lhe
entregará as cartas no dia seguinte em sua casa. Neli fica arrasada com o amigo,
pois não sabe que as provas já estão com Alberto e desconhece o plano arquitetado.
Mesmo com a tensão desta cena, Juca consegue descontrair apresentando um tom
cômico sutil, mas muito importante para o momento:
TORRE - Não tem favor! As cartas, depressa! JUCA - Vira esse canhão pra lá! TORRE - Então entregue as cartas! JUCA - Qué vê? (vira os bolsos, mostrando que não temnada) Ó, viu? Num tá aqui. Tá em casa. Se osenhor pagá bem, eu dô as carta. TORRE - Dar-te-ei 100 cruzeiros.
JUCA - Não. Eu quero é 10 conto.
TORRE - 10 mil cruzeiros?! JUCA - Num sei se é 10 cruzeiro. Eu quero 10 conto. TORRE - (enérgico) E se eu não tos der? JUCA - Num dô as carta.
TORRE - E eu te mato!
JUCA - E eu vou chorá! TORRE - Eu não tenho aqui a quantia que você quer. Vouassinar um cheque, serve? JUCA - Tá bom. NELI - (enquanto Torre assina o cheque, abraçando D.Santa) Oh! Vovó, como sou desgraçada!...(chora) (PIMENTA, 2005: 337 e 338)
Independentemente de a situação ser bastante tensa, Juca age de maneira
descontraída, principalmente por não compartilhar com as preocupações de Neli e
estar no controle da situação, mesmo ameaçado por um revólver. Quando De La
Torre adverte que o vai matar, diz que vai chorar e esta reação é cômica por ser
inesperada e remeter a uma criança, à fraqueza de um homem. A personagem
cômica geralmente transparece as fragilidades humanas e por isso é engraçada,
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principalmente em contraste com as personagens melodramáticas virtuosas e de
ações assertivas, tal como o Clown Branco tenta ser. Neste ponto a figura cômica se
assemelha com o palhaço, conhecido por cometer erros e proceder de maneira
desajeitada, principalmente em contraponto com os corpos virtuosos dos artistas
circenses durante os números de variedades. O palhaço evidencia sua fraqueza e o
grotesco do seu corpo, rebaixa qualquer aspecto sublime, e por isso se torna
passível de riso.
3.4.5 –Quinto ato fim da comicidade
Apesar de não ter nenhuma fala neste ato, Juca é muito participativo.
Permanece com a polícia ao lado de fora da casa onde se passa o velório e realiza a
comunicação entre os policiais e Alberto. No momento de prender De La Torre, entra
junto com os policiais e também ajuda a capturar Francisco. Neste ato, porém, não
há espaço para o cômico ou qualquer descontração, como no anterior. A tragédia
acabara de acontecer, mesmo com a liberdade de Fernando, junto com o fato de D.
Santa voltar a enxergar, não aplacam o sofrimento e o impacto diante da morte da
heroína. De La Torre e Francisco devem pagar duramente pelo que fizeram e a
Justiça fará o que for possível para isto. A morte do casal principal não é
necessariamente algo ruim, explicitado pela apoteose que finaliza a peça através da
união deles no céu. Este desfecho reforça o amor puro e verdadeiro, preconizado
estereotipicamente pelo gênero melodramático, no qual não apresenta o viés da
realização verdadeira e real, mas o da idealização.
3.5 – Encenação do Circo Nerino
O ensaiador, no Circo Nerino, foi Agenor Garcia, que havia pouco tempo
integrara a companhia e realizara modificações significativas na maneira de criar os
espetáculos. A mais relevante foi a confecção de um palco, pois até então todas as
peças eram encenadas obrigatoriamente no picadeiro. Esta construção possibilitava
novos recursos cênicos, como a utilização do ponto, dessa forma, não era mais
preciso decorar todas as falas e a companhia conseguia ampliar seu repertório.
Havia ainda um segundo palco, ao lado do primeiro, para a música. Tudo isso
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possibilitava a criação de cenas paralelas, o que era muito comum nas montagens
de Agenor.
Ele era pai de Anita, que casara com Roger, ambos participavam do
renomado Circo Garcia e, em virtude do casamento, integraram a companhia Nerino.
Anita era considerada uma das melhores atrizes do circo-teatro, segundo o
depoimento de Roger no livro Circo Nerino: “Ela tinha a voz límpida e uma grande
presença em cena.” (AVANZI e TAMAOKI, 2004: 185). Além de ter sido considerada
uma excelente atriz por Procópio Ferreira, que lhe deu um retrato autografado para
indicar sua apreciação por seu trabalho. Dessa forma, Anita se tornou uma das
principais atrizes do Circo Nerino, e protagonizou junto com Roger inúmeros pares
românticos nas peças.
Após a saída de Agenor do Circo Nerino foram montadas poucas peças.
Mantiveram o repertório levantado por este importante ensaiador nas apresentações
seguintes até o término da companhia. Segundo Walmir dos Santos, em entrevista
realizada para esta pesquisa: “Então essas peças permaneceram por muito tempo.
Todas que foram montadas por ele. E depois disso, depois que ele saiu, foi montado
umas duas ou três peças, não teve mais continuidade com outro repertório. ”
Walmir dos Santos descreveu, na entrevista realizada, o figurino que usava e
um objeto especial que o ajudava a construir um jogo cômico com a plateia. Esta
caracterização nos ajuda a compreender alguns pontos da interpretação do circo-
teatro:
O Juca usava uma calça cumprida, tipo uma calça de velho que é muito grandona, sabe? Com um paletó meio grande, com uma peruca bem bagunçada e usava uma latinha para ficar fazendo barulho. Entrava em cena já estalando a latinha, né? (...) Chegava perto da cega e ele começava a chamar atenção dela tocando aquela latinha, fazendo barulho. Uma tampa de lata que você vai fazendo assim e ela estala. Era isso que a gente fazia. (Entrevista com Walmir dos Santos, realizada dia 04/02/2015)
A comicidade desta personagem se dava a partir da escolha do figurino, muito
comum ao do palhaço da parte de variedades, porém menos exagerado e sem a
maquiagem característica. A roupa larga, o desalinho dos cabelos, junto com o
barulho da latinha – objeto incômodo para as demais personagens – aproximam a
interpretação de Juca realizada na encenação com o palhaço de picadeiro. O
barulho incessante gerava, nesta montagem, desconforto nas outras personagens e,
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como na cena da igreja narrada anteriormente, momentos cômicos. Juca está
sempre envolvido em alguma confusão, e sua comicidade se dará, geralmente, por
desestabilizar de alguma forma aquilo que é esperado. Até mesmo a sua fala revela
isto, ao impedi-lo de travar uma conversa ininterrupta e dinâmica.
As confusões de Juca não são criadas visando causar intriga e complicar a
trama. Pelo contrário, ele é uma personagem simplória que age sem pensar e, por
isso, comete vários equívocos. Como na situação das cartas, do penúltimo ato,
quando consegue solucionar despropositadamente esta trama complexa e
conflituosa. É um jovem ingênuo, simples e tolo, que não demonstra preocupação
em dialogar com as condutas sociais, revelada por sua maneira direta de falar sobre
assuntos indelicados, como na situação em que reclama sobre a mudança no
comportamento de Neli após o começo de namoro. Este aspecto acaba suscitando
boa parte da comicidade de sua figura, assim como o fato de ser gago, conforme
destacado por Walmir dos Santos na entrevista realizada para esta pesquisa:
O Juca também, coitado, era um inocente também. Ele vivia assim, ele
acompanhava a cega lá com a menina, ficava na porta da igreja. Ele é
bem ingênuo também, uma figura bem ingênua. (...) Porque ele como gago
enche o ambiente e agrada a plateia. Chamava muita atenção a maneira
dele gaguejar, disso, daquilo. Era muito bom. Na última cena era diferente.
(Entrevista com Walmir dos Santos, realizada dia 04/02/2015)
A última cena não permitia qualquer tipo de piada ou descontração, devido ao
final trágico com a morte dos amantes, e por isso Juca não apresentava qualquer
fala. Antes de Walmir dos Santos assumir a personagem, Paulo Sobral, cantor de
músicas mexicanas da primeira parte do espetáculo, era o intérprete. Com sua saída
do circo, Walmir, que atuava como ponto, assumiu e substituiu com facilidade o
papel, por conhecer muito bem o texto. A construção da personagem já estava
pronta, seu o trabalho foi o de se apropriar da criação e torná-la verossímil na sua
interpretação. Este é um procedimento comum dos atores de circo-teatro, assim
como seguir as proposições feitas pelo ensaiador e dramaturgo. O ator deve se guiar
por estas indicações e criar uma interpretação que dialogue com o contexto, como
no caso do figurino e da latinha, propostas feitas pelo ensaiador Agenor Garcia.
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Ali foi criado mesmo pelo ensaiador, porque às vezes tem muita peça que ela vem com observação. No texto tem alguma observação referente ao que você deve fazer. Pode ser que nessa também tivesse: “O gago deve aparecer com isso assim. Qualquer coisa.”. Mas eu acho que ali inclusive que aquela da latinha deve ter sido uma criação, porque ele entra com a latinha e sai com o sino. Quer dizer, o padre tomou a latinha dele e então ele ficou bravo, tomou o badalo do padre, que é o sino. E ele fala: “O padre tirou minha latinha, e eu roubei o badalo dele”. Quer dizer isso são situações, criadas. Ajudam a criar, tem muitas coisinhas que na hora, vem assim a hora. Uma coisa que está ali dentro e a plateia gosta. (...) Às vezes num ensaio dá aquele estalo, e quando chega à noite e a gente faz. (...) A gente vai fazer e lembra que tem que ter, porque agradou a plateia, né? (Entrevista com Walmir dos Santos, realizada dia 04/02/2015)
A latinha possibilitou a criação desta situação particular no Circo Nerino,
extratextual, que funcionava muito bem no jogo com os espectadores e por isso foi
incorporada ao enredo. Dialogar com o público é uma das premissas desta arte,
comentada anteriormente e agora confirmada por Walmir, sendo boa parte do foco
de atenção do ator e artista circense. Uma arte que propõe uma linguagem direta e
clara, cuja função é entreter e se relacionar com o gosto dos espectadores.
O cenário é outro ponto que chama a atenção do público, principalmente
porque nesta peça há muitas mudanças sugeridas pelo autor, como o bar da
primeira cena, a casa de Neli e depois de Alberto, a frente de uma igreja e a
apoteose do final. Todos estes lugares eram ilustrados através de um telão pintado
no fundo e alguma mobília, conforme mencionado por Walmir na entrevista cedida à
pesquisa. Os edifícios teatrais desta época também costumavam apresentar, como
parte fundamental do cenário, telões pintados. Na peça analisada a casa da Neli, por
ser a mais simples, só tinha uma mesa e duas cadeiras, já a de Alberto era mais
sofisticada, com poltronas e adornos. Dessa forma, podemos observar que o cenário
ilustrava os ambientes de maneira bastante concreta e não só ilustrativa, como com
os telões.
O espectador é contemplado com a apoteose final, através do encontro dos
amantes, para a tranquilidade do público emocionado com a tragédia passada.
APOTEOSE Cenário: Céu. Uma escada de nuvens. No topo está Neli, vestida de noiva. Desce vagarosamente a escada e vai à coxia, estendendo a mão e trazendo Alberto. O par sobe a escada e uma porta no céu, em forma de coração vai se abrindo. Entram, olham-se e a porta se fecha. (PIMENTA, 2005: 369)
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A apoteose se refere a esta ‘imagem’ que finaliza o espetáculo. Não se trata
necessariamente de uma imagem como uma fotografia, mas de uma pequena ação
que condense o desfecho da história. A apoteose da montagem do Circo Nerino era
um momento de grande destaque e importância. Roger Avanzi, durante a entrevista
realizada para este trabalho, descreve este momento e a reação do público:
Nós fazíamos uma apoteose bonita, tinha um palco já naquele tempo. A moça morre, o rapaz vai pegar o cínico e o cínico atira nele, ele morre também. Mas vai se arrastando até onde está a esposa dele, a Neli. Cai por cima dela: “Neli, Neli” e fica morto, os dois mortos. Aí a luz rapidamente apaga e acende. A Neli já é outra moça que está imitando a Neli na cama. E ele, naquela mesma posição, sai pela cortina. Meu sobrinho entrava e ficava naquela posição. Então o povo via os dois ali, para os dois aparecerem na apoteose. Apoteose muito bonita. Nós fazíamos dois corações grandes, onde a gente entrava assim no meio, não entrava o corpo todo não, meio corpo, do lado e do outro. E ele ficava chamando: “Neli, Neli”. E aqueles corações iam andando assim, e eles iam andando dentro dos corações, até os corações se unirem. Era muito bonito, agradava muito e era o fim da peça. (Entrevista realizada com Roger Avanzi em 18/03/2014)
A apoteose do Circo Nerino, além de encerrar o espetáculo de uma maneira
reconfortante para o público, apresentava o elemento mágico da saída de Alberto e
sua aparição em seguida com Neli se unindo nos corações. Isto ocorria sobreposta à
imagem de Alberto caído morto em cima da amada na cama, realizada por outro ator.
Gerava muita admiração no público, como um número de mágica, o que agradava e
finalizava de uma maneira bonita em meio a tantos acontecimentos tensos. A
apoteose também é um recurso que observamos em outros estilos dramatúrgicos
como com o teatro de revista, que fora muito popular nesta época. Porém costumava
ser apresentado majoritariamente nos edifícios teatrais das principais cidades
brasileiras.
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4 – JERÔNIMO, O HERÓI DO SERTÃO
4.1 – Os autores e a história
Jerônimo, O Herói do Sertão foi uma importante radionovela dos anos de
1950 e 1960, escrita por Moisés Weltman (1932-1985). O autor nasceu no Rio de
Janeiro e desde jovem se dedicou a escrever novelas e programas para o rádio.
Jerônimo teve mais de três mil capítulos (3.276) de radionovela e ficou quatorze
anos no ar, de 1953 a 1967,pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro. A narração era
de Mário Lago e o valente Jerônimo tinha a voz do rádio-ator Milton Rangel, dublador
de filmes de Hollywood. O Moleque Saci era interpretado por Cauê Filho e era o
preferido da garotada. Caveira, na radionovela, atuava como o principal vilão, cujo
traço essencial era o disfarce, o que lhe permitia participar de muitos episódios sem
ser reconhecido.
Devido à enorme popularidade, Weltman fez a adaptação dos capítulos para
quadrinhos, cujos desenhos eram de Edmundo Rodrigues. O autor também atuou
como radialista e novelista, inclusive escreveu duas novelas nos primórdios da TV
Globo, Rosinha do Sobrado (a primeira novela, exibida em 1965, ano da fundação
da emissora) e Padre Tião (de 1966). Jerônimo foi adaptado para a televisão, em
duas versões, nos anos de 1973 e 1984.
A história deste herói brasileiro tem semelhança com os filmes de faroeste
norte-americanos muito em voga no período. O cinema, junto com o circo, era um
importante entretenimento da época, tanto assim que os autores circenses
constantemente adaptavam para o palco os filmes mais famosos. A criação deste
herói por Weltman foi inspirada no faroeste, porém adaptada à realidade brasileira,
num cenário de cangaceiros, colonos e fazendeiros. Este texto retrata as relações
entre as pessoas do meio rural, como compadrio e o coronelato, muito comuns no
Brasil na década de 50 e até hoje presentes em nossa cultura.
Joaquim Silva adaptou para o circo-teatro a radionovela, devido ao sucesso
que a mesma tinha junto aos ouvintes. Chamado de Quinzinho, no Circo Nerino,
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além de dramaturgo, era ensaiador, e foi responsável pela encenação da peça neste
circo em 1955. Existem outros textos dramáticos que mantêm a figura deste herói e
mudam somente alguns aspectos da trama e personagens. Inclusive o Circo Nerino
realizou duas outras encenações protagonizadas por esta personagem, chamadas
de Herança Maldita e Uma Cruz na Estrada, encenadas e escritas por Quinzinho no
mesmo ano da primeira.
Esta é uma peça curta cuja dinâmica e rápida velocidade dos acontecimentos
chamam a atenção. Em apenas sete páginas o autor soluciona os conflitos
desencadeados pelo embate entre os heróis e os vilões. A partir de uma trama
simples, construiu uma narrativa cujo elemento principal está nos acontecimentos
inusitados que se sobrepõem, com o objetivo de manter o interesse e a apreensão
do espectador em relação à história.
No enredo melodramático o traço principal é a surpresa iminente – marca que se encontra inserida na elasticidade característica da trama. Em comparação com outras formas artísticas, observa-se que nem a variação temática nem o colorido linguístico, todavia presentes, sequer rivalizam com a importância que o desdobramento inesperado tem neste gênero. É aqui que o artista aplica o máximo da criatividade. Leva o espectador de sobressalto em sobressalto para um desfecho, que nem sempre concede o repouso do final feliz. A capacidade para surpreender deve certamente ser associada ao caráter do enredo. Adotando uma peculiar linha de progressão, o melodrama se mantém aberto para incorporar sempre novos desdobramentos em vez de prefigurar o desfecho e persegui-lo em linha reta. A hipótese de distender a história é uma alternativa continuamente à disposição do criador. (HUPPES, 2000: 28)
Nesta peça, todos os atos terminam com a suspensão de algum
acontecimento importante, para ser resolvido no ato seguinte, tal como os romances
de folhetim lançados em jornais. O autor se dedicará à invenção dos conflitos e
soluções, que podem variar conforme a sua criatividade. Geralmente, o texto
melodramático se inicia com algum acontecimento relevante, envolvendo muitas
personagens, que será desdobrado ao longo de toda a narrativa. Esta maneira de
começar a história favorece este tipo de enredo surpreendente, pois a situação inicial
se apresenta com muitas possibilidades de encaminhamentos, como observamos na
peça em questão.
Jerônimo foi chamado à cidade de Serro Bravo por Eunice, pois sua irmã,
Maria José, uma importante fazendeira local, oprime seus familiares e empregados.
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Maria José contratou inúmeros capangas para maltratar seus colonos, a fim de lhes
tomar as terras e construir uma mina de carvão. Esta situação é apresentada logo
no primeiro ato, entretanto o conflito caminha a partir das intenções de casamento
dos vilões – a exploração dos pobres permanece como pano de fundo para a intriga.
Junto com seu comparsa, Coronel Ambrósio, Maria José cria inúmeras artimanhas
para casá-lo com sua irmã e ela mesma com o engenheiro da fazenda, Carlos.
No primeiro ato, o capanga de Maria José, o Caveira, contesta o senso
comum de que Jerônimo seja o maior pistoleiro do sertão. Garrafinha, um freguês do
bar, intercede pelo herói, fala mal da vilã, provocando a raiva de Caveira, que
ameaça lhe bater. Durante este diálogo, o mencionado justiceiro entra no bar
acompanhado de seu ajudante, Saci. Os dois discutem com o capanga e o herói,
após vencê-lo na luta física, revela sua identidade para as personagens em cena. O
Caveira e o Garrafinha deixam o bar, o primeiro apreensivo pelo encontro com esta
temida figura, o segundo com o objetivo de espalhar a notícia. Pouco tempo depois,
Garrafinha retorna com o aviso de que Maria José convidara o herói para um almoço
na fazenda. Ele aceita a proposta e pede ao mexeriqueiro que arrume um emprego
para Saci na casa da vilã.
O segundo ato se passa no dia seguinte durante o almoço na fazenda Sete
Morte, e a cena inicia-se com uma conversa entre os vilões da peça. Neste diálogo,
Maria José comenta com o Coronel que está financeiramente arruinada, mas tem
intenção de tornar sua fazenda a mais próspera da região através da exploração do
carvão mineral existente na terra. Foi feita uma análise de solo e o responsável é o
engenheiro da fazenda, Carlos, com quem Maria José deseja se casar. Ele, porém,
ama Eunice, pretendente do Coronel, que para conquistá-la empresta um dinheiro a
Maria José em troca de sua ajuda.Nesta conversa, a dupla revela seu receio com a
chegada de Jerônimo na cidade, e a intenção de chamá-lo para trabalhar com eles.
Quando o justiceiro chega à fazenda, entra solenemente, cumprimenta todos
os presentes, elogia a propriedade, em especial, a personagem de Maria José.
Entretanto, rapidamente percebemos a ironia de sua fala, pois comenta sobre a má
fama da vilã em destratar seus empregados. Rejeita o convite do almoço e diz que
veio apenas lhes dar um recado: de que o reinado da dupla de vilões irá acabar.
Coronel ameaça chamar seus capangas, mas Jerônimo lhe aponta a arma e assim
consegue sair da casa sem ser perseguido.
89
Em seguida a esta rápida visita todos vão almoçar, menos Maria José e
Carlos, então ela lhe revela sua intenção de casamento, ele a recusa e diz que não
se casaria por dinheiro, mas por amor, e diz amar outra pessoa. Eunice entra em
cena e conversa a sós com o engenheiro, finalmente o público assiste ao amor
verdadeiro e correspondido do casal. Maria José interrompe esta conversa, mas não
demonstra surpresa com o encontro, pois já imaginara que a mulher amada seria
sua irmã. Ao ficar a sós com a rival, obriga-a a se casar com o Coronel e, mediante
sua recusa, ameaça prendê-la em um quarto somente a pão e água.
Para completar este quadro, Ambrósio entra em cena e conversa com Eunice.
Neste diálogo tenta agarrá-la à força para lhe beijar, porém é surpreendido por Saci,
que aparece armado para defender a moça. Entretanto Caveira surge
sorrateiramente, desarma Saci e rapta Eunice, obedecendo à ordem do Coronel.
Antes de o capanga concluir a ação, surge Jerônimo para libertar a senhorita e
expulsar os malfeitores de cena, quesaem humilhados por um pontapé de Saci.
O terceiro ato inicia com um monólogo do moleque pretinho para justificar sua
permanência na casa, apesar de ter defendido Eunice e apontado uma arma para o
Coronel. Mesmo que Saci tenha atuado junto com Jerônimo, não desconfiaram da
relação de cumplicidade dos dois. Há outro diálogo particular entre Maria José e
Coronel, em que ele a pressiona para persuadir Eunice a consentir com o casamento.
A vilã diz que tentará pela última vez falar com Carlos e, caso ele não aceite se
casar com ela, mandará matá-lo. Como é esperado, Carlos nega a proposta de
casamento, mesmo diante da possibilidade de pagar com a vida tal recusa. Ela
então convoca Caveira para executar o engenheiro e jogar seu corpo no abismo a
fim de não levantar suspeitas. Mais uma vez Jerônimo aparece para defender o
oprimido, atira na mão de Caveira e sai antes de ser perseguido.
No ato seguinte, Saci e Carlos conversam sobre os momentos difíceis de
ameaças e perseguições e o engenheiro comenta que não tem conseguido sequer
descansar. Saci lhe garante um sono tranquilo, pois ficará vigiando e, mediante esta
ajuda, Carlos se deita para dormir. Neste momento, a dupla de vilões entra no quarto
do engenheiro e rouba os documentos da análise de solo, porém Saci estava
escondido e vê a ação. Quando saem de cena, o ajudante acorda Carlos e
apressadamente vai chamar Jerônimo.
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Dona Sinhá bate na porta do quarto do engenheiro para pedir os papeis, pois
os interessados em explorar a terra estão na fazenda. Então ele percebe que fora
roubado, Maria José tenta incriminá-lo, dizendo que o engenheiro visa conseguir a
riqueza das terras. Dessa forma, convence todas as personagens em cena, até o
momento de Jerônimo esclarecer os equívocos e desmascarar os vilões, pois tem
provas através dos documentos furtados. O Coronel Ambrósio é preso e Maria José
se mata com um tiro, pois não suportaria ir para a cadeia e conviver com o fato de
sua irmã ter-se unido ao seu amado.
Quem ensaiou esta peça no Circo Nerino foi o próprio autor, Joaquim Silva.
Ele foi convidado pelos artistas deste circo para criar algumas peças, pois era um
escritor e ensaiador muito famoso na época. No Nerino realizou a montagem de três
peças, ampliando ainda mais o repertório dramático da companhia. O cenário desta
montagem era simples e permaneceu da maneira que fora idealizada pelo ensaiador,
após sua breve passagem por este circo. Walmir dos Santos comenta, em entrevista
realizada para esta pesquisa, os detalhes do cenário desta encenação:
No começo tinha um bar. Cenário simples. Era pintado com uma parede normal, com porta, né? A porta era só a entrada. Tinha um negócio de garrafas, também era pintado na parede, como se fosse uma prateleira. E tinha umas mesas e um balcão. (...) A fazenda era normal, uma casa de fazenda. Uma mobília de casa, uma mobília mais rústica, mais adequada de fazenda, não com muitos detalhes. Porque com muito detalhe, não tinha como carregar tanta coisa. Às vezes a gente consegue emprestado alguma coisa, mas não era muito frequente. (Entrevista realizada no dia 04/02/2015)
A função do telão pintado é a de ambientar os locais sugeridos pelo autor,
uma vez que eram utilizados poucos móveis e adereço nas todas peças. Por isso,
tinha que ser uma mobília mais neutra para servir à diferentes ocasiões, diminuindo
assim a carga que o circo deveria levar de um local para outro. Dessa forma, cabia à
pintura, colocada geralmente no fundo do palco, particularizar a encenação. Este era
um procedimento comum realizado nos circos-teatros da época: a utilização de uma
tela retratando o ambiente da peça e as diversas alocações sugeridas pelo autor.
A temática principal desta história é a reparação da injustiça, dessa forma o
herói ganha bastante destaque e se torna responsável por movimentar o enredo.
Suas ações dependem das atitudes dos vilões, as quais, em conjunto, interferem no
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enredo e modificam seu curso. Quando a busca pela realização amorosa é temática
principal, os vilões serão os agentes principais e as ações do herói se tornam menos
objetivas e diretas por dependerem também de sua amada, como, por exemplo, na
peça mencionada acima de Antenor Pimenta.
Estas duas matrizes temáticas (a reparação da injustiça e a busca pela
realização amorosa) são reconhecidas por Ivete Huppes como sendo os principais
eixos do melodrama, que frequentemente aparecem entrelaçados. Como na peça
em questão que, apesar da reparação da injustiça ser o principal enfoque do autor, a
busca pela realização amorosa é o motor da dupla de vilões, que não medirão
esforços e não considerarão a vontade alheia para conseguir concretizar esta união.
Jerônimo impedirá a execução dos planos ardis, pois aparece sempre nos
momentos críticos e suas ações são certeiras e imbatíveis.
4.2 – Personagens
Jerônimo é o herói da peça, muito valente e destemido, o típico herói imbatível.
Ele se tornou o justiceiro do sertão porque perdeu injustamente o pai, quando muito
jovem, então passou a se dedicar a ajudar os oprimidos e fazer justiça onde for
necessário. É um homem misterioso que em diversos momentos da história
desaparece e subitamente retorna, sempre no momento em que é necessário atuar.
Tem um ajudante, o moleque Saci, que, apesar de lhe auxiliar, não desempenha a
função de solucionar os conflitos, característica do herói.
Jerônimo nos lembra de pelo menos duas referências da época, uma social e
outra artística. A primeira, de ordem sociopolítica, é Lampião uma figura política
marcante do período que morrera de forma polêmica há apenas quinze anos. A
segunda referência, de ordem artística, é a dos heróis dos filmes de faroeste
americano, imbatíveis e temidos por todos. De maneira menos direta nos lembra
também Dom Quixote e Sancho Pança, principalmente no que se refere a dupla
principal. Entretanto Jerônimo é uma personalidade singular, ambientado em um
contexto brasileiro, o qual o aproxima do público local. Um homem muito seguro,
com ações firmes, força física e astúcia, além de manejar muito bem as armas que
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carrega, tal como os valores preconizados pelo cinema norte-americano. Foi
reconhecido, na época da radionovela, como um autêntico herói brasileiro.
O ator que o interpretará deve buscar atitudes tais como a do galã central,
descrito por Otávio Rangel em sua obra Técnica Teatral. Este tipo age com bom
senso, seus gestos e atitudes revelam a coerência de sua personalidade, pois já não
é mais um jovem inseguro. Melhor seria se fosse representado por um ator mais
velho, pois, de acordo com os valores do gênero melodramático, somente a idade e
a experiência poderiam trazer tais características. Sua aparência deve ser impecável
e provavelmente se trata de um homem forte, o que contribui para revelar de
imediato as características da personalidade de Jerônimo. No Circo Nerino foi
representado por Roger Avanzi, o galã. Na época da encenação ele era um ator
experiente que, com muita maestria, realizou o imbatível herói.
Saci é o ajudante de Jerônimo, personagem cômica por ser desbocado e
serrista. Ele não demonstra uma preocupação em falar corretamente, não utiliza as
concordâncias necessárias (comum à fala das demais personagens), apresenta um
linguajar informal, em que gírias e abreviações de palavras são comuns. É um
moleque esperto, valente e justiceiro, principalmente por atuar ao lado de Jerônimo,
porém em alguns momentos é briguento e gosta de arrumar confusão. Este é um
contraponto interessante com o herói que só briga se for realmente necessário e em
nome da justiça. Isso ocorre, por exemplo, no primeiro ato, quando Saci ameaça
bater no Caveira e Jerônimo intervém, mostrando para o público que só reage
depois de ser atacado.
A maior parte da comicidade do moleque ocorre a partir do que diz:
geralmente apresenta uma leitura inusitada e engraçada das situações da peça,
além de tirar sarro deliberadamente das demais personagens, principalmente más.
Outra característica, que o permite acompanhar o herói, está relacionada a sua
esperteza e rapidez no raciocínio. Mesmo sem a educação formal se sobressaí
perante as demais personagens, apesar disso, Jerônimo comenta, na radionovela da
época, que ele deveria ir para a escola por ainda ser muito menino.
Certamente seria interpretado pelo ator cômico da companhia que costuma
ser um palhaço. No caso do Circo Nerino foi interpretado por dois atores, Paulo
Sobral e depois por Walmir Santos, o palhaço Garrafinha da primeira parte do
espetáculo. Esta foi uma personagem que ganhou muito destaque nas
93
apresentações deste circo e também na radionovela, especialmente entre o público
jovem. Mais à frente voltaremos a falar de Saci, analisando os momentos cômicos
por ele suscitados.
Maria José é a principal vilã da peça, que atua em conjunto com Coronel
Ambrósio. Ela procura agir com astúcia para assim recuperar a fortuna de sua
família que, com a morte de seu avô, perdeu tudo e se encontra endividada. Devido
a isto, deve dinheiro ao Coronel e pretende casá-lo com sua irmã, para abater a
dívida. Sua participação na trama é muito relevante por ser a responsável por
articular os planos da dupla de vilões. Trata com desdém e desrespeito sua irmã e
mãe, somente se mostra atenciosa com quem lhe traz algum proveito. Seu
comparsa, Coronel Ambrósio, lhe apoia apenas por interesse no casamento com
Eunice, caso isto não aconteça, ameaça Maria José de tomar suas terras pela dívida.
Isto o torna diferente do comparsa convencional, subordinado e executor dos planos
do vilão. Ele não precisa obedecer às regras impostas pela vilã e quem executará os
planos serão os capangas, principalmente Caveira.
Não é comum que o papel da vilã seja representado por mulheres, ainda mais
pelo fato de Maria José se mostrar muito ativa e impiedosa. Da dupla de vilões ela é
mais importante do que ele, principalmente porque tiram sarro de Ambrósio. Apesar
de não ser a personagem cômica ele é passível de graça pelo seu jeito tolo, sua
maneira de agir e por sua enorme covardia, o que o levam a ser o comparsa e não o
cabeça da relação. Já Maria José não é passível de graça devido a sua seriedade e
gravidade. Até mesmo a vestimenta revela parte de suas características, como
podemos observar através da fala de Jerônimo que ao entrar e se deparar com as
personagens a reconhece por estar “vestida tão amazonescamente” (MAVRUDIS,
2011: 19).
Maria José, além de desempenhar o papel de vilã, se declara e pede Carlos
em casamento, invertendo as posições de conquista usuais da época. Também é
quem cuida e manda na casa, em sua mãe e irmã. Somente o tipo da vilã poderia se
insinuar para um homem e ser a chefe da casa, comportamentos estes tipicamente
masculinos. Percebemos que até mesmo seu nome revela estas características,
através da junção de um nome feminino, Maria, e um masculino, José. Entretanto
toda sua força e poder somente são possíveis porque está resguardada por seus
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capangas armados, além da proteção de seu amigo Coronel Ambrósio que a
encoraja nos seus planos.
O Caveira é o principal capanga da dupla de vilões que, assim como Saci,
não utiliza as concordâncias necessárias para falar corretamente. Na radionovela era
um importante vilão das histórias narradas, cuja principal característica era o disfarce,
que o permitia aparecer em diversos capítulos. Entretanto na peça em questão não
representa o papel do vilão e também não utiliza disfarce. Um traço interessante
desta personagem é revelado logo no início: demonstra ter muita coragem e força,
porém ao se deparar com o herói se revela um covarde. Isso ocorre, por exemplo, no
momento do confronto do primeiro ato, depois de apanhar, sai de cena “correndo
comicamente” (MAVRUDIS, 2011: 13).
O seu nome é metafórico e revela algumas particularidades de sua figura,
explicitando sua função de matar as pessoas. Isto somente será possível com a
utilização de armas, pois não se trata de um homem astuto e forte. Pelo contrário, ao
lado de Jerônimo, o herói da trama, percebemos o quanto Caveira é fraco, porém
muito orgulhoso e confiante ao admitir ser o gatilho mais rápido do sertão. Somente
aparece quando solicitado e para executar alguma perversa ação dos vilões.
A ingênua da peça é Eunice, entretanto não apresenta muito destaque pela
temática ser a reparação da injustiça e não a busca da realização amorosa, na qual
costuma protagonizar. Mesmo assim sua participação é importante por ser quem
chamou Jerônimo para intervir na problemática e também por participar do conflito
amoroso protagonizado pelos vilões. Eunice, apesar de ser a irmã da vilã, preza pela
justiça e pelo cumprimento das leis, estes valores a caracterizam como ingênua e a
aproximam do núcleo positivo.
Carlos é o seu par amoroso. Trabalha na fazenda de Maria José como o
engenheiro responsável pela análise do solo e busca das riquezas para exploração,
a fim de aumentar a renda da família. Não apresenta características marcantes que
o particularizem, realiza, assim como Eunice, a função de dinamizar a trama através
dos conflitos amorosos. Apesar de não ser o principal galã da peça, porque este não
é o enfoque principal da trama, ele representa o galã amoroso, segundo a divisão
dos tipos acordados por Otávio Rangel. Os problemas enfrentados por este tipo
geralmente se referem à impossibilidade do amor. Ele agirá de acordo com seus
sentimentos, como podemos observar na história, pois, mesmo depois de ser
95
ameaçado de morte, continua a morar e trabalhar na fazenda devido a sua relação
com Eunice.
Dona Sinhá não é uma personagem muito forte na trama, desempenha o
papel de mãe das duas jovens. Apresenta uma fragilidade que a deixa subordinada
às vontades de Maria José, permitindo que ela tenha ações desmedidas e a trate
grosseiramente. Preza pela lei e justiça, também se revela uma personagem com um
bom coração que não enxerga as maldades de sua filha. Por ser a dona da casa, em
muitos momentos se referem a ela como autoridade local, mesmo que seja somente
embasada no respeito a sua idade, pois Maria José é a verdadeira chefe da casa.
Outras duas personagens, de menor importância, são Sá Joana e Garrafinha.
Ambos aparecem somente no primeiro ato. Sá Joana é a dona do bar e também
quem conversa com Jerônimo sobre a atual situação da cidade, atuando como uma
espécie de narradora da trama. É interessante que sua personagem seja
desempenhada por uma mulher, pois o mais comum era que homens fossem donos
de bar. Percebemos que sua participação na trama, assim como a de Maria José,
revela uma transformação da mulher na sociedade, principalmente a partir da
década de 1950, momento em que foi escrito este texto.
Garrafinha é um freguês que vive bêbado e fala sem respeitar as regras
gramaticais, tal como Saci e Caveira. Ele não chega a desempenhar o papel da
personagem cômica, porém sua maneira de se expressar é característica deste tipo
por desconsiderar aspectos sociais relevantes. Comenta, por exemplo, na frente do
Caveira sobre as malvadezas de Maria José e termina por chamá-la de miserável.
Também é responsável por espalhar a notícia de que Jerônimo chegara à cidade.
Essa atitude é outra característica que o aproximam da personagem cômica:
articular acontecimentos da trama e dialogar com os dois núcleos de personagens,
do bem e do mal.
4.3 - O popular sertanejo
Esta trama retrata uma situação comum no Brasil do século passado, e em
muitas localidades persiste até os dias atuais: o latifundiário inescrupuloso que
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explora seus empregados, com uma lógica similar ao trato escravista. O poder é
conquistado através do dinheiro e posses, porém o imperativo principal são as armas
de fogo. No primeiro ato, esta situação é apresentada através da perspectiva do
povo, maltratado e injustiçado pela dupla de vilões. Eles pretendem obrigar os
sitiantes a abandonarem suas casas para construir uma mineração de carvão na
região. A história, porém, se encaminhará em torno da dificuldade de união amorosa
que os vilões pretendem conseguir. Para isso, utilizam a mesma lógica aplicada à
conquista da terra: através da força se impõem aos pretendentes e desconsideram o
fato de os dois não desejarem a união proposta pela desonesta dupla.
O cenário inicial consiste em um bar e a peça se inicia com uma música
caipira que exalta a figura de Jerônimo, o valente e temido justiceiro do sertão
brasileiro. Narra, através de versos, a história do famoso herói sertanejo errante, que
luta pelos pobres sem temer e “faz qualquer valente tremer” (SILVA, 2012: 10). Caveira, capanga da principal latifundiária da região, questiona a supremacia de
Jerônimo e afirma ser melhor do que ele no gatilho. A dona do bar e Garrafinha, um
freguês, não aceitam que falem mal da única pessoa interessada em defender o
povo contra os fazendeiros inescrupulosos. Durante a discussão, inesperadamente
Jerônimo entra no bar, acompanhado de seu ajudante, pedem algo para beber e
sentam-se em uma mesa. Garrafinha comenta sobre seu desejo de o herói aparecer
na região, pois Maria José se encontra no limite da perversidade, e complementa
dizendo que ela e o Coronel Ambrósio são dois miseráveis. Caveira revida o insulto
aos patrões, pega-o pelo colarinho e ameaça mostrar o peso do seu braço e a
certeza do seu tiro. E lhe pergunta se neste momento Jerônimo apareceria para
defendê-lo.
A plateia não conhece a figura de Jerônimo, mas pode intuir, através da
maneira como ele está caracterizado e de acordo com o tipo representado, que se
trata do famoso justiceiro. Sua figura gera um foco de tensão no espectador, que
apesar de não ter a certeza, tem a intuição de que seja ele. É comum também haver
esta situação nas comédias, quando o palhaço se mostra valente, porém quando
surpreendido por seu inimigo sua coragem se esvai e então se acovarda,
provocando o riso do espectador.
Jerônimo não interrompe a discussão, seu ajudante, Saci, é quem se
intromete, empurra e passa uma rasteira em Caveira. Em seguida diz para não bater
97
em Garrafinha, avisa que conhece o herói e não admite difamar seu amigo dessa
forma. A resposta do capanga é extremamente preconceituosa e irônica, diz para ele
não se intrometer em conversa de homem, pois é um macaco de circo. Este
xingamento desperta a ira no moleque pretinho, que avança em sua direção para lhe
bater. Jerônimo então intervém e, de forma pacífica, de acordo com seu tipo de herói,
aparta os dois. Caveira, porém, está com os ânimos acirrados, por isso não se
conforma com a intromissão e pergunta quem é ele. Como não recebe nenhuma
resposta, acerta um soco no herói que cai chão. Ele se levanta e revida até o
capanga ser vencido e sua impetuosidade sanar.
Todos se admiram diante da valentia, pois o Caveira é temido na região, e
perguntam por sua identidade. Quando ele diz seu nome, há grande espanto e
comoção, e nesse momento há indicação de música, provavelmente seria uma
música de suspense que, junto com a surpresa das personagens, aumentaria ainda
mais a expectativa em relação a Jerônimo. O capanga se levanta do chão e corre do
bar, enquanto Garrafinha vai espalhar a notícia na cidade.
Em seguida há um diálogo entre a dona do bar, Sá Joana, Jerônimo e Saci,
em que a problemática principal da narrativa é comentada. Joana menciona a difícil
situação sofrida pelos colonos e por Eunice, e lhes conta que estão contratando
homens armados com o intuito de aumentar o exército de malvados, por isso eles
não terão impedimentos para entrar na casa. Dessa forma, Jerônimo resolve mandar
Saci para trabalhar na casa de Maria José, com o intuito de se informar e espionar a
dupla malfeitora.
Neste momento são interrompidos por Garrafinha que já contara aos vilões
sobre a chegada do famoso justiceiro. Volta para trazer a notícia de que o chamaram
para um almoço na fazenda no dia seguinte. O herói pede ao fuxiqueiro que informe
sua aceitação pelo convite e que encontre algum trabalho para Saci lá. Os dois saem
de cena e o ato termina com o aviso de Sá Joana para que o justiceiro tome cuidado
com o embate que pretende travar. Jerônimo diz que fará de tudo para o retorno da
paz na região e mostrará a estes bandidos o quanto vale a coragem e fé do povo do
sertão.
Este é o único ato da peça protagonizado pelo povo sertanejo, mencionado
ao longo de toda a trama. O ambiente do bar em que ele é apresentado favorece a
mistura de diferentes pessoas em um lugar de descontração e permite a livre
98
expressão das personagens. O botequim propicia uma dinâmica cênica diferente da
sala de estar, onde ocorrem os próximos atos. Possibilita a execução da canção do
começo, realizada pelas personagens em cena, e também ações surpreendentes,
como a chegada de Jerônimo e em seguida a briga com o capanga.
Jerônimo é um herói do povo, conhecido por defender seus interesses e
manifestar a revolta social contra injustiças e despotismos dos latifundiários locais.
Nesta peça faz oposição aos fazendeiros Maria José e Coronel Ambrósio e seus
capangas, contratados para oprimir os pequenos proprietários e trabalhadores da
região. Esta é uma realidade do sertão brasileiro, especialmente no começo do
século XX, mas que podemos observar em alguns lugares até os dias atuais, em que
as leis eram feitas por aqueles que tinham o maior e mais armado bando de homens.
Tal como acontece com Severino, cangaceiro da peça O auto da compadecida,
escrita por Ariano Suassuna. Neste texto, esta personagem atuará como um “vilão”
da história, por ser quem mata todos em cena, inclusive o “herói” da peça (João
Grilo), depois de lhes roubar o dinheiro. Severino deixa claro que só executa as
pessoas para garantir seu sustento e de seu bando. Esta outra peça foi escrita por
Suassuna no ano de 1955, dois anos após a criação da radionovela. Percebemos
assim, que o herói sertanejo era muito representado nas diversas manifestações
cênicas, ora como um Robin Hood do sertão brasileiro ora temido como um
cangaceiro matador.
Jerônimo, entretanto, é idealizado, como muitos elementos das tramas
melodramáticas, e sua caracterização é bastante esquemática, como diversas outras
características deste tipo de trama. O primeiro ponto que nos chama atenção é o fato
de atuar somente com um jovem ajudante e não em bando, como era mais comum.
O segundo aspecto está relacionado ao seu caráter correto e bondoso até mesmo
para com seus inimigos, pois não lhes inflige qualquer mal despropositadamente. Os
cangaceiros e jagunços do interior brasileiro não apresentavam esta característica,
pois é notória a violência que muitas vezes eram obrigados a infligir para realizar
seus intentos e mesmo assim eram estimados e benquistos pelos menos favorecidos.
Mais relevante, ainda, é o fato de que toda a população sertaneja, renegando embora os jagunços pelo pavor que lhe infundiam, tinha neles padrões ideais de honorabilidade e de valor, cantados nos versos
99
populares, e via, nos seus feitos mais violentos, modelos de justiça realçados e louvados. Por tudo isso, o cangaço e seus jagunços, sanguinário mas pios e tementes a Deus e aos santos de sua devoção, temidos, mas admirados, condenados mas também louvados, constituíam um produto típico na sociedade sertaneja. (RIBEIRO, 1995: 356)
Para Darcy Ribeiro, o cangaço é fruto deste sistema senhorial do latifúndio
pastoril de recrutamento de capangas para defender seus interesses, através da
utilização de violência e ferocidade. A exemplo deste sistema de leis próprias era
comum surgirem organizações sociais, movidas pelas mais variadas intenções, que
também atuavam com fúria e opressão, tal qual seu principal inimigo. Depois de
cada assalto, os cangaceiros repassavam aos pobres os bens conquistados, por
mais que fossem frutos de mortes, mutilações e exibições públicas de fúria. A
violência empregada se distancia sobremaneira de Jerônimo que, em muitas
passagens da trama, tem a possibilidade de fazer mal aos vilões, mas prefere agir
de acordo com a lei. Inclusive somente incrimina a dupla de fazendeiros após ter
provas concretas para prendê-los e entregá-los para o delegado local.
Caveira, o capanga, pertence à classe social oprimida e rechaçada pelos
grandes proprietários de terra, mas trabalha em prol de seus interesses. É a única
personagem do primeiro ato que destoa do coletivo, por apresentar menos
consciência social, ser inescrupuloso e servil aos interesses alheios. O conflito deste
ato será encabeçado por sua figura, devido à discrepância em relação às demais. As
outras personagens demonstram ter consciência de sua situação de opressão,
apesar de não conseguirem agir em relação a isto devido aos escassos recursos.
Este contexto não diminui a crença de que esta realidade possa mudar, revelada
através da canção de abertura da peça:
cantam Quem passar pelo Sertão
Vai ouvir alguém falar
No herói desta canção
Que eu venho aqui cantar
Se é pro bem vai encontrar Com o Jerônimo protetor Se é pro mal vai enfrentar O Jerônimo lutador
Filho de Maria Homem nasceu Serro Bravo foi seu berço natal Entre tiros e tocaias cresceu
100
Hoje luta pelo bem contra o mal
Galopando está em todo lugar Pelos pobres a lutar sem temer Com Moleque Saci para ajudar Ele faz qualquer valente tremer (MAVRUDIS, 2011: 10)
A música narra a história de Jerônimo e, de maneira resumida, nos informa
alguns aspectos desta conhecida figura. Dessa forma, não é necessário criar
nenhuma situação ou fala sobre este tema, e ainda nos revela o ponto de vista dos
cantadores em relação ao herói: de esperança e confiança de que ele poderá salvá-
los da opressão. A canção é responsável por ilustrar, desde o primeiro momento da
peça, o universo sertanejo no qual a história orbitará.
Esta música era conhecida da plateia e popular na época, fez muito sucesso
na rádio e depois na telenovela, tendo sido gravada por artistas como Emilinha
Borba e Chrystian e Ralph. O circo-teatro tem a característica de dialogar com os
elementos culturais populares vigentes da época. Isto aumenta a interação com o
espectador, por apresentar algo que faz parte do seu cotidiano, e possivelmente lhe
agradará. Nesta peça, as personagens também são conhecidas do público, pois se
tratava de uma rádio novela e, no circo, as pessoas tiveram a possibilidade de
assistir algo que era somente conhecido através da escuta.
Ao longo do texto a música aparece em alguns momentos e desempenha
diversas funções. No primeiro ato, além da abertura, há indicação musical no
momento que Jerônimo revela sua identidade e serve para dar ênfase à surpresa e
admiração das personagens, além de destacar ainda mais sua figura. No segundo
ato, antes de entrar na casa da vilã, a canção inicial da peça é sugerida como fundo
musical. Neste momento Eunice, Dona Sinhá e Maria José especulam sobre quem é
este herói e o que viera fazer na cidade. A cantiga, neste contexto, responde parte
destas indagações através da narração de sua história e intenção em defender os
oprimidos.
A próxima indicação musical será no terceiro ato durante o sono de Carlos
com o roubo silencioso dos vilões, a rubrica menciona meia luz e música em surdina.
Serve para criar uma atmosfera favorável à execução do furto, envolver o
espectador e gerar apreensão diante deste acontecimento. Esta é uma cena sem
muitas falas e, portanto, as ações descritas na rubrica, como entrar no quarto
101
silenciosamente, procurar e achar os documentos, serão preenchidas com a música
sugerida pelo autor. No final da peça, depois da última fala de Jerônimo, sua música
tema novamente é entoada como finalização da trama.
Percebemos que a utilização sonora aparece com diversos sentidos, porém
sempre complementando os elementos da encenação. Em alguns momentos serve
para reforçar algo que a interpretação e as falas já estão indicando, como a surpresa
diante da revelação de identidade do herói no primeiro ato. A canção pode aparecer
nas peças de circo-teatro como uma forma de acrescentar novos dados à história,
sem que para isso seja preciso encená-los, tal como a música de abertura. Também
é responsável por criar uma atmosfera para a realização de alguma ação cênica.
4.4 – A personagem cômica de Saci
Saci é o ajudante do herói, um jovem negro e brincalhão. Representa a
personagem cômica da peça, responsável por criar momentos de descontração e
conquistar a simpatia dos espectadores. Esta é uma história com muitas cenas de
ação e Saci, diante das circunstâncias tensas e difíceis, se revela bem participativo.
Em diversos momentos é briguento, porém em algumas situações se mostra covarde
e medroso, pois ele é o anti-herói. Se comparamos com Jerônimo, percebemos que
as atitudes de Saci nos ajudam a exaltar o herói, pois o público tem um comparativo.
Responsável por nos lembrar, dentro de um contexto melodramático, que o mundo
não é feito somente de opostos e idealizado, como preconizado pela maioria dos
tipos da trama. O fato de descontrair os momentos tensos, e por se mostrar
paradoxalmente valente e medroso, aproxima-o do palhaço da primeira parte do
espetáculo, o Augusto da conhecida dupla com o Clown Branco.
Segundo a pesquisa realizada por Bolognesi (2003) em inúmeros circos
brasileiros entre 1998 a 2001, não há no país o Clown Branco, tal como fora
concebido na Europa. A função desempenhada por este palhaço, nos circos
nacionais, geralmente é executada pelo Mestre de Pista (o apresentador do circo) ou
por outro Augusto, chamado de escada. A relação desta dupla de atores se
assemelha à concebida originalmente com o Clown Branco em que, no geral, um se
102
mostra esperto e o outro atrapalhado. Mesmo com esta polaridade algumas
entradas de palhaço apresentam uma virada em que a personagem desajeitada, ao
final da cena, se sobrepõe à outra. As apresentações podem ocorrer entre os
números de variedade como uma forma de entreter o público, durante a troca dos
aparelhos circenses. Em circos menores, o palhaço se torna a atração principal e
dessa forma desenvolve narrativas e cenas mais longas.
No circo-teatro do século passado, Saci não seria representado com a roupa
e maquiagem características do palhaço, porém algumas atitudes e seu caráter lhe
aproximam desta conhecida figura circense. É responsável pelos momentos de
descontração e riso, dentro de um contexto melodramático, tal como as entradas do
palhaço depois de um número de risco, apresentado na primeira parte do espetáculo.
Esta personagem também é responsável por nos revelar os aspectos humanos mais
baixos e banais. Manifesta uma perspectiva, diante de fatos tensos, descontraída e
superficial, demonstrando haver outra maneira de encarar as problemáticas.
No Circo Nerino foi interpretado por dois atores, primeiro por Paulo Sobral,
importante cantor do espetáculo circense. E depois por Walmir dos Santos, que fazia
o palhaço Garrafinha.
O Jerônimo foi, quando eles montaram o Jerônimo, eu não trabalhava. Quem trabalhava era um outro ator, que era até um cantor, Paulo Sobral. Aí quando Paulo Sobral saiu, aí na última hora me jogaram o papel. Porque eu fazia a Mestiça, Tico-Tico. Fazia ...E o Céu Uniu Dois Corações, o gago, o Juca. E depois que o Paulo Sobral saiu, é que eu fui fazer o moleque Saci, no Jerônimo. (...) Até o tipo físico era parecido, só que era branco, ele que bem claro. Ele era cantor, ele cantava músicas em castelhano, sabe? Era um bom cantor brasileiro. (...) O moleque Saci ele fez poucas vezes, porque a peça foi montada e logo ele saiu. (Entrevista com Walmir dos Santos realizada em 04/02/2015)
Paulo Sobral foi o único ator cômico do Circo Nerino que não atuava como
palhaço na primeira parte do espetáculo. O mais comum eram aproveitarem a
atuação e habilidades dos artistas para representarem, no teatro, algo equivalente
ao que desenvolviam na parte de variedades. Podemos ressaltar diversos momentos
engraçados da peça cuja atuação de Saci se assemelha ao jeito do palhaço. No final
do primeiro ato, por exemplo, na circunstância em que Jerônimo pede ao ajudante
para trabalhar na fazenda de Maria José. Ele demonstra
103
explicitamente estar com medo e, ao mesmo tempo, vontade de brigar. A maneira de
expressar esta contradição é cômica, como podemos perceber na cena:
SACI - Tá legar, Jeromo, tá legar! Eu sei que eu vou virar couro de cuíca, mas eu vou assim mesmo. Eu to memo com vontade de batê uma briguinha! Eta briguinha boa! GARRAFINHA - aparecendo ao fundo Sá Joana, bota mais uma aí. Joana serve GARRAFINHA - depois de beber Oia, Seu Jerônimo, eu já andei espalhando a notícia de que o senhô chegou em Serro Bravo! O Seu Ambrósio, o fazenderão marvado, tava lá na Fazenda Sete Morte conversando com a Sá Maria José, e inté mandaram convidá o sinhô pra i almoçá com eles amanhã. O almoço é as onze e eles não gostam de esperar não. JERÔNIMO - Muito bem! Pode voltar lá e dizer a eles que eu irei ao almoço. Peça também a essa tal Maria José que arranje um serviço aqui para este criolinho lá na fazenda. Esse coitadinho precisa trabalhar para se sustentar. Esse moleque é um coitadinho! SACI - Coitadinho é o fio de rato que nasce pelado! Eu vô! Mais se a coisa engrossá, eu garro o mato. Eta empreguinho bão... Vamos, Garrafinha. E que São Benedito nos ajude. (MAVRUDIS, 2011: 14)
Neste trecho é engraçada a maneira de Saci expressar, através de gírias e
ditados populares, seu receio em trabalhar na casa dos inimigos. A primeira fala: “Eu
sei que eu vou virar couro de cuíca, mas eu vou assim mesmo.”, demonstra, de
maneira inusitada, o receio em ser descoberto e “arrancarem sua pele”. Ele está
acovardado diante desta situação, no entanto, algumas de suas ações ao longo da
peça se revelam audaciosas e impetuosas. Inclusive, na mesma fala, diz que está
com vontade de brigar com os malfeitores, demonstrando um contraste com a frase
anterior. Esta característica se assemelha ao jogo do palhaço, que comumente
apresenta esta polaridade do medroso e corajoso, combinada das mais variadas
maneiras. Parte do jogo cômico está na apresentação dos opostos e nas reviravoltas
cênicas que eles possibilitam.
O objetivo principal que observamos nas falas de Saci é fazer graça e troçar
das personagens e situações. Como na fala seguinte, em que Jerônimo se refere ao
ajudante como um coitado para que Garrafinha não desconfie da relação dos dois e
arrume um emprego na casa dos inimigos, porém Saci não dialoga com esta
dissimulação. E lhe responde: “Coitadinho é o fio de rato que nasce pelado! Eu vô!
Mais se a coisa engrossá, eu garro o mato”. O objetivo desta fala é fazer rir, pois não
tem a intenção de responder ao herói, fingindo ser um crioulo que precisa trabalhar.
104
Saci é um escarnecedor que gosta de brincar em todas as situações, inclusive nas
piores.
O fato de rir daquilo que nos amedronta é uma forma de lidar com uma difícil
situação oposta à melodramática. Esse raciocínio dialoga com o pensamento de
Bakhtin, do riso como regenerador e positivo.
O verdadeiro riso, ambivalente e universal, não recusa o sério, ele purifica-o e completa-o. Purifica-o do dogmatismo, do caráter unilateral, da esclerose, do fanatismo e do espírito categórico, dos elementos de medo ou intimidação, do didatismo, da ingenuidade e das ilusões, de uma nefasta fixação sobre um plano único, do esgotamento estúpido. O riso impede que o sério se fixe e se isole da integridade inacabada da existência cotidiana. Ele restabelece essa integridade ambivalente. Essas são as funções gerais do riso na evolução histórica da cultura e da literatura. (BAKHTIN, 2010: 105)
Se Saci refletisse dramaticamente14
sobre o fato de trabalhar na casa inimiga
e servir de espião, talvez não tivesse coragem de enfrentar a situação e se
prostrasse. Principalmente por não ter tanta força e nem destreza quanto Jerônimo,
ele não é o herói, sente medo e os sentimentos mais ordinários, como a maioria do
público. Este trecho dialoga diretamente com o contexto que as personagens
cômicas assumem nos dramas do circo-teatro brasileiro: dialogar com público e sua
realidade. O cômico muitas vezes aparece como o elemento que apresenta o
homem mais comum, ligado ao cotidiano de incertezas. Distancia do aspecto
sublime preponderante neste gênero, dos altos sentimentos e das situações limites,
e assim impede que o sério fique abstraído da realidade ordinária e concreta da
maioria das pessoas. Dessa maneira, como indica Bakhtin, o riso consegue
completar o sério, favorecendo sua comunhão com a sociedade.
No segundo ato, Saci apresenta um ato heroico diante da situação violenta de
Ambrósio em relação a Eunice. A covardia expressa no primeiro ato transmuta-se
em coragem, porém, diferentemente do herói, não resolverá a cena sozinho, mas
realizará uma interferência bastante cômica.
14
O termo dramático neste trecho é empregado de modo mais genérico relativo ao gênero oposto à comédia, em que se valoriza o sério e o grave em detrimento do riso.
105
AMBRÓSIO - Os seus insultos não me atingem. Vou acalmar o teu ímpeto de orgulho, dando lhe o meu primeiro beijo de amor! tenta beijá-la EUNICE - esbofeteando-o Toma! Miserável!
AMBRÓSIO - avançando Atrevida... eu... SACI - aparecendo Êpa! Que valentia é esta com uma menina indefesa? Não, meu nego, com essa aí não! AMBRÓSIO - Saia da minha frente, cozinheiro atrevido. SACI - Cozinheiro que não é do teu fogão. Enquanto eu tiver aqui, ocê não faz essas valentias com sá Eunice. Senão ocê vai entrá pelo cano direitinho, bicho. AMBRÓSIO - Olha que eu sou capaz de... SACI - Já sei. É capaz de me amarrá e me dá um beijo. Oh beijinho de boca fedorenta, credo. AMBRÓSIO - avançando Patife! SACI - sacando o revólver Epa... Epa... Epa... Não engrossa... não engrossa, bicho, que ocê estorou o pneu! Fica longe de mim, seu coisa! CAVEIRA - entrando sorrateiramente, agarra Saci pelas costas Agora o negócio é comigo! Pode deixá, chefe! AMBRÓSIO - Espera, Caveira! tira o revólver de Saci Eu tomarei conta dele, enquanto você pega Eunice e leva para a minha casa. Vamos. Caveira executa, segurando Eunice em sua frente JERÔNIMO - aparecendo Para trás, todos! TODOS - Jerônimo! JERÔNIMO - Vamos, Saci, desarme-os. Saci executa Agora, Caveira, solte Eunice. CAVEIRA - Eu tô cumprindo orde, e vai ser meio difícil tirá ela das minhas mão. JERÔNIMO - dá-lhe uma bofetada e livra Eunice Agora vá para junto de sua mãe, senhorita. Vá. Que, por enquanto, ninguém a incomodará. Eunice sai Agora vocês, canalhas, saiam, saiam logo. saem os dois, cada um com um pontapé de Saci SACI - Eta pontapezinho bão! Agora vai embora, Jeromi. Antes que venha gente. JERÔNIMO - Adeus, Saci. Continue a vigiar esta casa até que Jerônimo possa acabar com esses miseráveis. Adeus! Sai (MAVRUDIS, 2011: 25 a 27)
Esta cena cômica acontece no momento auge deste ato, quando Ambrósio
agarra Eunice à força. Nesta situação, Saci aparece para ajudar, mas causa riso, ao
chamar Ambrósio de meu nego, logo ao entrar. Ele revela, através da fala, uma
intimidade que não existe entre eles, porém, de acordo com o contexto, percebemos
que se trata de uma ironia.
(...) na ironia expressa-se com as palavras um conceito mas se subentende (sem expressá-los por palavras) um outro, contrário. Em palavras diz-se algo positivo, pretendendo, ao contrário, expressar algo negativo, oposto ao que foi dito. A ironia revela assim alegoricamente os defeitos daquele (ou daquilo) de que se fala. Ela constitui um dos aspectos da zombaria e nisto está sua comicidade. O fato de o defeito vir a ser definido por meio da qualidade que se lhe opõe, coloca em evidência e realça o próprio defeito. A ironia é particularmente expressiva na linguagem falada, quando faz uso de uma particular entoação escarnecedora. (PROPP, 1992: 125)
106
A situação de enfrentamento entre ele e Ambrósio demonstra a discrepância
deste tratamento, pois em palavras expressa uma intimidade enquanto suas ações
são de embate, confronto e distância. O ator poderá, através da entonação, revelar a
ironia de sua fala em contraste com as ações cênicas realizadas, como destacado
por Propp no fragmento acima. Em seguida o Coronel o chama de cozinheiro
atrevido e Saci lhe responde que não é cozinheiro do fogão dele e se ele não se
cuidasse entraria “para o cano direitinho, bicho”. Em muitas passagens o Coronel se
intromete nos assuntos da família e as personagens lhe respondem para não
interferir naquilo que não lhe diz respeito. De maneira análoga, o moleque diz que
não é o seu cozinheiro e, portanto, não precisa obedecê-lo. Revela não respeitar o
Coronel, ao ameaçá-lo, chamando-o em seguida de “bicho”, um tratamento
pejorativo, principalmente no contexto melodramático.
Saci surpreende Ambrósio e o público não só quando, com coragem, defende
Eunice do ataque, como um herói trapalhão, principalmente pelo modo zombeteiro
com que trata a situação “à priori” violenta. Sem dar valor à valentia do moleque, Ambrósio o ameaça, no que Saci responde de maneira extremamente cômica, ao
reverter para si a situação que presenciou e perguntar de maneira irônica se o vilão
quer beijá-lo à força também.
O Coronel fica furioso diante das afrontas e avança em sua direção, então
Saci lhe aponta uma arma e, por ainda estar no controle da situação, completa: “não
engrossa, bicho, que ocê estorou o pneu! Fica longe de mim, seu coisa!”. Novamente Saci utiliza uma expressão popular, estourar o pneu, querendo dizer que
Ambrósio passou dos limites. Também o chama de coisa, um tratamento pejorativo e
desrespeitoso. Desse modo, transparece que não respeita nem o Coronel nem Maria
José, a quem trata da mesma maneira. Novamente a fala de Saci chama a atenção
pela maneira popularesca, se comparada às demais personagens. Ele apresenta um
jeito debochado e brincalhão que será engraçado, principalmente nos diálogos com
os vilões, pois o público deseja vê-los humilhados por tais zombarias.
Como Saci representa a personagem cômica, ele não consegue resolver a
situação sozinho e Jerônimo precisa intervir, numa situação “deus ex-machina”. Ao
final deste ato, depois da solução do herói, que surgiu inesperadamente para salvar
o dia, Saci dá um pontapé no Coronel e em Caveira para mandá-los embora. Esta
maneira de colocá-los para fora dialoga com o comportamento baixo do tipo cômico.
107
Saci age de uma maneira grosseira, diferente do que seria habitual a um salvador da
mocinha em perigo, e esta atitude mais uma vez se aproxima da compreensão
bakhtiniana do riso, principalmente por transferir para o plano corporal tudo o que é “elevado, espiritual, ideal e abstrato” (BAKHTIN, 2010: 17). Ao invés de mandá-los
embora de uma maneira elegante e ameaçadora, Saci apresenta uma ação que
rebaixa e aniquila qualquer polidez. Esta atitude novamente o aproxima do palhaço,
principalmente por utilizar elementos da baixa comédia, tais como surra de pauladas,
ponta pés, sem demonstrar as sutilezas presentes na alta comédia.
No quarto ato, no momento da revelação das vilanias da dupla, há uma
sugestão cômica de Saci como punição para o Coronel: sentar em um formigueiro
sem cueca. Apresenta um raciocínio descabido, responsável por rebaixar novamente
ao plano corporal, e ligado às partes inferiores do corpo, uma possível correção e
humilhação para o vilão. Essa solução é descabida para uma personagem como
Jerônimo, porém possível e imaginável para seu ajudante. O herói empunha um
revólver para intimidar o adversário, porém não pretende matá-lo, mas obrigá-lo a
assumir suas faltas e pagar por isso na cadeia. Somente a criatividade da
personagem cômica poderia conceber este raciocínio. A primeira frase da fala
seguinte de Maria José se refere a esta piada feita por Saci: “Basta. Basta de tanta
comédia.”, demonstrando, em sua perspectiva, a seriedade da situação.
Ainda no momento da solução da trama, Jerônimo pede ao ajudante para
pegar os documentos de Carlos, em posse de Ambrósio. O moleque empunha um
revólver e, caso o vilão não consinta em entregar os papéis, ameaça-o: “Se não eu
faço a sanfona tocá e você tem que dançá.”. Esta é uma maneira metafórica e
sarrista de intimidar o Coronel a não reagir e fazer o que ele deseja. Novamente a
ameaça de Saci suscita uma imagem ridícula e descabida de alguém dançar ao som
de uma sanfona ameaçado por uma arma, similar ao raciocínio do palhaço. A fala é
engraçada porque surpreende e rebaixa. Esta situação tenderia a ser dramática,
caso fosse realizada pelo herói ou vilão; porém nas mãos de Saci torna-se ridícula. A
cena se encontra logo após o desmascaramento de Maria José, seguido de Coronel
Ambrósio. Novamente traz o riso e faz o público relaxar um pouco em relação ao
destino da história.
108
Em seguida Saci leva o Coronel para o delegado, que esperava fora de cena,
chutando-lhe o traseiro. Novamente evidencia o plano inferior corporal, tal como
ocorre em algumas esquetes de palhaço. Bolognesi, no seu livro Palhaços, narra
uma entrada chamada de O coração em que um palhaço supostamente mata o outro,
que cai no chão. O primeiro chora diante do ocorrido e é consolado pelo
apresentador, ele lhe sugere se certificar da morte através dos batimentos do
coração. O palhaço, porém, não sabe onde se encontra este órgão, então o
apresentador lhe diz as características. Todas as indicações são seguidas, de
acordo com o seu raciocínio cômico, então encontra as nádegas do morto, e
confirma o óbito devido ao mau cheiro percebido. Esta e inúmeras outras entradas
se referem às partes baixas do corpo, com o objetivo de despertar o riso.
Percebemos, através dos exemplos, que o mesmo acontece com Saci, personagem
que apresenta um caráter zombeteiro e por isso é muito desbocado e trapalhão.
Todas as qualidades ressaltadas que aproximam a personagem cômica do
palhaço de picadeiro se referem às características apresentadas por ambas as
figuras. Entretanto, se observarmos do ponto de vista da interpretação do ator,
perceberemos diferenças sensíveis, tal como mencionadas por Walmir dos Santos:
O que eu fazia como o palhaço Garrafinha (palhaço criado por Walmir na
primeira parte do espetáculo circense)15
, era o Garrafinha. Agora em cena era outra coisa. Mesmo sendo cômico, o que eu fazia não tem nada a ver com o Garrafinha. (...) A diferença na maneira de você falar, como você tinha que se expressar, até a maneira de gestos, essas coisas. Porque no palhaço você tem que falar mais do que fazer esse tipo de cena. Às vezes você tem um texto, que este texto tem que mostrar a comicidade. No palhaço. Na cena é diferente. Você tem um texto e você tem que fazer alguma coisa ligada àquele texto. Totalmente diferente do palhaço. O palhaço é engraçado, é uma coisa de graça. E lá na peça é cômico, é uma comicidade que você faz na peça. No palhaço você já tem um outro tipo de gesticulação. (...) Toma conta da cena. Você faz pirueta, você faz tudo para fazer graça, no picadeiro. Não é só falar, você tem que fazer as comicidades, gesticular. Porque às vezes você não é sozinho, você está com outro que ajuda você. (Entrevista realizada em 04/02//2015)
Observamos duas diferenças importantes ressaltadas na fala de Walmir, a
primeira se relaciona ao tipo de comicidade. Na peça, ela está atrelada e
subordinada ao texto, já a do palhaço é independente no sentido de buscar ações
fora do roteiro estabelecido, cujo objetivo é despertar o riso dos espectadores. Outra
15
Grifo nosso.
109
diferença entre essas duas figuras se relaciona à gesticulação e à atuação, que, em
relação ao palhaço, são mais livres, por poder se articular de acordo com
improvisações. Neste jogo é possível incluir piruetas e grandes expressões cênicas
por parte dos intérpretes, que extrapolem as regras da realidade. No caso do
melodrama, o ator deve agir dentro de um outro contexto de representação, cuja
linguagem é mais contida, pois busca dialogar com a vida dos espectadores,
seguindo as convenções de um gênero dramático, e envolvê-los na encenação.
Mesmo com a intenção de realizar uma interpretação realista16
, o ator deve
considerar as condições espaciais que o obriga a falar mais alto, devido à
precariedade da acústica, a gesticularem de maneira limpa e sintética, o que
acarreta uma linguagem particular deste meio.
O modo de falar das personagens, como a fala mais regional e carregada de
sotaque de Saci, contribui para a explicitação das suas características e construção
cômica. Utiliza a expressão coloquial e popular, em que as exigências quanto à
gramática não são priorizadas, mas sim a fluidez na comunicação. Desse modo,
gírias e interjeições aparecem com frequência no seu discurso, assim como nas
falas das personagens de Garrafinha e Caveira. Eles desconsideram, portanto, a fala
formal comum aos heróis e vilões, gerando uma diferença sensível no decorrer da
história. Esta variação na comunicação é responsável, também, por sublinhar a
diferença social existente entre estes grupos.
No segundo ato e na abertura do terceiro há dois monólogos que evidenciam
a maneira coloquial de Saci se expressar. O primeiro descreve para o público o
emprego de cozinheiro que conseguiu na casa de Maria José, em contraste com sua
função de espião. O segundo monólogo serve para justificar a sua permanência na
casa, depois de ter defendido Eunice e ameaçado o Coronel com uma arma. Os dois
demonstram o linguajar popular utilizado por sua personagem. Escolhemos o
primeiro, por representar melhor algumas características particulares de sua figura e
também por ilustrar bem a sua fala coloquial:
SACI - vestido de cozinheiro Esse negócio de emprego de cozinheiro que o Jerônimo mandou arranjar pra mim não tá nada bão. Eu não sei se cozinho
16
Relativo ao movimento realista do teatro, que no Brasil começou em meados do século XIX, no qual se buscava uma encenação e interpretação mais próximas da realidade, visando imitá-la da maneira mais fiel possível.
110
ou se vou escuitá atrais das portas. Isto ainda vai dá numa sujeira dos diabos. passos Xiiii... Aí vem as gentes, eu vou dá o fora. A dona lá da cozinha qué que eu vá lavá os prato e, ainda, qué que eu vá fazê as comida. Mas eu vô falá pra ela que se eu lavo, não cozinho. E se eu cozinho, eu não lavo. Vá pros quinto. Eta cozinheirinho bão! Sai (MAVRUDIS, 2011: 19)
Este momento acontece após o diálogo íntimo entre os vilões, na abertura do
segundo ato. Serve para contextualizar a situação do emprego que ficara suspenso
no ato anterior com a saída de Saci e Garrafinha. O monólogo revela a situação
contraditória, inusitada e cômica, de cozinhar preocupado em escutar atrás da porta.
A maneira de narrar esta impossibilidade, através do encadeamento de ideias e a
forma de apresentá-las, é engraçada. Demonstra claramente para o público a
situação desconfortável desta situação contraditória em que se encontra e assim
evidencia sua fraqueza. As personagens dramáticas, por mais que tenham
fragilidades, na medida do possível, tentam escondê-las do público. As imperfeições
do herói ou do vilão aparecem somente no sentido de superação e progresso, pois o
erro deve ser suprimido. A personagem cômica, ao rir de sua situação, demonstra a
possibilidade da derrota, inclusive é responsável por destacar o lado falho do homem.
A partir da repetição, ao longo do enredo, do mote lavar e cozinhar / espiar e
trabalhar, a personagem criará um jogo cômico interessante pela impossibilidade
gerada por esta situação. Neste monólogo, o moleque pretinho diz a frase que irá
repetir ao longo de toda a peça: “Eta cozinheirinho bão!”, apenas modificando o
substantivo da oração. Os circenses nomeiam esta frase dita ao longo de todo o
espetáculo de bordão, um recurso bastante utilizado pelas personagens cômicas.O
bordão gera um diálogo direto com os espectadores e se torna reconhecido e
esperado por eles. O conceito de repetição é o que mais caracteriza o uso do bordão
e é fundamental para o estabelecimento da comicidade – nele se manifesta tanto o
caráter mecânico da conduta humana quanto a espontaneidade propiciada pelo
sentido que se reconstrói com a recorrência. Neste contexto, o comediante pode
explorar amplamente as expressões de duplo sentido, principalmente com
conotações sexuais e relativas aos planos corporais mais baixos, como a
combinação de lavar e cozinhar da passagem destacada.
111
Ainda no segundo ato, Saci interrompe a conversa entre Maria José e Carlos,
na qual ela se declara para o engenheiro. Este é um trecho curto, pois o moleque
pretinho apareceu somente para chamá-la, entretanto a maneira como se dirige à
patroa é bastante cômica:
SACI -que apareceu ao fundo Dona Maria, ixe, o pessoá tá esperando pra enguli o feijão. E o mió é a senhora i logo, se não a salada esfria. MARIA JOSÉ - Já vou, idiota, e saia da minha frente, seu pau de fumo. sai fuzilando SACI - Pau de fumo é a... Eta pauzinho de fumo bão! CARLOS - Saci, meu amigo, não sei o que será de mim. Estou entre a cruz e a espada! Eu amo Eunice e a irmã me persegue. Até com ameaças de morte. Será que precisarei abandonar esta casa? Deverei ir para longe da mulher que amo? SACI - Quá nada, Carlo. Oia, seu Dotô. O Jeromi anda por aí. E as coisas agora vai miorá muito. O Jeromi tá só aperparando o golpe finali pra pegá estes bandidos. Isto é tudo uns contra a lei. passos Xiii... Aí vem a Sá Eunice, eu vou dá fóra prá ôceis conversá mais à vontade. Mas tome cuidado com a Sá Maria Izé, hein. Té logo. Eta namorinho bão! Sai (MAVRUDIS, 2011: 22 e 23)
Neste trecho, a maneira deSaci se expressar, sem considerar a convenção
social, se torna engraçada, como ao dizer para a sua patroa que estão esperando
para engolir o feijão. Esta forma de falar é uma característica marcante das
personagens cômicas, entretanto Saci a enfatiza ainda mais devido a sua
personalidade de brincalhão e zombeteiro. Revela, com este tratamento, que não
respeita como deveria sua patroa, principalmente por ser seu secreto inimigo. Nesta
mesma fala há uma piada quando diz que a salada vai esfriar, que se deve ao
alogismo presente: a salada é uma comida fria que, portanto, não pode esfriar.
Vladimir Propp, no seu livro Comicidade e Riso,dedica um capítulo à temática do
alogismo e explica com detalhes este procedimento, utilizando como exemplo
diversas histórias da dramaturgia e contos populares russos.
Ao lado do fracasso daquilo que se deseja por causas externas ou internas, há casos em que o fracasso se deve à falta de inteligência. A estultice, a incapacidade mais elementar de observar corretamente, de ligar causas e efeitos, desperta o riso. (PROPP, 1992: 107) É possível dar-se também outra definição: pode-se entender o alogismo cômico como um mecanismo de pensamento que prevalece sobre seu conteúdo. (PROPP, 1992: 108)
112
O alogismo reflete um mecanismo errado de pensamento, que ignora o
próprio conteúdo, a salada não pode esfriar por já ser servida fria. Porém não fica
tão claro se esta personagem comete este alogismo por graça, devido ao seu jeito
brincalhão e desbocado, ou por ignorância. O mais importante, entretanto, é resultar
o efeito esperado, gerar o riso no espectador e descontrai-lo da tensão estabelecida
na conversa entre Maria José e Carlos. Através da interrupção de Saci, o autor
realiza o movimento de tencionar e relaxar, com a oscilação entre o drama vivido
pelas personagens sérias e a comédia e descontração apresentadas pelo moleque
pretinho. O público momentaneamente muda o foco de atenção e “esquece” aquilo
que lhe afligia. Este ponto nos lembra de um recurso amplamente usado pelo
dramaturgo e encenador Bertold Brecht, que visava construir em suas peças um
distanciamento emocional do público em relação à história, a comicidade era um dos
recursos utilizados por ele.
A maneira popular de as personagens de Saci, Garrafinha e Caveira se
expressarem induz à identificação com uma camada social não escolarizada, que
possivelmente não teve acesso ao conhecimento letrado. Como podemos observar
na rádio novela, disponível na internet, em que Jerônimo diz ao seu ajudante para
estudar porque é importante para seu futuro e ele ainda é muito novo. A discrepância
social aparentada entre as personagens se relaciona com aquilo que Bolognesi
chamou de expressão psicossocial, relacionada à máscara da commedia dell’arte:
Na commedia, a força simbólica das máscaras reporta-se a sentidos sociais e psicológicos próximos de arquétipos: são expressões psicossociais. No jogo cênico das máscaras evidencia-se um embate entre estratos sociais distintos, como entre os zanni e Pantaleão ou entre criados e o Doutor. O antagonismo psicológico, por sua vez, pode ser notado no confronto entre Arlequim e Pierrô. O primeiro é enganador, misto de ingênuo e grosseiro; o segundo, honesto, terno e encantador. As características distintas (tanto sociais quanto psicológicas) se materializam em máscaras distintas, símbolo de situações-limite. (BOLGNESI, 2003: 178)
Percebemos que os tipos apresentados nos circos-teatros do início do século
XX guardam algumas semelhanças com a commedia dell’arte italiana. Ambos se
reportam a sentidos sociais e psicológicos parecidos, no embate entre o indivíduo e
a sociedade. Grande parte do cômico suscitado nesta peça pela personagem de
Saci se refere à diferença existente entre os padrões de comportamento nas
113
distintas classes sociais. Ele desrespeita as convenções sociais de cordialidade e
respeito, e ainda fala de maneira informal, comete erros de gramática e utiliza
expressões populares. Através da maneira de se expressar e agir estas diferenças
serão sublinhadas, em contraste com as demais personagens.
O raciocínio apresentado pela sua personagem também se destacará por
revelar certa ingenuidade diante de algumas situações, pois se trata de um jovem
galhofeiro com pouca experiência de vida. Geralmente suas sugestões serão
desconsideradas pelas personagens por apresentar ideias absurdas e sem sentido.
A exemplo da solução de punição para o Coronel, comentada anteriormente, de
sentar em um formigueiro sem cueca. Na rádio, Saci era a personagem que mais
fazia sucesso com o público jovem, por pertencer e dialogar com os interesses deste
grupo.
Outro papel desempenhado pela personagem cômica nos melodramas se
refere em ser confidente de uma ou mais personagens. Carlos, em dois momentos
da trama, confia seus segredos e desabafa com o moleque, dessa forma revela
também ao público seus secretos sentimentos. Ivete Huppes ressalta que os apartes,
monólogos e confidências são convenções relevantes para a construção
melodramática e completa:
Semelhante ao coro da tragédia grega, esses recursos favorecem a compreensão por parte da plateia, além de representar uma alternativa de comunicação que se superpõe ao diálogo entabulado pelas personagens em cena. (...) Há casos em que contribuem para completar o retrato das personagens principais, aquelas a quem é reservado espaço para revelações e de quem o interesse da história demanda decifrar o ânimo oculto. Quando falam, sozinhas ou para um interlocutor – o confidente, ou o público, no caso do aparte – expressam motivos íntimos que não poderiam aparecer de outra maneira, a não ser desencadeando prejuízos muito graves. (HUPPES, 2000: 73 e 74)
O primeiro momento de confidência é na cena, já citada, de interrupção do
diálogo entre o engenheiro e a vilã. Carlos, além de revelar seu romance escondido
com Eunice, também demonstra sua apreensão diante da situação que se encontra:
ameaçado pela irmã de sua amada. Esta declaração contribui para aumentar a
expectativa em relação aos próximos acontecimentos, pois o interesse do público é
despertado ao não vislumbrar uma solução positiva cabível para estes conflitos. No
114
quarto ato, antes do roubo responsável por solucionar a trama, há outra conversa
íntima entre estas duas personagens.
SACI -entrando Doutor Carlos, os homens das companhia das mina já chegaram. Daqui a pouco, eles deve ir pro escritório. O sinhô também tem que tá lá. O sinhô não é o engenheiro da engenharia que vai negociá as terra? CARLOS - Sim, mas eles só irão depois do almoço. E eu preciso descansar um pouco. SACI - Eu também acho que o senhô precisa descansá. A sá Maria Izé tem esfolado vossemecê no serviço, hein? CARLOS - Agora está muito pior. Ela desconfia de tudo que eu faço. SACI - Pois eu acho que o Doutor tá com uma sorte dos diabo. Tem escapado de cada armadilha de lascá. Eles tão querendo vê sua caveira! CARLOS - É que eu ando sempre alerta. Esta noite, quase não dormi, cuidando das amostras e dos documentos das terras. Estou cansadíssimo e com sono. E sempre com receio de que me aconteça qualquer coisa de mal. SACI - Olha, quando quisé descansar um pouco, é só me chamar que eu fico de olho aberto pro sinhô! E agora, escreveu num leu, eu chamo o Jeromi! CARLOS - Está bem. Eu vou procurar descansar um pouco. SACI - Pode ficá tranquilão. Eu vou inté a cozinha, mas não me demoro. Sempre eu tô por aqui mesmo. Quarqué coisa eu tô na ativa. Tchau. Sai CARLOS - Esse amigo vale ouro. Se não fosse por ele, muitas coisas de ruim já teriam acontecido nesta casa. Bem, eu estou mesmo esbaforido. Vou procurar repousar um pouquinho. recosta-se, adormece, música em surdina. Meia luz (MAVRUDIS, 2011: 35 e 36)
Saci atua como o confidente de Carlos, numa cena muito interessante, que
prepara o importante acontecimento do roubo que se seguirá. Através deste diálogo
o público é informado dos últimos acontecimentos da história, como as ameaças da
vilã, por isso o engenheiro não tem descansado e anda muito apreensivo. Saci
promete vigiar seu sono, assegurando que qualquer problema chamaria Jerônimo.
Depois de se retirar, Carlos enaltece o amigo e comenta sobre a importância de sua
presença na casa, no sentido de auxiliar na resolução dos últimos acontecimentos,
então adormece.
Neste momento os vilões aparecem e Saci, conforme prometera, se mantém
atento. Depois de a dupla pegar os documentos, o moleque acorda Carlos e sai para
chamar Jerônimo. Antes de deixar a cena, diz uma fala breve, mas muito engraçada: “Agora é que a tartaruga vai dar pulo”, que indica a possibilidade de desmascarar os
vilões. O cômico desta fala está no pensamento ilógico de uma tartaruga pular e no
fato de apresentar, neste momento de apreensão, esta imagem inusitada.
115
A participação de Saci nesta cena é muito importante, primeiro por atuar como
confidente de Carlos e por isso permitir que intenções secretas sejam reveladas para
o público. E em segundo lugar por protegê-lo durante seu sono, cena esta que
possibilita o roubo dos documentos que solucionará a trama mais a frente. É
interessante a característica das personagens cômicas de acompanhar e completar
os acontecimentos da história. Por não serem os responsáveis pelos conflitos
principais, lhes é permitido mais mobilidade e troca de informações entre os núcleos
que compõem a narrativa. Saci trabalha para Maria José, ajuda Carlos e Eunice e
ainda comunica todos os acontecimentos a Jerônimo.
Durante as revelações feitas pelo herói, após o roubo, Saci realiza um
importante contraponto cômico deste momento maior de tensão. E é justamente esta
quebra que aumenta a curiosidade e o impacto dos próximos acontecimentos no
espectador, até o momento da revelação de que Maria José é a ladra e atua junto
com o Coronel. Todos em cena se espantam, o espectador, porém, não se
surpreenderá por se manter onisciente da trama. O que deseja ver é a reação das
demais personagens, diante das revelações, e saber como os vilões serão punidos.
A punição da dupla será a cadeia e o casal de enamorados terão o
consentimento de Dona Sinhá para o casamento, tudo parece se encaminhar para o
final mais justo possível. Neste momento Maria José sai de cena e se mata,
finalizando a peça de uma maneira surpreendente, causando grande impacto no
espectador. Esta é uma característica marcante do gênero melodramático, causar
fortes impressões. Nestes termos se aproxima da relação feita por Eric Bentley do
melodrama com a tragédia:
A compaixão pelo ‘herói’ é a metade menos impressionante do melodrama; a outra e mais impressionante metade é o medo, o temor provocado pelo vilão. Compaixão e temor: foi Aristóteles que, na Poética, fez a conjugação e procurou explicar o efeito total da tragédia nesses termos. (BENTLEY, 1981: 185) Talvez o êxito de um autor melodramático dependa sempre, primordialmente, da sua capacidade de sentir e projetar medo. Sentir deve ser fácil, pois o medo é o elemento em que vivemos. ‘Nada temos a temer senão o próprio temor’ é um slogan nada consolador, visto que o medo é o mais indestrutível de todos os obstáculos. Nisso reside a universalidade potencial do melodrama. (BENTLEY, 1981: 186)
116
O fato de Maria José se matar surpreende o espectador e causa um impacto
maior do que se fosse somente presa. Este dado aumenta o temor do público diante
da história, sentimento que no melodrama será mais acentuado do que a compaixão,
segundo Bentley. Mesmo que este gênero não se processe da mesma forma, guarda
semelhanças com a catarse trágica, com o adicional da presença marcante da
personagem cômica. Ao longo da história do teatro mundial encontramos o temor e o
riso, que formam juntos uma combinação bem interessante de características e
particularidades à dramaturgia.
Uma das possíveis razões de o gênero melodramático ter se adequado ao
ambiente circense é por dialogar com emoções antagônicas, presentes nas duas
formas artísticas. Assim como observamos em muitos filmes, em diversos outros
gêneros teatrais e nas radionovelas e novelas brasileiras. O trecho abaixo se refere
à primeira parte dos espetáculos circenses, em que diversos números eram
apresentados alternados com as entradas dos palhaços, mas podemos observar
muita semelhança com a presença da personagem cômica no melodrama:
Ainda hoje, de acordo com Roland Auguet (1974, p.7), somente o espetáculo circense combina e alterna emoções tão antagônicas como a gargalhada descompromissada e o receio aflito diante do possível fracasso do acrobata em seu salto-mortal. O riso e a morte dão ao circo um registro emocional único e contraditório. (BOLOGNESI, 2003: 31)
Percebemos, através deste trecho, que a personagem cômica guarda
semelhanças com o palhaço também no que se refere à recepção e à impressão que
causam no público. Além de serem, geralmente, interpretados pelos mesmos atores,
como já foi mencionado. No Circo Nerino, os palhaços não se apresentavam nas
peças a caráter, tiravam a pintura, nariz e roupa. Mesmo assim eram reconhecidos e
apreciados de maneira análoga ao palhaço por demonstrarem o contraponto ao
sentimento de tensão estabelecido pelo drama, e, no caso do palhaço de picadeiro,
pelos números de risco.
117
5 – A MESTIÇA
5.1 – Os autores e a trama
A Mestiça é uma peça de 1950, adaptada do romance de mesmo nome da
autora Gilda de Abreu. Esta escritora foi atriz, compositora, cantora lírica, diretora de
cinema e roteirista. Filha de um diplomata brasileiro e de uma cantora lírica, nasceu
em Paris em 1904 e se radicou no Brasil dez anos depois. Estreou no teatro em
1933 e no cinema em 1936, no papel principal da comédia romântica Bonequinha de
Seda. Em 1938 se casou com o cantor Vicente Celestino e em 1946 dirigiu o marido
no filme O Ébrio, tornando-se a segunda cineasta brasileira. Escreveu seis romances,
dentre eles A Mestiça, que foram adaptados para o rádio, cinema, teatro e circo.
Luciane Margarete Pizoquero, em sua dissertação de mestrado, além de apresentar
aspectos da vida pessoal de Gilda, narra com detalhes sua carreira como
cinegrafista junto com duas outras brasileiras, pioneiras da arte no país.
A versão da peça A Mestiça utilizada para esta análise é a do dramaturgo
Joaquim Silva, encontrado na coletânea organizada por Sula Mavrudis, porém quem
fez a adaptação para o Circo Nerino foi Agenor Garcia, também ensaiador da
montagem. Devido à dificuldade em encontrar este texto no Centro de Memória do
Circo, local onde se encontra todo o acervo do Circo Nerino, optamos por utilizar a
versão mencionada. Segundo consta no livro Circo Nerino, esta foi a obra na qual
Agenor mais se esmerou para produzir, pois escreveu com a intenção de ser
encenada por sua filha, Anita, no papel principal. Devido ao empenho, tornou-se um
grande sucesso de público, sendo reencenada muitas vezes neste circo. Nos dias de
sua apresentação, não havia a primeira parte de variedades, pois a versão de
Agenor tinha dez atos.
Em Maceió, A Mestiça estourou. Quando a temporada estava caindo, anunciávamos A Mestiça e era como se estreássemos de novo. Mas, quando não deu mais para disfarçar a barriga da segunda gravidez de Anita suspendemos a peça. Aí o povo foi para as rádios pedir para a gente reprisar A Mestiça. Nós explicamos que não era possível porque a atriz estava grávida. E o povo disse que não tinha importância, que ninguém
118
reparava nesse detalhe. Então, já que o povo não se importava, continuamos a levar a peça com a mestiça barriguda mesmo. E olha que não era só ela, a Ayola, que fazia a mocinha, a Mimosa, também estava grávida, grávida de gêmeos. (AVANZI e TAMAOKI, 2004: 207)
Esta história retrata o enorme sucesso de bilheteria e o diálogo estreito que
estabelecia com o público, por isso era reprisada muitas vezes ao longo da
temporada. As personagens eram conhecidas, devido ao sucesso do romance,
inclusive a música que o feitor canta para a escrava era muito famosa na época.
A Mestiça era uma peça que agradava inteira. Eram dez atos que eram dez atos vividos mesmo, e a plateia vibrava. E tinham outras peças também que... Mas não tem como, a Mestiça eu acho que ela foi a maior evolução do Nerino com o teatro, a Mestiça foi nota dez. (...) Pela encenação, pela apresentação, pelo desempenho dos artistas, foi muito bom. Principalmente a dona Anita como Mestiça, né? Todos os personagens foram muito bons, porque a mãe do Roger fazia a dona da fazenda, o irmão fazia o marido dela, tinha um outro que fazia a filha, e tinham muitos outros personagens. E todos estavam muito bem entrosados. (Entrevista com Walmir dos Santos realizada em 04/02/2015)
Percebemos o resultado do trabalho de Agenor através da reação e recepção
do público, além do mencionado entrosamento entre os atores. Após o nascimento
da filha de Anita e Roger, o retorno da puérpera ao circo foi uma grande atração,
comentada por Walmir nesta mesma entrevista. O circo estreara em Fortaleza, mas
ela ainda não havia se apresentado na cidade, quando entrou pela primeira vez em
cena os espectadores não paravam de aplaudi-la. Tanto assim que encenaram a
peça durante a semana seguinte inteira e todos os dias encheram as arquibancadas!
Em uma foto do cartaz da peça (AVANZI e TAMAOKI, 2004: 208), percebemos se
tratar de um grande sucesso de público também através da maneira de o circo tratar
o espetáculo: “Atendendo ao pedido geral apresentará em formidável reprise o maior
cartaz do momento, a peça que alcançou o retumbante sucesso em suas primeiras
exibições: Um diabo de saias vermelhas que derrubou as barreiras da escravidão. ”
A trama aborda a escravidão no Brasil em uma época – década de 50 – de
abertura para esta temática e início de conquistas sociais dos negros no Brasil e no
mundo. O texto apresenta um sentimento de compaixão com os escravos, gera uma
identificação, e reflexão por mostrar o lado opressivo do tratamento que eles
recebiam. O mote de todas as cenas, mesmo com a existência de um conflito
amoroso, é a relação dos senhores com seus escravos. As vilãs da trama, Dona
119
Maria e Mimosa, enquadram-se neste grupo devido ao modo como tratam os
empregados da fazenda. Em contraposição, o marido de Dona Maria, Gonçalves, e
o feitor são as personagens defensoras dos escravos e, por isso, pertencem ao
núcleo do bem.
A Mestiça é uma escrava mulata, filha de um homem branco com uma mulher
negra, porém desconhece quem seja seu pai e sua mãe já falecera, somente conta
com seu avô, Pai João. A paternidade será insinuada em diversos momentos da
peça e haverá um grande mistério em torno dela, sendo desvendada somente no
último ato. Neste momento, o fato de ela não ser escrava a livra de pertencer a
Tinoco e lhe permite casar com Luiz. Mestiça é uma moça extremamente envolvente
com os homens, conquista todos que a rodeiam, inclusive muitas personagens
comentam sobre o fato de seus encantos serem ardilosos. Costumam exemplificar
mencionando o suicídio do antigo feitor, devido ao amor não correspondido da jovem.
A história se passa na fazenda de Gonçalves, um senhor de engenho
diferenciado por tratar os escravos com respeito e dignidade. Logo na abertura da
peça, sua esposa e filha participam de duas situações em que oprimem Rosinha,
escrava que trabalha para as duas, e Tico-Tico, moleque pretinho e personagem
cômica do texto. Gonçalves faz o contraponto deste tratamento agressivo e defende
Tico-Tico, protegendo-o de levar o castigo imposto por Dona Maria. Esta situação
apresenta de antemão o mote que será desenvolvido ao longo de todo o texto – o
tema escravagista –, sendo esta uma característica marcante das peças
melodramáticas e também do circo-teatro brasileiro. Desde o primeiro ato os
espectadores estarão conscientes das principais problemáticas e já conhecerão
cada personagem da trama.
Amâncio, outro escravo, aparece em seguida e atua em parceria com Dona
Maria, responsável por executar os seus planos. Logo nas primeiras cenas, sua
dona lhe promete a alforria caso desapareça com a Mestiça, de quem sente imenso
ciúme, e prontamente ele aceita a proposta. Através de algumas falas deste ato,
percebemos em Amâncio o caráter de intriga e perturbador da ordem, que o fará agir
de maneira inescrupulosa ao longo da trama.
Luiz, o feitor da fazenda, filho de um amigo de Gonçalves, é outra
personagem apresentada neste ato. Ele é o galã da peça, um homem justo que trata
120
os escravos bem. Filho do amigo de Gonçalves (no começo esconde sua identidade
para poder trabalhar na fazenda, dizendo-se afilhado do amigo e não filho), veio
para desempenhar o cargo de feitor, e assim aprender a administrar terras. Querem
casá-lo com Mimosa, porém a Mestiça é uma moça mais atraente, que rapidamente
desperta a atenção do rapaz.
Outro homem enamorado da escrava é o Mascate, vendedor ambulante das
redondezas. Ele sempre passa na fazenda para ver Mestiça e ela se aproveita dessa
situação para lhe pedir alguns presentes. As principais personagens motivadoras da
ação são apresentadas neste ato, e a última a ser introduzida é Pai João, um
escravo mais velho, muito experiente e sábio. Ele apresenta um contraponto
dramático da relação dos escravos com os senhores e narra alguns aspectos da
história da escravidão. É o avô da Mestiça que, junto com Gonçalves, guarda o
segredo da paternidade da escrava.
O primeiro ato é o mais longo da peça: aponta as situações que se
desenvolverão ao longo do espetáculo através de pequenos conflitos. A escrava
principal, entretanto, aparece pouco, apenas em três rápidos momentos, porém
sabemos muito a seu respeito através dos comentários das outras personagens.
Este ato serve para introduzir os principais tipos e situações da trama, através da
opressão do tratamento recebido pelos escravos e do encantamento que a Mestiça
gera nos homens. Podemos ter uma ideia de como era representada esta atraente
personagem no Circo Nerino, interpretada por Anita Garcia. É interessante reparar
que nesta montagem a Mestiça não usava qualquer maquiagem na pele e mantinha
a cor branca da atriz, como podemos observar na foto abaixo:
121
Figura 10 - Anita Garcia caracterizada como Mestiça.
Fonte: Acervo pessoal de Walmir dos Santos
Observamos que o cenário desta foto é tridimensional (inclusive com um
cavalo real) e, portanto, não foi tirada ao longo da apresentação, uma vez que o
cenário era bidimensional, como poderemos ver na descrição cenográfica descrita
mais a frente. O segundo ato é mais dinâmico e rápido, intensifica as ações e
problematiza os conflitos com o desaparecimento da Mestiça, ao final. No começo,
ela quebra um vaso de Dona Maria, e Rosinha, que vira tudo, conta para a dona. No
momento de ser castigada, o feitor a defende e assume a culpa do ocorrido, dessa
forma Mariaé obrigada a voltar atrás no castigo. Esta situação sugere que Luiz já
esteja enamorado pela atraente escrava, apesar de negar quando indagado por Pai
João. Em seguida, Mimosa o convida para tomar um café, mas o feitor, por não ter
interesse algum na moça, recusa. Contrariada e enciumada, Mimosa chama
Amâncio e lhe ordena que leve a escrava para o cafezal e a impeça de voltar. O ato
termina com o suspense do rapto, porém Tico-Tico, amigo da Mestiça e personagem
cômica da peça, assiste ao ocorrido e segue os dois até o esconderijo.
122
O terceiro ato ocorre no mesmo dia, à noite, quando Pai João percebe o
sumiço da neta. Ele avisa Gonçalves e Luiz, que prontamente se dispõem a procurá-
la, e o feitor pede ao moleque pretinho para lhe levar ao local do esconderijo. Ele
hesita um instante, pois fora ameaçado por Amâncio, mas, diante da proteção
prometida, aceita ajudá-lo e os dois saem de cena. Voltam com a menina nos braços,
muito machucada e prostrada, repousam-na em uma cadeira e buscam ajuda de um
médico da região. Na foto a seguir aparecem Roger segurando Anita nos braços,
ilustrando esta passagem da peça.
Figura 11 - Feitor e Mestiça Fonte: Acervo pessoal de Walmir dos Santos
Luiz revela na frente de todos que Mimosa fora a responsável pelo ocorrido e
manda acordá-la, porém o socorro da escrava se mostra mais urgente. Gonçalves
manda, a contragosto da esposa, Rosinha arrumar o quarto de hóspedes para
repousar e medicar adequadamente a Mestiça. Dona Maria não entende o motivo da
acusação do feitor e pergunta para a filha o que aconteceu, então ela lhe confessa
que mandou Amâncio levar Mestiça para o cafezal, mas não lhe dissera para
maltratá-la. Gonçalves, muito aborrecido, ameaça chicotear o escravo quantas vezes
forem os dias em que Mestiça ficar acamada.
O quarto ato se passa depois da recuperação da moça, neste momento novos
dados são acrescentados à trama, inclusive a partir da apresentação de duas outras
123
personagens. No começo, Pai João entrega um par de brincos de prata a Mestiça,
dado por seu pai, quando soube de seu nascimento. Em seguida, Gonçalves
encontra o velho escravo e, durante uma conversa íntima, lhe confia os documentos
que comprovam quem são os pais da escrava. Ele tem o receio de sua esposa
descobrir a verdade sobre a paternidade, porém não deixa claro quem seja o pai.
Amâncio espreita a conversa e, após o escravo guardar os papéis em um baú,
rouba-os para chantagear o dono.
Este momento é interrompido pela chegada de Branca, comadre de Dona
Maria, e Tinoco, seu filho. O rapaz tem interesse em se casar com Mimosa, devido a
sua posição social, apesar de demonstrar desejo e admiração pela escrava. Tinoco,
ao encontrar com Luiz, reconhece-o dos bailes da corte em que os dois eram rivais.
Quando ficam sozinhos em cena, falam sobre Mestiça e percebemos ainda haver
uma concorrência entre os rapazes. Neste diálogo, o feitor não admite gostar da
moça e aposta dois bois que fará ela se apaixonar por ele. Ao final desta conversa,
Tico-Tico, que ouvira tudo, sai do esconderijo e vai contar para a amiga.
Ela se aborrece muito com a história e diz que não permitirá a concretização
desta aposta, mesmo que ele use da agressividade para forçá-la. Em seguida,
encontra o feitor, que tenta agarrá-la, mas ela se desvencilha e foge do moço. Pai
João surpreende este encontro e novamente alerta Luiz sobre o perigo dos
encantamentos de Mestiça, pois simpatizara com ele e não gostaria de vê-lo sofrer.
Ao final desta conversa, pela primeira vez, Luiz assume que talvez o escravo tenha
razão sobre seus sentimentos e depois sai de cena.
Gonçalves aparece e Pai João lhe revela que os documentos foram roubados.
Amâncio surpreende este diálogo, diz que os papéis estão com ele e ameaça
entregar para Dona Maria, caso Gonçalves não permita o casamento dele com
Mestiça. A escrava, entretanto, não deseja esta união e, para defendê-la, Pai João
tem o impulso de resolver esta situação a sua maneira. Então, no cafezal, mata
Amâncio e pega os documentos. Esta cena não ocorre no palco, o público tem
conhecimento dela através da notícia trazida por Tico-Tico. Todos se mobilizam para
descobrir o assassino e Luiz reúne os escravos, porém nenhum deles assume a
responsabilidade da morte. Ao final deste ato, Pai João confessa a Gonçalves e lhe
entrega os documentos recuperados. Podemos dizer que a morte do escravo é bem
124
vista, e até mesmo desejada, pelo público, pois esta personagem não é carismática
e sempre age visando o infortúnio dos heróis.
O próximo ato ocorre durante a festa de aniversário de Gonçalves e Mestiça
dança com os brincos de prata que seu avô lhe entregara. Mimosa lhe arranca os
brincos e a chama de ladra, pois diz ser a dona da joia. Ela nega veemente a
acusação e fala que o Pai João foi quem lhe dera o presente. Para confirmar, Luiz
pede para Rosinha verificar se Mimosa teria outro par igual no seu quarto, porém a
escrava diz não encontrar. Dessa forma, Pai João deve ir para a cadeia e o feitor é
quem vai levá-lo. Mestiça lhe pede encarecidamente para ele não fazer isso com seu
avô, porém, devido às circunstâncias do roubo, Luiz é obrigado a agir desta forma.
No ato seguinte, o encontro de Mestiça com o feitor não é nada amistoso, pois
ela está muito chateada com a atitude dele. Durante este breve diálogo, Tico-Tico se
mantém escondido e, com a saída de Luiz, aproveita para aconselhar a amiga a não
agir desta forma, pois o feitor é quem pode soltar seu avô. E ainda complementa que
ela parece estar gostando do rapaz, Mestiça fica desconsertada com o comentário.
Com a saída de Tico-Tico, o feitor volta à cena e a escrava lhe pede desculpas pelo
tratamento dispensado, diz que lhe quer bem, então ele, animado com a mudança
de ânimo, lhe pede um beijo e ela consente. Novamente Tico-Tico observa
escondido e não controla uma risada diante do que vê, dessa forma deixa Luiz
embaraçado que sai de cena. Na foto seguinte temos representado o casal de
amantes em um momento de entrosamento e receptividade, como este da cena
descrita.
125
Figura 12 - Mestiça e Feitor Fonte: Acervo pessoal Walmir dos Santos
O Mascate entra em seguida e Mestiça lhe entrega um pacote de dinheiro e
diz que fugirá com ele. Ao final da conversa lhe dá um beijo e desta vez quem
observa escondido é o feitor. Ele fica enfurecido com a moça e ameaça matá-la, mas
não tem coragem e sai de cena esbravejando. Tico-Tico, que novamente observava
tudo, pergunta para a amiga o que ela fez para o moço agir desta forma. Então ela
lhe conta seu plano: o pacote que entregara para o Mascate é um dinheiro que
Gonçalves deu para Luiz guardar, ela pretende incriminá-lo para vingar a prisão de
seu avô. O moleque pretinho, então, briga com a amiga e lhe conta que Luiz já
soltara Pai João da cadeia. Mestiça se desespera diante de sua atitude e não sabe
como solucioná-la, neste momento é interrompida pela entrada do Mascate. A moça
diz que não vai fugir e pede o dinheiro de volta, mas como ele não quer lhe entregar,
ela dissimula e resolve ir com ele para recuperar o pacote.
Em seguida todas as personagens estão em cena, pois Pai João voltara para
a casa e é recebido com muita comemoração e alvoroço. Maria indaga o motivo da
soltura e Luiz conta que Tico-Tico revistara o quarto de Rosinha e achara os brincos
de Mimosa dentro do pinico. Depois de recuperar a joia, o feitor pede ao velho
escravo que entregue os brincos à neta e, neste momento, Tico-Tico revela que ela
fugira com o Mascate. Todos ficam admirados e indignados por esta atitude,
principalmente o galã, que há pouco reconhecera sua paixão. Por ser o feitor da
126
fazenda ele é obrigado a procurá-la, entretanto não deseja encontrá-la, tamanha é
sua raiva.
O ato seguinte começa com uma conversa entre Branca, Dona Maria e
Gonçalves sobre os últimos acontecimentos, porém são interrompidos por rumores
de fora da cena, pois Mestiça fora encontrada na beira do rio. Para castigá-la, o feitor
lhe amarra no tronco e ameaça chicoteá-la, porém não tem coragem de realizar
tamanha brutalidade e sai de cena. Na foto abaixo vemos uma ilustração deste
momento, através da ameaça do feitor com seu chicote.
Figura 13 - Feitor e Mestiça Fonte: Acervo pessoal de Walmir dos Santos
Mestiça pede para Tico-Tico levar o dinheiro de volta para o lugar de onde ela
tirou. Em seguida, Dona Maria pede para o feitor cantar uma música e ele entoa uma
canção que retrata seu amor e desilusão pela amada.Os amantes conversam e ela,
ainda amarrada no tronco, pede perdão a Luiz, porém ele está muito ressentido e
não aceita ouvi-la. Ao sair de cena o Mascate aparece e ela pede para ele contar a
verdade ao feitor, mas ele não quer perdê-la e diz que mentirá. Luiz estava
escondido e ouviu toda a conversa, então solta Mestiça do tronco e decide se casar
com ela. Pergunta a Gonçalves o preço da escrava, então ele, na frente de todas as
personagens, diz que lhe dará. Tinoco, entretanto, contesta, alegando que vai se
casar com Mimosa e por isso tem direito à metade dos escravos da fazenda, mas
que só deseja ficar com Mestiça.
127
Pai João confessa que a escrava é sobrinha de Dona Maria e pede a todos
que a deixem ser feliz. Gonçalves então é obrigado a revelar que a moça era filha de
seu irmão e, por isso, alforriada desde pequena. Em seguida pergunta o que ela
deseja de presente, e Mestiça pede para ficar com Tico-Tico. Ele, desbocado, de
acordo com o seu tipo, pergunta se pode pedir um presente também, e diz que quer
comprar Rosinha. Ao final deste diálogo, e da peça, as quatro personagens deixam a
fazenda: Mestiça acompanhada do feitor e Tico-Tico montado a cavalo em Rosinha.
A versão, utilizada para análise, tem sete atos e termina com a saída dos
casais, porém a escrita por Agenor tem mais três, totalizando dez atos. O final da
peça encenada pelo Circo Nerino era mais elaborado, através da realização do
casamento entre Mestiça e o feitor com todas as personagens em cena. Até mesmo
Tico-Tico ganhava, neste momento, um grande destaque, a partir do figurino
proposto pelo ensaiador. Como podemos observar no trecho que segue:
Só a Mestiça que nós não tínhamos a primeira parte, porque eram dez atos.(...) A Mestiça terminava ali no casamento. A última cena era o casamento e ficam ali, o Roger, a Mestiça vestida de noiva, o Tico-Tico e o pessoal, os escravos, ficavam tudo ali em volta. Agora, para você ver, o circo acabou faz cinquenta anos, para mim já é um pouco distante. (risos) A memória. A memória está longe. (...) O Tico-Tico tinha muitas cenas bem agradáveis, bem dinâmicas. Por exemplo, no final do Tico-Tico, a festa, o casamento. Porque tinha o casamento do feitor com a Mestiça. Ele aparecia de fraque, cartola, era uma encenação assim que era orientação do próprio autor. Ela de noiva, o feitor de noivo e o Tico-Tico era como se fosse o... Como que chama? Como se fosse o pajem, de cartola, de casaca, sapato branco. (Entrevista realizada com Walmir dos Santos em 04/02/2015)
5.2 - Escravos e senhores
Esta peça tem como tema a escravidão no Brasil, a partir da ótica
convencional, dos senhores, porém apresenta uma posição a favor dos escravos,
revelando a condição subalterna, de castigos e maus tratos, a que estavam sujeitos.
Busca despertar um olhar de compaixão e gerar uma identificação que nos faz
repensar a relação entre as diferentes classes sociais e raciais, em um momento
posterior à abolição da escravatura. Mesmo sem haver mais o tipo de relação,
128
senhor-escravo, narrada na peça, em 1944, momento de criação do romance por
Gilda de Abreu, havia um grande preconceito racial no Brasil. Principalmente devido
ao fato de os negros, geralmente, pertencerem a uma classe social mais
desfavorecida, por conta da inadequada incorporação desses indivíduos na
sociedade após abolição.
O censo de 1950 permite algumas comparações entre as condições de vida e
de trabalho de negros e brancos da população brasileira. Enquanto os primeiros
dificilmente integravam a classe patronal (4 empregadores para mil empregados
negros), os brancos eram os dominantes nesta área. Dos 4 milhões de negros
maiores de dez anos, apenas 20 mil estavam empregados. Os brancos, além de
deterem grande parte do trabalho assalariado, também possuíam a maioria das
propriedades (86 mil, na época), sendo muitos deles imigrantes vindos ao Brasil
algumas décadas antes do censo em questão.17
Nesta época, os movimentos sociais negros progressivamente se articulavam
nos grandes centros visando melhorar esta conjuntura. Um marco é a fundação, na
cidade de São Paulo, em Dezembro de 1954, da Associação Cultural do Negro
(ACN). Percebemos, dessa forma, uma preocupação em minimizar as discrepâncias
culturais e sociais, visando criar condições igualitárias para todos os brasileiros, além
de lutar contra o preconceito racial, marcante neste período.
Conforme aponta Miriam Garcia Mendes na sua pesquisa que resultou no livro
A personagem negra no teatro brasileiro, entre 1838 e 1888, no século XIX, com o
surgimento de uma vida teatral urbana mais ampla e elitista, o negro, que tinha
participação no teatro popular, passou a ter um lugar limitado na cena brasileira
oficial. No século anterior, era comum atores negros se apresentarem nas casas de
espetáculos, geralmente pintando o rosto de branco. Nesta época havia muito
preconceito com a profissão de ator, julgada desprezível pelas camadas sociais
superiores. Com a vinda da família real portuguesa para o Brasil, companhias
estrangeiras foram ganhando espaço e o ofício do artista cênico mudou de
configuração. De maneira que possibilitou o surgimento no século XIX de um ator
como João Caetano, interessado em “fundar um teatro nacional”.
17
Dados tirados do livro O povo brasileiro de Darcy Ribeiro,p. 231.
129
Neste momento a participação do negro nos palcos dos edifícios teatrais
diminui consideravelmente, lhe restando majoritariamente os tipos que integram a
dramaturgia da época e os espaços mais populares de representação. Os tipos que
apareciam em algumas peças teatrais da época reproduziam os estereótipos da
sociedade escravista, sob o olhar dessa elite branca do período. As histórias mais
otimistas para este grupo eram os dramas abolicionistas e/ou realistas, que
defendiam sua liberdade numa época de transformações sociais. No final do século
XIX e começo do XX, principalmente no Rio de Janeiro, eram encenadas, nos
edifícios teatrais, as comédias de costumes cujo enredo gira em torno de
personagens, geralmente pertencentes a uma classe social mais abastada ou
mediana, que conversam e convivem dentro de um ambiente privado, como uma
sala de estar. Os tipos sociais recorrentes desfilavam e se relacionavam sob o julgo
do público, ávido em acompanhar suas peripécias.
E a hábil carpintaria teatral dos dramaturgos, sem muito esforço, como se trabalhassem receitas conhecidas, produzia peças que causavam um sucesso garantido. Pois, no fundo, o que elas faziam era exaltar os valores da classe média, pequeno-burguesa, então reivindicando seus direitos também no cenário político social brasileira, através dos movimentos armados do Tenentismo, cujo lema era Representação e Justiça... mas nada de transformações sociais... Como textos dramáticos, as peças eram fracas e careciam de valor artístico, coisa sensível a uma simples leitura. Mas funcionavam no palco e o sucesso que faziam possibilitou, pela primeira vez, a autores nacionais viverem só de escrever para o teatro. Além disso, procuraram criar uma linguagem de palco brasileiro, expressiva e coloquial, já apelando para a gíria e mistura de pronomes, quando necessário; inovação que seria largamente aproveitada no futuro. (MENDES, 1993: 21)
Embora seja altamente discutível a afirmação de Mendes de que as peças “eram fracas e careciam de valor artístico”, a própria autora destaca os pontos altos
deste tipo de dramaturgia. Eram textos que se completavam com a interpretação dos
atores e valorizavam vários aspectos da encenação, o que causava grande
admiração nos espectadores. A personagem negra, neste contexto, aparecia como
escravo ou empregado, pertencente a uma classe social inferior que costumava
servir as demais personagens.
Os tipos que encontramos na peça A Mestiça (como o negro velho - Pai João,
o moleque -Tico-Tico, as mulatas - Rosinha e Mestiça) são recorrentes na comédia
130
de costumes e no circo-teatro da época. Esta semelhança dramatúrgica revela a
mistura e diálogo que sempre houve entre o circo e o teatro. Havia, e ainda há, o
intercâmbio incessante entre autores e dramaturgia, e também de artistas,
principalmente atores, que se apresentavam nos dois ambientes.
O espaço ocupado pelo negro no contexto artístico do começo do século XX,
especialmente das peças encenadas nos edifícios teatrais, era de um serviçal,
representado por um empregado, responsável pela parte cômica do texto, a mulata
sensual que desperta a atenção masculina, a criada espevitada, o negro velho que
representava o peso da idade, através de sua sabedoria e conhecimento. Nas peças
variavam os nomes e as características específicas, porém, de maneira geral, eram
esses os estereótipos apresentados, os quais se ligam diretamente à herança da
escravidão, embora no começo do século XX está já tivesse sido abolida há pouco
mais de sessenta anos.
Um exemplo de texto dramatúrgico que aparece um dos tipos citados acima é
a peça O Dote de Artur Azevedo, escrita em 1907. Pai João, como também é
chamado, atua quase como um figurante, responsável por apresentar ao público
momentos de emoção e enternecimento pelas atitudes carinhosas com o seu patrão.
Além de ter o mesmo nome, se assemelha muito com Pai João de A Mestiça, com a
diferença de a primeira peça se tratar de um ex-escravo e a segunda ainda se
passar durante a escravidão. Pai João do circo-teatro tem uma relação próxima com
seu senhor, porém o que irá gerar a emoção no espectador não serão os cuidados e
carinhos dispensados nesta relação, mas sua narrativa de um passado cruel e
desumano, desde sua saída da África até a sua atual situação de escravo. Ele terá
uma participação mais relevante e ativa do que na peça de Artur Azevedo,
protagonizando algumas situações dramáticas relevantes para o desenvolvimento do
enredo. Percebemos, através destes dois exemplos, que este era um tipo recorrente
na literatura brasileira: o velho que, a partir de sua experiência de vida, representa o
passado cruel e desumano de muitos africanos e por isso deflagra os abusos
ocorridos durante a escravidão.
Rosinha e Tico-Tico também representam tipos recorrentes na literatura da
época: da empregada encrenqueira e do moleque cômico. Ambos exercem uma
participação relevante para a obra, complicando-a e articulando determinadas
situações cênicas, sobretudo porque nesta peça o principal pano de fundo para a
131
narrativa serão os escravos. Em relação à Tico-Tico mais a frente detalharemos as
cenas que participa e comentaremos sobre a construção de sua figura.
Mestiça também desempenha um tipo comum da literatura: a mulata sensual
e decidida que desperta a atenção e admiração masculina. Benvinda de A Capital
Federal de Artur Azevedoe Felisberta de Direito por linhas tortas de França Júnior
são dois exemplos deste tipo recorrente no teatro brasileiro. Elas ilustram uma
maneira de olhar para a mulher negra, jovem e bonita, valorizando seus atributos
sexuais e sua exuberância corporal. Benvinda é um tipo social mais esmiuçado do
que Felisberta por apresentar uma complexidade maior, ao buscar uma
independência e liberdade que, mesmo após de abolida a escravidão, ainda não
havia sido conquistada pela maioria. Dessa forma, ela desempenha um tipo que se
diferencia da subordinação esperada e apresenta à narrativa questões sociais
relevantes do negro na sociedade. Assim como Mestiça que, apesar de ser
exaustivamente galanteada por todos, também demonstra certa autonomia e muita
esperteza ao lidar com os homens que a cercam. É uma escrava cujas decisões e
escolhas são marcantes, por ser uma mulher de personalidade que arma artimanhas
para conseguir o que deseja, mesmo ainda subordinada a Gonçalves.
Esta peça lida com a lacuna social referente à relação patrão-escravo,
colocando em questão um assunto tão relevante para o público, como o tratamento
dos brancos para com os negros. Mestiça, personagem central da narrativa, é fruto
da mistura entre o homem branco e a escrava negra, gerando a atraente mulata,
conhecida por despertar a atenção dos homens. Segundo Nubia Hanciau18
, a
mulata é um tipo representativo na literatura brasileira e no teatro, cuja presença
costuma despertar alguns estereótipos relativos à mulher: vista como exótica, bela,
alegre, solidária, dotada de irresistível sensualidade, hábil cozinheira, com vocação
para a música, canto e dança. Através dela, percebemos que a autora do romance
criou um meio termo entre o negro, geralmente alvo de preconceito, e o branco
purista, que nega e encara como negativa qualquer mistura racial, comum em um
país como o Brasil. Darcy Ribeiro comenta em seu livro O povo brasileiro sobre a
mistura social existente, que apresenta um contraste intrigante:
18Em um artigo publicado In Cadernos Literários, vol. 7, 2002. Pela Universidade Federal do
Rio Grande.
132
Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os suplicou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto da nossa fúria. (RIBEIRO, 1995: 120)
Este trecho integra o final do subcapítulo intitulado Os afro-brasileiros,em que
o autor aborda as questões desde a chegada dos negros no país até sua adaptação
e aculturação. Em nossa sociedade há uma mistura contrastante social, racial e
ideológica de povos tão díspares unidos na fundação do país com objetivos,
especialmente, trabalhistas. A peça tematiza esta fusão, através da personagem
Mestiça, e apresenta algumas nuances desta mistura cultural, demonstrando grande
destaque para os tipos de trabalho e posições sociais.
No meio do século XVI, para incrementar a produção açucareira, os negros
eram trazidos da África como escravos e, apesar de não participarem da construção
cultural dominante, encontraram brechas e a influenciaram de forma impactante. Na
África, havia muitos dialetos e os escravos que aqui chegavam pertenciam a tribos
diferentes, muitas vezes inimigas, e os que eram da mesma origem ficavam
separados como medida preventiva de futuras organizações rebeldes. Ao chegarem
às fazendas de cana, eram destinados aos trabalhos braçais mais pesados, tanto
assim que sua expectativa de vida ativa era de sete a dez anos.
A diversidade linguística e cultural dos contingentes negros introduzidos no Brasil, somada a essas hostilidades recíprocas que eles traziam da África e à política de evitar a concentração de escravos oriundos de uma mesma etnia, nas mesmas propriedades, e até nos mesmos navios negreiros, impediu a formação de núcleos solidários que retivessem o patrimônio cultural africano. (RIBEIRO, 1995: 115)
Os ideais dos senhores e aquilo que fosse compatível aos seus interesses era
a predominância, apesar disso, a identidade e valores dos negros sobreviveu como
uma cultura de resistência e, inclusive, de revolta. Darcy Ribeiro comenta que os
negros e índios conseguiram permanecer humanos dentro de um processo de
desfazimento de si e de autoconstrução, para absorver esta nova cultura e se
133
integrar a esta verticalizada sociedade. Este processo gerou uma nova cultura, que
chamamos de brasileira. Muitos escravos conseguiam se incorporar de alguma
forma a nova sociedade, entretanto havia os que preferiam a morte ou a fuga. O
suicídio era muito frequente e a fuga era tão temerária porque quase sempre
resultava mortal.
A peça em questão aborda este aspecto, através da fuga da Mestiça com o
Mascate, porém o castigo recebido está muito aquém da realidade, provavelmente
em decorrência do amor que o feitor já demonstrara sentir. As penas para a
desobediência e fuga variavam entre “mutilações de dedos, do furo de seios, de
queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados criteriosamente, ou dos
açoites no pelourinho, sob trezentas chicotadas de uma vez, para matar, ou
cinquenta chicotadas diárias, para sobreviver.” (RIBEIRO, 1995: 120). Todos estes
castigos deixaram marcas profundas neste povo e em nossa sociedade, com as
quais a peça lida de alguma forma.
O trabalho escravo é apresentado através da perspectiva dos senhores,
principalmente porque nenhuma cena se passa na lavoura ou senzala. As fotos
anteriores eram ambientadas na lavoura, entretanto este não era o espaço de
encenação da peça circense no Circo Nerino. É interessante que, apesar de discutir
alguns pontos da condição do escravo, todas as cenas se passam na casa grande,
dessa forma, terão destaque os negros mais vinculados a este ambiente. Em apenas
uma cena há menção aos que trabalham na lavoura, quando Maria e Mimosa
reclamam de ouvir a canção que entoavam durante o trabalho. Neste momento,
Amâncio é convocado a reprimir os escravos, chama-os de cachorrada e lhes bate
com o chicote. Esta atitude é ainda mais terrível, porque ele age contra seu grupo e
semelhantes sem nenhuma piedade. Os escravos tinham que trabalhar
exaustivamente, como é descrito por Pai João em um diálogo com o feitor, além de
serem coibidos de se expressar através de uma canção, que exteriorizava a revolta
que sentiam por sua condição e exploração.
Mestiça também é tolhida quando, ao dançar durante a festa de Gonçalves,
Mimosa arranca os seus brincos e lhe chama de ladra. Somente nesta ocasião, uma
vez ao ano, conforme sublinhado por Pai João em uma conversa com Tico-Tico, os
escravos podem se divertir e expressar um pouco sua cultura. Entretanto a escrava
desperta a admiração e o interesse masculino, do mascate, de Tinoco (que renuncia
134
a fortuna do dote para ter a Mestiça) e principalmente do feitor. Por isso Mimosa,
enciumada, interrompe bruscamente a exibição e lhe constrange sobremaneira,
acarretando, ao final deste ato, a prisão inocente de Pai João. A canção e a dança
são expressões comuns da retalhada cultura africana, porém são apontadas apenas
nestes dois momentos.
Mesmo que exista esta tônica na temática das narrativas, tanto do circo
quanto do romance, não havia o caráter de engajamento político que preconiza uma
mudança social. O circo, através de suas dramaturgias, questiona alguns pontos da
ordem vigente, porém sem desestabilizá-la totalmente, por não falar diretamente das
questões sociais mais delicadas. A história tematiza (dentro de um contexto de
escravidão, portanto remoto em relação ao tempo da encenação) a situação
complexa do negro no Brasil, em um momento social em que ainda havia muito
preconceito para com este grupo.
Nessa época existia muito preconceito. Hoje até ainda tem pessoas preconceituosas, também conta, né? Mas no índice melhor, porque já houve muito debate sobre isso condenando esse tipo de preconceito. Aliás, hoje estão condenando qualquer tipo de preconceito. Mas o preto era um preconceito muito acentuado, né? Moira- E você acha que a peça discutia isso de alguma maneira? Walmir- Não, acredito que não. Não, porque a Mestiça era filha de uma escrava com um senhor. E ela era muito benquista no meio da família, né? (Entrevista realizada com Walmir dos Santos em 04/02/2015)
Para Walmir dos Santos, e talvez para o público, o enfoque maior estava na
personagem Mestiça, sua relação com o feitor e com os familiares, por isso não via a
preponderância da discussão citada acima. Inclusive a Mestiça era representada,
nesta peça, com a cor branca da atriz, a qual não utilizava qualquer pintura como os
demais escravos. Isto a destacava e reforçava o enfoque principal da narrativa.
Entretanto, se analisarmos a história como um todo perceberemos que a temática
dos escravos está presente, mesmo que não proponha nenhuma mudança social
significativa.
135
5.3 – A recriação do romance para o palco
Apropriar e recriar filmes, livros, radionovelas, músicas, mais populares e
transformá-los em peças teatrais era um procedimento comum nos circos brasileiros.
A mudança ocasiona algumas modificações necessárias à forma artística, como, no
caso analisado, do romance para a dramaturgia. A primeira cena da peça é bastante
ilustrativa para comentar as diferenças entre as formas artísticas e pode nos ajudar a
compreender um pouco o trabalho do dramaturgo Joaquim Silva sobre o romance de
Gilda de Abreu. A peça se inicia com a seguinte cena:
MARIA e MIMOSA bordando, entra ROSINHA ROSINHA-entrando com terrina de mingau - Nhanhá Maria, aqui tá a canjiquinha. Tá gostosa que inté faiz água na boca da gente. MARIA- Espera! Como é que você sabe que está gostosa? ROSINHA- Uai. Eu ponhei o dedo drento e porvei. MARIA-empurrando-a - Negrinha descarada... ROSINHA-chorando - Eu... não ponhei o dedo drento não! Eu só lambi a beradinha. MARIA- Negrinha sem vergonha... você vai tomar uma surra de chicote, sua coisa à toa. Suma daqui. Rosinha sai Esta negrinha está ficando insuportável. MIMOSA- A culpa é sua mesmo, mamãe... a senhora lhe dá certas liberdades. (MAVRUDIS, 2011: 10)
Esta cena, no romance, ocorre após a apresentação de Luiz, de seu pai e da
situação em que se encontram: inclinado a administrar as terras paternas, o rapaz é
indicado a se tornar o feitor de um amigo da família, como forma de aprendizado.
Luiz é a personagem escolhida pela autora para narrar o romance. É interessante
observar, nesta passagem, o recurso utilizado por Gilda de Abreu para explicitar o
caráter das personagens, através da descrição das vozes. Nessa passagem o feitor
acabou de chegar à fazenda e observa as personagens de longe, por isso, a voz
será responsável por revelar as características de cada uma. Antes da fala de Rosinha, por exemplo: “A voz da negrinha, chegou clara.” (ABREU, 1966: 54) e
Maria: “A voz da dona da casa fez-se ouvir... voz áspera, voz de quem está
acostumada a mandar e ser obedecida. Voz que lembrava o estalar do chicote...” (ABREU, 1966: 54).
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No teatro, as características descritas pelas vozes ficam a cargo do ator,
através da entonação, características físicas e composição da personagem. A
interpretação pode ser diferente da narração de Gilda, porém dialogarão com as
características gerais daquela figura. As falas de cada uma, entretanto, mantêm-se
de uma forma artística para outra, a mudança maior ocorre na maneira de narrar as
situações.
Depois de afirmar ter provado a canjica, Rosinha é descrita no romance como “(...) apavorada procurava remedar sem conseguir.” (ABREU, 1966: 55). A indicação
do dramaturgo para esta descrição é mais precisa e objetiva: “falar de maneira
chorosa”. Ainda na peça, Dona Maria ameaça dar uma surra na menina e a manda
sair de cena. No romance, a autora cria uma situação mais impactante, para a qual a
concretização cênica seria trabalhosa, como podemos observar:
E fora de si, D. Maria empurrou a pretinha, tigela e tudo com tanta força que, caindo no chão, a canjiquinha deu um banho em Rosinha que, de preta que era, ficou toda amarela! Mas mesmo assim, levantou-se rápida e desapareceu correndo levando a tigela e pratos quebrados para dentro, enquanto D. Maria continuava a descompostura. (ABREU, 1966: 55)
Encenar esta descrição não acrescentaria novos dados à trama, daria
trabalho aos atores (no sentido de quebrar a louça, sujar a atriz e o chão), e atrasaria
um pouco a dinâmica cênica. É uma descrição rica para o estilo literário, porém
pouco interessante para o circo. Através de uma fala simples, tal como “suma daqui”
o dramaturgo resolve a saída da escrava, causando um efeito similar com a narração
acima, porém menos constrangedor.
Em seguida Tico-Tico passa com uma cesta de ovos, e no romance afirma
que ele vem despreocupado. No teatro, esta indicação se transforma em ação, com
a indicação de que ele deve vir assoviando. Quando Maria lhe chama, sua reação é
descrita no romance da seguinte forma: “O moleque estremeceu. Toda a alegria
desapareceu. E foi com medo estampado na cara redonda que se aproximou das
donas da casa. Maria encarou-o com desprezo (...).” (ABREU, 1966: 55). Tico-Tico
reage desta forma pois acabou de comer alguns ovos sem autorização e é indagado
sobre o número de ovos recolhidos.
137
Na peça, não há qualquer descrição de pavor como a citada acima, mas o
ator, dentro do contexto vivenciado pela personagem, poderá agir de maneira
análoga ao romance. O contraste entre a sua entrada distraída e a reação diante da
patroa chega a ser cômica e compõe os principais traços desta personagem. O fato
de ser interpretado, geralmente, pelos palhaços da primeira parte do espetáculo
circense, pode favorecer a interpretação exagerada e figurativa dos sentimentos e
impressões, tal como descritos acima pelo romance.
Outra diferença importante entre as formas artísticas aparece, por exemplo,
na descrição de Gonçalves, que entra em cena para defender Tico-Tico. O romance,
por ser um meio literário propício a transmitir pensamentos e emoções de maneira
mais íntima, nos introduz Gonçalves de forma particular. O leitor é convocado a
participar da cena através dos pormenores, dos interesses secretos das
personagens, geralmente ressaltados pelos autores. Nesse sentido, é interessante
destacar a forma como Gilda de Abreu apresenta esta personagem:
Uma voz máscula e calma cortou o ar como uma chicotada. Rosinha estocou assustada. Nos olhos de Tico-Tico acendeu-se a chama da esperança e correndo escondeu-se atrás de um homem já grisalho, que acaba de chegar e, como eu, apreciara a cena sem ser visto. Adivinhava-se no novo personagem o dono da casa, Sr. Gonçalves. Tudo nele indicava bondade, indulgência, serenidade. (ABREU, 1966: 56)
Luiz acabou de chegar à fazenda e resolve observar as personagens de longe
antes de se apresentar. Suas primeiras impressões são utilizadas pela autora para
descrever a história de maneira intimista, sendo esta uma característica deste estilo
literário. Uma visão resumida e simplificada das personagens, feita por alguém
recém-chegado – mesma posição do leitor, traça tipos reconhecidos socialmente e
bem delineados por Gilda de Abreu. Assim como o trabalho de construção da
personagem feita pelo ator circense também nos deixa claro, desde sua primeira
aparição, de quem se trata (vilão, heroína, cômico). As qualidades como bondade,
indulgência e serenidade, descritas para Gonçalves pela autora do romance, se
confirmarão, no teatro, desde o primeiro momento e com a evolução da história.
Através do figurino sóbrio, a voz do ator e sua atitude ao defender Tico-Tico, o
público entenderá qual o tipo representado por Gonçalves.
138
O cenário no circo-teatro também deixa claro, desde o começo, de qual
espaço vê-se em cena, principalmente através do telão pintado, um elemento
estático. No caso da peça em questão, o ambiente sugerido pelo autor era o mesmo
em todos os atos: um pátio de fazenda. O cenário do Circo Nerino para esta
montagem também se mantinha o mesmo no decorrer da peça, descrito por Walmir
dos Santos como:
O cenário... Por exemplo a Mestiça era um cenário único, porque não dava pra mudar. Porque era feito na casa de fazenda, então aparecia uma entrada. Um degrau para a entrada da casa. E uma entrada lateral, tinha uma árvore. Na frente, tinha um tronco. E as cenas eram passadas todas ali. Era uma cena única. Moira- E tinha telão pintado atrás? Walmir- Tinha, era um canavial. (...) Na Mestiça todos os dez atos a cena era aquela. Não tinha como mudar, porque era uma casa de fazenda, era montada. Tinha aquela parte da varanda. Um palco, depois tinha uma parte mais alta, com aquela balaustrada da varanda. Era muito interessante, muito bem feito. (Entrevista realizada com Walmir dos Santos em 04/02/2015)
Percebemos que este cenário apresenta dois ambientes concomitantes: o da
casa de fazenda e um externo, que poderia ser o pátio, sugerido por Joaquim Silva.
Dessa forma, é possível trabalhar todas as situações cênicas, desde a conversa
íntima dos senhores, até a cena final com a Mestiça no tronco. O telão pintado serve
para ambientar e contextualizar melhor a narrativa, ampliava o ambiente através do
canavial, demonstrando se tratar de uma grande fazenda e não uma reduzida sala
de estar. Conforme podemos ter uma ideia na foto de número quatorze, na qual
aparecem todas as personagens da trama, com Mestiça ajoelhada no centro.
139
Figura 14 – Encenação da peça A Mestiça.
Fonte: AVANZI e TAMAOKI, 2004. 209.
A busca do dramaturgo circense será sempre em transformar estados e
descrições em ações, além de permitir um espaço de criação para o ator, portanto
não esmiuçará tanto a leitura sobre a cena com rubricas, por exemplo. Seu trabalho
é elencar os principais acontecimentos e recriá-los dentro de uma lógica de
mobilidade e dinâmica, necessários à cena teatral circense. O romance literário é
utilizado pelo circo-teatro com bastante fidelidade em relação à trama e à
caracterização das personagens, e, por haver uma grande correspondência,
possibilitou uma relação duradoura entre estas duas formas artísticas.
5.4 – Análise dos momentos cômicos
Tico-Tico é a única personagem cômica da peça, responsável por
proporcionar características e momentos de descontração à trama. É um jovem
escravo negro da fazenda de Gonçalves, muito amigo de Mestiça e de Pai João, que
gosta de conversar e se relaciona muito bem com quase todas as personagens. No
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Circo Nerino foi encenado por Walmir dos Santos que descreve o figurino utilizado
da seguinte maneira:
Quando eu fazia o Tico-Tico eu me pintava daqui para cima. Porque aqui eu usava camisa fechada, não é? E o rosto todo pintado. E a peruca era uma peruca de neguinho mesmo. Na mão eu usava luva, a camisa aqui. E a calça, de um lado era curto, de outro lado mais comprido. E eu usava meias pretas. E uma sandália. (Entrevista realizada com Walmir dos Santos em 04/02/2015)
Esta caracterização surgiu a partir da necessidade dos circos em representar
as personagens negras, principalmente por não ter na companhia atores negros
suficientes para cada papel. O Circo Nerino, apesar de ter muitos artistas no elenco,
em apenas um breve momento de sua história um ator negro trabalhou na
companhia e representou estas personagens. Dessa forma, foi necessário criar a
caracterização, descrita acima, que se assemelhava muito de um circo para outro, e
resolvia as dificuldades da representação de algumas personagens. Até mesmo o
precursor do circo-teatro brasileiro, Benjamin de Oliveira, que era negro, quando
representava personagens brancas pintava o rosto de branco e usava peruca, para
não mostrar o seu tom de pele. Nos textos dramáticos desta época a cor da pele era
bem relevante, pois ainda estávamos próximos da abolição da escravidão e, portanto,
havia muitas questões sociais relacionadas a isso.
Moira- Porque vocês faziam esta máscara desta maneira? Walmir- Porque era a maneira mais fácil para você pintar o rosto sem problema. Porque a gente queimava a cortiça. Primeiro passava cerveja preta para poder passar o pó da cortiça. Para ficar uma maquiagem mais perfeita, né? Moira- E se tivesse algum ator negro vocês fariam da mesma maneira? Walmir- Não, não. Se tivesse um ator negro ele seria normal, né? Não precisaria a pintura. Moira- O Circo Nerino teve algum ator negro? Walmir- Teve. Nós tínhamos um ator que era de cor, às vezes ele fazia até o Pai João, na peça ele fazia o papel de preto mesmo. Não usava a máscara. Usava apenas uma peruca de cabelo de negro mesmo, né? Ele mantinha a pele normal, sem nenhuma maquiagem. Às vezes fazia um papel de mais idade e usava assim alguma coisa de barba grisalha, alguma coisa muito superficial.
Através deste comentário de Walmir dos Santos, percebemos o quanto o circo
buscava soluções práticas para superar os problemas que surgiam na
141
encenação das peças escolhidas. Atualmente a companhia Os Fofos
Encenam,dirigida por Fernando Neves, faz um trabalho de resgate do circo-teatro,
através de textos antigos e da linguagem da encenação. Nesta companhia, as
máscaras são realizadas visando dialogar com a tradição mencionada. Dessa forma,
muitos elementos que antes eram uma necessidade prática, tornaram-se uma
convenção que visa estabelecer um diálogo com essa tradição teatral. No entanto,
em 2015, a comunidade negra se desagradou a partir de uma foto da personagem
cômica, uma empregada negra da peça A Mulher do Trem, e se manifestou através
das redes sociais, alegando se tratar de um black-face19
preconceituoso, o que
acarretou a organização de um debate sobre o tema e grande repercussão no meio
teatral. A companhia decidiu retirar esta máscara de cena, o que ilustra a
característica já mencionada neste trabalho de diálogo incessante do circo (no caso
citado do grupo teatral que se inspira nesta tradição) com seu público.
Na peça A Mestiça, Tico-Tico é caracterizado como descrito acima, e
desempenha um papel de extrema relevância para o encaminhamento dramatúrgico,
além de apresentar o cômico que suaviza as tensões da história. Ele revela uma
simplicidade que cativa demasiadamente os espectadores, principalmente pela
ingenuidade combinada com a bondade de sua figura. Em diversos momentos, suas
falas e ações são tolas, revelando uma importante característica, que colabora com
o efeito cômico pretendido em algumas cenas. Percebemos também um grande
destaque desta personagem na trama, por ser quem dinamiza e resolve algumas
situações dramáticas. Principalmente pelo fato de estar em cena constantemente e
espiar as conversas alheias, atitude esta que, em muitas ocasiões, resolverá as
problemáticas da narrativa.
O moleque desempenha um tipo recorrente na literatura da época: o negro
jovem, muito esperto e articulador de algumas situações que favorecem o
andamento da história. Geralmente se trata de figuras cômicas que, através de um
jeito brincalhão e despretensioso, possibilitam a criação de circunstâncias inusitadas
para as demais personagens. Outro exemplo da atuação deste tipo encontramos em
O Demônio Familiar de José de Alencar com a personagem de Pedro. O escravo
19 O blackface foi um movimento teatral norte americano do século XIX, em que atores
brancos pintavam o rosto de preto e representavam o negro, geralmente de maneira estereotipada e depreciativa.
142
cria inúmeras peripécias envolvendo seus senhores, com a intenção de se tornar o
cocheiro de algum deles e, portanto, conquistar uma posição social mais elevada.
Neste caso, ele arma, e depois de descoberto é obrigado a desarmar, as confusões
relacionadas aos casamentos dos irmãos Eduardo e Carlotinha, sempre de maneira
cômica e inteligente. Tico-Tico também é o escravo jovem responsável pela
comicidade da peça, porém com a diferença de apresentar uma intenção de resolver
os conflitos e ajudar seus amigos, principalmente Mestiça. Entretanto sua dinâmica
cênica é bastante semelhante a Pedro, pois participa ativamente das situações ao
longo de toda a narrativa, criando momentos cômicos e de descontração.
Tico-Tico protagoniza, junto com alguns outros escravos, a temática sobre o
tratamento desrespeitoso que esta classe recebia de seus patrões. A diferença
essencial entre ele e os demais é apresentar uma perspectiva cômica diante das
situações dramáticas e de injustiça social. É responsável por descontrair os
momentos tensos de castigo e opressão e gerar uma leveza importante para a trama,
majoritariamente dramática. A primeira cena da peça é um castigo imposto à
Rosinha pelas vilãs, Maria e Mimosa, por ter experimentado a canjica que serviria às
duas. Em seguida Tico-Tico atravessa a cena com uma cesta de ovos e também
recebe uma repreensão:
MARIA-chamando - Tico-Tico! TICO-TICO- Pronto, Nhanhá! MARIA- Quantos ovos você recolheu hoje, moleque? Rosinha entra TICO-TICO- Eu só recoí duas dúzia, Nhanhá. As galinha parece que fizero greve e dexaro de botá ovo! MARIA- É mentira, Tico-Tico. Você está mentindo. TICO-TICO- Eu ju... ju... juro, Nhanhá, eu que... quero que... que... MARIA- Não jure falso, negrinho ordinário. Todas as vezes que você mente, gagueja. TICO-TICO- Tinha muitos ovos quebrado, eu acho que as galinha quebraro os ovo. ROSINHA- Mentira, Nhanhá... ele quebrô os ovo mais foi drento da boca. Toque... TICO-TICO- Tu não porva, negrinha faladeira, que fui eu. ROSINHA- Porvo sim! Tu tá ca boca cheia de ovo! MARIA- Rosinha, vai buscar a palmatória. (MAVRUDIS, 2011: 10 e 11)
Nesta cena, o jovem escravo apresenta duas falas cômicas: a primeira ao
justificar que as galinhas fizeram greve e a segunda dizendo que as mesmas
143
quebraram os ovos. No primeiro caso, o engraçado se deve ao atribuir
características humanas à galinha, pois de acordo com o pensamento bergsoniano
sobre o riso, os animais serão risíveis na medida em que surpreendemos neles
atitudes ou expressões humanas. Tico-Tico inventa uma desculpa cômica, ao dizer
que as galinhas fizeram greve (atitude estritamente humana), para justificar o porquê
de ele não ter recolhido ovos suficientes. Esta imagem é engraçada e inusitada,
devido ao absurdo que nela contém, e revela uma desculpa tola e ingênua, que
dificilmente seria aceita pela patroa.
D. Maria pressiona-o, então ele cria mais ideias descabidas e termina por
dizer que as galinhas quebraram os ovos. Esta é outra frase absurda, pois nenhuma
galinha despedaçaria seus próprios ovos desta maneira. Estas duas falas, ditas em
seguida, evidenciam que ele está mentindo, e o mais interessante é observar o tipo
de raciocínio descabido usado pela personagem. Por isso, receberá a punição da
palmatória, porém Gonçalves impede que seja aplicado o castigo, e diz que ele
mesmo quebrara os ovos. A atitude do fazendeiro apresenta de antemão seu caráter,
bondoso com seus escravos, como ocorre com as falas e ações da maioria das
personagens neste estilo dramatúrgico. A situação cênica estabelece e revela a
polaridade existente na casa: mãe e filha destratam os trabalhadores da fazenda, em
contraponto com o pai, extremamente bondoso e zeloso para com eles.
O próximo diálogo cômico protagonizado por Tico-Tico será com Gonçalves, e
ocorre um pouco mais à frente. Apesar de breve, serve para ampliar a compreensão
destas duas personagens. Na situação, Rosinha xinga o escravo de filho de pai
incógnito, porém como ele não entende o significado consulta o patrão. Gonçalves
lhe pergunta se ele conhecera seu pai, e Tico-Tico, de acordo com a inocência de
sua figura, responde que seu pai morrera seis anos antes de ele nascer. É muito
interessante esta passagem por dois motivos: primeiro porque demonstra a liberdade
e cumplicidade que os escravos, principalmente os mais próximos, tinham com
Gonçalves, a ponto de realizar este tipo de conversa. E também devido à comicidade
expressa na ingenuidade do moleque em afirmar que seu pai morrera anos antes de
sua concepção. Percebemos se tratar de uma personagem sem muita malícia, que
apresenta um comportamento pueril, tamanha é sua inocência. Estas qualidades
apresentam um limiar muito tênue com a tolice, tamanha é a simplicidade
144
e ignorância de seus raciocínios. Grande parte da construção cômica desta figura se
dará por estes motivos.
Após esta conversa, Pai João entra em cena sozinho e se apresenta ao
público. Pede a Deus que o leve embora deste mundo, pois está cansado de sofrer.
Ele é a personagem representativa dos sofrimentos vivenciados pelos escravos
desde quando deixaram sua terra natal, no continente africano. Demonstra a maior
carga dramática da peça, gera empatia e identificação, por ser uma personagem boa
e por participar do núcleo positivo da trama. Tico-Tico interrompe este momento e
pergunta se ele está falando sozinho. Ao saber que está conversando com Deus,
pede para Pai João rezar pelo sumiço da palmatória que sempre o castiga. É
interessante esta mudança de perspectiva de uma personagem para a outra, pois
enquanto o primeiro deseja algo tão sério como partir deste mundo, o segundo pede
algo mais ligado ao cotidiano, através do desaparecimento de um objeto de castigo.
Ambos representam o sofrimento vivido por esta classe social, porém de maneiras
diferentes: um mais dramático e sério, e o outro descontraído. Podemos dizer que a
fala de Tico-Tico chega a ser cômica de tão contrastante com o pedido anterior, de
morte.
A conversa continua e o moleque comenta sobre a festa do aniversário de
Gonçalves, na qual os escravos também podem se divertir e participar:
PAI JOÃO- Uai, vai tê festa aqui na casa grande? TICO-TICO- Entonce vancê não se alembra que no dia dos ano do Nhô
Gonçarve tem festa, e que os cumpade e as cumade brinca tudo aqui na
sala? PAI JOÃO- E no terrero brinca os escravo. Mais tomém, coitados, uma veiz
por ano é que eles pode adiverti um poco! TICO-TICO- Xiii... quando a Mestiça começá a se espaiá lá no terrêro, vai
sê um Deus nos acuda! PAI JOÃO- E a Nhanhá Mimosa tá contente ca festa? TICO-TICO- Se tá? Ela já encomendô inté um vestido novo pro Mascate!
Ela tá cu a esperança de arranjá um norvo! PAI JOÃO- Cala a boca, muleque do diabo. Se alguém ovisse o que ocê
disse... TICO-TICO- Ué... e não é verdade, Pai João? PAI JOÃO- É, Tico-Tico, mas fica sabendo que a gente num pode falá todas
as verdade. TICO-TICO- Ué, enconte cumo é que a gente faiz? Se a gente diz a
verdade, apanha, se a gente diz mentira, apanha tombém. Cumo é que faiz? PAI JOÃO- É calá a boca.
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TICO-TICO- Mais se eu num falá, eu fico cua língua dromente! (MAVRUDIS, 2011: 17 e 18)
Percebemos novamente a perspectiva dramática de Pai João, ao acentuar
que apenas uma vez no ano os escravos podem se divertir um pouco. Esta é uma
característica desta personagem ao longo de toda a trama e será importante para
evidenciar os maus-tratos e desrespeitos sofridos pelos escravos brasileiros. Por
isso, podemos dizer que Pai João se encontra entre as personagens principais da
narrativa, pois sua participação compõe, de maneira rica e diversa, a temática sobre
a relação dos senhores com seus escravos. Além de protagonizar algumas situações
dramáticas importantes e por ser avô da Mestiça.
O trecho cômico desta conversa é a fala descarada de Tico-Tico sobre a
intenção de Mimosa em arranjar um noivo. Naquela época, era muito indelicado se
referir a uma jovem solteira dessa forma, porém a personagem cômica fala sem
pensar ou considerar as regras sociais mais comuns. Esta é uma característica
corriqueira deste tipo, principalmente no contexto melodramático: falar o que todos
estão vendo, mas devido às boas maneiras são impedidos de comentar. Depois de
censurado, o moleque revida dizendo que apanha quando diz mentira e também não
pode dizer todas as verdades, por isso não compreende como deve agir. Demonstra,
dessa maneira, uma desmedida social, comum ao tipo cômico, em que a
inadequação às regras, ou o desconhecimento delas, é uma forma usual de
despertar o riso.
A transgressão desse código não escrito é ao mesmo tempo transgressão de certos ideais coletivos, normas de vida, ou seja, é percebida como defeito, e a descoberta dele, como também nos outros casos, suscita o riso. (PROPP,1992: 60) Ao mesmo tempo, essas normas podem mudar, às vezes, e mudam bem rapidamente. De início, as mudanças devem ser consideradas como transgressões de um comportamento comum e provocam o riso. Esta é a razão pela qual suscitam o riso as modas vistosas e insólitas. (PROPP,1992: 62)
Atualmente, falar de uma moça dessa maneira não seria tão descabido e
cômico quanto na época da encenação, em 1950. Como Propp afirma no fragmento
acima, mudanças ocorrem na sociedade e o que outrora era considerado um tabu
pode ser incorporado aos costumes. Antes disto, porém, qualquer atitude que inflija
146
a norma pode ser vista de maneira cômica. Outro aspecto engraçado do diálogo
destacado acima é a impossibilidade de Tico-Tico se manter quieto, uma vez que
admite seu ímpeto de falar, alegando que ficaria com a língua dormente. Esta é uma
das suas características particular, ser mexeriqueiro e um bom informante, aquele
que está sempre ouvindo as conversas alheias e atento aos acontecimentos. Este
diálogo é interrompido pela entrada do feitor, e o moleque o apresenta a Pai João:
TICO-TICO-Entra Luiz - Aqui tá ele, Pai João. O nosso novo feito - a Luiz - oia moço, eu já tratei do seu cavalo. Dei bastante mio e sortei no pasto. LUIZ- Então toma lá! - dá-lhe uma moeda TICO-TICO- Uma pataca? Virge Nossa Senhora. Tô rico! LUIZ- Com tão pouco? TICO-TICO- Isso é muito dinheiro, moço! Eu vô guardá. LUIZ- Por que você fecha os olhos? TICO-TICO- É pra mim num vê o que tá lá drento. Rosinha disse que prantano dinhero em vespa de São João, brota que nem mio. LUIZ- E foi também Rosinha quem ensinou a você o lugar onde deve ser plantado o dinheiro? TICO-TICO- Sim sinhô. Ela feiz um buraco na terra e disse: “ponha aí o dinheiro que você for ganhando, senão não nasce!” LUIZ- E Rosinha gosta muito de você? TICO-TICO- Quá o que, moço. Ela tem uma reiva danada de mim. LUIZ- Então, Tico-Tico, você foi roubado. TICO-TICO- O sinhô tá brincano, não tá? LUIZ- Olhe lá dentro então. TICO-TICO- Mas se eu oiá não brota. LUIZ- Escuta Tico-Tico, você já viu alguma coisa sem semente brotar? TICO-TICO- O sinhô qué dizê que drento do buraco não tem dinheiro? LUIZ- Quero dizer que a Rosinha roubou o seu dinheiro! TICO-TICOchora - Ela me robô o meu dinheirinho. Cumo é que vai sê, minha Nossa Senhora da Aflição... LUIZ- Mas, o que é isto, Tico-Tico... um homem não chora. TICO-TICO- Nessa hora, eu não sou home! Cumo é que vai sê agora? LUIZ- Para que queria você aquele dinheiro? TICO-TICO- Era pra comprá a minha carta de arforria. LUIZ- Escuta! Não chore mais, se você for um bom rapaz, talvez ganhe a sua carta de alforria! TICO-TICO- O sinhô tá brincano, tá? LUIZ- Não, Tico-Tico, estou falando sério. Agora leve o meu cavalo para a estrebaria, cuide bem dele, porque, do tratamento que você lhe der, dependerá ou não a sua liberdade. - Tico-Tico sai (MAVRUDIS, 2011: 18 a 20)
Novamente as falas e atitudes de Tico-Tico serão engraçadas devido à
discrepância de suas reações, pois é descabido seu comportamento diante de tão
pouco dinheiro. Revela mais uma vez uma grande ingenuidade e ignorância, ao
mesmo tempo em que demonstra um choque de realidade entre a condição do feitor
e dos escravos. Para ele, que nada tem, qualquer moeda pode ser bastante e
147
inclusive comprar sua alforria, esta condição é quase dramática, mas o tratamento
que é dado nesta cena, torna-a cômica. Tico-Tico acredita na ideia descabida de
Rosinha, sobre plantar, sem olhar, e esperar o dinheiro brotar. O fato de ele confiar
nesta história revela uma tolice enorme desta personagem, e compõe os principais
traços cômicos e características de sua figura.
Sua reação diante do fato de ter sido roubado, chorando e se lamentando,
será ainda mais risível em contraponto com a censura de Luiz, alegando que homem
não chora (um valor moral muito comum da época). A resposta de Tico-Tico é ainda
mais engraçada ao dizer que nestas horas não é homem. Este trecho, apesar de
cômico, explicita uma condição dramática: guardar qualquer moeda para comprar a
liberdade, que é um direito humano. Com a saída do moleque, Pai João narra o
drama vivido pelos escravos, desde a saída da África, verticalizando nos aspectos
comoventes, em contraponto com a cena anterior. Por isso, podemos dizer que esta
dupla de escravos desempenha, de maneira oposta, a mesma função na trama, um
através do riso e o outro das lágrimas.
Ao final do primeiro ato, há um diálogo descontraído entre Luiz, Gonçalves,
Maria e Mimosa, que Tico-Tico espia. Mimosa e seus pais desejam o casamento
dela com o feitor e deixam subentendido esta pretensão em diversos momentos da
história. Nesta conversa, ela o chama para nadar no rio da fazenda. Tico-Tico, então,
aparece do seu esconderijo, somente para o público, e diz uma fala que as demais
personagens não ouvem: “Xiii... eles vão tomá banho os dois, peladinho, peladinho...”
(MAVRUDIS, 2011: 27). Esta frase evidencia o interesse da moça no rapaz de
maneira rebaixada, por estar ligada diretamente com as partes corporais, ao
mencionar um banho nu e sugerir uma intenção sexual. É evidente que a proposta
de Mimosa não seria esta, pois os dois não são casados, mas a leitura da
personagem cômica envereda nestes termos e assim consegue o riso franco do
espectador. Os bufões, na época medieval, transferiam ritos elevados ao plano
corporal, sendo este, segundo Bakhtin, um dos princípios típicos da comicidade, tal
como realizado muitas vezes pelos palhaços. Percebemos uma analogia com esta
passagem de Tico-Tico, porém devemos ressaltar que não é somente desonroso
tratar as coisas nestes termos, uma vez que:
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Degradar significa entrar em comunhão com a vida da parte inferior do corpo, a do ventre e dos órgãos genitais, e portanto com atos como o coito, a concepção, a gravidez, o parto, a absorção de alimentos e a satisfação das necessidades naturais. A degradação cava o túmulo corporal para dar lugar a um novo nascimento. E por isso não tem somente um valor destrutivo, negativo, mas também um positivo, regenerador: é ambivalente, ao mesmo tempo negação e afirmação. (BAKHTIN, 2010 :19)
Dentro do contexto histórico em que está inserido, falar da relação homem e
mulher nestes termos é um tabu, porém ele menciona algo comum a vida de todas
as pessoas. Quando um homem e mulher se casam há este tipo de união, entretanto
o amor preconizado socialmente neste gênero exclui a relação carnal, a personagem
cômica é quem nos lembrará disso em diversas narrativas de circo-teatro. Em
algumas histórias a relação sexual aparecerá no contexto da criadagem e algumas
vezes ligada aos vilões, ou ao núcleo negativo do elenco. Esta fala contrasta com a
cena que se seguirá, com a entrada da Mestiça para servir-lhes um café. A escrava
suja o vestido da Mimosa e por isso recebe uma agressão que lhe faz sangrar. Luiz
oferece seu lenço para limpar, e depois disso Mestiça se retira de cena. O feitor e
Gonçalves também saem aborrecidos pela violência desnecessária e reclamam do
que viram. Esta é uma cena que aumenta a tensão e compaixão do espectador em
relação à escrava e à situação desumana que muitas vezes eram tratados os
escravos negros.
Mãe e filha permanecem em cena, então Maria comenta enraivecida que o
feitor já se encontra enamorado pela Mestiça, e sai de cena lamentando: “Ah meus
tempos! Meus tempos!...” (MAVRUDIS, 2011: 28). Tico-Tico é quem finaliza o
primeiro ato, satirizando e imitando a patroa ao repetir a frase dita por ela. Para o
intérprete, geralmente um palhaço da primeira parte do espetáculo, esta fala era um
material interessante – uma vez que eles são mestres em imitações escarnecedoras –, que poderia render muitas risadas e finalizar o primeiro ato de maneira leve e
descontraída.
Tico-Tico explora os muitos esconderijos do cenário (a varanda, os móveis da
casa, a árvore), principalmente no segundo ato, em que assiste a dois momentos,
sem ser visto, que lhe permitirão ajudar Mestiça a se livrar de Amâncio. Mimosa
pede para o escravo carrasco levar a encantadora escrava para o cafezal e não a
permitir voltar para a casa grande. Isto porque já percebera que seu pretendente,
Luiz, se apaixonara pela moça e decide fazer qualquer coisa para afastá-la dele.
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Tico-Tico é a única personagem que assiste à cena do rapto e fica sabendo o local
do esconderijo. Inclusive este é o final do ato, apresentando muita tensão e mistério
diante dos próximos acontecimentos. Nesta circunstância, o fato de estar escondido
contribui para a dramaturgia e possibilitará a solução dos conflitos mais à frente.
No ato seguinte, apesar de não suscitar nenhum momento cômico relevante,
Tico-Tico é a personagem principal, da qual todos dependem. Quando Pai João, Luiz
e Gonçalves percebem o desaparecimento da escrava, vão perguntar ao moleque
onde ela poderia estar. Ele se nega a dizer, pois fora ameaçado por Amâncio e,
mediante a proteção dos donos da fazenda, vai com Luiz até o local. A Mestiça está
muito machucada e prostrada, pois fora chicoteada pelo carrasco. Então a repousam
numa cama e Tico-Tico vai chamar o médico para atendê-la. Percebemos esta
personagem bastante atuante neste ato, responsável por dinamizar a cena e
contribuir com a sua solução.
O seguinte ocorre após a recuperação da escrava e a cena inicia com uma
conversa entre Pai João e Mestiça, em que ele lhe entrega um par de brincos de
prata, presente de seu falecido pai. Tico-Tico interrompe o diálogo e pede para
Mestiça acompanhá-lo, pois os compadres de Gonçalves chegaram à fazenda. Esta
interrupção faz com que Pai João fique sozinho em cena, e possibilita realizar uma
conversa íntima com Gonçalves sobre a paternidade da escrava.
Outra participação relevante do moleque é espiar escondido a conversa entre
Tinoco (filho da comadre de Maria) e Luiz sobre a atraente escrava. O feitor aposta
com o amigo que a conquistará, enquanto o outro acredita que ele é quem será
dominado pela formosa jovem. Fiel à amiga Tico-Tico imediatamente conta à
Mestiça o combinado, em uma cena bastante cômica:
MESTIÇA- Que que foi, Tico-Tico?
TICO-TICO- O moço feitô não presta!
MESTIÇA- Que foi que ocê disse? TICO-TICO- Eu disse que o moço feitô não presta. Eu vi ele conversano cu
Nhô Tinoco sobre ocê. E eu fiquei cu sangue ferveno nas veia. MESTIÇA- De mim? O que foi? Fale. TICO-TICO- Ele apostô que ia fazê ocê se apaxoná pru ele... MESTIÇA-
Mintira. TICO-TICO- Juro pru são Benedito cumo é verdade. Ele apostô dois boi e
uma vaca cu Nhô Tinoco. MESTIÇA- Pru que que os home são tão mau? Eles ataca sempre quem
não pode se defendê.
150
TICO-TICO- Eu não sô mau! MESTIÇA- Mais ocê não é home. TICO-TICO- Num sô home? O que é que eu sô então? MESTIÇA- Ocê é Tico-tico. - com grande sentimento e carinho TICO-TICO- Mestiça, ocê tá sentino arguma coisa? Tá cu zoio parado. MESTIÇAchorosa - Eu pensei que ele tinha coração! TICO-TICO- Uai, e ele não tem coração? MESTIÇA- Num tem não. Mas a Mestiça não hai de abaxá a cabeça. Ele
pode amarrá meu corpo no tronco, pode batê, se quisé, mais o coração da
Mestiça, ninguém há de prendê. Nem mesmo esse moço feitô! TICO-TICO- Isso Mestiça, mostra prele que ocê é home! – sai
(MAVRUDIS, 2011: 49 e 50)
Esta conversa, apesar de complicar ainda mais a trama, é descontraída e
engraçada, desde a forma de Tico-Tico comentar o que ouvira até os
desdobramentos que a notícia trouxera. Ele relata a aposta de maneira exagerada e
enfática, nitidamente decorrente da afetação provocada pela novidade, e distorce
alguns pontos, como ao dizer que apostaram, além dos dois bois acordados, uma
vaca.
Neste trecho a escrava faz uma piada com o amigo ao dizer-lhe que ele não é
homem. Tico-Tico, por sua vez, e de acordo com seu tipo ingênuo e tolo, não
contraria a jovem, apenas lhe pergunta o que ele seria. E ao final da conversa, diz
para a amiga mostrar que é homem, devido à firmeza e resolução ao afirmar que
não abaixará a cabeça para o feitor. Esta piada é ainda mais engraçada do que a
primeira, feita por Mestiça, devido à inversão de gêneros, e a aparente inconsciência
do escravo ao cometê-la.
A última participação de Tico-Tico neste ato é extremamente relevante, pois
atua como mensageiro da notícia da morte de Amâncio, e em seguida sai com Luiz
para enterrar o corpo. Percebemos, em diversos momentos, que o moleque exerce o
papel de mensageiro, ao trazer notícias e chamar personagens a mando de outrem.
Esta função é relevante para o desenrolar da trama e contribui com a dinâmica
cênica, como na ocasião, já mencionada, em que ele chama a Mestiça e deixa Pai
João sozinho, possibilitando a conversa íntima entre ele e o patrão.
No quinto ato, apesar de Tico-Tico estar presente, o enfoque estará no
suposto roubo dos brincos de prata, exibidos por Mestiça. No ato seguinte voltará a
atuar na trama, numa cena em que se mantém escondido e ouve um diálogo tenso
entre o feitor e Mestiça. Ela ainda está chateada porque Luiz levara Pai João para a
151
prisão. O moleque entra em cena, após a saída do feitor, para aconselhar a amiga.
Fala para ela não tratá-lo dessa forma, pois ele pode tirar seu avô da cadeia. Ela
está com muita raiva e então Tico-Tico comenta que talvez esteja gostando de Luiz.
Novamente o moleque diz uma verdade, que dificilmente seria comentada por outra
personagem, fato característico de seu tipo cômico e de seus traços particulares:
não medir palavras e falar o que lhe vem à mente. Ao mencionar esta possibilidade,
enfurece a amiga, que manda chamar o Mascate, e mais uma vez Tico-Tico atuará
como um mensageiro.
Quando o moleque sai, Luiz entra em cena e a escrava dissimula estar
arrependida e lhe pede desculpas. O rapaz pede um beijo e ela aceita, neste
momento Tico-Tico ri escondido, deixando o feitor constrangido e por isso sai
rapidamente. O público se surpreende com a atitude da jovem, pois ainda não sabe
que se trata de um plano de vingança contra o feitor, por ter levado Pai João para a
cadeia. Dessa forma, é interessante que o tão esperado beijo dos amantes seja
surpreendido pelo amigo, pois não se trata de um momento verdadeiro, como
saberemos através do diálogo seguinte com o Mascate. Apesar de não ser uma
intervenção cômica, a presença de Tico-Tico apresenta o aspecto de descontração,
em um momento que deveria ser sublime e sem distrações, pois o público deseja ver
esta união.
Em seguida, Mestiça se encontra com o vendedor e lhe pede para guardar um
dinheiro, cuja intenção é incriminar Luiz, e aguardá-la para fugirem juntos. Nesta
conversa, o Mascate a beija e agora quem espia é Luiz, que fica enfurecido e
ameaça matá-la com um punhal, mas não tem coragem e a deixa sozinha em cena.
Tico-Tico espiava ao fundo e lhe pergunta o que o rapaz fizera para receber esta
atitude, então ela revela seu plano de vingança. O amigo a alerta sobre as injustiças
que está cometendo, pois Luiz já soltara seu avô. O Mascate entra em cena e a
situação se intensifica ainda mais. Durante este diálogo a personagem cômica tem
apenas duas falas, que não obstante servem para diminuir a tensão estabelecida e
explicitam o pensamento do público quanto às atitudes da escrava. Na entrada do Mascate ele diz: “Agora é que vai pegar fogo.” (MAVRUDIS, 2011: 66) e um pouco
mais à frente, depois de Mestiça dissimular que fugirá com ele, Tico-Tico fala:
“Pronto. Virô a casaca traveiz...” (MAVRUDIS, 2011: 67). Ambas explicitam, de
152
maneira cômica e descontraída, o pensamento confuso do público, na tentativa de
decifrar as atitudes contrastantes da escrava.
Ao final deste ato, o moleque confessa a fuga da amiga para as demais
personagens, apesar dela ter pedido segredo. Neste contexto, o escravo se
expressa com dificuldade, diferente dos momentos anteriores em que fala sem medir
as consequências: “São Benedito que me ajude a sortá a língua. A Mestiça fugiu
com o Mascate!” (MAVRUDIS, 2011: 69). Ele somente revela a verdade, pois todos
procuram por ela, tamanha é sua lealdade para com a amiga. Novamente
observamos ao longo de todo este ato, e podemos dizer da peça, que Tico-Tico atua
como um importante dinamizador e articulador de acontecimentos.
No último ato, o feitor encontra a fugitiva, amarra-a no tronco, porém, na hora
de chicoteá-la, desiste e sai de cena. Permanecem Pai João, a escrava e Tico-Tico:
PAI JOÃO- Minha Mestiça no tronco... que judiação! MESTIÇA- Não foi judiação não! Eu mereci o castigo. O moço feitô foi até bão... num bateu! TICO-TICO- Ah! Se fosse comigo... MESTIÇA- O que é que ocê fazia?
TICO-TICO- Eu? Num fazia nada! MESTIÇA- Tico-Tico, quando eles tivé aqui, ocê vê se entra pela janela e bota o dinhero lá no escritório! TICO-TICO- E onde tá o dinhero?
MESTIÇA- Aqui na minha cintura.
Tico-Tico pega o dinheiro e sai (MAVRUDIS, 2011: 73 e 74)
Neste breve diálogo, Tico-Tico faz uma piada curta, mas com uma função
dramatúrgica relevante para a situação. A escrava acabou de voltar e deve ser
castigada pela fuga, com o agravante, na visão do feitor, de ter sido motivada por
razões amorosas. O público, porém, sabe a verdade e espera ansiosamente a
maneira como se dará a resolução de tais problemáticas, portanto é um momento de
apreensão e expectativas. Dentro deste contexto, Tico-Tico faz uma piada ao criar a
expectativa de que se fosse o feitor aplicaria um castigo mais forte. Quando
questionado, o moleque termina por dizer que não faria nada, quebrando a
possibilidade criada.
Ao analisar os mecanismos que desencadeiam o riso, Propp comenta um
pensamento kantiano sobre o cômico produzido através do fracasso de uma
153
expectativa. Nesse sentido percebemos a potencialidade da fala de Tico-Tico em
desencadear o riso do espectador, que contradiz com o seu caráter, passivo e
brando. Dificilmente veríamos uma atitude carrasca e agressiva, tal como insinuado
por sua primeira fala. Propp acrescenta um elemento na interpretação do discurso de
Kant:
A teoria de Kant precisa apenas de um reparo: o riso surge somente quando a expectativa frustrada não leva a consequências sérias ou trágicas. (...) Se considerarmos com atenção esta teoria descobriremos que sua essência se reduz a um certo desmascaramento. O pensamento de Kant admite uma ampliação e pode ser expresso da seguinte forma: ‘nós rimos quando esperamos que haja alguma coisa, mas na realidade não há nada.’ Este ‘alguma coisa’ é uma pessoa que é tomada por algo de importante, de significativo, de positivo. O ‘nada’ é aquilo em que ela realmente se transforma. (PROPP, 1992: 145)
Percebemos que esta cena dialoga com a compreensão deste autor, pois não
há qualquer consequência séria desencadeada pela quebra de expectativa.
Observamos, inclusive, o contrário, pois é esperado que ele vá dizer algo importante
quando na verdade não tem nada para revelar, e isto é cômico. Em seguida, Tico-
Tico tem a função de devolver o dinheiro roubado por Mestiça e novamente
desempenha o papel de intermediar as relações e situações cênicas.
Um pouco antes da resolução final, o Mascate entra em cena e, depois de
Mestiça lhe pedir avidamente para revelar a verdade sobre a fuga, diz que mentirá
para ficar com ela. Pai João é responsável por aumentar ainda mais a tensão deste
momento, ao ameaçar de morte o inescrupuloso amante. Tico-Tico e o feitor ouvem
a conversa escondidos e então entram em cena para desmascará-lo. Luiz pede
perdão à escrava e finalmente o casal poderá se unir. O público se sente aliviado
diante das resoluções apresentadas e, neste contexto, Tico-Tico diz ao vendedor: “Mascate, eu acho bão ocê dá o fora, porque ocê já sobrô.” (MAVRUDIS, 2011:78).
Esta fala revela francamente a situação, ao explicitar diretamente a circunstância
constrangedora, e por isso será cômica. Ajuda a tirar um pouco da tensão criada na
cena anterior atravésda ameaça de Mascate.
Da mesma forma, acontecerá um pouco mais à frente com a entrada de todas
as personagens.Finalmente haverá a revelação sobre a paternidade da escrava, e
também o fato de Luiz ser filho do grande amigo de Gonçalves, enquanto todos
154
pensavam se tratar apenas de um afilhado. Ao saberem ser o herdeiro do rico
fazendeiro, Mimosa demonstra seu desapontamento:
LUIZ- Sim. Eu sou Luiz Francisco da Silva, filho de seu grande amigo. MIMOSA- Ah, mamãe... se eu soubesse... TICO-TICO- Num diantava nada, ocê já tá sobrano há muito tempo. GONÇALVES- Agora, minha sobrinha, pede o que quiseres a seu tio! MESTIÇA- Eu queria que o sinhô me desse o Tico-Tico. GONÇALVES- Pelo que vejo, queres levar-me todos os escravos. Pai João já é teu também. MESTIÇA- Mas Pai João não é escravo. Já é home livre. GONÇALVES- Está bem. Podes levar o Tico-Tico. TICO-TICO- Qué dizê que eu agora sô livre? Que tal agora uma garapinha, bem fresquinha? Num é bão, Sá Maria? MARIA- Isso mesmo, Tico-Tico. Vá buscar uma garapa bem fresquinha. Vá depressa. TICO-TICO- E para aí... se a senhora quisé, que vá buscá. Eu agora sô livre! – risos - Nhô Gonçarve, eu também posso pedi? GONÇALVES- Pode. TICO-TICO- Eu quero que o sinhô me venda a Rosinha! GONÇALVES- E você tem dinheiro para comprar a Rosinha? TICO-TICO- Eu compro à prestação. GONÇALVES- Rosinha não me pertence! Pertence à minha mulher... se ela quiser vendê-la... MARIA- Não! Não é para venda! GONÇALVES- Então, Tico-Tico, leve-a de presente. TICO-TICO- Oba... agora aquela negra me paga! - sai correndo MESTIÇA- Adeus então, meu velhinho querido. Adeus. LUIZ- Adeus para todos. TICO-TICOgritando dedentro - Espera, que eu também vô! - entra montado “à cavalo” em Rosinha (MAVRUDIS, 2011: 80 e 81)
Nesta circunstância, o comentário do escravo explicita para Mimosa que ela
não foi a escolhida por Luiz e está sobrando, sendo a ainda mais cômico do que
quando dirigido ao Mascate. Primeiramente por ser dirigido a uma mulher, devido ao
contexto cultural daquela época, e em segundo lugar, por se tratar da filha de sua
dona. Demonstra um descaramento desta personagem, possível apenas no contexto
de final de peça e resolução dos conflitos e problemáticas, pois antes certamente ele
seria repreendido por falar desta forma.
Seguindo esta mesma lógica, após conseguir a liberdade, Tico-Tico diz a sua
ex-dona para ela mesma pegar a garapa fresquinha, pois ele não precisa mais
seguir suas ordens. Esta inversão de postura, realizada de maneira tão abrupta e
surpreendente, torna-se engraçada. O escravo mal se libertou e já demonstra ter
uma desenvoltura e despojamento, característico de seu tipo. Tanto assim que em
155
seguida pede para comprar a Rosinha, mas por não ter o dinheiro necessário diz
que pagará a prestação.
Em um primeiro momento, não é possível compreender a razão do interesse
na escrava, pois eles constantemente brigavam e se desentendiam. Somente na fala
seguinte fica explícito o motivo: vingança pelas injustiças feitas por Rosinha, que,
por ser mais esperta do que Tico-Tico, sempre o enganava e o tratava como um tolo.
Para finalizar a peça de maneira descontraída e leve, ele sai de cena e, ao voltar,
aparece montado a cavalo nela. Este desfecho está de acordo com a estrutura geral
da peça, que não revela tão grandes tensões quanto as duas outras obras
analisadas neste trabalho, portanto é condizente um final cômico e alegre como este.
156
6 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise das três peças dentro do universo circense, particularmente do Circo
Nerino, possibilitou uma maior aproximação com as personagens cômicas dentro do
contexto melodramático. Vimos que tais figuras são tão importantes quanto as
demais para criar uma trama mais complexa e interessante. Havia muitas peças,
representadas nos circos-teatros no começo até meados do século XX, que não
apresentavam comicidade alguma. Geralmente estas tramas são idealizadas e se
distanciam da realidade imperfeita da vida. As personagens são verticalizadas em
suas obstinações pessoais e não se modificam ao longo da história. Quando a
personagem cômica está presente, ela traz uma dinâmica e uma leveza à narrativa,
que interfere até mesmo na caracterização das demais, principalmente por
humanizá-las de alguma forma.
O surgimento deste tipo de teatro ocorreu dentro de um contexto de formação
de valores e estabelecimento cultural, apesar de ter se transformado muito desde
então. Lugares longínquos e povos díspares foram agrupados na então criada nação
brasileira, tal como a conhecemos atualmente quanto à extensão territorial, língua,
costumes e valores. O branco europeu, com o espírito de colonizador e de quem
quer lucrar por meio da terra, impôs sua cultura subjugando o restante da população,
formada principalmente por índios e negros. Através do teatro, e mais à frente
também no espetáculo circense, os europeus conseguiram transmitir sua cultura e
valores. No entanto, a cultura dos povos subjugados tem relevância fundamental e
estruturante na formação do povo brasileiro, além de interferirem e modificarem
aspectos dramatúrgicos. A dramaturgia de circo-teatro do período estudado, que
muitas vezes perdura até os dias atuais, apresenta esta raiz histórica.
Controvérsias à parte, o fato é que o surgimento do circo-teatro veio ligar definitivamente a história do circo à história do teatro no Brasil, tanto pelo ingresso de companhias de teatro nas empresas circenses como pela disseminação das representações teatrais por todo o país. As companhias montavam peças portuguesas, histórias bíblicas, adaptações de romances franceses, tudo que pudesse atingir e comover as platéias do interior de um país tão heterogêneo como o Brasil. (PIMENTA, 2004: 23 e 24)
157
Percebemos, de acordo com o trecho citado de Daniele Pimenta, que a
história do teatro circense sempre teve algum diálogo com o teatro realizado dentro
dos edifícios teatrais das principais cidades brasileiras. Em ambos os contextos, as
figuras cômicas tinham grande importância para o melodrama, responsáveis por
distanciar o espectador da identificação proposta por este estilo dramatúrgico. Os
teóricos do riso, elencados para este estudo, nos deixam claro que o cômico
geralmente se relaciona com algum defeito do homem, com as partes baixas e
inferiores, e o primeiro aspecto motivador é o distanciamento emocional. Como o
exemplo a relevante participação de Tico-Tico no enredo de A Mestiça, interferindo
na identificação sentimental do público e completando a narrativa.
Por mais que a função dentro da trama se assemelhe entre as personagens
cômicas, ela assumirá diversas facetas, como observamos no decorrer das análises
das três peças que integram este trabalho. Em cada uma das encenações, a
comicidade terá características particulares, sempre em consonância com as
personagens que a suscitam e com as características específicas das narrativas.
Elas materializam a comicidade possível para aquele enredo e são importantes para
contar aquela história particular. Este trabalho aborda tipos diferentes de
melodramas (dois amorosos, em perspectivas diferentes, e outro heroico), que muito
nos ajudaram a compreender a temática pretendida.
Em ...E o Céu Uniu Dois Corações Juca apresenta uma ingenuidade e
inconsciência de seu defeito na fala, que o tornam engraçado, divertido e leve. Estas
características combinam com o tipo de melodrama em que está inserido: amoroso,
cujo foco da narrativa está na união dos jovens amantes. É uma trama que narra o
amor puro e impossível de um casal, separado por sua família. Este amor é
desprovido da parte carnal e material, pois não chega nem mesmo a se concretizar,
de tão sublime e elevado. Este tipo de narrativa vai ao encontro de um valor muito
propagado pelo gênero melodramático, de que o amor “verdadeiro” é maior do que
sua realização. Trata-se de uma trama arquetípica, por apresentar relações que
poderiam ser encenadas em diversas épocas da história, sem se tornarem datadas.
Talvez por isso seja representada com êxito até os dias atuais nos circos-teatros
brasileiros. Podemos dizer que se trata de uma versão nacional para o conhecido
tema de Romeu e Julieta de William Shakespeare.
158
Juca combina com esse contexto apresentando uma comicidade leve e
despretensiosa, por suas piadas serem, basicamente, relacionadas a sua dificuldade
com a fala e por sua maneira de agir. É um moleque que tem atitudes infantis, sem
muita reflexão, apenas motivadas por sua vontade. Esta, muitas vezes, se envolve
questões pequenas, quando comparado às das demais personagens, como seu
aborrecimento diante do descaso de Neli depois que começara a namorar. Esta é
uma preocupação ínfima se comparada com a importância da realização do amor
entre os amantes, que chegará a lhes custar a vida.
Em Jerônimo, o herói do sertão, apesar de encontrarmos uma complicação
amorosa também, o foco do enredo será o herói imbatível contra os vilões. Haverá
confrontos com agressões físicas e ameaças com armas entre o coronelismo
(representado pela dupla Maria José e Ambrósio) e o justiceiro do sertão. A
comicidade de Saci será criada através de sarcasmo e ironia, que combinam com as
tensões apresentadas pelo enredo. Saci demonstra ser valente, por empunhar uma
arma e trabalhar ao lado de Jerônimo e, em muitos momentos, a comicidade
aparece quando está denegrindo as personagens, principalmente más. Há, portanto,
uma clara diferença em relação à personalidade e jogo cômico de Juca, por um se
tratar de um ingênuo e o outro ser esperto e zombeteiro.
Tico-Tico em A Mestiça é quase uma mistura entre as duas personagens
cômicas, no sentido de apresentar uma ingenuidade combinada com seu jeito
travesso de moleque da fazenda. A história desta trama abordará a conquista
amorosa do feitor com a Mestiça, porém com uma tônica diferente da peça ...E o
Céu Uniu Dois Corações. Não se trata de um amor irrealizável e idealizado, mas
algo possível e concreto, mesmo com todas as dificuldades e percalços. A Mestiça é
uma mulher conquistadora e sensual, bem diferente do perfil singelo de Neli. Dessa
forma, Tico-Tico não será tão inocente quanto Juca, se mostra mais malicioso e
brincalhão, porém não terá o sarcasmo apresentado por Saci.
Observamos, a partir desta breve análise, que a personagem cômica combina
com as características do enredo melodramático e dialoga com elas, materializando
a comicidade daquele texto específico. Em todas as tramas estudadas essas
personagens desempenham um importante papel, articulando, complicando as
problemáticas e diminuindo a tensão dos acontecimentos mais relevantes.
Geralmente são personagens que têm a facilidade de transitar entre os núcleos do
159
bem e do mal e por isso conseguem articular muitas situações, levando e trazendo
informações importantes. Como Tico-Tico, que está presente em quase todas as
cenas resolvendo as problemáticas do enredo e dinamizando os acontecimentos.
Por isso, não podemos dizer que se trata de personagens secundárias, como em
alguns casos são classificadas, reconhecendo apenas como protagonistas o casal
de enamorados e o vilão.
As três personagens cômicas se assemelham também por integrar uma
classe social economicamente menos favorecida, e geralmente desempenham a
função de empregado nas tramas, tal como os palhaços. As histórias de circo-teatro
costumam ambientar as narrativas em lugares privados de uma elite econômica
favorecida, da qual a personagem cômica destoará quanto às atitudes e
comportamentos. Suas falas e ações costumam ultrapassar a barreira do decoro e
boas maneiras, destoando, portanto, das demais. A comicidade que transparece ao
ler os textos se encontra, sobretudo, nas falas. Os gestos e ações cômicas ficam a
cargo do intérprete, que geralmente tem uma aproximação com os palhaços e,
dessa forma, era comum surgirem ações cômicas que extrapolavam os limites do
texto. Um exemplo claro, mencionado neste trabalho, é o sininho de Juca na peça ...E o Céu Uniu Dois Corações, descrita por Walmir dos Santos. Aliás, a
improvisação e a criação extratextual são um dos pilares principais do intérprete
circense, sobretudo dos cômicos.
A análise de cada situação risível mostra que o engraçado geralmente é
suscitado por uma falha humana, alguma quebra de expectativa e às partes
inferiores do corpo, bakhtianamente falando. A maneira de se relacionarem com as
problemáticas das tramas é responsável por apresentar outra perspectiva às
histórias. Torna estes enredos, de heróis e vilões, real e mais verossímil, ao
apresentar uma postura mais humana, de pessoas que erram e têm atitudes
insensatas e corriqueiras. A dramaticidade das personagens cômicas é bem
diferente do tom preponderante nesta dramaturgia, carregado de temas
extraordinários e decisórios: o amor impossível que acarreta a morte dos amantes, o
justiceiro do sertão que defende o mais fraco, o amor da escrava que derruba
barreiras sociais importantes. Todas essas temáticas estão fora do cotidiano comum
da maioria das pessoas da plateia. A personagem cômica, portanto, estabelece uma
ponte entre os espectadores e artistas/autor da obra.
160
O momento em que a comicidade está inserida também pode ser relevante,
principalmente quando suspende um acontecimento cênico importante e penoso. A
interrupção aumenta ainda mais o impacto sobre os espectadores, principalmente
porque o público é distraído e quando a situação angustiante voltar a acontecer, será
ainda mais forte. Um exemplo disto é o assassinato de Perdinari na peça ...E o Céu
Uniu Dois Corações. Neste caso, a interrupção, através do jogo cômico suscitado
por Velasco, será responsável por suspender a iminência de morte e, portanto,
aumentar ainda mais o impacto quando esta finalmente acontecer.
Este tipo de dramaturgia, de maneira mais ampla, pertence a uma tradição de
textos que obedecem a uma construção narrativa bem clara, em que os conflitos
dramáticos são polarizados entre personagens boas e más. O que irá diferenciar um
enredo de outro será a problemática particular daquela história e as personagens
que estarão envolvidas. Este tipo de dramaturgia fez, e ainda faz, muito sucesso no
Brasil, sendo amplamente difundida e divulgada. A curiosidade do público será
despertada na maneira de contar a história e na progressão dos acontecimentos,
pois o desfecho pode, muitas vezes, ser o mesmo, alternando entre o final “feliz” e o
trágico. Apesar de, geralmente, ser desvalorizada pela crítica teatral, devido a sua
simplicidade estrutural, devemos reconhecer no melodrama a busca por um diálogo
estreito com a população brasileira (principalmente no reconhecimento de tipos e
comportamentos sociais) e por valorizar a encenação, o contato com público. Disso
decorre o fato de ainda ser apreciada, como podemos observar nos circos-teatros
atuais, nas telenovelas e nos programas humorísticos em geral. É uma dramaturgia
que claramente busca estabelecer uma ponte com questões atuais, assim como o
espetáculo circense.
Um exemplo claro a respeito desta ligação estreita com o público foi a
polêmica sobre um possível racismo surgido a partir de uma personagem negra da
peça A mulher do trem encenada pelo grupo Os fofos encenam. Nesta situação, o
grupo teatral resolveu tirar esta personagem da cena e estreitar ainda mais os laços
com o seu público, razão pela qual realiza sua arte. Esta situação ilustra bem como
os tipos sociais, apresentados nas dramaturgias circenses, são mutáveis e se
adéquam à sociedade e costumes de seu tempo.
A relação com os espectadores começa a partir da linguagem escolhida do
espetáculo, uma vez que é visada a compreensão e a aceitação positiva do público.
161
O circo tem uma característica particular neste ponto, pois os elementos populares,
aqueles conhecidos pela maior parte da população brasileira, podem ser agregados
na construção da apresentação. Desde a música que toca na rádio, até qualquer tipo
de referência dos meios de comunicação de massa, tudo é possível de participar do
espetáculo, desde que estabeleça alguma ligação com a peça encenada ou com o
número de variedades da primeira parte. Como, por exemplo, a encenação da peça
Jerônimo, o herói do sertão, uma importante radionovela nacional da época, que
apresentava uma música conhecida de trilha sonora. Esta era uma referência
unânime para o público de todas as regiões, que apreciava demasiadamente estas
apresentações, principalmente por haver este diálogo de consonância com seu gosto.
Disto resulta o primeiro objetivo deste tipo de espetacularidade: agradar os
espectadores, a ponto de voltarem no dia seguinte e suas arquibancadas estarem
sempre cheias.
Outro aspecto a ser consideração relativo à linguagem é em relação ao
espaço do circo. Em geral, trata-se de um palco semi-arena que comporta muitas
pessoas, mais de trezentas, e exige um tipo de atuação ampla e direta. Os números
da primeira parte do espetáculo eram pensados visando atingir visualmente até as
últimas cadeiras, e, no teatro, o intérprete tinha que apresentar um gestual, figurino,
maquiagem e impostação vocal que também cumprissem com esse objetivo. Isto
possibilitou a construção de uma linguagem particular, que, há alguns anos, vem
sendo admirada e investigada pelos grupos teatrais contemporâneos, como o Teatro
Mambembe, o Grupo Galpão, Barracão Teatro, Os Fofos Encenam, entre tantos
outros.
Outro aspecto inerente à linguagem circense tem relação à rotatividade de
peças, pois a cada dia se encena um texto diferente. Mesmo que os atores já
tivessem ensaiado algumas vezes, o resultado costuma ser de acordo com as
possibilidades existentes em relação à figurino, ao cenário, à reprodução exata do
texto falado, tudo isto é limitado devido às condições de como era elaborada a
apresentação. Com o tempo, o intérprete desenvolvia um jeito particular de
representar e se familiarizava com o repertório, daí a importância da definição e
estabelecimento do tipo específico de cada ator. Esta questão toca em um ponto
crucial do artista circense: por mais que ele planeje e ensaie, a sua performance
continua a se construir no momento da representação para o público.
162
A busca pelo gosto popular não excluí o circo de integrar a cultura brasileira
de maneira mais ampla. Muito pelo contrário, por refletir o gosto da maioria e
partilhar, de alguma forma, das referências nacionais, podemos reconhecer o
espetáculo circense como uma manifestação da cultura popular brasileira por
excelência. Mesmo buscando dialogar com as referências majoritárias, os circenses
também se inspiravam nas representações realizadas nos edifícios teatrais, como
podemos observar através da dramaturgia. Um exemplo claro é a peça Deus lhe
pague,de Joracy Camargo, que em 1933 estreava nos palcos das casas de
espetáculo construídas nas principais cidades, com Procópio Ferreira no papel
principal, e em 1950 era representada no Circo Nerino. Era comum haver o
intercâmbio entre os artistas de teatro com os de circo, ligação esta que os livros de
história do teatro não mencionam. Como, por exemplo, o episódio em que Grande
Othelo tenta se apresentar no Nerino, porém devido a uma série de infortúnios, sua
estreia foi adiada. Assim como na entrevista concedida para este trabalho em que
Roger menciona sua participação em uma peça de Tchekhov:
Por exemplo, eu trabalhei aqui com Tônia Carreiro. Eu fiz uma peça russa, com ela e outros artistas de primeira classe, aqui em São Paulo, eu trabalhei aqui no teatro com ela. E ela chamava-se... Como é o nome da peça, meu Deus do céu? O jardim das cerejeiras, do russo Tchekhov, não sei o que lá Tchekhov. Bom, eu fazia o mordomo da família. Não era cômico não. E tinha as coisas das cerejeiras, até que compraram aquilo e o mordomo muito velho e tal. E... Só tinha uma palavra que o público ria, como é que era? Eu ia falar com ela e a Tônia dizia para mim: Como você está velho Firs, como ficou velho. E eu dizia apenas, não era comicidade não, era da peça mesmo: É porque faz muito tempo que eu nasci. E o público achava graça dessa fala. E terminava a peça, com o mordomo né? Eles indo embora todos e ele ficava ali, só ficava o mordomo. E ele fazia umas falas bonitas e terminava morrendo, ele morria. Então, era eu que encerrava a peça, o público batia palma, eu levantava e os outros iam entrando. (Entrevista realizada no dia 18/03/2014)
Ao longo da história das artes cênicas no país, sempre houve o intercâmbio e
transversalidades culturais entre o circo, realizado em baixo da lona, e o teatro, dos
edifícios teatrais. Os exemplos mencionados em relação à dramaturgia e artistas são
apenas uma forma de troca, há inúmeras outras que contribuem sobremaneira à
ambas linguagens. No que se refere à dramaturgia, observamos haver uma grande
semelhança entre os textos das comédias de costumes e do teatro romântico
dramático, realizado nos edifícios teatrais, com os melodramas e comédias
163
circenses. E quanto aos artistas, sempre houve uma troca de aprendizado e saberes
através dos convites para apresentações em outros espaços, como o exemplo de
Roger e Grande Othelo. Ampliar o conhecimento que se tem acerca do circo e
estudá-lo, tal como se estuda o teatro ocidental, é extremamente importante para as
artes cênicas, principalmente por se tratar de manifestações artísticas que sempre
se relacionaram e influenciaram mutuamente de alguma forma.
164
7 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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172
8 – ANEXOS
Transcrição das entrevistas
173
Entrevista 1 – Roger Avanzi Roger – Nós trabalhamos algumas vezes e uma das vezes foi no dia 7 de setembro,
que tem aquelas festas de estudantes e tal. Então eu esqueci de colocar. Me deram
o retrato e eu não coloquei no livro. Quer ver? Eu vou lhe mostrar o retrato que me
deram, este não está no livro.
(Mostra a foto) Era o último espetáculos nosso na cidade. O último espetáculo já começava assim,
tirava uma coisinha, outra coisinha, para assim que terminar já adiantou o
expediente, né? Nós desarmamos aqui a fachada do circo, aquela fachada bonita,
ficou só a parte de baixo. É na frente do circo, mas está sem a fachada bonita, com o
nome. Aqui está explicado por que aqui está sem a fachada. Bom, nós armávamos
este circo de acordo com a cidade que a gente ia funcionar, né? Porque numa
cidade muito grande, armava o circo com três mastros, outra vez quatro mastros. Às
vezes era redondo, menor, outras vezes era oval, crescia assim, então nos circos
das cidades menores, não valia a pena armar um circo grandão assim. A gente ia
para o Norte e Nordeste, nas capitais que eram grandes e nas pequenas também.
Bom, é isso aí, acontecia essas coisas, né? Olha essa foto. Em palestra eu costumo dizer que eu fazia acrobacia em cima do
cavalo, trabalhava muita acrobacia em cima do cavalo. Às vezes eu errava e fazia
em baixo do cavalo. Eu participo da maçonaria, como pode ver nessa foto. A minha
senhora no Circo Garcia com o pai dela que era da família Garcia. Ali eu, meu pai e
meu filho. Meu filho. Ali eu em Brasília que me convidaram para entregar esta
moeda bonita para o Lula. Ali eu fui no Jô, muito agradável ele, muito simpático. E
depois, eu te mostro melhor. Essa aqui é uma pintura que me deram. Eu gosto de falar sobre circo, né? Eu gosto de falar sobre o circo que eu nasci, o
circo da minha família, meu pai, minha mãe, meu tio. Meu pai, quando perguntavam
a ele, ele era o Picolino I, de onde ele é, ele dizia: eu sou contrabando, fui feito na
Itália e nasci no Brasil. Veio de contrabando. E minha mãe, francesa. Minha mãe Armandine Ribolá, meu tio Gaetan Ribolá e a
minha tia Myris, eram os três franceses que trabalhavam no Circo Nerino. Às vezes
eu to falando uma coisa, depois quero mudar para outra coisa e me esqueci do que
estava falando.
174
Já te falei que o Circo Nerino dava espetáculos duplos. A primeira parte de
acrobacias e a segunda parte de teatro. Dependia né? Nós levávamos todo o gênero
de teatro: levávamos as comédias, os dramalhões, comédia de palhaço, comédia de
grã-fino e dramalhões.
Moira - No começo, a segunda parte dos espetáculo eram comédias do Picolino?
Roger – É, eram só as comédias no começo.
Moira – Depois tiveram episódios de lutas livre?
Roger – Antigamente, em quase todos os circos. Eu estou falando bem antigamente,
um pouco mais velho que o Nerino, que era o mais velho de todos. Eles usavam, o
Nerino também, lutas romanas, para atrair público, que gostava disso aí. Então tinha
muitas coisas também, além das lutas. Pode perguntar.
Moira – Teve um momento que houve cinema...
Roger – Cinema também, meu tio ele ficava inventando coisas. Tinha vezes que era
a primeira parte acrobacias e a segunda, ele comprou umas máquinas grandes, uma
parafernália e armou lá no circo. E passava, mas não dava muito certo não, o povo
queria ver o circo. Cinema já tinha na cidade, né? Era isso aí.
Moira – Só depois que teve o teatro dramático?
Roger – Sim. O teatro dramático. Nós levamos bastante, e muitas peças religiosas
também. Nós levávamos A Canção de Bernadete, que se passava na França, né?
Levávamos Os milagres de Santo Antônio, que a senhora viu o retrato no livro, né?
Eu era o Santo Antônio. E agradava tanto essas peças aí. Levávamos A paixão de
Cristo também, a vida de Jesus, né? Quase todos os circos apresentavam a vida de
Jesus, mas só na semana santa, sexta-feira santa e tal. E nós levávamos sempre,
porque estávamos no Nordeste e Norte e eles gostavam, eram muito religiosos,
naquele tempo, né? Hoje, mudou muito. Tinha cidade que a gente tinha que dar
175
duas sessões e o público ficava lá fora esperando para assistir a segunda sessão.
Bom, teatro. Muitos dramas estão no livro, mas não todos. Quando aparecia um
filme muito importante, nós dávamos um jeito de fazer este drama no nosso circo, e
levávamos do cinema. Por exemplo, nós levamos: Sempre no meu coração, era um
filme bonito. Extraído daquela música: ...Sempre no meu coração. (canta) O mundo
não me quis, uma peça religiosa, belíssima, belíssima. E tinham outras. Assim de
cabeça assim não aflora bem os nomes todos, viu? Mas tinham muitas, religiosas.
Agora tinham os dramalhões, muitos dramas. O meu sogro era do Circo Garcia. Ele
veio com a filha, ela começou a trabalhar conosco, tempos depois ele saiu do Garcia.
Eram dois irmãos que tomavam conta: Antolin e ele era o Agenor. O Agenor é o que
está com ela, segurando o cavalo. Passaram e vieram trabalhar conosco no nosso
circo, e ele que tomava conta das peças no Circo Garcia, do teatro, que era um circo
quase que só de teatro, né? O Garcia, o Antolin era um grande ator, o dono do circo.
Seu Agenor era ator, mas ele construía as peças, né? Como tirava do cinema e
assim por diante. Então ele passou a ensaiar, antigamente no teatro, no circo, em
toda a parte onde levava peças, tinha o ensaiador, chamava-se quem ensaiava as
peças. Hoje não existe mais o ensaiador. O ensaiador mudou, com o mesmo nome,
mas agora é o diretor. Agora chama-se diretor. E eu fiz muitas peças. A senhora que
gosta de peças, por acaso sabe, o nome da madame X da Ré Misteriosa?
Moira – Não...
Roger – Mas sabe que teve essa peça. Foi até filmado, a peça teve no cinema
também, madame X. Ela chama-se. Bom, agora quando eu lembrar eu vou falar o
nome. (risos). Nós levávamos muito essa peça. Ela fazia a minha mãe, eu fazia o
advogado que a defendia sem saber que era a minha mãe e tal. Dava um trabalho,
na defesa eu tinha uns bife desse tamanho pra falar. Bom, eu comecei a falar sobre
o teatro do nosso circo. Todos os circos do Brasil tinham teatro, mas preparavam um
palco, faziam um palco. O teatro era um palco e as acrobacias no picadeiro. Teatro
no palco, nós fomos os últimos a montar um palco. Fazíamos tudo no picadeiro,
inclusive comédias e dramalhões. Nós levávamos, no picadeiro era teatro de arena.
Como se chamavam aqui, também tinha teatro de arena. Agora acontece que no
176
picadeiro não tinha jeito de colocar o ponto. No palco, o ponto fica ali meio escondido
pontuando para os artistas, né? Hoje não tem mais ponto, né? Eles não usam mais
ponto. Mas nós então usávamos, antigamente aboliram, mas então nós usávamos.
Nós usávamos forçado porque no picadeiro não tinha ponto. Então tinha que decorar
mesmo. Toda noite uma peça diferente, um drama diferente. E haja estudar e botar
na cabeça. Eu gravava muito, hoje está muito fraco, a minha cabeça falhou. Mas é
isso aí. A senhora tem um nome, ou algum nome, de algumas peças? Continue
fazendo as perguntas.
Moira – Como eram distribuídos os papéis na companhia?
Roger – Eu fazia o galã, minha esposa fazia a ingênua, bem para trás. Tinham
outras pessoas da companhia, Teresinha, outras sobrinhas, que faziam também,
ajudavam no papel menores, numa ingênua. A minha mulher começou a não gostar
mais de fazer a ingênua, ela disse que estava velha, já queria fazer os papéis mais
idosos, né? Ela era uma revelação mesmo, fazia qualquer papel, fazia papel de
criança, de velha, de moça, tudo que desse para ela, ela desempenhava. Muito bem.
Ela gostava muito de uma peça que se chamava. A peça se chamava Maria da fé,
muito bonita! Ela se espalhava naquela peça, ela se espalhava. Foi aí que o
Procópio Ferreira assistiu e ficou encantado, deu um retrato dele para ela, com
dedicatórias, elogiando o papel dela. Muito bem. A Anita, ela chama-se Ana, o
diminutivo Anita, é tudo a mesma coisa Ana ou Anita. Então, nós não tínhamos o
palco, ainda. Fomos os últimos a fazer o palco. No livro, já tem alguma coisa sobre o
palco. Não é muito perfeito não porque endireitando e tal. A banda de música, nós
sempre tivemos orquestra no circo, depois eu lhe falo um pouco sobre música no
circo, que está no livro também. Antigamente era um coreto na frente do circo, quer
dizer dentro do circo, na entrada do povo. Entrava no circo, era em cima. Quando
fizemos o palco, passou o coreto ao lado do palco, que tinham peças que usavam
muita música, por exemplo, O Ébrio, nós levávamos O Ébrio, e eu fazia o Ébrio, era
sempre eu. Tinha que cantar duas músicas, né? Eu cantava aquela primeira porta
aberta: Vivia neste mundo sem teto Dormia às noites num banco tosco de jardim. Essa era a primeira música. A segunda é a música tema: Porta aberta por Jesus de
Nazaré Esta porta não se fecha, contra ela não há queixa, são os braços de Jesus.
177
Bom, tinha muita música. A música acompanhava, eu cantava ali no palco pertinho e
a música acompanhava, né? Muito bom. E outras peças também, tinha uma peça
chamada Homem sem lei e sem Deus, muito boa peça. Fala em Deus, aparecia
Jesus no último ato e tal, mas não era uma peça bem religiosa não. Tinha as
aparições assim. Então, continue perguntando.
Moira – Os dramas tinham personagens cômicas...
Roger – Ah sim. Quase todas as peças tinham personagem cômica, às vezes muito
importante e bem forte. Outras vezes uma coisinha, uma palavrinha assim uma coisa
ou outra. Por exemplo, eu trabalhei aqui com a Tônia Carrero, eu fiz uma peça russa
com ela, e outros artistas de primeira classe aqui em São Paulo. Eu trabalhei aqui no
teatro com ela e chamava-se... Como era o nome da peça, meu Deus? O jardim das
cerejeiras. Do russo lá, ele era um autor Tchekhov. Bom, eu fazia o que toma conta
das casas... Como é? O mordomo da família. E tinhas as coisas de cerejeiras, até
que compraram aquilo, o mordomo muito velho e tal. Só tinha uma palavra que o
povo ria. Uma hora eu ia falar com ela e a Tônia dizia para mim: “Como você está
velho Firs. Como você ficou velho.” Eu dizia apenas, não era comicidade não, era
peça mesmo: “É porque faz muito tempo que nasci.” E o povo ria. Achava graça
disso. E terminava a peça, com o mordomo, né? Eles iam embora e só ficava o
mordomo. Ele fazia umas falas bonitas e terminava morendo. Ele morria. Então, eu
encerrava a peça. O povo batia palma, eu levantava, cumprimentava e os outros iam
entrando para cumprimentar. Eu falo isso porque a minha filha é gaita, essa que a
senhora viu aí. Eu encerrava a peça. Então quando perguntavam sobre o que eu
fazia na peça ela, com a gozação dela, dizia: Meu pai é que enterra a peça. (risos)
Comicidade. E assim, eu agradava muito, fazia muito sucesso com Os milagres de
Santo Antônio. Não é? Muito, muito sucesso. Nós levávamos perfeitos os milagres
todos que ela fazia e tal, dos peixes que saiam da água, e outras coisas. Dos
milagres, muitos milagres. Continue perguntando, quem sabe eu vou lembrando.
Moira – Quem fazia as personagens cômicas? Os palhaços?
178
Roger – Olha, geralmente do palhaço que era a parte cômica do circo. Então, feito
pela parte cômica. E quando eu fazia o Picolino, substituindo meu pai, fiquei fazendo.
Depois eu tive que fazer teatro, sem ser palhaço. Teatro à paisana, mesmo o galã de
muitas peças, daquelas comédias. Comédias boas como: Pense alto, como Marido
número 5, Compra-se um marido. Eram comédias, mas altas comédias, finas
comédias. Muito bom, agradava muito. Eu era o galã, não era palhaço, era o galã. E
tinham aqueles pastelões de circo também, coisas totalmente de circo: Picolino, o
gostosão, Picolino, na casa dos urubus, e assim por diante. Nós intercalávamos,
durante a semana aqueles dramalhões, para chamar a atenção. Quando era sábado
e domingo, uma coisa mais leve, mais rápida e mais leve. Muito bem. Tínhamos a
primeira parte circense muito variada porque toda a noite tinha que mudar. Então,
depois sempre tinha um diretor, naquele tempo ainda era ensaiador, para ensaiar as
peças. Agora, depois teve uma época que não tinha ensaiador. Então, eu passava a
montar peça também. Não tinha jeito eu montava. Eu montei uma peça, a última que
montei foi daquela música Boneca cobiçada. Conhece a música? Tinha a peça e
depois eu montei. Eu passei a ser um pouco do ensaiador também. Eu estava tão
acostumado. Então, aí eu já fazia à paisana, fazia a comicidade também dessa peça
e tal, mas não de palhaço, alguma coisa cômica que tinha na peça. E outras peças
assim que tinha alguma coisa cômica. Eu passei a ficar atrapalhado quando eu
passei a fazer... Eu fazia as peças à paisana, galã, depois eu tomei a parte do meu
pai do Picolino. Passei a fazer o palhaço principal do circo, que era o Picolino. Aí eu
misturava. Fazia o galã no teatro, o palhaço na primeira parte. Era difícil de fazer.
Misturar bem a coisa, como a senhora mesmo falou, que era mais a parte cômica.
Mas muitas vezes tinha a parte cômica que não era um palhaço, era uma pessoa
comum que fazia a parte cômica. Tinha uma outra peça que agradava muito
também... Bom, já falei alguma e a outra não vem na cabeça agora. E o que mais,
tem mais perguntas? Eu vou depois recordando essas coisas e encaixando com o
que for lembrando. Pode continuar
Moira – Como o público reagia nesses momentos cômicos das peças dramáticas?
Roger – Achavam graça, em vez de chorar, faziam deboche. No circo era muito
vulgar isso, porque ia muita plebe, muito povo baixo. Tinha camarotes que eram
179
pessoas de primeira classe, as cadeiras. Mas na geral, que chamavam de poleiro,
sempre iam pessoas sem instrução e eles gostavam de mexer com os artistas e de
achar graça na peça. Então tinha que fazer força para aguentar aquela plateia
revoltosa. Mas sempre nos saímos bem no circo. O circo era mais difícil que no
teatro. O teatro é mais sossegado.
Moira- Então o público interferia muito nas peças?
Roger- Interferia sim. No circo, né? E já essa peça que eu fiz com a Tônia Carrero e
outros artistas de primeira classe trabalhamos aqui em São Paulo, trabalhamos no
Rio de Janeiro. Mas teatro o povo assistia classicamente. Muito bem, não tinha
palhaçada, não tinha nada. Era uma coisa séria mesmo. No teatro, no circo era difícil,
não era fácil não. Uma vez eu fui assistir um circo aqui em São Paulo. Uma vez eu
assisti em um circo aqui em São Paulo, quando eu vim passear aqui tinha um circo
aqui em São Paulo e levava peças. E acontecia coisas assim: a moça tinha que
roubar, parece que era O mundo não me quis parece, ela ia no cofre uma coisa em
silêncio, né? Não falava nada, ai abria e tirava, aquele negócio, né? E ela era muito
magra, magrinha, bem magrinha. Aí de repente tinha um gozador, era circo. O
gozador que estava assistindo, e eu estava assistindo também, eu fiquei bobo. Ele
gritou: Saí daí. Bem forte. Saí daí, bacalhau de porta de venda! Bacalhau de porta
de venda! E assim saiam essas piadas, né? Porque o circo antigamente o palhaço
mexia muito com a plateia. Já estão voltando, né? Hoje em dia, os grande circos
estão usando o palhaço falar com a plateia também. Inclusive esse circo Du Soleil,
quando veio para São Paulo o palhaço usa muito a plateia, bastante. E nós fazíamos
desse jeito também. No teatro uma atenção fantástica, e no circo era mais
esculhambado. Parece que iam no circo só para se divertir, dizendo coisas que
vinham na cabeça deles, do povo baixo da geral. Mas a gente tinha que aturar.
Depois com a continuação dos espetáculos, nós íamos, vamos dizer, domando esse
povo para eles saberem assistir. Falávamos muito com eles e ia melhorando. Não
era fácil não, mas conseguíamos, porque se não, não dava certo. Por exemplo nós
armamos uma vez em Fortaleza, no tempo forte da guerra, 1938/39. Em 1939
quando estava no auge da guerra, nós tínhamos peças da guerra também. Peças
antigas que eram adaptadas para a guerra atual. Ou então peças novas feitas para a
180
guerra. Tinha uma peça chamada Os Sicários de Hitler, era uma delas. E
mandávamos fazer roupas, tipos franceses, tipos americanos, ingleses, que tinham
os aliados. Os russo eram os aliados, naquele tempo tal. E até dos alemãs, que na
peça eram os inimigos. E íamos fazendo grande coisa. Fizemos tão bom ali dessa
temporada que nós ficamos com o circo no mesmo terreno, demoramos seis meses
naquele terreno. Por que? Por causa das peças, né? Por causa da guerra que
tinham muitos militares. Tinha peças militares que nós usávamos metralhadoras,
fuzis, essas coisas, os militares que traziam deles lá para emprestar para nós
usarmos no circo. O militar com aquelas coisas de guerra. E também, tanto em
Fortaleza como em Natal, nós tivemos em Natal. Nós íamos dar espetáculo lá em... Como chamava ali? O lugar que tinham os americanos lá, muitos americanos, uma
sede americana lá. Tem até um nome lá. Eu não posso nem lembrar mais. Parece
que era Parnamirim, onde os americanos ficavam. E nos íamos dar espetáculos
para eles. Eu tenho um livro de ouro, muito bonito. Parece que tem qualquer coisa,
no livro lá. O comandante do exército agradecendo e tal. E em Natal, na capital,
tinha uma boate America, tinha um outro nome lá. E nós íamos também, levávamos
nossa orquestra para tocar. Levava alguns números lá para apresentar. Sempre de
graça, nunca cobrávamos nada para os militares. Então eles agradeciam e diziam
que aqueles que estavam prestes a conhecer o perigo da guerra e tudo, se distraiam
e tal. Bom, vamos para a frente.
Moira – Eu vou perguntar de três peças e o senhor me fala o que se lembrar. E o
Céu Uniu Dois Corações?
Roger – Essa peça é de um autor aqui de São Paulo. Como era o nome dele, meu
Deus do céu? Antenor Pimenta. Eu tenho o livro da sobrinha dele, fala tudo da vida
dele. E fala muito dessa peça que ele fez. Como é o nome mesmo? E o Céu Uniu
Dois Corações. Nós levamos muito e agradava muito, muito, muito. Nós fazíamos
uma apoteose bonita, tinha um palco já naquele tempo. A moça morre, o rapaz vai
pegar o cínico e o cínico atira nele, ele morre também. Mas vai se arrastando até
onde está a esposa dele, a Neli. Cai por cima dela: “Neli, Neli” e fica morto, os dois
mortos ali. Aí a luz rapidamente apaga e acende. A Neli já é outra moça que está
imitando a Neli na cama. E ele, naquela mesma posição, sai pela cortina. Meu
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sobrinho entrava e ficava naquela posição. Então o povo via os dois ali, para os dois
aparecerem na apoteose. Apoteose muito bonita. Nós fazíamos dois corações
grandes, onde a gente entrava assim no meio, não entrava o corpo todo não, meio
corpo, do lado e do outro. E ele ficava chamando: “Neli, Neli”. E aqueles corações
iam andando assim, e eles iam andando dentro dos corações, até os corações se
unirem. Era muito bonito, agradava muito e era o fim da peça. Essa apoteose. A peça se chama A pupila do senhor pastor. O pastor era eu. A outra filha, mais
nova do que ela, pequena. As duas eram uma só. Aparecia primeiro a pequena,
depois no outro ato já era a grande. A primeira ficava ao lado da mãe, e a mãe
morria. Em cena, numa cama. E a mãe estava muito mal, muito mal e a filha, era
fantástica a minha filha, as duas. A minha filha entrava pequeninha, cega, chorando
com a mãe. O povo tudo chorava, não fazia algazarra nessa não. Depois acabava
aquele ato e o segundo ato era o pastor, mais idoso. No primeiro ato eu usava uma
peruca bonita. No segundo ato tirava e ficava careca. E aí era a mesma filha, adulta.
As duas eram cegas. E tinha, não sei se era um filho, o que que é, que queria casar
com a filha. Aí o pastor não queria e tal, é enredo de peça, muito bonito, muito bonito.
No fim, terminava, essa filha morria também. E lá no monte grande e tal, o pastor
levava ela assim no colo, e fazia umas falas bonitas, jogava ela no precipício. Eu não
lembro mais dessa, faz tempo também. Era a única peça que ela tomaram parte. A
pequena não, a pequena fazia mais peças. A Ronita estudava mais, a Roseli, como
era pequena, ficou mais tempo no circo e tomava parte das peças. Muito bem. Tem
mais outra peça?
Moira – A outra é A Mestiça.
Roger – Nem me fale da Mestiça: Mostraram-me um dia na roça dançando Mestiça
formosa de olhar azougado Um lenço de cores nos seios cruzado Nos lobos das
orelhas pingentes de prata Que vive... Bom, eu cantava isso na peça. Tinha uma cena, porque a Mestiça era a minha senhora. Como essa peça era um
sucesso, sucesso! O povo queria... Quando nós estávamos em Maceió, com aquele
sucesso, aquele sucesso. Mas a minha senhora ficou grávida. Quem fazia a Mimosa
era a filha do Piolin, Ayola. Ela fazia a Mimosa, estava grávida também. E a gravidez
dela eram de duas meninas. Então estava bem volumosa. Então nós anunciávamos,
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pelo rádio, porque o povo queria A Mestiça “queremos A Mestiça”. A gente
anunciava, não tinha televisão naquele tempo, anunciava no rádio, mandava o rádio
anunciar que não podíamos mais levar A Mestiça porque a Mestiça estava em
estado interessante, e a Mimosa também. Então eles respondiam: “Nós não ligamos
para isso não”. Eu vou lhe contar uma coisinha que estava no livro também, talvez a
senhora vá lembrar. Se não lembrar, fica sabendo agora. Nós estávamos em Maceió,
como eu falei agora, conforme agradava tremendamente A Mestiça, né? E tinha que
levar A Mestiça. Quando a temporada ia baixando, diminuindo o povo, anunciava A
Mestiça e era o mesmo que estrear de novo. A Mestiça é do meu sogro Agenor que
extraiu do romance, ele fez a peça do romance, tem um romance A Mestiça. Muito
bem! Então, eu estava falando que em Maceió fez muito sucesso. E chego lá em
Maceió uma companhia de teatro. Por sinal o dono do circo era o Mesquitinha, era
um dono de, um ator cômico que tinha uma companhia de teatro e era famoso.
Mesquitinha. Ele vinha trabalhando até Maceió, chegou em Maceió, estreou o teatro.
O teatro até bom e ele muito bom artista, mas o espetáculo não agradava, o povo
não ia assistir. Nós tivemos que ajuda, o nosso circo, minha família, né? Porque eles
estavam necessitando já, já vinham perdendo dinheiro. Coitado. Tivemos que
comprar uns telões, uns armários, umas coisas que nós não precisávamos, mas
para ajudar também. Mas não é isso que eu quero dizer. O que eu quero dizer é o
seguinte. Uma vez eles vieram assistir o nosso espetáculo. E eles assistiram o nosso
espetáculo e por acaso era A Mestiça. Quando levávamos A Mestiça era só a peça,
não tinha a primeira parte cômica. Porque a peça era um pouco grande, tinha dez
atos. Cumprida, né? Então agradava muito, muito, muito. Não tinha como entrar, era difícil no circo, era difícil de sentar. Nós falávamos: “Olha
o colega do ramo, eles se ajeitam em qualquer lugar, eles ficam”. E eles se ajeitaram.
E tinha um ator, e esse ator era... Como se diz essas coisas? Era... Ele não era bem
homem. Como se diz? Era mulher e homem misturados. A senhora sabe o que eu
quero dizer. Tem um nome desse pessoal, sexual... Não sei que lá. Ele era assim.
Ele era delicado, tudo o que ele fazia era delicado, e tal. Depois o meu cunhado,
irmão da minha senhora, casou com a filha do Piolin, Ayola. E estavam trabalhando
no circo. Ela fazia a Mimosa e tal, ele fazia sempre o feitor, não era o galã da peça.
Então eles foram embora, saíram do circo, porque ela deu a luz em crianças também.
Eram duas meninas e uma morreu, não vingou. E a outra
183
estava bem, queriam tratar melhor e então vieram para São Paulo. E muito bem.
Estão em São Paulo. E um dia o Nelson, marido dela, que o Piolin era sogro dele.
Ele era casado com a filha do Piolin. Estavam na porta do circo antes de começar o
espetáculo conversando, de tarde, na porta do circo e na rua. Dentro do circo, mas
entre a porta e o circo. Alguns artistas, o Nelson e o Piolin, conversa, conversa
informal. Estavam lá conversando sobre isso, isso, aquilo. Aí chegou este artista do
Misquitinha, esse delicado, chegou, cumprimentou a todos, entrou na conversa
também. Todo mundo já conhecia ele. Ele era artista de teatro e tal, mas era desse
jeito. De repente ele falou: “Seu Piolin, seu Abelardo, que o Piolin chamava-se
Abelardo Pinto. Seu Piolin, eu estava com a companhia do Misquitinha em Maceió. O senhor não sabe o que foi que eu vi.” “O que foi que você viu lá?” “Eu vi, eu fui ao
circo que tinha lá, estavam levando A Mestiça, mas seu Piolin a moça que fazia a
Mestiça estava grávida! Com o bucho desse tamanho. Pois é, eu fiquei bobo de ver
aquilo. Como é que a ingênua da peça está grávida e está representando? Como é
que tem coragem disso aqui?” Aí o Nelson, que era irmão dela. Irmão da Anita, disse:
“Ah, isso não tem importância não. Ela é minha irmã. Quem fazia isso era a minha
irmã, uma grande artista.” Ele já ficou meio sem saber o que fazer, o que falar.
Estava falando mal da moça e era irmã do Nelson. Aí ele disse: “A Mestiça não era
nada, ela usava umas saias grandonas feito escrava, quase não aparecia. Mas o
pior mesmo era a mocinha a Mimosa, que estava grávida dupla com o bucho desse
tamanho.” E ele metendo o pau, o que ela estava fazendo a mocinha? A Mimosa da
peça com uma barriga desse tamanho. Aí o Piolin falou: “Bom, às vezes é obrigado,
Ayola é a minha filha.” “É sua filha?! Oh, desculpa, desculpa.” Então ele deu um fora,
não estava dando certo. Que coincidência, né? Ele estava falando da irmã do Nelson
e da filha do Piolin. Pois é bobagem, coisas que aconteciam. A Mestiça estava presa no tronco, com as mãos presas no tronco, em cena. De noite,
de madrugada, eu saia da casa, que tinha no teatro a frente de uma casa. Eu saia, o
microfone já estava enganchado lá. Eu saia com o violão, ia perto do microfone e
cantava “A Mestiça”. E ela estava presa porque ela tinha fugido, para encontrar uma
coisa interessante da peça. E ele terminava de cantar, ia no meio do palco e falava:
“Porque você fez isso, Mestiça? Porque você fugiu?” “Mas eu voltei seu feitor, eu
voltei.” “Não voltou não, porque a Mestiça que eu amei morreu. Cai o pano. Fim
desse ato.
184
E o público ficava encantado. No final ele casava com ela. Na frente da casa descia
um portão, um negócio que já estava preparado. E era o altar de uma igreja. Entrava
um padre, tinha o moleque Saci, também que era cômico também, muito cômico.
Entrava de braço com ela e ele fazia nosso casamento. E nós terminávamos a peça
casando. E a Dona Maria era brava, a mulher do Nhô Gonçalves. Mas não queira
saber que sucesso era essa peça. Que peças você foi arrumar do Circo Nerino! Que
coisa! (risos) Mas muito boa, muito boa a peça! Agradava, mas agradava. Uma vez
em Natal... O pano do circo a gente encerava para quando chover não atravessar
água. E só estava encerado um pedaço, ainda não estava encerado tudo. O pessoal
da geral, das cadeiras, correram tudo para o picadeiro, porque não chovia ali. E caia
aquela chuva e nós levando A Mestiça. E agradou do mesmo jeito. Aí eu falava: A
Mestiça é uma peça que agradava no seco e no molhado. Agrada de todo o jeito!
(risos) Eu tenho uma pena de nós não levarmos mais essas coisas aqui. Agradava o
público e nós que estávamos representando.
Moira – E aquela: Jerônimo, o herói do sertão?
Roger – Quem era o herói do sertão? Quem você acha que era?
Moira – O senhor?
Roger – Era eu sim. Jerônimo era uma peça que a rádio Nacional do Rio inventou.
Tinha o Jerônimo e o companheiro dele, o moleque Saci. Jerônimo, o herói do sertão,
já está dizendo o que ele era. Então nós levávamos, tinha umas duas ou três peças
com o Jerônimo, o herói do sertão. Era um diretor que ensaiava as peças, que
extraia de livretos, disso, daquilo, e fez as peças. Uma chamava-se, era... Três
peças. Eu me lembro, deixa eu ver qual que me lembro. Ah, meu Deus do céu como
estou ruim, faz tempo que não faço palestras, não faço essas coisas. Faz muito
tempo. Porque eu só fazia de Picolino. Fazia palhaçada de Picolino. Depois como eu
estava cansado comecei a fazer palestras. Depois eu fiquei doente, fiquei
hospitalizado um tempo. E esse tempo foi passando, passou um tempo e as
palestras foram ficando, ficando. Então, essa peça aí o Jerônimo, o herói do sertão,
ele sempre trabalhava para o bem, não é? E tinha os cínicos, aquela coisa, ele
185
lutava, usava revolver. Muito bem. E o moleque Saci era ajudante dele, era o cômico
da peça. E uma chamava-se Herança Maldita. Parece que é nesta peça que não
tinha um homem que não tinha uma perna. Era uma perna de pau, quando ele
andava fazia toc, toc, toc. E ele sempre aparecia de noite, em silêncio. Aí o povo já
sabia que era ele. Sabia que era o bandido, o fantasma, sei lá. Ele briga por causa
de herança. E o Jerônimo sempre estava ali, tomando conta das coisas, né?
Botando as coisas no jeito. No fim descobriram que essa perna era mentira, ele tinha
a perna boa, ele que botava um negócio ali. E era da família, irmão da moça... Era
uma coisa assim. Mas o povo gostava, viu? Gostava os grã finos e o poleiro da geral.
Tinha uma outra que se chamava Uma cruz na estrada, e tinha outra mais também.
Jerônimo, o herói do sertão e o moleque Saci. Levávamos em propagandas,
programas assim para espalhar, com o retrato do Jerônimo e do moleque Saci. E da
Mestiça também, do feitor com a Mestiça. Bonitos programas, bonitos.
Moira – Quem fazia o moleque Saci?
Roger - O moleque Saci parece que era o... Tiveram dois que fizeram. Porque
depois do moleque Saci da Mestiça, era o mesmo que fazia no Jerônimo. Até o
nome, moleque Saci também. Um pretinho, na Mestiça, que fazia a comicidade
também, mas não tinha aquele defeito nas pernas não. Tinham dois rapazes
baixinhos, que se pintavam de negro, para fazer o moleque Saci. Um era o cantor do
circo, ele chamava-se, ele morreu já, ele chamava-se: Paulo Sobral. Grande cantor
pernambucano que fazia muito sucesso. Ele cantava no circo músicas mexicanas e
ele se apresentava como o mexicanito. Ele se arrumava no violão, cantava aquelas
músicas mexicanas e agradava bastante.
Moira – Na primeira parte do espetáculo?
Roger – Na primeira parte sim. Ele fazia ponto também, quando precisava ele ia
para o ponto, para a caixa do ponto. Ele que fazia o ponto. E o outro depois era só o
ponto, pois esse saiu. E aquele que fazia o ponto saiu, era o Walmir, baixinho
também. Fazia a mesma coisa que o outro mudou, apenas saiu um e entrou o outro.
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Paulo Sobral o cantor e Walmir, um rapaz que entrou no circo em Maceió, porque
gostava da gente, da família. E acompanhou o circo, acompanhou o circo e ficou no
circo, não saiu mais do circo. Até parar o circo ele ficou no circo. Deixamos ele em
Cruzeiro. Puxemos ele numa fábrica de vagões, de trem essas coisas. Ele era
inteligente. Ele mora em Cruzeiro. Ele tem família, tem irmãos, filhos, a senhora dele
e tudo. De vez em quando ele vem passear com a senhora aqui. De vez em quando
eu ia lá. Agora não saio mais nem de casa. Do jeito que estou, né? Tenho
dificuldade para andar. Bom, acabou então?
Moira – Só tenho mais uma pergunta. Vocês mencionou que tinham uma orquestra,
a música era bastante presente no Circo Nerino, não é? A orquestra fazia também
as sonoridades da peça? Aqueles sons que enfatizam o acontecimento cênico?
Roger – Nós tínhamos duas coisas que faziam isso. Nós tínhamos os aparelhos de
som, porque nós usávamos no palco microfones com caixas acústicas. Para a gente
não usar o microfone falava bem forte para os microfones pegarem. E nos aparelhos
de som tinha essas músicas bonitas, conforme precisava a peça. E muitas peças,
muitas músicas eram do circo, orquestra do circo que fazia. Então tinha esses dois
movimentos musicais. Conforme eu já lhe disse, eu cantava a Porta aberta, com os
músicos acompanhando. Já O Ébrio já estou num bar muito esculhambado que o
ébrio vivia ali. Ele e o companheiro dele, o... Vicente? Não me lembro como era o
nome do ébrio.
Moira – Gilberto?
Roger – Gilberto Silva. Olha aí está melhor da cabeça do que eu. (risos) Gilberto
Silva e o companheiro dele era o... Como era mesmo o nome dele? Ele era meio
cômico esse homem. Tanto que duas coisas engraçadas no final da peça: ele já
tinha abandonado, a mulher fugiu e levou as joias com tal. Aí eles ficaram
conversando na mesa do bar, ele o companheiro dele. Bebendo, os dois bebões
mesmo. Sempre tinha que vir uma garrafa de cerveja geladinha para a gente
aproveitar também, né? Bom, vou falar qualquer coisa ligeiro disso aí. O... Como era
o nome do companheiro dele? Bom, eu vou lembrar. Ele perguntava: Gilberto, você
187
que é médico o que acha das mulheres? Se eu lembrar alguma coisa vou falar, viu? Se eu lembrar. Se eu não lembrar, fica por isso mesmo. “As mulheres, meu amigo,
são...” Aí ta vendo, tudo empacado. “são prisioneiras?” Não. “As mulheres são
sofredoras desde o berço até o túmulo, mas quando a mulher tem o dom da
maternidade, quando vê o rosto do nenê, elas...” Ta tudo errado, tudo errado. “Todo
sofrimento desaparece como por encanto. E ela é feliz. Pela vaidade da procriação.” Quem está escutando é o dono do bar e é um português broco, daqueles
portugueses bem burro mesmo. Qualquer conversa que eles tinham, ele ia escutar. Quando acabo de falar isso, ele batia na mesa e dizia: “Eu que o diga.” “Ué, seu
Manoel já procriou?” “Não senhor, eu não, minha mulher.” “Nós estamos falando de
procriação e o senhor se espremeu todo aí.” “Eu não gosto de brincadeira, comigo
não hein? Não brinca comigo não.” Então eles falavam: “Poxa que susto, hein? Eu
pensava que tinha chegado a nossa vez.” Bom, uma era essa, a partezinha cômica. A outra entra no bar dois ou três. Uma senhora, um senhor e tal. Que eram esse
povo que vem conhecer o país e tal, eram turistas. Turistas. Entravam e sentavam
numa cadeira, pediam uma bebida e tal, ficavam ali. E depois ficam olhando e
chamava: “O senhor aí.” Era eu, o Gilberto Silva. “Quem eu?” “O senhor, chega até
aqui, por favor.” Eu chegava até eles. “Como é o seu nome?” “Eu já tive um nome,
mas já esqueci. Esqueci do meu nome.” “Porque é que o senhor bebe?” “Eu bebo
para lembrar também. O senhor quer saber porque eu bebo? Eu vou lhe explicar
porque eu bebo.” Aí é que ele cantava O Ébrio: Tornei-me um ébrio e na bebida
busco esquecer Aquela ingrata que eu amava e que me abandonou. E cantava O
Ébrio todo ali, a música do Ébrio. E dizia para ele: “É por isso que eu bebo”. E ia
saindo lá para a mesa. Aí ele chamava o Pedro Cruz! Sabia que eu ia lembrar: Pedro
Cruz. E chamava: “O senhor, faça o favor.” O outro era meio gozador. “Quem eu? Já
vou tal” Ia para lá capengando mesmo. Aí perguntava para ele. Uma comicidade rápida, o
povo ria. “Porque é que o senhor bebe?” “Ah, eu bebo para esquecer.” “Esquecer o
quê?” “Não sei, não lembro, já esqueci” E o povo gostava. “Esquecer o quê?” “Não
sei, já esqueci.” E saía. Eram as duas partes cômicas, aí chegava a mulher e tinha
aquele negócio todo, era o final da peça. Chegava a mulher, ele ia entrando. A
Marieta que fugiu com o outro cara. E ela estava procurando o marido que era o
Gilberto. Aí o Pedro que já conhecia a história, da mulher e do Gilberto. Ia recebê-la.
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Marieta: “Quero ver. Vamos lá falar logo.” “Não, você fica escondida, primeiro vou
falar com ele, depois eu lhe chamo.” Aí que ele fazia aquela fala: “Gilberto, você que
é médico. O que você diz das mulheres?” Aquela coisa que lhe contei. Aí ele dizia:
“E se sua mulher aqui aparecesse?” “Minha mulher?” “Eu estou falando por acaso.
Por acaso ela aparecesse. Você perdoava?” “Perdoava.” “Palavra de homem?” “De
homem e de bêbado também”. Aí ele saia e chamava ela, que estava escondida lá.
Ela ia falar com ele: “Gilberto.” E se ajoelhava na frente dele. Ele se assustava:
“Marieta” Aí olhava para o Pedro Cruz e o Pedro Cruz falava: “Eu falei por acaso, eu
falei por acaso.”. O povo ria dessas bobagens que ele fazia. “Perdão Gilberto,
perdão.” “Você já foi perdoada”. Quando ele casou com ela, ela deu uma medalha
com um coração, ela dizia que este era o meu coração para ele. “Você está
perdoada. Há muito tempo que eu já lhe dei o seu coração”. Ele tirava a correntinha
com aquela medalha: “E eu lhe devolvo o seu coração”. Devolvia a medalha para ela
que era um coração. E saia andando. “O Gilberto, você não ia perdoar?” Aí vem a última palavra da peça, que encerra a peça, a palavra chave da peça e termina a
peça. “Você não falou que perdoava?” “Eu falei que perdoava, mas não falei que me
reconciliava.” E saia andando: “Tornei-me um ébrio...” E saia cantando e a cortina ia
descendo. Como agradava sucesso. Todas essas peças que você falou foram
sucesso fantástico do Circo Nerino. E nós levávamos as outras também, as
comédias, porque demorava nas cidades, quer dizer, onde a cidade era maior, a
população era maior, podia demorar mais. Cada espetáculo é um novo programa,
tanto da primeira parte quanto do teatro. E tinha sempre bastante gente assistindo o
circo, a temporada toda. E fizemos muito sucesso de ponta a ponta do Brasil. O que
a senhora quer saber mais?
Moira – É só uma curiosidade, o senhor disse que é maçom. Sempre teve essa
relação do circo com a maçonaria?
Roger – É. Em quase toda a cidade que nós íamos, nós dávamos um espetáculo
para a maçonaria. Porque eles estavam quase sempre construindo o templo deles e
eles pediam um tijolinho do templo para nós. Nós dávamos aquele tijolinho era o
resultado de um espetáculo. Entregava para eles e eles compravam os tijolinhos que
eles queriam lá para fazer. E eu tive muita sorte na maçonaria, sempre ajudando,
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sempre ajudando. E tinha o livro em que explicavam como nós ajudávamos, nisso e
naquilo da maçonaria. Eu fui iniciado em Fortaleza, por causa daquele tempo, que
tem um tempo para ser iniciado na maçonaria. Porque tem um tempo, se não tiver
morando na cidade, e eles tem que fazer aquela pesquisa da pessoa, o que é o que
não é. Entrou eu e meu tio Gaetan. A senhora sabe quem é Gaetan, né? Muito bem.
O homem da garganta de platina, o pato rouco. Em Fortaleza. Então lá eu cheguei a
ser levado até o grau trinta, o último grau é trinta e três. Do trinta para o trinta e três
é difícil, muito, muito difícil. Tem que estudar muito e eu estudei. Aí eu não queria
mais ser elevado na maçonaria. Eu achava que o grau trinta, era o cavaleiro Kadosh
era muito bom e não precisava mais alto. Mas cheguei aqui em São Paulo, tem um
irmão aqui ele é formidável, muito amigo. Ele disse: “Você vai subir, você vai passar
para o grau trinta e um. Então trate de comprar o livro tal e tal. Quando estiver pronto
você me avisa e faz o exame e passa para o grau trinta e um”. Assim foi com o grau
trinta e dois, eu não queria mas ele... Aquela pessoa que dá um empurrãozinho de
ombro, né? Pois é, grau trinta e dois, eu tinha que ir no palácio maçônico toda
semana para ouvir o que eles falavam, para estudar. Comprava os livros, eu tenho aí
ainda os livros. “Você agora vai pegar o último grau: trinta e três. Só que o grau trinta e três só é entregue no Rio de Janeiro. Quando você estiver
pronto nós vamos ao Rio de Janeiro e recebe o grau trinta e três.” Eu sabia do nome,
o que eles faziam lá, sabia tudo, nem disso eu me lembro mais. Faz tempo viu? Aí é
que foi fogo, estudar aquele grau trinta e três, minha nossa Senhora. Mas eu
consegui estudar, fui ao Rio, recebi o grau trinta e três, é o último grau da maçonaria.
Pois bem, tempos depois, está vendo que estou com uma medalha aqui no peito?
Esta medalha é a última medalha que a maçonaria entrega para o maçom. Última
coisa. É o maior evento que tem na maçonaria, esta medalha. É a medalha de Dom
Pedro I. Tem muito pouca gente que tem essa medalha. A senhora não faz ideia.
Veio o grão mestre geral da maçonaria no Brasil, veio de Brasília que é a sede do
grande Oriente. Veio aqui em São Paulo no dia da minha recepção para entregar a
medalha e pôr no meu pescoço. Foi um festão, um festão. Esse retrato fizeram dois,
um me entregaram e o outro levaram para o palácio maçônico e ficou exposto lá.
Igual a esse. Pois bem, foi um festão. Agora veja como acontecem as coisas. Esse
era a última medalha que chegava, pouco tinham essa medalha, poucos chegavam
a ela. Felizmente, graças a Deus, eu cheguei. Agora, veja só o que
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aconteceu. Quiseram me homenagear na minha loja, aqui em São Paulo, como me
elogiaram para receber aquela medalha. Mas a maçonaria não tinha mais medalhas.
Aquela era a última, dali para cima não tinha mais. Sabe o que eles fizeram?
Fizeram uma outra medalha, pouco menor do que esta, porque cada medalha, no
centro, tem a figura da pessoa. Essa aí tem o Dom Pedro I, na minha tinha a minha
figura no centro. E era uma medalha, quando eles queriam homenagear uma pessoa.
Fantástico, incrível, não gosto nem de falar sobre isso. Pois é, agora eu quase não
posso fazer mais nada. A maçonaria precisa daquele vigor e tudo. Você sabe que
desfilei agora no carnaval? Nossa foi fantástico, eles fizeram... Era da Vila Maria. A
escola de desfile. Eu já tinha sido de circo, de rádio (tinha rádio no circo, eu fui de
rádio), eu fui de teatro, aquele velho que lhe contei do teatro. Eu fui de... Do que
mais eu fui? Eu fui de muita coisa na vida, muita coisa, nem me passa pela cabeça.
Só faltava ser de carnaval. Como é? Do carnaval? É como se fosse sambista,
carnavalesco! Agora eu sou carnavalesco também. Eles fizeram... Essa caminha que
eles fazem no desfile. Ano passado eles desceram para o segundo grau, segunda
posição. Então eles queriam voltar para o primeiro, então eles fizeram coisas alegres,
brincadeiras do passado. E entrou o circo. O pessoal da maçonaria usava este
desfile. Vieram me chamar se eu queria fazer o Picolino lá. Eu nunca fiz, mas eu vou
fazer Picolino. “Você vai desfilar, tá? Esse negócio tem que subir, passar para a
primeira posição.” Eles fizeram uma cabeça, duas vezes o tamanho desta sala. Tem
tanto retrato aí. Enorme a cabeça do Picolino. Da língua do Picolino, saia uma língua
comprida, subiam por trás e escorregavam pela língua. E eu ficava em cima da
cabeça, fantasiado, cumprimentado o povo. O negócio foi um sucesso! Ganhamos o
desfile. Muito bom. Fiz da minha vida feliz. Muito feliz!
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Entrevista 2 – Walmir dos Santos
Walmir - Ela ficou na cidade esperando a hora de ir para a maternidade. E eu com a
responsabilidade de ligar para o Roger para ele vir, porque o circo estava numa
cidade vizinha. E desse encontro, dessas visitas que eu tinha frequente com ela,
para saber se ela precisava de alguma coisa, chegou no final do ano e eles me
convidaram para passar as férias. Eu estava de férias da escola, estava terminando
o primeiro ano do ensino médio e trabalhava na secretaria da escola. Estava de
férias dos dois lados, né? Aí fui passar essas férias com eles, e essas férias durou
quinze anos. Aí o circo acabou aqui, em Cruzeiro. E já tem cinquenta. Tinha quinze,
eu fiquei no circo, trinta. Mais cinquenta aqui, oitenta.
Moira – E o senhor sempre voltava para a sua cidade natal, Maceió?
Walmir – Voltei pouquíssimas vezes. Na época do circo, eu fui duas ou três vezes. E
minha mãe veio, meus irmãos vieram também. Aí ficamos aqui em Cruzeiro, daqui
de Cruzeiro eu fui duas vezes só a Maceió. Depois eu nunca mais fui.
Moira - E tem parentes lá?
Walmir – Tenho primos que eu nem me lembro mais, que já nem devem estar vivos.
Que quantos anos eu saí de Maceió?
Mas foi uma aventura muito gostosa. Foi muito bom! Deixou muitas saudades em
todos os lugares. Ele funcionou um mês e meio seguindo. Quando nós chegamos
aqui eles já estavam com aquela ideia de fechar o circo, encerrar as atividades. Já
havia um tempo que eles estavam querendo, e veio vindo, veio vindo, chegou aqui
em Cruzeiro, eles resolveram.
Aí, a maioria dos outros artistas foram para outros circos, eu não tinha intenção de ir,
porque eu fui praticamente criado com eles. Com quinze anos eu fui morar com eles
né? E fiquei por aqui.
Aí, fui estudar, porque eu tinha parado de estudar. Não tinha ensino médio à noite. O
único ensino médio à noite era o técnico de contabilidade. Aí eu fui fazer. E quinze
dias depois que o circo acabou entrei na fábrica. Eu casado já e com três filhos,
tinha que trabalhar, né?
192
Moira – E o circo sustentava todos, não é?
Walmir – Sim, tinha salário, todo mundo era assalariado, tinha seu. E eu fiquei de pé
e mão amarrada, porque era eu, a esposa, três filhos, minha mãe e irmã; estavam
comigo. Mas logo, como diz o ditado: Deus é muito generoso e muito bom, e não
despreza ninguém, né? Me arrumou um emprego logo. Com treze dias e eu estava
trabalhando. E fiquei na fábrica quase trinta anos, me aposentei na fábrica. Aí
terminei o técnico e fui fazer faculdade, terminei administração. Depois fui dar aula
no CEMA, de contabilidade. Depois mandei uma proposta e fui para Jundiaí,
trabalhar em uma empresa em Jundiaí. Lá eu fiz pós-graduação. Tudo que dava
para eu fazer, eu estava fazendo. Até que um filho quis montar uma empresa e pediu
para que eu viesse para cá. Eu fiquei dez anos em Jundiaí. Aí ele falou pai eu quero
o senhor aqui, aí eu vim, né? O que é que a gente não faz pelos filhos? Mas tudo foi
válido, não posso reclamar de nada. De vez enquanto tinha as voltas, né? Mas muito
bom! Eu estou feliz, porque os quatro, todos bem. A minha filha que é a segunda,
primeiro é o marido daquela menina, depois é a minha filha. Ela é psicóloga, trabalha
muito, tem consultório em Salvador. Teve aqui comigo por três anos, montou
consultório aqui, trabalhou muito. Foi embora agora para Salvador, todo mundo
querendo segurar ela, ninguém queria que ela fosse embora. Trabalhou em um
Instituto em São José, o Instituto VOCE. Nossa foi um show! Mas está na Bahia, ela
gosta de lá. Em Salvador mesmo. Tem apartamento, é solteira, não quis saber de
casamento, não quis saber de filhos. Ela falou: Meus filhos são meus sobrinhos,
acabou. Esta bem.
O Jerônimo foi, quando eles montaram o Jerônimo, eu não trabalhava. Quem
trabalhava era um outro ator, que era até um cantor, Paulo Sobral. Aí quando Paulo
Sobral saiu, aí na última hora me jogaram o papel. Porque eu fazia a Mestiça, Tico-
Tico. Fazia ...E o Céu Uniu Dois Corações, o gago, o Juca. E depois que o Paulo
Sobral saiu, é que eu fui fazer o moleque Saci, no Jerônimo. Até o tipo físico era
parecido, só que era branco, ele que bem claro. Ele era cantor, ele cantava músicas
em castelhano, sabe? Era um bom cantor brasileiro. O moleque Saci ele fez poucas
vezes, porque a peça foi montada e logo ele saiu.
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No livro Circo Nerino não tem nada sobre o Garrafinha. O meu nome foi dado devido
a um personagem, que era o Garrafinha. Que era uma peça de estreia, não me
lembro o nome agora, eu sei que o personagem se chamava Garrafinha. Foi eles
cismaram que eu ia ser, o Roger ficou doente, foi para São Paulo fazer um
tratamento, ficou alguns meses fora, então me jogaram essa fria. Eu fiquei uns
quatro ou cinco meses fazendo o palhaço principal, até o Roger voltar. E depois que
ele voltou eu continuei trabalhando com ele, mas não como palhaço, eu fazia o
clown que eles chamam. Cada vez que ele precisava sair, ou estava cansado, ele
falava: hoje você vai. E nas matinês era eu que fazia.
Moira – O pai dele já não estava mais atuando?
Walmir – Não, o pai dele morreu em 62. Ele morreu uma semana antes de minha
filha nascer.
Moira – E o senhor era muito próximo dele?
Walmir – Muito próximo, muito mesmo, era como se fosse o meu pai. Eu cuidava
muito dele, tudo que ele precisava era eu. Às vezes a filha dele fala: “Papai o Walmir
não está aqui.” “Tudo bem eu espero”. Ele fazia um curativo, ele tinha um eczema,
ele fazia curativo. Esse curativo era eu que tinha que fazer. Alguém fazia quando eu
não estava, às vezes eu saia com o Roger para ver praça, fazer a visita na cidade
para poder montar o circo, e ele tinha que fazer o curativo e a filha: “Pai vou fazer o
curativo.” “Não, quando o Walmir chegar...” “Pai, o Walmir vai chegar tarde”. “Não
tem problema, a hora que ele chegar”. Mas terminava fazendo, porque não podia
ficar esperando. Mas eu chegava e tinha que desmanchar o estava feito e fazer de
novo. Ele não ficava satisfeito, tudo, tudo, tudo, a medicação, tudo. A dona Ivone,
que era filha, a própria Armandine, que era esposa, ele queria que eu fizesse. E eu
fazia, aquilo ali foi muito bom, foi uma coisa assim que até hoje eu sinto, porque foi
um paizão para mim. E o meu filho mais novo era pequeninho, nossa ele era
apaixonado por criança! Então já tinha mais alguma coisa para me ligar, né?
Quando ele foi para o hospital, lá em Itabira, fui eu e o Roger. Na hora de ficar lá, eu
tinha que ficar. O Roger falava: “Pai, o Walmir está cansado. Eu fico aqui e ele vai
embora”. “Não, ele tem que ficar”. Aí ficava eu e o Roger. Mas sempre assim, até a última hora. No domingo que ele faleceu foram dois espetáculos, o espetáculo da
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matinê e o da noite. Eu estava morto de cansado, a minha filha era novinha, não
dormia direito, eu estava morto de cansado, aí eu falei para o Roger: “Hoje eu não
vou ficar, to muito cansado”. Aí ele falou assim: “É, você pode ir embora”. Aí eu fui
falar com ele, não adiantou, ele começou a chorar. “Não, não vai, não vai”. Aí eu falei
para o Roger: “Avisa lá que eu não vou”. Aí ele mandou o sobrinho para ficar lá
também comigo. Naquela noite ele faleceu.
Moira – Foi durante o espetáculo?
Walmir – Não, foi após o espetáculo, foi bem... Eu já acabado o espetáculo, tinha ido
para lá pra ficar, pra dormir e não ia ficar, e terminei ficando, mandei só avisar em
casa que eu ia ficar. E naquela noite ele faleceu.
Moira – E a sua escola foi o Circo Nerino?
Walmir – Foi, a minha história de circo e teatro foi no Circo Nerino, eu não conheço
outra.
Moira – Em Maceió o senho teve contato com algum outro circo?
Walmir – Não foi o único circo. O primeiro contato que eu tive com o circo, de assim
me aproximar, foi o Nerino em 1951.
Moira – E você então aprendeu sobre palhaço e criou o Garrafinha. Ele tinha um
figurino específico?
A maquiagem era diferente do Roger, a vestimenta também era diferente. O meu era
uma calça preta e um paletó xadrez. Eu até tenho fotografia, né? Tudo no Nerino e
até hoje a família... Eu me ligo muito. E até hoje o Roger, ele e a esposa são os
padrinhos do meu primeiro filho. E o menino que faleceu era meu afilhado. Quer
dizer a gente estava muito ligado, muito ligado.
Moira – O senhor atuou com os dois, com o casal, muitas vezes, não é?
Walmir – Nossa muitas vezes. Eu me lembro que no teatro sempre trabalhamos
juntos. Quando ele fazia o Jerônimo, eu fazia o moleque Saci. Ele fazia o feitor da
Mestiça e eu fazia o Tico-Tico. No Céu Uniu DoisCorações eu fazia o gago, a mãe
dele era a velha cega e a Anita era a menina que cuidava da velha. Então a gente
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estava sempre ali, né? E no dia a dia também. No dia a dia tudo a gente estava junto.
Moira – O senhor lembra como era que chegava uma nova peça para a companhia?
Walimir – Olha, quando eu comecei com o circo, ele já tinha um repertório. E esse
repertório permaneceu muito tempo, algumas foi ensaiado A pecadora, mais duas ou
três peças que foram ensaiadas, porque na época que eles montaram o teatro era o
pai da Anita que era o responsável. Era o ensaiador, o senhor Agenor Garcia. Então,
essas peças permaneceram por muito tempo, todas, que foi montada por ele. E
depois disso, depois que ele saiu, foi montada mais duas ou três peças e não teve
mais continuidade com outro repertório.
Moira – Ele saiu em função do que?
Walmir – Porque ele estava querendo descansar, então ele foi embora para São
Paulo. Ele saiu do circo, não foi morar em outro.
Moira – O senhor chegou a ensaiar as peças com ele também?
Walmir – Não, quando eu comecei as peças já estavam montadas. Quando saia um
eu entrava na vez dele, sabe? Eu substitui muito o Paulo Sobral. Os papeis de
cômico, geralmente era o Paulo Sobral que fazia. Quando ele saiu eu assumi todos
os papeis do Paulo Sobral. Eu estava ali, eu era o ponto, né? Na época eu era o
ponto, então eu sabia a cena. A Mestiça, por exemplo, eu pontuei a Mestiça muito
tempo. Aliás, todos os papeis que ele fazia, quando ele saiu eu já fui eu que assumi,
todos eles. Inclusive no Deus lhe pague ele fazia o mendigo junto com o Roger, esse
mendigo fui eu que fui eu fazer. O Juca, o gago, o Tico-Tico, o moleque Saci. O
moleque Saci ele fez na ocasião em que a peça foi montada, logo ele saiu.
Moira – E quem monta essa peça foi o Joaquim Silva ou o senhor Agenor?
Walmir – Não, teve algumas peças que foram montadas pelo Joaquim Silva, mas a
maioria foi pelo seu Agenor.
Moira – Acho que o Jerônimo foi pelo Joaquim Silva, não foi?
Walmir – O Jerônimo foi.
196
Moira – Ele veio de outro circo?
Walmir – Não sei, porque quando vinha alguém assim, já vinha com alguma
referência ou... Eu não tenho bem noção como que foi que ele começou. Eu lembro
que ele veio para lá, começou a montar as peças e eu não sei qual foi a referência
dele para o Nerino.
Moira – Ele ficou pouco tempo? Só o tempo de ensaiar essas peças?
Walmir – Sim e depois saiu.
Moira – Como vocês ensaiavam?
Walmir – A gente lia o texto, inclusive era eu que datilografava toda a peça por papel
de cada personagem. E depois nós íamos fazer a leitura, né? Cada um recebia a
sua fala e o ponto, a pessoa que ia pontuar, ficava ali para acompanhar, não é?
Então a gente fazia toda a leitura, cada um com o seu papel, até ir para a cena
treinar para a apresentação. Aí já sem o papel, só ouvindo o ponto.
Moira – E isso duravam muitos dias?
Walmir – Não, não, não, durava o quê? Uns quinze dias no máximo. Nós
ensaiávamos todos as tardes, né? Às duas horas começava o ensaio, ia das duas
às cinco.
Moira - E o seu Agenor, que ensaiou muitas peças, orientava os atores, dizendo o
que fazer?
Walmir – O ensaiador interferia sim, na maneira de você falar, como você devia
estar em cena. Tudo isso o ensaiador tinha que passar. Quando já estava entrosado
já não tinha mais problema. Como eles ensaiavam as peças.
Às vezes saía uma pessoa e tinha que ensaiar outra pessoa para substituir, mais aí
era rápido, porque um personagem só. Não tinha muito trabalho todo o elenco, era
só um, era mais rápido.
Eu, por exemplo, fui ponto muito tempo, eu não tinha problema, eu sabia as peças
todas. Quando eu ia para a cena, se faltava um e tinha que substituir, eu já não tinha
problema. Ensaiava, porque era indicado o ensaio, para você ter mais ou menos
197
noção da posição em cena, aquela técnica toda que nós temos, né? Mas o texto
mesmo eu não tinha mais problema.
Moira - Tinha algum espaço para improvisação? Ou vocês se atinham ao texto
mesmo?
Walmir – Por exemplo, as comédias, comédia você tem muito espaço para
improvisar alguma coisa, né? Às vezes um personagem que é o cômico da peça,
você não pode fugir muito, mas você tem a chance de sair com alguma coisa na
hora, né? Improvisar alguma coisa, sempre tem. Nos dramas não, você tem que
seguir à risca o texto, né? O público vibra muito. Nós tínhamos um público
sensacional, o Nordeste inteiro era muito bom para teatro. E a esposa do Roger foi
uma excelente atriz, ela era muito conhecida no Nordeste. Fortaleza, eu lembro,
quando nós chegamos em Fortaleza ela não estava, ela estava em São Paulo
esperando uma filha e ela ficou em São Paulo na casa dos pais. Ela ficou quatro
meses em São Paulo. Quando ela voltou, a peça de estreia dela, porque ela era
conhecida porque ela tinha sido do Garcia. Quando ela entrou em cena, a primeira
vez na peça, a plateia aplaudiu assim que foi uma coisa fantástica. Só na
apresentação dela. Quando ela retornou, a estreia dela nessa volta, foi com A
Mestiça. E nós levamos a semana inteira a peça. Todos os dias a casa cheia. E ficou
uma coisa muito bacana, porque eu já tinha muito entrosamento com ela, né? E
quando ela voltou foi justamente A Mestiça que eu também já estava entrosado e a
primeira aparição dela, ninguém esperava, porque ela estava fora e quando estreou
o circo ela não estava. Mas ela era conhecida, tinha muito recorte de jornal na
cidade falando dela com o Garcia, quando ela estava no Garcia. Então foi uma
apoteose a aparição dela. E cada vez que ela entrava em cena, podia repetir a peça
todos os dias, a primeira aparição dela era um aplauso. Foi fantástico! Muito bom. A
montagem da peça era muito boa, muito boa.
Moira – Nos dramas o público chorava?
Walmir – Chorava, chorava.
Moira – Gostava mais do que as comédias?
198
Walmir – Não, as comédias sim a turma gosta muito, mas o pessoal, a plateia de
circo e do teatro é uma plateia mais sentimental. A paixão de Cristo, por exemplo,
você via a plateia chorando na apresentação. Tinha uma peça, por exemplo, o
próprio O Mundo Não Me Quis a gente chorava em cena, na plateia. Porque a turma
vibrava mesmo na apresentação, era muito bom! Eu vivi muito isso aí, era muito bom!
E a família ainda está marcada em mim. Porque a minha adolescência, eu cresci lá.
O seu Nerino, pai do Roger, era muito preocupado, ele conversava muito comigo,
dava muito conselho, porque eu sem pai e sem mãe lá. Meus pais no Nordeste e eu
viajando com o circo. Eu não podia pôr o pé fora da calçada. Valeu muito.
Moira – Era um circo bem família, não é?
Walmir – Bem familiar. Eu me considerava um da família, porque eles sempre
falavam: era parte da família, você faz parte da família. E eu me sentia assim.
Moira – Tinham outras pessoas que vieram de outros lugares assim como o senhor?
Walmir – Não tinha não. Tinha os artistas contratados que formavam a família, né?
Mas não tinha esse elo que eu tive, assim de ficar ligado mesmo à família.
Moira - E era comum terem artistas contratados? Ou foi mais no final?
Walmir – Ah sim, sempre teve artista contratado. Por exemplo, na época que eu
entrei no circo tinha a família da Anita que tinha um irmão que trabalhava, uma
cunhada que trabalhava, os mais próximos eram eles. A maioria era contratado.
Tinha o Hernani que era o sobrinho do seu Nerino, da família, mas eram poucos da
família. A maioria era contratado. Quando contratava o artista já contratava para
viajar com o circo.
Moira – E geralmente eram artistas da primeira parte do espetáculo?
Walmir – Não, como ator também. Nós tivemos alguns contratados que trabalhavam
no teatro. O Jurandir, o Wilson Moia, tinha bastante, mas é que nome assim eu não
me recordo.
Moira – E dos artistas fixos eram quantos mais ou menos?
199
Walmir – Eram o Roger, Anita, Armandine (que era mãe do Roger), o Gaetan (que
era o tio), quatro. Enquanto esteve lá o Willy (que era sobrinho do Roger), cinco, a
esposa Ivani, seis, e depois eles saíram do circo, né? Saíram e foram para outro
circo. Aí tinha três irmãs do Willy, uma casou nova, casou com 17 anos com um
bancário e ficou na Bahia numa cidade. Era a Alice e a Teresa, as duas irmãs. Todas
as duas trabalhavam no teatro e no picadeiro. A Alice fazia acrobacia, fazia balé,
fazia arame, fazia trapézio. Ela era estrela. A Alice era uma estrela no picadeiro. No
teatro ela participava também, fazia papeis muito bons! Na época que a dona Anita
esteve em São Paulo de licença, ela fez alguns papeis que a dona Anita fazia. Só
que ela não tinha muito tamanho, era baixinha, mas era uma grande artista. Hoje
não está trabalhando mais porque ela tem duas filhas e as duas são artistas do
Cirque du Soleil. Elas moram em Las Vegas, a Alice fica seis meses lá e seis meses
no Brasil, porque ela não pode morar definitivamente. As meninas têm casa lá, ela
vai e fica com as meninas. Tinha também na época o pai dessas meninas, ele foi do
circo, ele trabalhava no circo também, no Nerino. Trabalhava ele e o pai dele
também, o pai dele era ator, o Belmiro, chamavam ele de Babi. Muito tempo ele
trabalhou no teatro também.
Moira – E o público gostava das duas partes? Tinha alguma preferência?
Walmir – Gostava sim, gostava muito das duas partes. O circo chamava mais
atenção por causa disso, porque nós tínhamos a primeira parte, de variedades, com
o trapézio, acrobacias, o palhaço. E terminava a primeira parte, a banda ficava
tocando alguma coisa, para preparar o palco, até começar o teatro. O espetáculo era
separado em duas partes: o picadeiro e o palco. As duas agradavam muito, muito.
Só A Mestiça que nós não tínhamos a primeira parte, porque eram dez atos. Tinha
uma outra que tinha muito, mas assim mesmo tinha uns dois ou três números, que
era O Direito de Nascer. Era muito longa a peça, então a variedade era muito
pequena. Era um número, o palhaço e mais um outro número e já começava o teatro,
né?
Moira – O senhor lembra de quem foi a adaptação da peça ...E o Céu Uniu Dois
Corações?
200
Walmir – Quem ensaiou foi o seu Agenor, mas o texto eu não sei de quem que era.
Porque quando eu entrei no circo o Agenor já estava saindo do circo, né? Já estava
chegando um outro ensaiador. Não me lembro o nome dele agora... Era um senhor
baixinho e gordo. Depois ele casou com uma moça que trabalhava no circo. Agora
não me lembro o nome dele. Ele foi há algum tempo o ensaiador das peças de teatro.
Montaram algumas outras peças. Eu não me recordo o nome dele. Você me
desculpa, porque hoje eu estou com a memória fraca, porque a gente passa, né? Aí
você não tem uma frequência de falar sobre isso, então...
Moira – Como era a reação do público com as suas personagens cômicas?
Walmir – O público ria muito, gostava muito. Tem pessoas que vão ao circo e não
gosta do drama, gosta mais da parte cômica, né? Então sempre existe o pessoal que
gosta mais do drama do que da comédia. Mas a gente não dá para perceber, porque
a gente sabe que está agradando. Porque embora ele não goste muito, mas não
desagrada. Agora a parte cômica a turma ria muito, ria muito. Isso é uma coisa que a
gente sente, né? O cômico dá para sentir a reação da plateia.
Moira – E o senhor se pintava para fazer estas personagens?
Walmir - Quando eu fazia o Tico-Tico eu me pintava daqui para cima. Porque aqui eu
usava camisa fechada, não é? E o rosto todo pintado. E a peruca era uma peruca de
neguinho mesmo. E a mão eu usava luva, a camisa aqui. E a calça, de um lado era
curto, de outro lado mais comprido, mas eu usava meias pretas. E uma sandália.
Moira – E o figurino do Juca?
Walmir – O Juca usava uma calça cumprida, tipo uma calça de velho que é muito
grandona, sabe? Com um paletó meio grande, com uma peruca bem bagunçada e
usava uma latinha para ficar fazendo barulho. Entrava em cena já estalando a latinha,
né? Chegava perto da cega e ele começava a chamar atenção dela tocando aquela
latinha, fazendo barulho. Uma tampa de lata que você vai fazendo assim e ela estala.
Era isso que a gente fazia. E tinha uma cena muito engraçada, essa cena era
passada dentro de uma igreja. A velha estava na igreja, foi com a neta, pedir esmola
na porta da igreja. E a neta entra na igreja, aí chega o Juca e vai encontrar com a
dona Santa. Aí começa a falar com a dona Santa, fazendo graça, falando
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gaguejando, né? Aí depois ele deixa a dona Santa lá e entra na igreja com a latinha,
fazendo barulho. Aí dá um tempo e ele volta, ao invés de ele voltar com a latinha, ele
volta com um sininho. Aí a dona Santa pergunta para ele: “Juca, que houve? Você
está com um sininho?” Aí ele, falando gaguejando: “Pois é dona Santa, eu entrei o
padre roubou minha latinha e eu roubei o badalo dele”. A plateia vibrava, descontraía,
era muito bom.
Moira – Por quem foi criado esta situação?
Walmir - Ali foi criado mesmo pelo ensaiador, porque às vezes tem muita peça que
ela vem com observação. No texto tem alguma observação referente ao que você
deve fazer. Pode ser que nessa também tivesse: “O gago deve aparecer com isso
assim. Qualquer coisa.”. Mas eu acho que ali inclusive que aquela da latinha deve
ter sido uma criação, porque ele entra com a latinha e sai com o sino. Quer dizer, o
padre tomou a latinha dele e então ele ficou bravo, tomou o badalo do padre, que é
o sino. E ele fala: “O padre tirou minha latinha, e eu roubei o badalo dele”. Quer dizer
isso são situações, criações. Ajudam a criar, tem muitas coisinhas que na hora, vem
assim a hora. Uma coisa que está ali dentro e a plateia gosta. Às vezes num ensaio
dá aquele estalo, e quando chega à noite e a gente faz. A gente vai fazer e lembra
que tem que ter, porque agradou a plateia, né?
Moira – O senhor percebe alguma relação dessas personagens com o seu palhaço
Garrafinha?
Walmir - O que eu fazia como o palhaço Garrafinha, era o Garrafinha. Agora em
cena era outra coisa. Mesmo sendo cômico, o que eu fazia não tem nada a ver com
o Garrafinha. A diferença na maneira de você falar, como você tinha que se
expressar, até a maneira de gestos, essas coisas. Porque no palhaço você tem que
falar mais do que fazer esse tipo de cena. Às vezes você tem um texto, que este
texto tem que mostrar a comicidade. No palhaço. Na cena é diferente. Você tem um
texto e você tem que fazer alguma coisa ligada àquele texto. Totalmente diferente do
palhaço. O palhaço é engraçado, é uma coisa de graça. E lá na peça é cômico, é
uma comicidade que você faz na peça. No palhaço você já tem um outro tipo de
gesticulação. Toma conta da cena. Você faz pirueta, você faz tudo para fazer graça,
202
no picadeiro. Não é só falar, você tem que fazer as comicidades, gesticular. Porque
às vezes você não é sozinho, você está com outro que ajuda você.
Moira – A comicidade do palhaço é através de diálogo?
Walmir – Muitas vezes através do diálogo. Você já tem um tema e vai dialogar ali. E
tem outras coisas assim que acontecem, por exemplo o Roger tinha uma montagem
em que aparecia uma pessoa, estava ele e a Anita, aparecia uma dizendo: “Poxa,
você saiu de casa, não deixou dinheiro, os filhos passando fome.”. Quer dizer, Anita
era mulher dele, como é que tem uma outra lá cobrando o dinheiro do leite das
crianças? Aí fica aquele negócio, ela fica brava e ele quer resolver. Aí de repente
aparece outra: “Ô seu canalha, você saiu de casa, me deixou sozinha, a criança está
lá chorando, eu não tive um tostão para comprar o leite.”. Já eram duas, todas as
duas reclamando da mesma coisa! Aí ele tem um desfecho: “Vamos resolver o
problema? – tudo cômico, né? – Você está falando que é minha mulher e está
passando fome. Você também. Vamos fazer uma coisa? Vamos dividir o tempo.
Segunda, terça e quarta eu vou ficar com você. Quinta, sexta e sábado eu fico com a
outra.”. Aí um gaiato grita: “E o domingo?”. Aí ele responde: “O domingo estou de
folga.”. Quer aproveitar. (risos) Quer dizer... São desfechos, né? Em cena, no palco,
você não tem esse tipo de desfecho, mas no picadeiro você pode fazer. Ele vestido
de palhaço, as mulheres não, as mulheres são madames.
Moira – E tinha palhaça mulher?
Walmir - Não, não tinha.
Moira – O senhor lembra quais os tipos dos dramas que o público gostava mais?
Walmir – Não, o público gostava muito de peças teatrais, assim dramas. Gostava
muito de comédias, às vezes você percebia que agradava muito a plateia, era
dividido e agradava muito. Eu não vou te dizer essa peça agradou mais, porque você
está ali você percebe a reação da plateia. Agradava bem. Mas A Mestiça, por
exemplo, era uma peça que agradava inteira, eram dez atos que eram dez atos
vividos mesmo. E a plateia vibrava. E tinham outras peças também que agradavam,
mas como A Mestiça, ela foi a maior evolução do Nerino com o teatro, A Mestiça foi
nota dez.
203
Moira – Mas por quê?
Walmir – Pela encenação, pelo cenário, pelo desempenho dos artistas, foi muito
bom! Principalmente a dona Anita como a Mestiça, todos os personagens foi muito
bom. Por exemplo, a mãe do Roger fazia a dona da fazenda. O irmão fazia o marido
dela. Tinha uma outra que fazia a filha, e tinha muitas outras personagens e todos
estavam muito bem entrosados.
Moira – O romance que inspirou a peça era muito famoso na época? Tinha
radionovela?
Walmir - O romance era muito procurado. Radionovela eu não lembro se teve
alguma radionovela da Mestiça, eu não lembro. Só lembro mesmo da peça. Essa
peça foi uma adaptação do pai da dona Anita, do seu Agenor.
Moira – Ele fez pensando na filha?
Walmir – Eu acredito que sim, porque quando eu conheci eles a peça já estava
montada, né? Tinham dez atos, não tinha variedades. Eram três horas de espetáculo.
Muito bom! Ali ficou muito bom, porque o Roger como o feitor, a Anita como a
Mestiça foi uma dupla sensacional.
Moira – O senhor acha que a peça colocava em questão o preconceito com os
negros?
Walmir – Não, eu não acredito eu tenha esse tipo de preconceito não.Nessa época
existia muito preconceito. Hoje até ainda tem pessoas preconceituosas, também
conta, né? Mas no índice melhor, porque já houve muito debate sobre isso
condenando esse tipo de preconceito. Aliás, hoje estão condenando qualquer tipo de
preconceito. Mas o preto era um preconceito muito acentuado, né?
Moira- E você acha que a peça discutia isso de alguma maneira?
Walmir- Não, acredito que não. Não, porque a Mestiça era filha de uma escrava com
um senhor. E ela era muito benquista no meio da família, né? Era uma escrava, mas
uma escrava... Como se diz? Mais preparada. Tinha preconceito, devia ter algum
preconceito sim. Você vê que hoje com essa evolução ainda existe muito
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preconceito, imagine naquela época que eram escravos, que ninguém dava muito
valor a um escravo, né? Tinha um escravo que era bem chegado à casa, que era o Pai João, um preto velho.
Quem fez muito tempo foi o pai da dona Anita, seu Agenor. Depois passou a ser
uma outra pessoa, depois que seu Agenor saiu do circo e parou de viajar. Entrou
uma outra pessoa, mas na minha época ainda era ele que fazia. Como chama ele? A
fisionomia não me é estranha. Joval. Era um alto, magro, ele fazia, andava muito
curvado, era muito interessante.
Moira – Para fazer as personagens dramáticas o ator tem que...
Walmir – Tem que ter uma base boa. A Armandine também, porque ela como dona
da fazenda era muito severa. Não era igual o marido, porque o marido era uma
pessoa dócil. Ela que fazia a vilã.
Moira – E os vilões o público?
Walmir – Rejeita, né? (risos)
Moira – Dessas três peças, como eram os cenários?
Walmir - O cenário... Por exemplo a Mestiça era um cenário único, porque não dava
pra mudar. Porque era feito na casa de fazenda, então aparecia uma entrada. Um
degrau para a entrada da casa. E uma entrada lateral, tinha uma árvore. Na frente,
tinha um tronco. E as cenas eram passadas todas ali. Era uma cena única.
Moira- E tinha telão pintado atrás?
Walmir- Tinha, era um canavial.
Moira – E quem pintava? Eram vocês mesmos?
Walmir – Tinha gente no circo que pintava, sempre teve alguém que fizesse esse
trabalho de pintura. Artista mesmo ou empregado que eles contratavam para fazer,
mas sempre tem.
Moira – O cenário não mudava na Mestiça?
Walmir - Na Mestiça todos os dez atos a cena era aquela. Não tinha como mudar,
porque era uma casa de fazenda, era montada. Tinha aquela parte da varanda. Um
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palco, depois tinha uma parte mais alta, com aquela balaustrada da varanda. Era
muito interessante, muito bem feito.
Moira – Essa época já era encenada no palco?
Walmir – Já era no palco. Tinham dois palcos, o do músico era do lado e usava só o
palco principal.
Moira – E o cenário do ...E o Céu Uniu Dois Corações?
Walmir – Tinham muitos cenários. Tinha a cena da igreja que aparecia e igreja e um
banco na frente. E um telão pintado de igreja com porta e tudo, né? E depois
apareciam outras cenas, quando era uma casa, mobília, variava de cena. E no final
tinha a apoteose tudo montado. Tinha mobília em cena, mobília normal com poltrona,
essas coisas. A casa da Neli era uma casa mais simples, era uma mesa. Carregava
tudo de uma cidade para outra. Tinha tudo. Porque você chegava numa cidade você
nunca ia conseguir ficar arrumando móveis. Acontecia, às vezes você pedia
emprestado para alguém um jogo de sala. Não era muito comum, mas acontecia às
vezes. E a gente era bem cedido, não tinha problema. A pessoa gostava, porque o
circo agradava na cidade, o circo agradava muito. Sabe que a gente marcava a
última semana, o último espetáculo. Era pedido, era pedido para a gente ficar mais,
ficar mais.
Moira – E na sua época ainda existia a rádio do Circo Nerino?
Walmir – Tinha a rádio e tinha autofalante também, né? Tinha um autofalante que
ficava lá no mastro e tinha a aparelhagem, então a turma ficava tocando,
anunciando o espetáculo. As pessoas iam no circo pedir para ficar, faziam um
abaixo assinado. Tinha muito abaixo assinado. Isso que já tinha ficado um mês, o
povo estava querendo que a gente ficasse mais.
Moira – Cada noite era uma peça diferente?
Walmir – Nós tínhamos um número de peças muito bom. Então de repente vinha um
pedido para você apresentar uma peça. Então a gente apresentava. A Mestiça, por
exemplo, estreava o circo na cidade, anunciava A Mestiça e passava três dias
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seguidos. Aí depois vinha um pedido para passa A Mestiça e você tinha que montar
tudo e passar A Mestiça. Era o grande sucesso. Foi um grande sucesso.
Moira – E o cenário do Jerônimo?
Walmir – Era um cenário mais simples. Uma casa tinha, não sei se era estrada. Uma
coisa bem simples. A peça foi montada e ela permaneceu até o fim no mesmo estilo,
não houve mudanças, cenário, tudo. Do jeito que o ensaiador montou a peça e criou
toda aquela estrutura de cena, permaneceu.
Moira – E o ensaiador dizia como vocês deviam falar?
Walmir – Não, de acordo com o que você lê da peça e interpreta a cena. É claro que
alguma coisa você tem que ter alguma orientação. Às vezes você fala e você pensa
que está falando direito e o ensaiador acha que não, que tem que mudar, porque
você vê muito disso, eles estão sempre modificando a maneira de você falar. Porque
às vezes você fala, mas não está falando de acordo com o sentido da situação. Mas
isso raramente acontece, porque quando você está ali acostumado com as cenas,
não tem problema. Você ensaia uma outra peça você já está acostumado com
aquele ritmo de teatro. Você sabe, você lendo aquilo ali você lembra a maneira que
você tem que interpretar.
Moira – Como era o cenário do Jerônimo?
No começo tinha um bar. Cenário simples. Era pintado com uma parede normal,
com porta, né? A porta era só a entrada. Tinha um negócio de garrafas, também
pintado na parede, como se fosse uma prateleira. E tinha umas mesas e um balcão.
A fazenda era normal, uma casa de fazenda. Uma mobília de casa, uma mobília
mais rústica, mais adequada de fazenda, não com muitos detalhes. Porque com
muito detalhe, não tinha como carregar tanta coisa. Às vezes a gente consegui
emprestado alguma coisa, mas não era muito frequente.
Moira – Então tinha uma preocupação com os cenários e figurinos?
Walmir – Tinha, tinha. O próprio ensaiador administrava isso, né? Ele administrava a
maneira que você ia se vestir, como você ia se vestir. E mesmo o histórico da peça,
o script da peça, já dizia como você devia se vestir, já vinha assim com detalhes,
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né? Indicações de figurinos e ações, sempre tinham umas orientações. Geralmente
nos ensaios você já era orientado, a maneira como você devia agir. O próprio script
dava uma síntese e você tinha que desenvolver durante a apresentação.
Moira – Entre essas quatro personagens: Juca, Saci e Tico-Tico, tinha alguma
semelhança? Quais características o senhor ressalta entre eles?
Walmir – Não, o Juca era uma coisa, o Saci era outra coisa e o Tico-Tico outra coisa.
O Saci e o Tico-Tico são dois moleques pretinhos, só que o Saci era mais, porque o
Tico-Tico era um moleque de fazenda, um escravo, não é? O Saci já era um
personagem totalmente diferente do Tico-Tico. Era preto tudo, mas era mais
incrementado. Era uma roupa mais normal, né? O Tico-Tico era moleque com calça
curta, ainda pela metade. Então era um pouco diferente a característica.
Moira – Tem alguma outra história que o senhor lembre? Algo que marcou?
Walmir - O Tico-Tico tinha muitas cenas bem agradáveis, bem dinâmicas. Por
exemplo, no final do Tico-Tico, a festa, o casamento. Porque tinha o casamento do
feitor com a Mestiça. Ele aparecia de fraque, cartola, era uma encenação assim que
era orientação do próprio autor. Ela de noiva, o feitor de noivo e o Tico-Tico era
como se fosse o... Como que chama? Como se fosse o pajem, de cartola, de casaca,
sapato branco. Umas coisas assim.
Moira – Quem era a Rosinha, o senhor lembra?
Walmir – A Rosinha eu não lembro da menina não... Teve uma época que a Alice, a
sobrinha do Roger, fez esse papel. Mas ela não fez muito tempo não, porque depois
ela passou a fazer a Mimosa. Teve uma época que ela fez a Mimosa, teve uma outra
pessoa que fez a Rosinha.
Moira – E essa mudança de personagem na companhia se dava porquê?
Walmir – Porque às vezes falta uma pessoa que saiu e tinha que ser substituído,
então fazia as trocas, né? Por exemplo, saiu a menina que fazia a Rosinha, saiu a
menina que fazia a Mimosa. Aí a Alice teve que fazer a Mimosa, aí teve uma outra
pessoa para fazer a Rosinha, do próprio elenco. Ali entrou uma outra menina que fez
a Rosinha. Gente do próprio elenco mesmo, às vezes nem aparecia, fazia mais
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comparsaria, qualquer coisa, mas tinha condições e foi fazer a Rosinha. Ela não
aparecia muito. Ali os que mais apareciam eram: o feitor, o Tico-Tico e a Mestiça. O
senhor da fazenda e a esposa que apareciam, mas ali era quase os três. Eu entrava
nos dez atos. Não ficava um ato fora, era cansativo. Muita atrapalhada (risos).
O Saci é bem diferente do Tico-Tico. As cenas, o papel em si, é bem diferente do
Tico-Tico. Porque o Saci, ele é... Jerônimo, o herói do sertão, quer dizer o Saci era
uma pessoa do sertão ali. Ele era um capanga do Jerônimo, suponhamos, quer dizer
era uma situação diferente do Tico-Tico. Porque o Tico-Tico era um moleque. O Saci
já não, o Saci não era um moleque, o Saci já era uma figura diferente. O Tico-Tico
era um moleque de fazenda, que o senhor da casa, o casal da fazenda, queriam eles
ali. Ficava ali na casa de fazenda. Já o Saci não, o Saci estava com o Jerônimo, pra
o que desse e vier. A comicidade era diferente. O Tico-Tico era totalmente inocente.
Moira – E o Juca?
Walmir - O Juca também, coitado, era um inocente também. Ele vivia assim, ele
acompanhava a cega lá com a menina, ficava na porta da igreja. Ele é bem ingênuo
também, uma figura bem ingênua. No último ato ele permanece ali inerte. Porque ele
é uma figura para dar uma ênfase na apresentação, né? Porque ele como gago ele
enche o ambiente e agrada a plateia. Chamava muita atenção a maneira dele
gaguejar, disso, daquilo. Era muito bom. Na última cena foi diferente.
Moira – E como era a apoteose?
Walmir – Sabe que eu não lembro como era a apoteose? Porque lá eles faziam
muito assim, quando tinha uma apoteose, faziam uma montagem que desse para os
dois subirem e a plateia perceber. Mas no ...E o Céu Uniu Dois Corações eu não
lembro como eles faziam. A Mestiça terminava ali no casamento. A última cena era o
casamento e ficavam ali o Roger, a Mestiça de noiva, o Tico-Tico e os escravos, o
pessoal, estava tudo ali em volta, final do casamento.
Agora é um pouco, porque você vê eu tenho. São cinquenta, o circo acabou faz
cinquenta anos, cinquenta anos para mim já é um pouco distante. (risos) A memória
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tá longe. Cinquenta anos, eu cheguei aqui em 64, já estamos em 2015, né? São
cinquenta e um anos, né?