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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES MOIRA JUNQUEIRA GARCIA A PERSONAGEM CÔMICA DAS PEÇAS MELODRAMÁTICAS ENCENADAS PELO CIRCO NERINO Campinas 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

MOIRA JUNQUEIRA GARCIA

A PERSONAGEM CÔMICA DAS PEÇAS MELODRAMÁTICAS

ENCENADAS PELO CIRCO NERINO

Campinas

2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

MOIRA JUNQUEIRA GARCIA

A PERSONAGEM CÔMICA DAS PEÇAS MELODRAMÁTICAS

ENCENADAS PELO CIRCO NERINO

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Instituto de Artes da Universidade Estadual de

Campinas como parte dos requisitos exigidos

para obtenção do Título de Mestra em Artes da

Cena, na Área de Concentração Teatro, Dança

e Performance.

Orientadora: Prof.ª Drª Larissa de Oliveira Neves

Este exemplar corresponde a versão final da Dissertação de Mestrado defendida pela aluna Moira Junqueira Garcia e orientada pela Profa. Dra. Larissa de Oliveira Neves.

Campinas

2015

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus por me permitir percorrer esta longa estrada acadêmica de

descobertas e transformações. Aos meus pais Solange e Paulo pelo incentivo aos estudos e desenvolvimento

intelectual. Ao meu companheiro e amor João Levi que sempre me apoiou e contribui,

sobremaneira, para uma reflexão mais crítica acerca do trabalho. Aos nossos frutos:

Olívia e Rebeca, duas bênçãos em nossas vidas. À Larissa por todo apoio, orientação e inúmeros ensinamentos conquistados nesta

trajetória. A todos os meus familiares dos quatro cantos do país: São Paulo, Campo Grande e

Fortaleza. Aos meus amigos de graduação, em especial: Fernanda Jannuzzelli (pelas

conversas e afinidades temáticas), Hosana Mariotti, Gabriela Guinatti, Aline Olmos e

Letícia Frutuoso. Ao grupo Letra e Ato pelos aprendizados e trocas, em especial a Elen de Medeiros

por ministrar a disciplina que mais contribui para este trabalho. Aos professores Mario Alberto de Santa e Mario Fernando Bolognesi, pelas

importantes contribuições no exame de qualificação. A todos os colegas e professores de graduação em Artes Cênicas da Unicamp, em

especial ao professor Rubens Brito, pelo ponta pé inicial na cultura popular, a

Roberto Mallet, pelos inúmeros ensinamentos de arte e vida, a Luiz Monteiro,

cearense arretado que me apresentou o circo na prática. A Elder, Luiz, Bento, Benê,

Dalvina, Letícia, Neuza, Márcia, Rodolfo, Vinícius e demais funcionários do Instituto

de Artes. A Verônica Tamaoki pela generosidade em que me acolheu e apresentou ao

universo do Circo Nerino. A Ronita Avanzi e, em especial, a Roger Avanzi por terem me possibilitado uma boa

conversa sobre a incrível história do Circo Nerino.

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A Walmir dos Santos e sua esposa Marisa.

Ao Centro de Memória do Circo. E, finalmente, à FAPESP pelo incentivo financeiro que viabilizou este estudo.

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A gargalhada é o sol que varre o inverno do rosto humano.

Victor Hugo

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RESUMO

Esta pesquisa analisa a personagem cômica das peças melodramáticas

encenadas pelo Circo Nerino em meados do século XX. A personagem cômica,

quando presente, costuma dinamizar e apresentar novos aspectos à dramaturgia

melodramática majoritariamente tensa e complicada. Este tipo de história é bastante

apreciada pelo público, e por isso muito encenada nos circos brasileiros da época e

atuais. Visando compreender melhor a temática, escolhemos o Circo Nerino para

complementar a análise textual com elementos da encenação e realização cênica.

As três peças que integram este trabalho foram selecionadas devido à importância

da personagem cômica e ilustram muito bem o que se pretende analisar com este

trabalho. Por fim, os títulos das obras analisadas nesta dissertação:...E o Céu Uniu

Dois Corações, Jerônimo, o herói do sertão e A Mestiça.

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ABSTRACT

This research analyzes the comic character of melodramatic plays staged by

Circus Nerino in the mid-twentieth century. The comic character, when present,

usually streamline and introduce new aspects to melodramatic drama mostly tense

and complicated. In the past this type of story was well appreciated by the public, so

far staged in Brazilian circuses of the time. To better understand the issue, we chose

the Circus Nerino to supplement textual analysis with elements of staging and

performing such plays. The three pieces that integrate this work were selected

because of the importance of comic character and illustrate very well what we want to

analyze this work. The titles of the works studied in this thesis: ...E o Céu Uniu Dois

Corações, de Antenor Pimenta, staged in 1949; Jerônimo, o herói do sertão de

Joaquim Silva, staged in 1955 and A Mestiça de Agenor Garcia, staged in 1950.

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ÍNDICE

1 - INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................... 12 2 - O CIRCO NERINO E O TEATRO MELODRAMÁTICO ....................................... 14

2.1 - O Circo Nerino .............................................................................................. 14

2.2 - O Melodrama ................................................................................................ 26

2.3 - O Melodrama no Brasil ................................................................................. 31

2.4 – Os tipos do circo-teatro ................................................................................ 35

2.4.1 – Galã e ingênua ....................................................................................... 44

2.4.2 – Centro e dama central ........................................................................... 45

2.4.3 – Cômico e caricata .................................................................................. 45

2.4.4 – Baixo cômico e sobrette ......................................................................... 47 3 - ... E O CÉU UNIU DOIS CORAÇÕES .................................................................. 49

3.1 – A trama......................................................................................................... 49

3.2 – Análise da trama .......................................................................................... 53

3.3 –Personagens ................................................................................................. 58

3.4 – Análise das cenas e personagens cômicas ................................................. 63

3.4.1 – Primeiro ato a comicidade do surdo ....................................................... 63

3.4.2 – Segundo ato a comicidade do gago ....................................................... 65

3.4.3 –Terceiro ato a comicidade do tolo ........................................................... 71

3.4.4 – Quarto ato o declínio da comicidade ...................................................... 79

3.4.5 –Quinto ato fim da comicidade.................................................................. 81

3.5 – Encenação do Circo Nerino ......................................................................... 81 4 – JERÔNIMO, O HERÓI DO SERTÃO ................................................................. 86

4.1 – Os autores e a história ................................................................................. 86

4.2 – Personagens ................................................................................................ 91

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4.3 - O popular sertanejo ....................................................................................... 95

4.4 – A personagem cômica de Saci ................................................................... 101

5 – A MESTIÇA ....................................................................................................... 117

5.1 – Os autores e a trama .................................................................................. 117

5.2 - Escravos e senhores ................................................................................... 127

5.3 – A recriação do romance para o palco ......................................................... 135

5.4 – Análise dos momentos cômicos .................................................................. 139

6 – CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 156

7 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................. 164

8 – ANEXOS ........................................................................................................... 172

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1- INTRODUÇÃO

Esta dissertação de mestrado estuda a personagem cômica das peças de

circo-teatro, mais especificamente as que encontramos nos dramas circenses. Para

realizar esta análise, foram selecionadas três peças do repertório encenado pelo

Circo Nerino: ...E o Céu Uniu Dois Corações, Jerônimo, o herói do sertão e A

Mestiça. Estas peças apresentam um grande destaque para as personagens

cômicas, as quais desempenham uma relevante participação dramatúrgica.

O começo da pesquisa se deu através de um levantamento bibliográfico dos

três principais temas que tangenciam a temática: o circo-teatro brasileiro, o

melodrama e a comicidade. Concomitante foi feita uma pesquisa no Centro de

Memória do Circo em que se buscou localizar o material primário sobre o Circo

Nerino. A intenção de escolher um circo como pano de fundo foi de contextualizar a

dramaturgia em alguma representação, uma vez que se trata de um gênero

dramatúrgico destinado à cena. Nesse sentido, foi dada uma maior preferência a um

circo do passado, cujo repertório melodramático era mais amplo e recorrente na

programação semanal do que se comparado aos circos-teatros atuais. O Circo

Nerino apresenta tais características, e sua contribuição foi muito engrandecedora

para realizar as análises dramatúrgicas realizadas neste trabalho.

As principais fontes utilizadas sobre este circo foram a literária, principalmente

a partir do livro Circo Nerino de Roger Avanzi e Verônica Tamaoki, visual (através de

inúmeras fotos e imagens) e também a partir de duas entrevistas realizadas com

Roger Avanzi e Walmir dos Santos. A escolha de entrevistar apenas estes dois

artistas se deu por protagonizarem a dupla de herói e personagem cômica das peças

analisadas. Com Anita Garcia formavam o trio das principais peças de circo-teatro

que, ao longo de cinquenta e um anos, agradou muitos espectadores de todo o país.

Além deste material foi realizado um levantamento e estudo de peças de

circo-teatro, dramas e comédias, visando conhecer a dramaturgia e histórias. Após a

leitura de inúmeros textos deste gênero foi possível selecionar três peças,

priorizando também os aspectos das encenações que eram realizadas no Circo

Nerino, no começo do século XX. Dessa forma foi possível reconhecer

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características gerais deste estilo dramático e contextualizá-lo em uma encenação

do passado.

Esta, portanto, é uma pesquisa dramatúrgica e teórica sobre a encenação do

circo-teatro brasileiro, mais especificamente a personagem cômica dos dramas

circenses. Este trabalho lança uma lupa nestas personagens, buscando

compreender suas relações com o enredo, com a dramaturgia e a encenação. Para

isso foi feita uma divisão e em seguida uma análise dos momentos cômicos de cada

texto, buscando definir a comicidade e analisá-la dentro de um contexto específico

de representação.

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2 - O CIRCO NERINO E O TEATRO MELODRAMÁTICO

2.1 - O Circo Nerino

Dentre os muitos grupos circenses do começo do século XX, o Circo Nerino

foi escolhido para este estudo por diversos motivos. Primeiramente, por seu marco

na história brasileira, pois foi um circo de grande porte que percorreu boa parte do

território nacional durante cinquenta e um anos. Em segundo lugar, pela parte

cômica de seus espetáculos, que era muito desenvolvida, principalmente através de

seu grande ícone, o palhaço Picolino. As encenações teatrais, por outro lado,

também eram famosas, e se desenvolveram especialmente depois do casamento

entre Roger Avanzi e Anita Garcia, uma importante atriz dramática do Circo Garcia.

Neste outro circo, o teatro desempenhava um papel central nas apresentações e, a

partir desta união, a noiva, juntamente com seus pais, passou a integrar o Circo

Nerino. Seu pai, Agenor Garcia, se tornou um importante ensaiador1 e foi

responsável pelo desenvolvimento de inúmeros aspectos da encenação, inclusive

por incorporar um palco ao interior da lona.

O Circo Nerino foi fundado em Curitiba no ano de 1913, pouco menos de

oitenta anos do primeiro circo formalmente organizado chegar ao país, o de

Giuseppe Chiarini (SILVA, 2007:58). No final do século XIX, os circos europeus

vieram para o Brasil atraídos pelo crescimento econômico proporcionado pela

borracha e pelo café. Alguns deles resolviam permanecer no país, e para isso

integravam ao espetáculo tendências e costumes locais. Um importante trabalho que

aborda as origens do circo é o livro Circo-teatro: Benjamim de Oliveira e a

teatralidade circense no Brasil, de Erminia Silva. Para a autora, o encontro dos

artistas estrangeiros com as experiências nacionais produziu um espetáculo

diversificado, de relevante mistura artística. Esta mixórdia cultural foi um importante

fator, apesar de não ter sido o único, que possibilitou a permanência destes grupos

no país, por dialogar com os interesses e referências do público local.

1 O ensaiador era uma espécie de diretor do espetáculo. Responsável por orientar o elenco

em relação ao contexto da peça, organizar a movimentação em cena e toda sua composição espacial.

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A mudança que se operou nas pantomimas é um exemplo disso. O enredo

das pantomimas trazidas pelos circos europeus era bem esquemático, baseado em

roteiros de ações, e pautado na figura do Arlequim da commedia dell´arte. No Brasil,

os artistas circenses criaram inúmeras histórias a partir destes roteiros, em que

mantinham as principais estruturas e personagens, mas variavam a trama, inserindo

características locais. Adicionavam ao nome original algum elemento novo desta

recriação, e assim conseguiam aumentar o repertório e se manter mais tempo na

mesma cidade. Dificilmente algo é reproduzido dentro dos circos, pois sempre há o

processo de apropriação e ressignificação do original, além de o contato com o

público gerar mudanças significativas na encenação final.

Os circos, sobre tudo do começo do século XX, costumavam se organizar

como circo-família, e mesmo quando determinado integrante não tinha aptidão para

realizar algum número, ainda havia a possibilidade do teatro, além de todas as

inúmeras funções dos bastidores. Os saberes diversos que compunham o universo

circense eram transmitidos entre os integrantes de maneira rotineira e natural, desde

montar e desmontar a lona, até os números artísticos. Erminia Silva (2009) comenta

sobre a importância da tradição para o circense, que costumava ser transmitida

oralmente e era formada a partir de um coletivo. A tradição circense familiar é um

dos fundamentos principais desta arte, especialmente no início do circo no Brasil.

O Circo Nerino se enquadra neste momento da história, em que a estrutura

familiar, a tradição e a transmissão oral formavam a base de sustentação da arte.

Inclusive o término desta companhia se deu em decorrência da crise na organização

familiar, com a sobreposição de interesses pessoais ao coletivo. Como a história da

acrobata principal do Nerino, Alice Avanzi Silva, que deixou a companhia para

integrar outro circo, a fim de assinar um contrato e ganhar salário.

Meu esteio no circo eram tio Roger e tia Anita. O certo, a meu ver, era eles assumirem a direção do circo. Porque o sistema da minha avó e do tio Gaetan já estava ultrapassado. Eu não recebia salário, por exemplo. É verdade que tinha tudo o que precisava – casa, comida, roupa, médico e dentista quando necessário – mas queria também autonomia. (AVANZI e TAMAOKI, 2005: 312 e 313)

Dentro da estrutura familiar, Alice, neta do Nerino e de Armandine, tinha

privilégios e recebia determinado tipo de tratamento, porém distante dos seus

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parentes as relações sociais eram diferentes. Esta situação retrata uma das grandes

mudanças, em que relações trabalhistas foram necessárias para compor um

espetáculo com um número razoável de apresentações. Entretanto, antes de narrar

o término e os problemas enfrentados por esta companhia, melhor será começarmos

pelo início desta história.

No dia primeiro de janeiro de 1913 estreava pela primeira vez, na capital do

estado do Paraná, o Circo Nerino. Ao longo dos cinquenta e um anos seguintes

percorreu o vasto território brasileiro se auto anunciando como “o circo das

multidões”. De norte a sul do país, viajou de trem, navio, barco e por último de

caminhão, por estradas de terra, em lugares afastados e interioranos. Por ser uma

das poucas atrações artísticas que chegavam às cidades afastadas e interioranas, o

circo conseguia permanecer por alguns meses em uma mesma cidade. Oferece um

espetáculo diversificado e heterogêneo que atraí muitos espectadores, pertencentes

a variadas classes sociais.

O Circo Nerino integra a história circense brasileira do século XX, através do

seu palhaço principal, Picolino, representado há pouco tempo atrás por Roger Avanzi.

Um circo reconhecido e apreciados pelos números de variedades, habilidosamente

executados pelos artistas, e por seu circo-teatro. O espetáculo, como o de diversas

companhias circenses do período, era dividido em duas partes: a primeira com

números de variedades e a segunda com a apresentação de uma peça teatral.

Este circo se estruturou a partir da junção de duas famílias: os Avanzi e os

Ribolá. A primeira com os irmãos Nerino e Felipe e a segunda com os irmãos

Armandine, Gaetan e Myris. Os últimos participavam de um circo de cavalos familiar

na França, porém no ano de 1911 foram surpreendidos por uma tempestade de neve

que atingiu e matou os animais. Então passaram a trabalhar em Paris como

saltimbancos, mas a vida artística da família se tornou difícil e por isto resolveram se

separar. Reneé e Gaetan foram com a mãe para a África, e Myris e Armandine foram

com o pai para a América do Sul. Alguns anos depois se encontraram no Brasil e os

irmãos voltaram a trabalhar juntos no Circo Nerino. Cada um dos irmãos

desempenhou importantes funções na companhia: Armandine e Gaetan dirigiam o

circo, essenciais na condução e administração da empresa, além de trabalharem

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nas duas partes do espetáculo. Myris se casou com Arthur Fernandes, um grande

ator que ensaiou inúmeras peças representadas pela companhia.

A segunda família, Avanzi, não era tradicional de circo, os pais de Nerino e

Felipe trabalhavam nos bastidores do teatro e vieram para o Brasil com uma

companhia de ópera italiana. Decidiram permanecer no país devido ao avanço da

gravidez de Maria Avanzi e passaram a trabalhar no Teatro Polytheama, que no

começo do século XX foi considerado o maior teatro do estado de São Paulo. Dessa

forma, as apresentações que ocorriam neste teatro foi a escola de formação dos

irmãos fundadores do circo que, mesmo sem participar das apresentações, assistiam

aos espetáculos e acompanhavam de perto a arte da representação. Era comum

haver variados estilos desde ópera, teatro, até números de variedades com palhaços

e outros artistas. Dessa forma, os irmãos tiveram, neste período, referências

importantes que, de forma substancial, formaram os artistas que viriam ser. No

começo da carreira, Nerino e Felipe formavam juntos a dupla de Clown Branco2 e

Augusto3. No início, o Augusto era realizado por Felipe (figura 1), porém, como ele

era muito inconstante e às vezes sumia do circo, foi substituído, pois não era

possível que o palhaço principal se ausentasse. Dessa forma, Nerino, que antes

fazia o Clown Branco (figura 1),assume o Augusto principal e cria o conhecido

palhaço Picolino:

Picolino em italiano quer dizer pequenino, uma pessoa pequena – de estatura, é claro. Como meu pai era miudinho, um artista português com quem ele trabalhara em sua juventude só o chamava de Picolino. Quando ele passou de clown para excêntrico, lembrou-se do português e achou que Picolino era um bom nome de palhaço. (AVANZI e TAMAOKI, 2004: 29)

2 “O Clown Branco tem como característica a boa educação, refletida na fineza dos gestos e a elegância nos trajes e nos movimentos. Ele mantém o rosto coberto por uma maquiagem branca, com poucos traços negros, geralmente evidenciando sobrancelhas, e os lábios totalmente vermelhos. A cabeça é coberta por uma boina em forma de cone. A roupa traz muito brilho. O tipo, assim, recupera, no registro cômico, a elegância da tradição aristocráticas, presente na formação do circo contemporâneo.” (BOLOGNESI, 2003: 72)

3 “No Augusto, tudo é hipérbole. A roupa é larga, os calçados são imensos, a maquiagem é exagerada e enfatiza sobremaneira a boca, o nariz e os olhos. Esta figura, que está presente na atualidade do circo brasileiro, é fruto direto da sociedade industrial e de suas contradições.” (BOLOGNESI, 2003: 78)

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Figura 1 – (Esq.) Felipe Avanzi. (Dir.) Nerino Avanzi. Fonte: AVANZI e TAMAOKI, 2004: 28

O

palhaço Picolino tinha muita importância para este circo, fora herdada desde Felipe

passando por Nerino e seguindo com seu filho, Roger Avanzi. Os artistas

procuravam manter as mesmas qualidades da personagem, principalmente porquê

funcionavam no contato com o espectador. Nerino, aos 70 anos, em virtude de um

problema grave na perna causado por um eczema, precisou se afastar do picadeiro,

então seu filho assumiu sua função. Esta é uma característica marcante do

aprendizado circense: o saber e a criação artística não são individuais, mas

transmitidos de geração em geração, tal como aconteceu com o palhaço Picolino,

como podemos ver na figura de número dois. Os elementos que funcionavam na

relação com o público (o figurino, a maquiagem, as principais ações) se mantinham e

não havia a intenção de recriá-los. Em muitos relatos do livro Circo Nerino, de

Verônica Tamaoki e Roger Avanzi,os espectadores comentam a presença marcante

de Picolino, muitos dizem que iam ao espetáculo somente para assisti-lo.

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Figura 2 - Roger Avanzi Filho, Nerino Avanzi e Roger Avanzi Fonte: AVANZI e TAMAOKI, 2004: 261.

Figura 3 - Garrafinha e Picolino II Fonte: Acervo pessoal de Walmir dos Santos

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Através do casamento de Armandine Ribolá e Nerino Avanzi surge a união

artística destas duas famílias que, um ano após o matrimônio, culminou na criação

do Circo Nerino. Antes de se aventurarem na empreitada de construir um novo circo,

as duas famílias trabalhavam juntas no Circo Chileno, que começara sua temporada

no Brasil. Estavam em Curitiba quando Nerino, Armandine, Felipe e mais dois

artistas decidiram se desligar da grande companhia que era o Circo Chileno para

montar seu próprio circo. Um fator importante ressaltado por Roger no livro Circo

Nerino como impulso para esta empreitada foi o fato de ter muita madeira no Paraná,

já que montar um circo de pau fincado era um empreendimento custoso. Na figura

quatro podemos ver a primeira formação do Circo Nerino, um pouco mais de dez

anos da data de sua fundação.

Figura 4 – Primeira formação do Circo Nerino Fonte: AVANZI e TAMAOKI, 2004: 36 e 37.

Desde o começo o espetáculo era dividido em duas partes: a primeira de

variedades (na qual apresentavam atrações de pirâmide humana, números de

equilíbrio, trapézio, corda bamba, números de palhaço, entre outros), e a segunda,

que passou por muitas modificações, desde as comédias mudas representadas pelo

palhaço, até se consolidar com o teatro, permanecendo até o último espetáculo da

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trupe. Logo na fundação do Circo Nerino, na segunda parte do espetáculo eram

encenadas comédias mudas de Picolino. Também tiveram episódios de luta livre, em

que lutadores locais eram desafiados, e um período de circo-cinema.

Antigamente, o espetáculo circense no Brasil era apresentado em duas partes. Na primeira, levava-se a acrobacia, malabarismo, trapézio, bailados, cavalos, entradas e reprises de palhaço, e na segunda, teatro. Tudo começou com o palhaço – o palhaço é sempre o culpado de tudo -, com as comédias, tipicamente circenses, cujo enredo sempre gira em torno dele. Meu pai dizia que no início essas comédias eram mudas, só tempos depois passaram a ser faladas. O repertório de comédias apresentado pelas diversas companhias que circulavam pelo país era praticamente o mesmo, o que mudava eram os nomes. A Casa dos Fantasmas, por exemplo, era levada também como Casa Mal-Assombrada ou O Esqueleto. E frequentemente o nome do palhaço era incorporado ao da peça. Então ficava assim: Picolino na Casa Mal-Assombrada; Piolin, Professor de Clarinete; Chimarrão e o Doutor Redondo; e por aí vai. (AVANZI e TAMAOKI, 2004: 33)

Figura 5 – (Esq.) Cartaz do Circo Nerino. (Dir.) Picolino protagonizando peça. Fonte: AVANZI e TAMAOKI, 2004 (Esq.) 66. (Dir.) 321.

Na figura acima vemos um cartaz de uma peça protagonizada por Picolino e a

outra é do Picolino atuando nas comédias de picadeiro. Este foi um fenômeno que

aconteceu em diversos circos do período e ainda podemos observar nos circos-

teatros atuais: mudar o título da comédia adicionando o nome do palhaço principal

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do circo, como mencionado no fragmento acima. Para Erminia Silva, a origem da

junção teatral com a circense não se deu a partir de uma combinação casual, mas

de algo que já vinha se processando nos circos. Os palhaços, das pantomimas

mudas, também se apresentavam com algum instrumento musical na primeira parte

do espetáculo. De acordo com a autora, aos poucos a fala adentrou no momento

musical e influenciou as pantomimas cômicas de alguma maneira. Erminia traça,

através da trajetória do conhecido palhaço Benjamin de Oliveira, o princípio do

casamento tão bem-sucedido entre o circo e o teatro. Esta união evidencia uma

característica interessante do espetáculo circense: agregar diferentes linguagens e

manifestações artísticas, sempre considerando o gosto e aceitação do público.

No Circo Nerino o teatro integrou definitivamente a programação diária, depois

de algumas tentativas de preencher a segunda parte com outras atrações. O

sucesso teatral foi tão grande que o fez permanecer até o último espetáculo da trupe,

no ano de 1964. A primeira peça com texto teatral foi O Mártyr do Calvário ou A

paixão de Cristo, encenada em 1930, amplamente representada em diversos circos

da época. Como o público pedia para assistir esta narrativa, o Nerino resolveu

encená-la, mas sem a pretensão de se tornar um circo-teatro, porém devido ao

enorme sucesso, mais a frente se tornou também um circo-teatro. Nas fotos a seguir,

retiradas do livro Circo Nerino, podemos observar como eram os figurinos e cenários

desta montagem.

Figura 6.A - A paixão de Cristo Figura 6.B – A paixão de Cristo Fonte: AVANZI e TAMAOKI, 2004: 93 Fonte: AVANZI e TAMAOKI, 2004: 104 e 105

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Figura 6.C – A paixão de Cristo

Fonte:AVANZI e TAMAOKI, 2004: 120 e 121

Somente no ano de 1937, com a peça O Signal da Cruz, cujo enredo era

baseado em um filme, o teatro passou a ser uma constante em todos os espetáculos.

Neste ano ensaiaram diversas peças, visando formar um primeiro repertório teatral

para a segunda parte do espetáculo. Antes disso, o circo apresentava o cinema,

porém, em Taubaté, recebeu a visita dos exibidores de filmes da cidade, a fim de

saber se aquele espetáculo era de circo ou cinema. Como o cinema não tinha

sucesso, eles devolveram os projetores alugados e o Nerino deixou de ser circo-

cinema. Na praça anterior, em São José dos Campos, encontrou com o famoso

Circo-Teatro Pavilhão Arethuzza, conhecido por seu teatro dramático com destaque

para a atriz Aretusa Neves. O encontro de grandes circos era visto sempre com

receio, como podemos observar pelo depoimento de Roger:

Mas, para mim, uma das competências de um circo não é deixar que a disputa de uma competência se transforme numa guerra. Não precisa colar seu cartaz em cima do cartaz do outro. Nesse quesito o Arethuzza e Nerino foram bastante competentes. É verdade que a diferença entre os espetáculos da companhia atenuou a disputa. Porque enquanto o forte do Nerino, que tinha como chamariz um palhaço, eram as comédias, os dramas faziam a fama do Arethuzza, que tinha como chamariz uma atriz dramática, Aretusa Neves. (AVANZI e TAMAOKI, 2004: 79)

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Estas ocasiões, de encontros entre circos, eram propícias a trocas artísticas, e

o Nerino pode observar, nesta ocasião, como o repertório dramático do Arethuzza

fazia sucesso. Alguns meses depois, em Bicas (MG), estrearia O Signal da Cruz, e

nos meses seguintes encenaria sete peças do primeiro repertório teatral da

companhia. No começo, as peças eram realizadas no picadeiro e não contavam com

o auxílio do ponto. Este, além de soprar as deixas, controlava as entradas e saídas

dos atores e era responsável pela iluminação, sonoplastia, subida e descida da

cortina, auxiliando em toda a encenação. Esta função passou a ser utilizada

amplamente nos circos a partir da necessidade de formar um vasto repertório

dramático, que permitisse variações diárias. O Circo Nerino passou a utilizar este

recurso no ano de 1949, a partir da instalaçãodo palco, realizada por Agenor Garcia.

Podemos ver na figura de número sete atravésda planta baixa deste circo, já com o

advento do palco.

Figura 7– Planta baixa do picadeiro com palco Fonte:AVANZI e TAMAOKI, 2004: 205.

Agenor e sua filha pertenceram ao famoso Circo Garcia, amplamente

reconhecido por seu repertório teatral, Anita era uma grande atriz de circo-teatro e

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seu pai o ensaiador e adaptador de peças. Dessa forma, o Circo Nerino foi

presenteado com duas personalidades que contribuíram para o desenvolvimento e o

aprimoramento teatral. Neste momento, a temática das peças deixou de ser

majoritariamente sacra e apresentou preocupações relacionadas ao cotidiano da

época, despertando ainda mais o interesse dos espectadores. Roger Avanzi, em

entrevista, comentou sobre a importância da recepção do público na escolha do

repertório semanal:

Levávamos a Paixão de Cristo também, a vida de Jesus. Quase todos os circos apresentavam a vida de Jesus, mas só na semana santa, sexta-feira santa, e nós levávamos sempre, porque estávamos no Nordeste e Norte e eles eram muito religiosos, naquele tempo hoje mudou muito. Tinha cidades que a gente tinha que dá duas sessões e o povo fica esperando fora do circo para assistir a segunda sessão. (Roger Avanzi em entrevista realizada em 18/03/2014) A presença (ou influência) circenses nas suas atividades não pressupunha só saber fazer exercícios acrobáticos, engolir espadas ou comer fogo (o que já não era pouco), mas também a forma de combinar e unir tudo isto em espetáculos capazes de atender a ‘plebe e a burguesia, o escravo e a família, o aristocrata e o homem de letras’. Os circenses, no seu nomadismo, ocupavam, então, diversos espaços, desde praças até variados palcos teatrais. (SILVA, 2007: 70)

Conforme enfatiza Erminia Silva, atender aos interesses de um público

eclético sempre foi uma prerrogativa da arte circense, capaz de encantar desde os

mais pobres à elite burguesa e, inclusive, intelectual. Em qualquer fase de sua

história o circo sempre foi um espetáculo agregador tanto de público quanto de

atrações. A relação entre espetáculo e público é recíproca e dependente, pois é feito

para agradar e se molda a estas necessidades.

A comunicação entre o público e artistas circenses, em diversos momentos,

se dava pelo rádio, e o Circo Nerino tinha sua própria estação, apesar de não ter

autorização oficial para funcionamento. Porém como “o serviço de rádio transmissão

no país ainda era criança” (AVANZI e TAMAOKI, 2004: 82) foi possível manter por

alguns anos a transmissão. Em diversos momentos da história deste circo o rádio foi

um polo agregador entre artistas e público, o que permitia o intercâmbio de

interesses e informações, além de os artistas circenses participarem das origens do

rádio se apresentando e usufruindo deste importante meio de comunicação.

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A relação estreita que o circo busca estabelecer com seu público é

responsável por trazer um dinamismo ao espetáculo e atualizá-lo de acordo com as

mudanças sociais em curso. Como, por exemplo, no começo do século XX, a

preferência do público pelo gênero melodramático. Atualmente, porém, a situação

que se observa em diversos circos é diferente, pois a preferência é voltada para as

comédias protagonizadas pelos palhaços e personagens cômicas. O Circo de Teatro

Tubinho, em atividade desde 2001, transforma, com facilidade, antigos dramas em

comédias, dialogando com a preferência dos espectadores. Quando assim feito, a

personagem cômica do melodrama ganha destaque e importância na encenação

final do espetáculo, a ponto de se tornar a protagonista da história. Muitas vezes, o

nome do palhaço principal do circo é incorporado ao título da peça, tal como era feito

no começo do circo-teatro brasileiro com as comédias de picadeiro.

Esta pesquisa selecionou um momento da história em que o melodrama era

mais apresentado e apreciado pelo público. Geralmente este estava inserido na

segunda parte do espetáculo, na parte teatral, nas peças que os circenses chamam

de drama. Os dramas eram assim chamados por apresentar histórias cujo tom

cômico não era preponderante, e faziam parte deste momento melodramas,

tragédias, autores clássicos, autores nacionais – principalmente da comédia de

costumes 4 representada nos edifícios teatrais. Como este trabalho tem o enfoque

de estudar a personagem cômica do melodrama foi uma prerrogativa escolher um

circo do passado, cujo repertório era mais dramático e não tinha o tom cômico

preponderante que percebemos atualmente.

2.2 - O Melodrama

O melodrama surgiu na Itália, no século XVII, ligado à ópera italiana,

designava na época um drama inteiramente cantado (THOMASSEAU, 2005: 16),

responsável por juntar texto e canção. Chegou à França, no contexto da Revolução

Francesa, e se popularizou principalmente após o édito de liberação da construção

de teatros públicos, em 1791, ocasião que permitiu a qualquer cidadão representar

4 A comédia de costumes foi um gênero dramático inspirado em Molière que se desenvolveu

e destacou no Brasil, no final do século XIX e começo do XX. Caracteriza-se pela criação de tipos e situações da época, apresentando sempre uma sutil sátira social.

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peças de todos os gêneros dramáticos nestes edifícios. Esta medida possibilitou que

o teatro fosse frequentado por diferentes classes sociais, uma vez que seu histórico

era de um ambiente elitizado e restrito. Desse modo, os melodramas despertaram a

atenção popular e das elites sociais, pois buscavam conciliar diversas ideologias e

reconstruir valores nacionais. Pixerécourt, conhecido dramaturgo do gênero,

comenta que se lançou na carreira teatral motivado por ideias religiosas e morais e,

para ele, o melodrama era um meio de instrução para o povo.

Jean-Marie Thomasseau, em seu livro intitulado O melodrama, distingue as

inúmeras fases do gênero e suas principais características. A primeira delas é a do

Melodrama Clássico (1800-1823), em que os criadores buscaram estabelecer regras

de construção dramatúrgica com a intenção de conquistar um estatuto literário e

teatral reconhecido. Na época, havia um predomínio das regras e convenções

criadas durante o teatro clássico francês, apesar de o drama romântico já apontar

como uma nova dramaturgia. As leituras classicistas de Aristóteles, até então,

predominavam como sendo o expoente de construção dramatúrgica e as

convenções teatrais eram permanentemente debatidas e comentadas. A inspiração

original era vista com muitas ressalvas e deméritos, por isso os autores

melodramáticos se viam obrigados a justificar e definir minuciosamente sua criação.

Dessa forma, mantiveram obediência à regra das três unidades5, entretanto

buscavam dialogar com os diversos públicos que compunham o cenário teatral da

época, através de uma linguagem mais popular e comunicativa. Um dos objetivos

deste gênero, no início de sua criação, era conciliar a tragédia e a comédia em torno

de um enredo cuja temática geralmente se apresentava violenta e complicada.

A segunda fase é a do Melodrama Romântico (1823-1848), em que

observamos uma grande mudança na mentalidade coletiva, com o declínio dos

valores tradicionais, cívicos e guerreiros (Thomasseau, 2005: 63). Novos elementos

são introduzidos na temática e na tipologia do gênero, como a transformação dos

bandidos, antes banidos e rechaçados, em heróis, uma vez que novos tipos sociais

se popularizavam através dos romances. Uma tônica é dada ao exagero e à

desmedida, a paixão amorosa inflama o palco. Algumas temáticas, impensáveis

5 A regra das três unidades diz respeito à interpretação da Poética de Aristóteles pelos doutos

franceses do século XVIII. Nestes estudos, intelectuais franceses comentavam sobre os quesitos necessários para a construção dramática: obedecer às unidades de tempo, espaço e ação.

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durante a fase do melodrama clássico, se tornam cada vez mais presentes, como o

adultério, filhos bastardos, crianças perdidas e reencontradas. As três unidades não

são mais essenciais e o enredo passa a apresentar diversos lugares e ambientes,

através de telões pintados.

A fase posterior é chamada por Thomasseau de Melodrama Diversificado

(1848-1914) e subdivide quatro inspirações melodramáticas deste período. A

primeira delas é o Melodrama Militar, Patriótico e Histórico, influenciado pelas

guerras do Segundo Império e pela retomada da expansão colonial francesa. Este

tipo romantiza e narra episódios históricos dentro do contexto melodramático,

apresentando à população uma versão particular dos fatos. Nestes textos, um

ofegante episódio de perseguição conseguia atrair e conquistar muitos espectadores

aos bulevares da época.

As questões de família serão abordadas no Melodrama de Costumes e

Naturalista6, as quais, a partir da ascensão de novos estratos sociais, apresentam

um diálogo, principalmente amoroso, entre as diferentes classes sociais. Neste tipo

de melodrama, as reivindicações dos movimentos anarquistas, dos protestos

operários e a ascensão do socialismo, influenciaram sobremaneira as histórias deste

período. Nas fases anteriores, a possibilidade de uma pessoa pobre melhorar sua

condição financeira era algo impensável e somente nesta se tornou possível. Este

tipo de situação correspondia diretamente às necessidades e interesses do público,

e se encaminhou, em muitos textos, para uma estética naturalista. Na qual a

representação visa dar a ilusão de realidade e a interpretação dos atores também,

inclusive é comum dizermos que há uma quarta parede, invisível, no palco, que

separa os espectadores dos artistas.

Outro tipo, da divisão proposta por Thomasseau, era o Melodrama de

Aventura e de Exploração, influenciado pelas invenções científicas e os novos

territórios que a tecnologia possibilitou descobrir. Os espaços “exóticos”, como as Américas, exerceram grande fascinação nos autores, por criar uma atmosfera de

epopeia e de perigos, cenário ideal para as intrigas do gênero. O último tipo é o

Melodrama Policial e Judiciário, época de popularização dos jornais policiais que

6 “A representação naturalista se dá como sendo a própria realidade, e não como uma transposição

artística do palco. B. DORT a define como ‘tentativa de construir a cena num meio coerente e concreto que, por sua materialidade e fechamento, integra o ator (ator-instrumento ou ator-criador) e propõoe-se ao espectador como a própria realidade”(1984:11)”(PAVIS, 2005: 261)

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exageravam, ou mesmo falsificavam, notícias com o intuito de aumentar as vendas,

na França eram conhecidos como canards. Os melodramas se inspiravam em casos

relatados por estes jornais, explicitando e intensificando uma característica presente

nesta dramaturgia: o herói, perseguido injustamente, depois de muitas situações

desfavoráveis consegue, no último ato, comprovar sua inocência.

Uma importante característica desta dramaturgia é de acompanhar os

movimentos teatrais e sociais mais modernos, que a permite perdurar tantos séculos

e ser representada até os dias atuais em teatros, circos e nos meios digitais. O

diálogo com os espectadores tanto em relação à temática quanto à linguagem é o

aspecto motivador dos autores e encenadores deste estilo. Pixerécourt, dramaturgo

francês da época de fundação, é conhecido por valorizar os aspectos da encenação

de suas peças e por realizar uma comunicação direta e eficaz com o público. Todos

estes fatores contribuíram para a perpetuação deste estilo, o qual se adaptou com

facilidade a diversos espaços de representação, inclusive ao espetáculo circense.

O enfoque na encenação se deve, principalmente, à simplicidade da estrutura

dramática, a qual Ivete Huppes identifica como bipolar, em dois níveis: horizontal e

vertical. Horizontalmente opõe personagens representativas de vícios e virtudes, em

que as personagens negativas geralmente se mostram mais dinâmicas do que os

heróis, porém, ao final da trama, a virtude é reestabelecida e a boa ordem é

confirmada. Verticalmente alterna os sentimentos de desolação e desespero com os

de serenidade e euforia. A tensão é apresentada pelo conflito principal e se mostra

crescente ao logo da história, muitas vezes é suspensa por acontecimentos que se

relacionem indiretamente com o curso da narrativa, com o objetivo de distrair a

atenção do espectador e aumentar o impacto diante das terríveis ações. As

personagens cômicas participam destes momentos e são responsáveis por gerar

euforia e apresentar diferentes nuances ao enredo majoritariamente dramático. Uma

vez que o esquema básico se apresenta limitado, a criatividade dos autores se

focará na construção da intriga, com o objetivo de criar diferentes emoções e

sensações, principalmente através da surpresa iminente. A pretensão é envolver a

plateia na ilusão teatral através de arranjos visuais e sonoros, além da possibilidade

de o autor desdobrar o enredo conforme achar necessário e pertinente.

O número de personagens pode variar conforme a demanda da narrativa,

porém há tipos que sempre estarão presentes, tais como o vilão (que pode ser

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desempenhado por mulheres), a vítima, o herói e o bobo. As características físicas e

o comportamento de cada tipo7 devem ser imediatamente identificados pelos

espectadores e não variam no decorrer da trama, por isso são definidos assim e não

como personagens. Um exemplo é o estereótipo do vilão que se veste de preto ou

cores escuras, geralmente tem os cabelos negros e o rosto pálido, suas maléficas

intenções se mantêm invariavelmente ao longo de toda a história. Pode também

haver um vilão cuja aparência é de honestidade e de grandeza e, portanto, se

caracterizará de outra maneira, porém seu fim será mais trágico e violento do que o

primeiro devido a sua dissimulação. Mesmo quando assim ocorrer, algum outro

elemento cênico ou do enredo indicará a falsidade deste tipo, como, por exemplo, a

utilização de uma música de suspense na sua entrada. A heroína, em contrapartida,

é delicada, bondosa, sensível, sua voz é suave e se veste de tons claros. Estas

características criam códigos claros com os espectadores, que se manterão de um

melodrama para outro.

Os quatro principais tipos, segundo Jean-Marie Thomasseau, são: o vilão,

personagem mais dinâmica da trama, geralmente atua como o principal motivador do

enredo. A inocência perseguida (mais comum ser desempenhada por mulheres, mas

também pode ser um herói) personagem pura e virtuosa, personificação da moral,

sofre as ações impiedosas do vilão. A personagem cômica, responsável por

desencadear o distanciamento em relação à história, atuando de maneira oposta à

dramática, gera momentos de descontração e euforia. O pai nobre (que também

pode ser representado por uma mulher mais velha) resguarda a moral e representa

uma autoridade que, devido à idade e a experiência, impõe respeito.

A moral é um dos aspectos mais importantes deste gênero, que, desde sua

criação, motiva os autores a criarem obras cujo enfoque é cultivar bons hábitos

sociais e culturais. Os valores familiares, relacionados à pátria e à religião cristã são

os mais ressaltados nas peças melodramáticas, principalmente através da exaltação

das personagens virtuosas em detrimento dos vícios representados pelos vilões e

seus companheiros. Os bons costumam gerar uma identificação com os

espectadores, apresentam um apreço pelo dever, muitas vezes em detrimento da

7“Há criação de um tipo logo que as características individuais e originais são sacrificadas em

benefício de uma generalização e de uma ampliação. O espectador não tem a menor dificuldade em identificar o tipo em questão de acordo com o traço psicológico, um meio social ou uma atividade.” (PAVIS, 2005: 410)

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própria vontade, pois os interesses coletivos se sobrepõem aos particulares. Os

maus, por sua vez, têm a característica de satisfazer os próprios desejos, os quais

costumam estar em conflito com alguma outra personagem. Aos oprimidos resta

confiar na Providência Divina e na justiça para aplacar as inúmeras desgraças

vividas.

Cada uma das fases do gênero apresenta a verticalidade em algum aspecto

moral que determinada sociedade precisaria conquistar. Ao colocar em embate

personagens boas e más, o autor apresenta valores sociais que deseja suprimir,

através dos vícios dos vilões, e exaltar, com os heróis. Thomasseau menciona um

trecho do livro Livro dos Cento e Um de Pixerécourt que ilustra, de maneira resumida,

os aspectos morais que os autores desejavam atingir:

Não podemos negar ao melodrama a justiça de reconhecer que é ele que nos reconta melhor e mais frequentemente os assuntos nacionais, gêneros de espetáculo que deve ser representado em todos os lugares. Ele dá à classe da nação que mais deles necessita belos modelos de atos de heroísmo, traços de bravura e fidelidade. Ele instrui assim a tornar-se melhor, mostrando, mesmo em meio a seus prazeres, os nobres caracteres desenhados em nossos anais (...). O melodrama será sempre um meio de instrução para o povo, porque ao menos este gênero está a seu alcance. (THOMASSEAU, 2005: 49)

2.3 - O Melodrama no Brasil

A vinda da família real portuguesa para o Brasil, no ano de 1808, promoveu a

construção de edifícios teatrais e o costume de frequentar estes espaços começou a

se desenvolver entre a população livre.

A identificação das raízes portuguesas do teatro brasileiro é importante para a matéria a ser tratada aqui, porque ajuda a localizar um gosto comum em ambos os países: o gosto que está situado na origem do teatro mais popular da época, ou seja, o melodrama de temática sentimental. Esta tendência tinha chegado de Portugal através da França e veio para o Brasil mais rapidamente em função das excursões das companhias teatrais. As canseiras das viagens transatlânticas tinham que encontrar compensação à altura. Não admira, portanto, que as companhias escolhessem o repertório de aceitação mais imediata e com essa iniciativa acabassem influenciando a sedimentação de valores estéticos. (KIST, In. FARIA, 2012: 75 e 76)

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Reconhecer as raízes portuguesas, com fortes influências francesas, dessa

vertente do nosso teatro contribui para compreender alguns pontos, principalmente

referentes ao gosto popular. Ivete Susana Kist, no texto citado acima, menciona

algumas obras de dramaturgos do século XIX, que não são tão reconhecidas pela

história teatral convencional, como tendo sido influentes para o estabelecimento da

nossa dramaturgia. Entretanto começa descrevendo a importância de Gonçalves de

Magalhães, o conhecido precursor do teatro romântico.

O posicionamento estético de Magalhães oscilava entre a tendência

neoclássica (representada pela tragédia) e o romantismo (através do drama histórico

e, sobretudo, do melodrama). Os autores dramáticos deste período que mais

buscavam dialogar com o público apresentavam uma tônica melodramática

acentuada, e os outros, que se propunham satisfazer um público mais erudito,

acharam na tragédia maior substrato.

Tanto o melodrama como o drama histórico se distanciam da contenção clássica, que dita as regras da tragédia. Desenvolvendo histórias cheias de meandros e de surpresas, ambos requerem cenários complexos. Ficam para trás os austeros paços reais das tragédias mais conhecidas, o despojamento do espetáculo, a ação concentrada no tempo e no espaço, envolvendo um número pequeno de personagens, pouca ação física e linguagem versificada. Ao contrário, os personagens dos dramas e melodramas se deslocam por espaços variados e têm nos arranjos cênicos um forte aliado para caracterizar os sentimentos que os envolvem. Iluminação, movimento, figurinos e múltiplos elementos plásticos são convocados para compor cenários impressionantes. (KIST, In. FARIA, 2012: 78)

Luís Antônio Burgain é um exemplo de autor que buscava conciliar a

encenação de suas peças com o gosto popular dos espectadores, para isso,

escreveu muitos dramas históricos e melodramas. Suas tramas se localizam em

épocas passadas e em geral são inspiradas em assuntos portugueses e brasileiros,

o que bastava para a temática ser considerada nacional, uma vez que a maioria dos

escritores da época não ambientavam suas tramas no Brasil. Outra característica

relevante para popularização de seu trabalho era o fato de alternar momentos de

seriedade com os de comicidade, descontraindo e dando um especial colorido à

encenação. Outro autor deste período foi Martins Pena, que antes de se dedicar às

comédias, escreveu cinco melodramas, porém, ao contrário do que se imagina, não

havia nenhuma abertura cômica. Ele nomeava suas peças de “dramas”, apesar dos

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indícios melodramáticos, entretanto neste período era comum haver esta confusão,

por ser o momento de estabelecimento do gênero e também devido a um relevante

episódio:

A confusão atravessou o Atlântico e chegou ao Brasil. Em 1836, quando João Caetano encenou dramas de Victor Hugo e Alexandre Dumas (O Rei Se Diverte e A Torre de Nesle, respectivamente) e melodramas como Trinta Anos ou A Vida de um Jogador e Os Seis Degraus do Crime, o primeiro crítico teatral brasileiro, Justiniano José da Rocha, colocou-os todos sobre a mesma rubrica de dramas românticos. Assim, não admira eu nossos primeiros autores dramáticos importantes, Luís Carlos Martins Pena e Luís Antônio Burgain, tenham escritos melodramas, chamando-os de dramas. (KIST, In. FARIA, 2012:78)

Esta ausência de clareza entre os estilos dramatúrgicos era muito comum

também no ambiente circense, uma vez que muitos melodramas são chamados até

hoje de dramas pelos artistas. Não havia a necessidade de nomear e seguir os

padrões de determinada dramaturgia, mas de absorver aquele material, ressignificá-

lo e apresentar ao público, despertando-o o interesse. Dessa forma criavam os

dramaturgos circenses, cuja autoria e definição de gênero, eram para eles

secundários, uma vez que o que importava mesmo era a relação com o público.

Voltando ao teatro e autores representados nos edifícios teatrais, o que era

mais apreciado na obra de Burgain era a maneira incrível de alternar momentos

cômicos com dramáticos, resultando disso uma maior predileção do público. Outros

autores como Antônio Gonçalves Teixeira e Souza, Antônio de Castro Lopes,

Francisco Antônio de Vernhagen e Pedro José Teixeira também participaram do

advento e estabelecimento do teatro romântico no país, oscilando entre o gosto

antigo da tragédia neoclássica e os dramas e melodramas.

O melodrama passa a oferecer, para um público distante da linguagem cênica

de palco, um espetáculo total, no qual a representação tem importância equivalente

à história e com ela entrelaça quatro sentimentos básicos: o medo, o riso, o pesar e

o entusiasmo. Principalmente por ser um espetáculo que busca envolver

emocionalmente os espectadores e lhe manter atento e envolvido, a encenação e o

texto se aliam a fim de obter sucesso junto ao público. Os autores citados acima

tiveram que aceitar esta demanda popular e, para isso, mudanças significativas no

enredo e no espetáculo foram necessárias. Este período foi bastante relevante para

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a construção da identidade cultural do país que, ao dialogar com o gosto popular,

tornou a difusão do teatro mais fácil.

Nesse sentido, cabe ressaltar a importância da comédia para o

estabelecimento das artes cênicas brasileiras. Neste momento a representação era

inspirada no Iluminismo francês tanto no que diz respeito à função pretendida

(através da ideia de adensamento cultural e tentativa de civilizar povoações

diferentes), quanto à forma artística. Isto ocasionou um grande descompasso, pois

nem o contexto histórico e nem essa forma artística faziam parte de nossa realidade

brasileira. Os princípios liberais da Revolução Francesa estavam distantes da

sociedade brasileira, além de a população ter pouca relação com a representação

cênica de palco, embora os autores teatrais conhecessem muito bem a arte europeia.

Não por acaso o gênero teatral que mais floresceu entre nós foi a comédia,

estruturalmente apoiada na fratura, nos equívocos e na instabilidade de suas

relações, tal como o contexto brasileiro se apresentava.

A comédia de costume, como viria a ser chamada, versava sobre os hábitos

da época, satirizando alguns pontos frágeis da nossa cultura em formação. O século

XIX, no Brasil, foi um período de muitas transformações relativas à política, a

questões sociais e culturais, até mesmo relacionadas à estruturação física das

capitais. Foi o momento da conquista da independência, abolição da escravidão,

consolidação de um regime democrático, e a comédia foi para muitos uma maneira

de comentar os aspectos sociais abalados por estas mudanças. A comédia tinha

mais liberdade do que o drama para abordar assuntos diversos, favorecida pelo tom

jocoso e despretensioso. Além disso, e assim como os melodramas, eram preferidas

pelo grande público e se desenvolveram de modo mais constante no nosso país.

Melodramas e comédias foram os gêneros dramáticos mais apreciados por

grande parte da população brasileira do período e fundaram alguns dos princípios da

arte representativa nacional. Podemos dizer que não era algo novo e totalmente

desconhecido da população, pois neste período também começaram a chegar os

circos europeus. Antes disso havia alguns artistas que apresentavam números de

variedades, superação humana e pantomimas em feiras e festas populares.

Herdeiros da commedia dell’arte, apresentavam um espetáculo variado, em que

habilidades humanas eram testadas e havia o momento da encenação de histórias,

que eram baseadas em um roteiro de ações.

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A commedia dell’arte italiana girava em torno de figuras cômicas e havia

sempre um casal de namorados, que dialogavam com o gosto posterior pelo

melodrama e por histórias cujos conflitos giram em torno da dupla. Na origem desta

manifestação artística utilizavam-se máscaras, porém no circo, anos depois, os tipos

serão caracterizados sem esse adereço, salvo pela pequena máscara do palhaço,

com seu nariz vermelho. A interpretação dos atores circenses é bastante estilizada e

esquemática, remontando a esta origem popular europeia.

Fernando Neves8, em entrevista concedida à dissertação de mestrado de

Fernanda Jannuzzelli, comenta sobre as “máscaras” criadas para o circo, cuja

origem remonta à commedia dell’arte italiana. Apesar de não ser inventada a partir

de um objeto, Neves comenta que a “máscara” circense seria formada a partir da

maquiagem, dos adereços e figurinos para caracterizar determinado tipo. Os

circenses, além de recriá-las à sua maneira, acabavam adaptando para a realidade

de cada país, transformando de acordo com os tipos locais. Como um exemplo,

Fernando menciona a do negro criada no Brasil: o rosto pintado, a peruca, utilização

de luva e meias pretas. Este figurino era padrão de um circo para outro, realizava

uma identificação imediata com o tipo representado, e por isso Neves o chama de “máscara”.

Os melodramas e comédias, representados nos teatros brasileiros do começo

do século XIX, bem como os saltimbancos influenciaram sobremaneira a construção

do espetáculo circense do final do século XIX e começo do XX. O circo-teatro

utilizará esta dramaturgia, que já estava próxima da população brasileira, para

construir suas histórias e apresentações, visando dialogar com os interesses e o

gosto de seu público.

2.4 – Os tipos do circo-teatro

Este trabalho se destina a estudar a personagem cômica das peças

melodramáticas, geralmente representada por um empregado ou uma personagem

humilde. É muito comum nestas tramas haver personagens ricas e pobres em

8 Fernando Neves nasceu no Circo Teatro Pavilhão Arethuzza e viveu durante sua infância

neste circo.

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contraste, e o cômico, na maioria das narrativas, integra o último núcleo social. A

presença do cômico demonstra outra compreensão dos acontecimentos cênicos,

menos grave e intensa, tal como expresso pela maioria das personagens dramáticas.

Sua fala é coloquial e costuma ser carregada de algum sotaque regional, destoando,

dessa forma, da maneira formal de se expressar, comum às demais personagens.

Geralmente este tipo, dentro do contexto melodramático, é interpretado pelos

palhaços da primeira parte do espetáculo circense (em que se apresentam números

artísticos variados), que não seja o mais importante da companhia. No Circo Nerino,

o excêntrico principal, Picolino, não participava dos dramas, por ser uma figura muito

característica da primeira parte, porém costumava protagonizar as peças cômicas.

Os clowns que faziam dupla com ele, Arthur Fernandes, Júlio Avanzi, Hernani Avanzi

e Walmir dos Santos, eram os que geralmente representavam as personagens

cômicas dos melodramas.

Há de se levar em conta que o intervalo entre a primeira e a segunda parte do espetáculo era curto demais para tirar a maquiagem, a roupa de palhaço e caracterizar outro personagem. E também não é muito bom o palhaço do circo representar papéis dramáticos. O Arrelia conta que ele estava representando Jesus em A Paixão de Cristo quando um moleque o reconheceu e gritou: - O Cristo é o Arrelia! O Cristo é o Arrelia! (AVANZI e TAMAOKI, 2004: 82)

Podemos dizer que existe uma grande semelhança entre os palhaços da

primeira parte, e daqueles que protagonizavam as peças cômicas, com as

personagens cômicas dos melodramas. Bolognesi, ao traçar a etimologia da palavra

clown, indica características comuns entre estas duas figuras cômicas: “Sua matriz

etimológica reporta a colonus e clod, cujo sentido aproximado seria homem rústico,

do campo. Clod, ou clown, tinha também o sentido de lout, homem desajeitado,

grosseiro (...).” (BOLOGNESI, 2003: 62). Ainda de acordo com este autor, na

pantomima inglesa o termo designava o cômico principal com funções de um serviçal.

E no contexto circense se refere ao artista que participa de cenas curtas explorando

sua tolice. Estas definições se aproximam do perfil tanto do palhaço quanto da

personagem cômica do melodrama, ambos representados no Circo Nerino, na

primeira e segunda parte do espetáculo respectivamente. Ambos suscitarão os

momentos engraçados a partir do seu jeito desajeitado e tolo, como

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sublinhado pela definição acima. O palhaço despertará o riso, essencialmente a

partir da sua desenvoltura corporal, e o outro provocará o chiste através da fala e os

equívocos decorrentes dela.

A primeira parte do espetáculo, no Nerino e em muitos circos do período, se

destinava a apresentação de números variados de risco e superação humana,

alternados com entradas de palhaços, em um amplo espaço cênico explorado em

diversas as direções. A lona favorecia a verticalidade necessária à execução de

alguns números, tais como trapézio, acrobacias, a corda bamba, atrações estas

bastante conhecidas neste circo. Nas fotos abaixotemos algumas ilustrações da

primeira parte do espetáculo do Circo Nerino, as quais nos ajudam a compreender

alguns aspectos abordados por este tipo de espetacularidade, majoritariamente

visual e cênica.

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Figura 8 - Fotos da primeira parte do espetáculo do Circo Nerino Fonte: Acervo pessoal de Walmir dos Santos

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Figura 8 A – (Esq.)O atirador de facas: Gaetan Ribolá e Amandine Ribolá. (Dir.) Alice Avanzi Silva, na corda bamba, e Hernani Avanzi.

Fonte: AVANZI e TAMAOKI, 2004. (Esq.) 22. (Dir.) 234.

Figura 8 B – (Esq.) Acrobacia: Gaetan Ribolá (no alto), Alice Avanzi Silva (no ar) e Roger Avanzi. (Dir.) O equilibrista: José Américo e Vick Américo.

Fonte: AVANZI e TAMAOKI, 2004. (Esq.) 311. (Dir.) 184.

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A extensão do espaço determina uma linguagem artística transversalizada, na

tentativa de abarcar e comunicar com todos os espectadores presentes. Diversos

elementos do espetáculo terão este objetivo, tais como: o figurino dos artistas,

através do colorido, paetês e adornos; as atrações que costumam explorar diversas

direções do espaço; a interpretação diferenciada e estilizada nas peças de teatro; os

números de palhaço, que exploram ações cômicas e usam uma maquiagem e roupa

exageradas.

Na primeira parte do espetáculo, as trocas de aparelhos dos números

acrobáticos costumam ser executadas na frente do público. Nestes momentos, o

palhaço entra para distrair os espectadores enquanto os técnicos realizam a

montagem dos equipamentos. A construção artística se torna então aparente, mas

isto não diminui o entusiasmo e expectativa em relação aos desdobramentos do

espetáculo. A apreensão do público se dará através dos números de risco e

superação humana, executados em ordem progressiva de dificuldade. A figura do

apresentador, junto com a música, ressalta as dificuldades e emoções diante dos

números que desafiam os limites, principalmente corporais, do homem.

Todos estes elementos caracterizam a estética circense de maneira particular,

ao criar um espetáculo essencialmente visual, que ressalta as emoções e sensações.

Através da oposição entre o sublime e admiração, dos números de habilidade; e do

grotesco e risível, dos números de palhaço, o espectador percorrerá diversos e

opostos sentimentos. O espetáculo apresenta ao imaginário do público habilidades

humanas impensáveis, atuando na fantasia e revelando novas possibilidades ao

cotidiano limitado.

A representação teatral, realizada usualmente na segunda parte do

espetáculo, está inserida dentro deste contexto específico que impõe aos artistas

alguns procedimentos. Como a estilização da linguagem cênica, necessária para

estabelecer uma comunicação com os diversos espectadores que se encontram

amplamente distribuídos no espaço. A interpretação dos atores, de tipos

reconhecidos pela plateia, é ampliada e visa criar uma comunicação direta e clara.

Faz o público acompanhar a história de maneira onisciente, porém sendo

constantemente surpreendido pelos desdobramentos inimagináveis, deixando-o

motivado e instigado em assistir à representação.

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Para criar este vínculo, os atores utilizam a prática chamada de triangulação

com os espectadores, descritas por Carlos Alberto Soffredini9da seguinte forma:

O público é o vértice de maior peso no triângulo. É o CÚMPLICE na representação. É o CENTRO dela. É para ele que se CONTA a história, portanto ele é o dono dessa história. Muitas vezes ele conhece dados dela que ou um ou os outros dois vértices do triângulo (os atores) desconhecem. Ele conhece o caráter e a intenção de cada personagem, uma vez que cada ator, ao entrar em cena, deve ter como meta REVELAR o seu personagem, a intenção dele e, é claro, a sua ação dentro da ação (história). A partir dessa CUMPLICIDADE com o público, dessa CENTRALIZAÇÃO nele, dessa DOAÇÃO a ele da ação (história, representação) é que se estabelece a base do jogo teatral. Os gregos já sabiam disso. E as velhas peças românticas abriam margem para esse jogo através do A PARTE, que, em última análise, é a forma tosca a partir da qual, elaborando, nós chegamos ao processo do TRIÂNGULO. E infinitas são as possibilidades desse jogo. Uma delas é a CIÊNCIA: por exemplo, o MOÇO declara seu amor para a MOÇA. Mas o público já está ciente de que o MOÇO está mentindo (por revelação anterior ou no momento mesmo da ação). Dessa forma, a posição de cada um dos personagens, a sua ação e reação ficam ampliadas, teatralizadas. Outra é a SURPRESA: por exemplo, a um dado momento se descobre que o MOÇO está mentindo para descobrir algo que a MOÇA esconde (de que o público pode ter ciência ou não). Dessa forma os personagens mudam de repente, teatralmente, de posição perante ao público. (SOFFREDINI, 1980: 4)

Sendo corroborado por Rubens Brito, que participou das primeiras pesquisas

de Soffredinni junto aos circos de periferia:

Conseqüentemente, a triangulação propõe ao ator um tipo de interpretação no qual não basta que ele “seja” a personagem, mas que ele “seja” a personagem e a revele para o público. Essa é a razão pela qual Soffredini remete esse fenômeno ao teatro brechtiano. (...) A triangulação nas peças circenses é explícita e executada com muita naturalidade. O espetáculo se desenvolve de forma a incluir a platéia no jogo cênico, especialmente nas comédias; nos dramas se observa o mesmo fenômeno, embora a técnica triangular se atenue em benefício da objetivação da “dramaticidade” do enredo. (BRITO, 2006: 82)

A representação de circo-teatro está estreitamente relacionada com a criação

de efeitos, previamente articulados, visando criar determinadas reações no jogo com

a plateia. Para isso, a forma como o ator se colocará em cena, a sua entrada e saída,

a pausa dada para determinada fala, a gestualidade do tipo representado, tudo isso

será bem ensaiado e pensado. A encenação é teatralizada em diversos âmbitos,

principalmente no que concerne à forma, e a triangulação explicita isto. É

9 Carlos Alberto Soffredini foi umdramaturgo e diretor brasileiro muito ligado à cultura popular

brasileira, especialmente ao circo brasileiro.

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interessante observar que os dramas, apesar de manterem essa vertente

interpretativa, fazem-no de forma atenuada, conforme explicitado no texto acima de

Rubens Brito.

O figurino no melodrama circense também é bastante exuberante, por

dialogar, de maneira evidente, com as características dos tipos e sublinhar os

principais traços da figura ficcional. Isto permite compreender visualmente a trama

dentro deste amplo espaço circense. O mesmo efeito é buscado pela cenografia,

através dos telões pintados. O cenário é bidimensional e representa, de maneira

esquemática, as diversas locações do enredo, tal como era feito nos edifícios

teatrais das principais cidades brasileiras do período. A entrada e a saída das

personagens são trabalhadas visando um efeito específico para a representação, do

qual os artistas têm total consciência. As personagens boas e protagonistas, por

exemplo, ocupam o centro do palco, enquanto os vilões deslizam pelas margens da

cena.

Novamente reforçamos que estas características teatrais sevem para dialogar

com o espaço em que estão inseridas, mantêm relação com a linguagem utilizada na

primeira parte do espetáculo circense e desenvolve uma comunicação eficaz com

um público, pouco acostumado às casas de teatro. Esta mesma linguagem foi

apropriada pelos programas de rádio e televisão, transformada de acordo com as

particularidades do meio, porém mantendo a característica fundamental de realizar

uma difusão cultural passível de ser compreendida por um vasto e heterogêneo

público.

O teatro segue algumas convenções precisas como as descritas acima, tanto

nas peças encenadas nos circos quanto nos edifícios teatrais da época. Era muito

semelhante à forma da encenação e alguns recursos utilizados, como, por exemplo,

a caracterização dos tipos de personagens. A partir das décadas de 1920 e 1930 os

circos-teatro passaram a representar uma peça diferente em cada apresentação,

visando com isso permanecer mais tempo na mesma cidade. Este foi um momento

importante em que começou a se estabelecer alguns procedimentos para abarcar a

rotatividade dos textos. Os atores passaram então a interpretar os mesmos tipos de

papéis, de uma peça para outra, geralmente condizente com o seu temperamento

pessoal e características físicas.

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Dentro do contexto circense, era comum os mais velhos observarem as

crianças da companhia e definirem, de acordo com as atitudes e comportamentos

apresentados em situações cotidianas, qual seria o tipo de cada uma. Esta maneira

de proceder favorecia o desempenho do ator, a montagem de diversas peças pela

companhia e a compreensão do público em relação à história, que logo identificava o

tipo apresentado.

Os velhos dramas românticos, no seu maniqueísmo desvairado, continham sempre determinados “tipos” de personagem. Os atores, dependendo do seu tipo físico somado à sua personalidade, se especializavam em cada um desses “tipos”. A forma de representar esses personagens se tornou tradicional e os atores, especializados, passaram a receber o nome do tipo que representavam. Assim, toda Companhia tinha a sua “ingênua”, o seu “galã”, a sua “dama-galã”, o seu “vilão”, a sua “sobrete”, o seu “cômico” e etc. (Sem dúvida os ancestrais desses “tipos” estão na commedia dell’arte italiana: o Arlequim, a Colombina, o Pantaleão, etc) Rompida a primeira casca do “tipo”, observamos que havia mais no ator que o representava. Assim, uma “ingênua” não era somente um tipo físico e uma personalidade, mas um estado-de-espírito da atriz. Entrando imbuída desse estado-de-espírito a atriz REVELAVA, já no seu primeiro passo em cena, o seu personagem. Sem equívocos, sem fumaças, sem meios tons: sim o EXATO. (SOFFREDINI, 1980: 6)

As companhias circenses, assim como muitas companhias teatrais,

costumavam ter pelo menos um ator para cada tipo, o que lhes permitia representar

uma gama extensa de repertório dramático, formado basicamente por melodramas e

comédias. Os enredos e detalhes das histórias variavam, entretanto os tipos eram

sempre comuns. Para compreender melhor a análise dos três melodramas que

integram este trabalho é interessante observar alguns aspectos dessa construção

cênica. Nesse sentido um estudo sobre os tipos se faz necessário, pois eles

desempenhavam um papel relevante para o intérprete de circo-teatro.

Em 1947 Otávio Rangel publicou, no Rio de Janeiro, um livro intitulado

Técnica Teatral, que aborda diversos aspectos da construção cênica dos teatros, tais

como: iluminação, cenografia, os tipos dos atores, entre outros. Por haver um grande

diálogo entre o circo e o tipo de teatro descrito por Rangel, adotaremos algumas

definições deste autor para compreender a encenação dos circenses do começo do

século XX. Otávio Rangel, além de escritor, também foi ensaiador e funcionário do

SNT (Serviço Nacional de Teatro) nas cadeiras de Tecnologia e Arte de Representar.

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Antes de apresentar a classificação dos tipos, Rangel comenta sobre a

importância do Teatro Realista para a definição da estética teatral da época. A

intenção era realizar uma imitação da vida, porém com o intuito de embelezá-la e

idealizá-la, tal como o período do Classicismo nas artes. De acordo com este modelo,

o amor, temática bastante utilizada nos circos e teatros da época, deve ser

apresentado através de um casal jovem e bonito. Os homens que desviassem

demasiadamente dos padrões de beleza interpretariam outros tipos, que não o galã

da história. Estas características são intituladas por Rangel de “convenções”, tais

como a tonalidade da voz, a maquiagem, a indumentária, os cenários e vários outros

aspectos cênicos da encenação. Cada um deles criava códigos e significantes, no

jogo com o espectador, desenvolvidos com o intuito de serem compreendidos.

Fernando Neves, remanescente da família tradicional circense Circo Teatro

Pavilhão Arethuzza e artista contemporâneo, também apresenta uma definição

bastante minuciosa destes tipos. A partir dos textos encenados pelo Arethuzza e da

descrição dos atores destinados a representar cada personagem, Fernando pôde

reconhecer alguns procedimentos de criação da sua família e realizar uma

classificação. Sua compreensão dialoga com as noções apresentadas por Rangel,

com a diferença de se tratar mais especificamente do meio circense do que teatral.

As definições formuladas nesta pesquisa são, portanto, embasadas nestas duas

referências e também nos quatro tipos melodramáticos identificados por

Thomasseau:

2.4.1 – Galã e ingênua

Costumam protagonizar as histórias e são representados por um casal de

jovens bonitos e simpáticos, que despertam a admiração do público. As

características físicas dos atores se assemelham, em muitos casos, com as

apresentadas pelo texto dramático, em que a mulher apresenta gestos e atitudes

delicadas, e o homem se demonstra corajoso, forte e educado. Até mesmo as cores

do figurino dialogarão com estas qualidades, sendo claras e sóbrias.

A idade dos atores que representam estes tipos varia entre 18 e 40 anos. No

Circo Nerino a ingênua geralmente era interpretada por Anita Garcia ou por Teresa

Avanzi Silva; e o galã por Roger Avanzi. Anita era uma atriz bastante conhecida do

Circo Garcia que, em virtude do casamento com Roger, passou a integrar a

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companhia Circo Nerino. O recente casal era muito jovem e bonito, facilitando assim

o convencimento e envolvimento do público. Teresa era ainda mais nova e começara

há pouco tempo sua carreira teatral, sendo comum a jovens atrizes iniciarem com a

representação deste tipo. Em muitas circunstâncias, principalmente quando Anita

não podia, o papel da ingênua lhe era atribuído.

2.4.2 – Centro e dama central

Realizado por atores mais velhos, geralmente com mais de 50 anos e donos

do circo. A idade tem importância, neste caso, porque os papeis destinados a este

tipo costumam exigir experiência teatral, por apresentar um grande destaque na

trama. Este tipo pode representar o importante papel de vilão/vilã ou estarem

vinculados ao núcleo bom da peça, na figura do pai nobre ou, para as mulheres, em

personagens que despertam o enternecimento dos espectadores.

O ator central, no Circo Nerino e em muitos os outros circos da época, era

representado pelos donos da companhia: Gaetan Ribolá e Armandine Ribolá. O

Nerino Avanzi, fundador da companhia, atuava, na primeira parte do espetáculo,

como palhaço principal, o que dificultava sua participação na segunda, devido à

necessidade de troca de figurinos e maquiagem, além de ser uma figura muito

marcante para o espectador.

2.4.3 – Cômico e caricata

Representam as personagens cômicas da narrativa, que, apesar de não

estarem caracterizados como palhaços no teatro melodramático, são apreciados da

mesma forma. Apresentam gestos grosseiros, raciocínios tolos e impróprios para o

decoro social e subvertem as regras coletivas mais elementares. Costumam

desempenhar personagens pertencentes a uma classe social mais baixa, como

criados, cozinheiros, soldados, motoristas, escravos, vendedores ambulantes, entre

outros.

Este par geralmente é interpretado por atores criativos e transgressores, tal

como o palhaço apresentado na primeira parte do espetáculo, que constantemente

não seguem o roteiro pré-estabelecido, criam piadas inusitadas e jogos com o

espectador. Os cômicos do Circo Nerino usualmente eram interpretados pelos atores:

Arthur Fernandes, Júlio Avanzi, Hernani Avanzi, Paulo Sobral e Walmir dos

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Santos, todos formavam, na primeira parte do espetáculo, dupla com Picolino; com

exceção de Paulo, que atuava como cantor. Na figura abaixo aparecem Roger de

Picolino II,atuando com o palhaço Garrafinha, interpretado por Walmir dos Santos.

Figura 9 - Palhaço Garrafinha e Picolino II Fonte: Acervo pessoal de Walmir dos Santos

É interessante observar a quantidade de atores homens em contraposição

com a atriz caricata. No Circo Nerino, inclusive, não havia palhaças na primeira parte

de variedades, entretanto há algumas pesquisas acadêmicas atuais que visam

desconstruir esta ideia do palhaço como uma figura majoritariamente masculina.

Entretanto neste momento da história e neste circo específico, a mulher participava

de maneira modesta, atuando como descrito por Walmir do Santos, em entrevista

concedida para este trabalho:

O Roger tinha uma montagem em que aparecia uma pessoa, estava ele e a Anita, aparecia uma dizendo: “Poxa, você saiu de casa, não deixou dinheiro, os filhos passando fome.”. Quer dizer, Anita era mulher dele, como é que tem uma outra lá cobrando o dinheiro do leite das crianças? Aí fica aquele negócio, ela fica brava e ele quer resolver. Aí de repente aparece outra: “Ô seu canalha, você saiu de casa, me deixou sozinha, a criança está lá chorando, eu não tive um tostão para comprar o leite.”. Já eram duas, todas as duas reclamando da mesma coisa! Aí ele tem um desfecho: “Vamos resolver o problema?” – tudo cômico, né? – “Você está falando que é minha mulher e está passando fome. Você também. Vamos fazer uma coisa?

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Vamos dividir o tempo. Segunda, terça e quarta eu vou ficar com você. Quinta, sexta e sábado eu fico com a outra.”. Aí um gaiato grita: “E o domingo?”. Aí ele responde: “O domingo estou de folga.”. (risos) Quer dizer... São desfechos, né? Em cena, no palco, você não tem esse tipo de desfecho, mas no picadeiro você pode fazer. (...) Ele vestido de palhaço, as mulheres não, as mulheres são madames. (Entrevista realizada no dia 04/02/2015)

Através deste trecho fica evidente a posição das mulheres nas

representações, chamadas por Walmir de madames. Até mesmo nos textos teatrais

daquela época as personagens cômicas, em sua maioria, são homens. Na peça

Jerônimo, o herói do sertão encontramos uma mulher desempenhando o papel da

dona do bar, mas não há indicações cômicas para esta personagem. Ela poderia ser

interpretada pela Sobrette da companhia, que integra o último par de tipos do circo-

teatro, descrito a seguir.

2.4.4 – Baixo cômico e sobrette

São os tipos dos atores chamados no meio circense de escadas, parceiros do

ator cômico, responsáveis por construir a piada para ele arrematar. O masculino é

chamado de baixo cômico e a mulher de sobrette. De acordo com o trabalho de

Otávio Rangel, o baixo cômico corresponde ao cômico, e não existe esta diferença

de um ser o armador da piada para o outro, Fernando Neves é quem apresenta esta

distinção, o que torna mais complexa esta divisão dos tipos. Os quais se relacionam

à maneira de o ator criar em cena: o baixo cômico e a soubrette realizam com

habilidade as marcas cênicas e apresentam uma precisão importante para a

construção e repetição do espetáculo. Já o cômico é irreverente e desrespeitará boa

parte do roteiro de ações estabelecidos por seus parceiros.

É possível perceber uma grande semelhança entre os tipos representados

nos circo-teatros e os tipos dos melodramas, o que reflete o casamento bem-

sucedido que foi, e ainda é, este tipo de espetacularidade. No melodrama, segundo

Thomasseau, os tipos recorrentes são o vilão, o herói, a vítima, o bobo e o pai nobre.

Todos aparecem na divisão acima, porém com outra nomenclatura, referente ao

universo circense e teatral.

Definir os tipos presentes nesta representação popular e brasileira nos

ajudará a analisar as três peças que integram a pesquisa. Mesmo com a intenção de

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estudar somente a personagem cômica, é importante conhecermos todos os tipos

existentes para compreendermos melhor como eram realizadas as encenações dos

espetáculos de circo-teatro do início e meados do século XX.

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3 - ...E O CÉU UNIU DOIS CORAÇÕES

E o Céu Uniu Dois Corações é uma obra dramatúrgica de autoria do brasileiro

Antenor Pimenta, fundador do Circo de Teatro Rosário, escrita em 1942 para ser

realizada nos circos-teatros. Esta peça foi encenada no Circo Nerino no ano de 1949,

e em diversos circos do período, sendo representada até hoje, com muito sucesso.

O texto utilizado para esta análise é a versão original do autor, publicada no livro de

Daniele Pimenta, Antenor Pimenta: circo e poesia: a vida do autor de – E o céu uniu

dois corações.

3.1 – A trama

O primeiro ato se passa no bar de Velasco, um senhor surdo, e a história se

inicia com suspense e a instauração de uma crescente tensão. De La Torre, o vilão

da trama, e Francisco, seu comparsa, entram em cena para esperar por Perdinari,

um rico industrial e dono de muitos imóveis na cidade. Sabem que neste dia

Perdinari está recolhendo seus aluguéis, dentre eles o de Velasco, além de ter

sacado uma grande soma de dinheiro do banco para realizar uma viagem. De La

Torre planeja roubar e matar Perdinari, e culpar Fernando, seu antigo chofer. Este

último fora demitido devido a um acidente em que pegou o carro do patrão sem

autorização, pois sua filha, Neli, precisava ser levada às pressas ao médico. Na volta

do consultório, Fernando bateu em um poste, que caiu em cima do carro,matou sua

esposa e deixou sua mãe cega. Por isso teve a carteira de motorista cassada, foi

despedido, não consegue mais emprego na cidade e deve cuidar sozinho de sua

mãe e da filha pequena. Velasco se apieda com a triste situação da família e lhes

serve comida todos os dias. De La Torre, sabendo disso, arma uma cilada para

Fernando.

O chofer chega ao bar antes do antigo patrão, acompanhado de sua mãe e

filha, ainda criança. De La Torre lhe oferece, cinicamente, um emprego e também

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pede para guardar uma arma, pois vai a uma reunião e não gostaria de levá-la.

Fernando prontamente aceita a proposta e pega o revólver, sem imaginar que este o

incriminará mais à frente.

Em seguida Perdinari entra em cena e revela que, além de trazer muito

dinheiro, está com seu testamento, no qual indica seu filho, Alberto (na época uma

criança), para ficar com toda sua fortuna depois de se casar. Este dado aumenta

ainda mais o interesse de De La Torre em concretizar seus planos, principalmente

através da possibilidade de ficar com a guarda do menino. Há uma cena cômica

entre Velasco e Perdinari que gera certa descontração antes do assassinato

eminente e da crescente tensão. De La Torre se aproveita deste momento, saca um

revólver e atira no industrial, sob protestos e contestações de Fernando.O plano do

vilão é bem sucedido, Perdinari é morto e seu antigo chofer vai preso injustamente.

De La Torre, além de roubar o dinheiro de Perdinari, toma posse do testamento e diz

ao policial que o italiano, antes do assassinato, lhe confiara a guarda de seu filho.

O segundo ato ocorre na casa pobre de Neli e D. Santa, onze anos se

passaram. Fernando continua preso e Neli, sua filha, tornou-se uma moça que

trabalha e cuida da avó. Ao começar o ato estão em cena D. Santa e Marli, sua

ajudante nos serviços domésticos e companheira. As duas, através de uma conversa

despretensiosa, informam o público sobre os principais acontecimentos ocorridos

nos anos que se passaram. Juca, principal personagem cômica da peça, gago e

irmão de Marli, interrompe o diálogo e se apresenta em uma cena engraçada que

será analisada mais adiante.

Avó e Marli se retiram para o quarto, então Neli e Alberto entram em cena.

Comentam sobre o plano de se casarem, ele lhe entrega um presente e diz que só

poderia abrir caso ela lhe contasse um sonho que tivera. Neli narra com detalhes um

sonho premonitório das desgraças que se sucederão e em seguida se surpreende

com um lindo vestido de noiva, porém os dois devem esperar a formatura de Alberto

para se casarem. Mesmo conscientes das dificuldades existentes para o casamento,

principalmente pelo fato de serem filhos de dois supostos inimigos e por pertencerem

a classes sociais distintas, prometem lutar por esta união.

Juca interrompe a conversa do casal e Alberto sai de cena. Ao ficar sozinha

com a avó, Neli confidencia sobre seu namoro e o acordo dos dois em se casar dali

a cinco meses, também menciona que ele pretende curar os olhos da avó, pois está

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terminando o curso de medicina, e quer soltar seu pai. D. Santa fica feliz por Neli e

esperançosa com as novidades trazidas por esta união. O ato termina com muita

expectativa de que as injustiças serão reparadas.

O terceiro ato se passa alguns meses depois, na casa de Alberto, durante sua

festa de formatura. De La Torre planeja casar Alberto com Adélia, cujo passado é de

condutas duvidosas, porém se trata da filha de um rico português, Benevides, o que

desperta a ambição do tutor. Ele se diz arruinado financeiramente e pede um

empréstimo ao português que, em virtude do casamento, concede o dinheiro. O

comparsa Francisco é substituído pelo seu neto, também Francisco, pois o avô,

devido a remorsos pelos crimes praticados, resolveu se mudar para Portugal.

Durante todo este ato, De La Torre, com a ajuda do comparsa, fará o que estiver ao

seu alcance para concretizar o casamento.

Na abertura do ato, o vilão comenta sobre uma carta endereçada a Francisco,

o avô, em que menciona o crime de Perdinari e lhe faz algumas recomendações.

Francisco Neto percebe a imprudência de mandar a missiva porque poderia ser

interceptada, De La Torre concorda e a deixa sobre a mesa. Seu criado lhe traz

outra carta, de Neli endereçada a Alberto. Ele aproveita a oportunidade para

adulterar a carta, mudando seu destinatário, como se a mesma fosse destinada a

seu comparsa. De La Torre insinua que a moça já se entregara a Francisco e mostra

a carta a Alberto. Ele fica muito decepcionado e acredita cegamente nas palavras de

seu tutor, dessa forma, consente com o casamento proposto.

Enquanto isso, Juca, emissário de Neli, espera por uma resposta e, por não

obtê-la, entra à força na casa e se encontra com Benevides. Em uma cena cômica,

os dois não reconhecem qual das duas cartas é a resposta, por isso Juca pega

ambas (a adulterada e a endereçada a Francisco). É perseguido pelo criado, mas

consegue fugir com as provas. Por isso, De La Torre arranja o casamento às

pressas e decide mandar Alberto para Portugal no dia seguinte. Com aparente

desapontamento diante do casamento arranjado, Alberto confirma aos convidados

seu noivado com Adélia.

O quarto ato se passa depois de cinco meses, perto do retorno de Alberto de

Portugal. De La Torre está muito preocupado em recuperar as cartas para que o

rapaz não as veja e saiba a verdade a seu respeito. Por isso, procura Neli e sua avó,

acompanhado de seu comparsa Francisco Neto, e as ameaça para conseguir as

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provas que o incriminariam. Ao longo dos meses transcorridos ele perseguira a

heroína a ponto de deixá-la desempregada e mendigando na porta de uma igreja

com a avó cega. Este ato todo se passa na porta desta igreja.

Neli, apesar das inúmeras desgraças, se mostra esperançosa em relação ao

amado e entra na igreja para rezar. Sua avó permanece do lado de fora e pede uma

esmola para Alberto, que regressara antes do esperado. Ele a reconhece e pergunta

pela neta, então a avó revela todas as injustiças sofridas. O rapaz examina seus

olhos e lhe promete operar no mesmo dia, ela fica muito grata pela ajuda, porém não

o enxerga e desconhece quem seja. Em seguida, Alberto se encontra com Juca e

Marli e finalmente conhece a verdadeira versão dos fatos transcorridos, além de ter

provas, através das cartas que o gago lhe entrega. O herói pede que não contem à

amada sobre seu retorno, pois pretende lhe fazer uma surpresa.

A avó sai com Juca para operar e deixa Neli sozinha em cena. Ela está

desolada, pois o amigo prometera entregar as cartas para o vilão, mediante um

pagamento. Ao se deparar com De La Torre, e novamente sofrer ameaças, conta-lhe

que vai se matar, então pela primeira vez ele se mostra solícito e lhe oferece uma

arma. Durante o diálogo tenso entre os dois, ele menciona o possível regresso de

Alberto e reacende o amor e a esperança na heroína. Assim, com a mesma arma

que lhe dera, Neli o ameaça. Francisco neto interrompe a conversa e a apunhala

pelas costas, porém, antes de morrer, Marli lhe conta que Alberto já regressara e as

surpresas que pretendia fazer para a amada. Neli pede para ser enterrada com o

vestido de noiva que o amado lhe dera e diz que o esperará no céu. Este é o fim do

quarto ato, muito dramático e tenso.

O quinto ato é ainda mais trágico, pois no momento em que tudo é resolvido

para esta triste família, realiza-se ao mesmo tempo o velório de Neli. Alberto traz D.

Santa recém-operada, ela ainda está vendada e por isso não vê a neta no caixão,

então ele pede a Marli que a leve para o quarto para poupá-la do sofrimento.

Fernando sai da cadeia e ao entrar na casa não consegue conter seu desespero

diante do ocorrido, dessa forma D. Santa toma conhecimento da morte. Alberto pede

para ficar a sós com a amada e, neste momento, o vilão e seu comparsa entram na

casa, os dois discutem e Francisco sai de cena. A polícia prende De La Torre e

perguntam pelo comparsa, para prendê-lo também. Ele aparece na janela, atira em

Alberto e sai fugido, porém os policiais e Juca conseguem capturá-lo. Alberto morre

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feliz por ver que Neli veio buscá-lo. Em seguida, há uma bonita apoteose em que o

casal sobe uma escada de nuvens e se encontra finalmente no céu.

3.2 – Análise da trama

Desde o início, a narrativa busca envolver o espectador na história, a partir da

apresentação de situações cujo enfoque principal consiste em causar fortes

emoções. Convida o espectador a se identificar com determinadas personagens e a

participar dos acontecimentos como se partilhasse de seus destinos. O enredo é

complexo e repleto de informações que desde o princípio serão determinantes para

a compreensão da trama. A primeira cena se inicia a partir da apresentação dos

planos ambiciosos do vilão contra inocentes vítimas, e é notório o quão

inescrupuloso e ardiloso ele é.

Já no primeiro ato, De La Torre consegue prejudicar Fernando e sua família,

matar Perdinari e ainda se tornar tutor de seu filho. Percebemos através deste breve

resumo que se trata de um início bastante turbulento e, por isso, peculiar. Mesmo

que seja comum aos melodramas principiarem de maneira tensa e conflituosa, esta

peça mostra uma verticalização neste aspecto. O espectador é levado de um

sobressalto a outro, que lhe impede de fazer uma análise crítica sobre a sucessão

dos fatos. Para Huppes: “O melodrama, de sua parte, é generoso na composição. Acumula elementos plásticos e golpes de enredo, sem a preocupação demasiada

em subordiná-los aos imperativos da lógica.” (2005: 128). Devido à rapidez e

articulação dos acontecimentos, não há espaço para o questionamento das ações

de De La Torre, o espectador é envolvido sentimentalmente por elas e torce para

que seus planos fracassem.

No momento da entrada de Perdinari o público já imagina e espera o que virá,

mas deseja assistir como se dará o assassinato e se algum fator o impedirá. A

dramaticidade da cena cresce com o comentário do italiano sobre sua pretensão em

recontratar Fernando, por ser um excelente funcionário, e justificar a demissão como

uma punição provisória em relação à desobediência das normas da fábrica. A

piedade no público aumentará ainda mais quando De La Torre comenta o boato, por

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ele inventado, de que o empregado deseja matá-lo, porém o italiano não acredita

que Fernando seja capaz de matar nem mesmo uma mosca.

Estas informações reacendem no público a esperança de que algum dado

novo possa reverter as ações do vilão. Em seguida há uma mudança de enfoque do

assassinato para um desentendimento cômico entre Velasco e o industrial. Antes de

sua resolução, o vilão atira e mata Perdinari, surpreendendo o público quanto ao

momento do tiro e a possibilidade de mudança da situação. Este é um procedimento

comum dos melodramas: anunciar um importante acontecimento, porém antes de

sua execução apresentar outras possibilidades que não chegarão a se concretizar,

como a possível readmissão do funcionário. Além de incluir, nestes momentos de

tensão, cenas cômicas que tirem o foco da problemática, criando sempre a

importante oposição entre apreensão e relaxamento.

Para abarcar esta complexa narrativa, grandes espaços de tempo separam

alguns atos: onze anos do primeiro para o segundo, e cinco meses do terceiro para o

quarto. Os principais acontecimentos transcorridos entre estes períodos são

narrados através da confidência10

entre duas personagens, visando contribuir para a

compreensão da história. Antenor Pimenta, além de optar por este procedimento, e

não pelo aparte11

, escolhe um interlocutor que ouve a narrativa pela primeira vez.

Este fator permite que ele esboce mais reações e se encontre na mesma posição do

público, muitas vezes fazendo indagações semelhantes às imaginadas pelos

espectadores. Como ocorre no segundo ato durante a conversa de abertura entre D.

Santa e Marli, na qual a segunda realiza este papel.

Neste mesmo ato, Neli narra com detalhes um sonho que tivera com Alberto,

no qual antecipa aspectos importantes da história. No sonho, os dois andavam por

uma estrada cheia de flores que conduzia a um portão, o Reino da Felicidade, porém,

de repente, uma tempestade os surpreendeu e separou. Ela então seguiu sozinha

para o reino e somente adentrou o portão depois de reencontrar Alberto.

10 Os apartes, monólogos e confidência são utilizados amplamente no melodrama, se

referem a falas que visam completar o retrato das personagens principais e situações. A confidência necessariamente é dita para outra personagem – o confidente.

11 Fala direcionada para o público, a qual as demais personagens não escutam. Tem a característica de romper com a ilusão teatral por revelar claramente a construção cênica.

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Dessa forma, a história é preparada para o desfecho trágico que terá mais à frente,

com a morte dos dois, que é indicado também através do nome da peça. Ao longo

da encenação, entretanto, o espectador possivelmente esquecerá a possibilidade de

morte do casal, pois estará envolvido na trama, torcendo pelo sucesso desta união.

Antecipar informações é uma característica do gênero melodramático que

favorece a onisciência do público em relação à história. Entretanto, ao mesmo tempo

que existe a preocupação em adiantar informações, o espectador é envolvido pela

narrativa e a consciência da trama permanece em segundo plano. Esta, porém,

serve para gerar expectativas e instigar um olhar atento até os últimos momentos da

peça. Assim como o sonho de Neli, De La Torre, na abertura da maioria dos atos,

apresenta seus planos, através de uma conversa com seus parceiros, e deixa o

público ansioso para saber como se dará a execução destas ideias, e torcendo para

o seu fracasso. Estes diálogos possibilitam a transmissão de muitas informações que

dinamizam a história e a tornam mais complexa, quando comparada à maioria das

narrativas do circo-teatro brasileiro.

O principal aspecto da trama, que mais instigará os espectadores a

acompanharem motivados e atentos, são os impedimentos que o casal principal

sofrerá para ficar junto. Este tipo de situação é muito comum nos melodramas,

folhetins, novelas de televisão, porém devemos ressaltar que nesta peça há uma

importante diferença:

As questões de família: crianças perdidas e reencontradas, heranças, duelos, ciúmes, casamentos, matrimônios desiguais faziam parte, desde muito, da temática do melodrama. Com a ascensão de novos estratos sociais o diálogo castelo-choupana vem para o centro da cena. Os direitos de precedência e os preconceitos familiares e sociais são estudados sob a forma de quadros de costumes pintados com bastante justeza. (THOMASSEAU, 2005: 103)

O trecho acima se refere a uma fase do melodrama na qual é classificado por

Thomasseau como de Costumes e Naturalista, em meados do século XIX. Neste

momento, o gênero desenvolve e apresenta histórias com diferenças sociais em

diálogo. Existiram textos que preconizaram a reconciliação entre as classes sociais,

porém o mais comum era sublinharem o contraste entre os ambientes e as pessoas.

Percebemos algumas semelhanças do melodrama tradicional francês com o circo-

teatro brasileiro, explicitado, nesta peça, através do fato de os amamentes se

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gostarem e quererem se unir, independentemente de sua diferença social. O castelo,

casa de Alberto e De La Torre, e a choupana, casa de Neli e D. Santa, entram em

cena, revelando ambientes sociais com particularidades distintas. Entretanto é

justamente a diferença social que trará a desgraça ao casal, pois De La Torre quer

casar Alberto com uma moça rica para que sua fortuna possa aumentar e não

consente que case com uma pobre, ainda mais se tratando de Neli. O contraste

social costuma aparecer com frequência nos temas de histórias melodramáticas

circenses, no cinema e em algumas peças teatrais, inclusive em todas as peças

estudadas por esta pesquisa.

Dessa forma, esta história dialoga com um público formado por diferentes

classes sociais frequentadores do circo no começo e meados do século XX. Este

tipo de espetáculo, desde seu surgimento, com os saltimbancos, até os

apresentados em ambientes fechados, agrega distintos públicos e busca agradar a

todos eles de alguma forma. O melodrama terá ampla aceitação no espetáculo

circense por partilhar deste princípio, uma vez que “prenuncia a arte que se declara

como artifício. A arte que é matéria construída por um homem com o objetivo de

produzir determinadas reações em outros homens – os consumidores – a quem

deseja agradar.” (HUPPES, 2000: 30). Huppes também comenta sobre a

responsabilidade do autor em dosar os elementos que provocam sofrimento e

aqueles que geram risadas, e assim conseguir agradar e atrair ainda mais os

espectadores, tal como era feito com a catarse grega desde a antiguidade.

Nesse sentido, percebemos que a construção da heroína apresenta uma clara

intenção de cativar a plateia, pois o autor equilibra aspectos opostos de sua

personalidade com as situações por ela vividas. Antenor opta por torná-la mais

carismática e atraente para o público, uma vez que, diante dos acontecimentos da

narrativa, poderíamos esperar uma moça sofredora e angustiada. Ao contrário, ela

se demonstra bem-humorada, simpática e afetuosa, uma heroína alegre e positiva.

Estes aspectos, junto com o fato de ela ser independente e ativa, a distanciam da

heroína convencional, apresentada pela maioria dos enredos, e permitem observar

uma maior singularidade na personagem. Ela nos surpreende quando, no quarto ato,

revela o impulso de se matar e em seguida ameaça o vilão com uma arma.

Geralmente este tipo tem a característica marcante de consentir, embora

amargurada, com a situação em que se encontra e não agir em oposição. Mesmo

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que Neli não realize nenhuma destas ações, incabíveis neste gênero, ela cogita

estas possibilidades e por isso se distancia das convenções mais esperadas do

gênero.

Dona Santa também apresenta características que nos surpreende e cativa. É

a personagem representativa da dramaticidade da peça, diante dos infortúnios

vividos, apesar de muitas vezes demonstrar um otimismo reconfortante. Revela um

grande anseio pela felicidade de sua família, o que parece estar em oposição às

sucessivas desilusões e à realidade imposta através das ações do vilão. Podíamos,

neste caso, encontrar uma personagem amargurada e pessimista, entretanto suas

falas revelam uma forte emotividade que, juntamente com a fragilidade de sua figura,

emocionará o público. Até mesmo no momento em que ela tira a venda, no último

ato, e enxerga a neta no caixão, diz uma longa fala muito dramática e ao mesmo

tempo esperançosa, reação esta que surpreende o público. É a única personagem

que demonstra um sentimento mais leve diante da morte da neta, pois diz que Deus

a chamara para acabar com seu sofrimento. Dessa forma, apresenta os valores

religiosos da época, que confortam, como a apoteose seguinte, a reação atônita

decorrente da tragédia.

A apoteose concilia os corações aflitos dos espectadores por acompanharem

e torcerem pela união do casal e se verem frente a uma tragédia irreconciliável.

Então virá a apoteose, apaziguadora e reconfortante: Neli, vestida de noiva, desce

uma escada de nuvens para buscar o amado, então os dois sobem lentamente para

o céu. Com isso os aspectos religiosos e morais eram reforçados e estavam em

diálogo com a população brasileira de meados do século XX.

O final trágico das histórias melodramáticas é bastante comum e causa um

maior impacto nos espectadores, comentado por Huppes (2000: 38) por ser mais

eficaz em garantir fortes emoções. Os espectadores saem do teatro refletindo em

qual ponto a história poderia ter sido revertida e, portanto, esse tipo de final gera

mais comentários e desdobramentos. Esta narrativa garantia sobremaneira este

aspecto, tamanha é a dramaticidade do desfecho.O final é trágico, através da morte

dos amantes decorrida dos impedimentos familiares para a sua união. Duas famílias

inimigas por conta da morte de Perdinari, no primeiro ato, cujos filhos se amam e

pretendem, mesmo com todos os problemas, ficar juntos.

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Esta trama nos lembra a história de Romeu e Julieta de William Shakespeare,

tanto no que se refere à problemática principal quanto ao seu desfecho. Talvez por

isso que ...E o Céu Uniu Dois Corações se tornou um texto representado através de

gerações, sendo ainda encenado nos dias atuais dentro dos circos-teatros brasileiros.

A peça, por não abordar um fato histórico datado, atravessa os costumes e épocas,

dialogando com o inconsciente coletivo do amor proibido e preterido pelas opostas

famílias. Um amor individual que ignora as barreiras sociais, representado através de

conflitos e oposições familiares.

3.3 –Personagens

De La Torre, segundo a análise de Daniele Pimenta (2005: 153), é

classificado como um cínico absoluto, por ser o principal motivador das ações do

espetáculo e suscitar a maioria dos acontecimentos relevantes para a trama, apesar

de a história não ser contada de sua perspectiva. O vilão é a personagem que

pratica o mal em proveito próprio, sem medir as consequências negativas para os

outros. De La Torre, em especial, apresenta ações muito cruéis e planos sórdidos

que dependem sempre da submissão e apoio de seus parceiros Francisco, avô e

neto. A motivação de suas ações será a ambição de riqueza, em detrimento alheio,

sem que para isso tenha que trabalhar e fazer qualquer esforço.

O cínico se refere a uma nomenclatura utilizada pelos circenses para

denominar o vilão, interpretado pelo ator que, de acordo com os tipos apresentados

no capítulo O Circo Nerino e o teatro melodramático, mais se adequasse ao efeito

pretendido pela trama. Dependendo da idade da personagem, das características

apresentadas pelo dramaturgo e sua importância no enredo, seria destinado a um

intérprete correspondente a estes atributos. No caso desta peça provavelmente seria

destinado ao centro da companhia, por ser uma personagem complexa e importante.

O ator central costuma ser experiente na arte da representação, apresenta uma

idade um pouco mais avançada, ambas qualidades condizentes com esta trama. No

geral, um bom cínico conquista a rejeição da plateia, ainda mais se tratando de De

La Torre, único responsável pelas inúmeras desgraças sofridas pelo casal. Na

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montagem do Circo Nerino, quem o interpretou foi Heros Arruda, ator experiente e

ensaiador de algumas peças da trupe.

Francisco avô e neto são os comparsas de De La Torre, sem os quais não

conseguiria colocar em prática suas vilanias. Trabalham com ele em momentos

diferentes da história e têm grande importância dramatúrgica. Desempenham a

função de interlocutor das confissões e planos, responsáveis por deixar o público

ciente e apreensivo pelo andamento do enredo. Também realizam a importante

função de ajudar De La Torre na execução de seus intentos. Entretanto não

apresentam características que os particularizem, nem suas falas demonstram forte

personalidade.

O fato de existirem duas gerações, avô e neto, tem um importante fundamento

dramatúrgico. Na situação em que De La Torre adultera a carta de Neli, ele precisa

justificar a falsa traição da moça com um jovem rapaz, no caso Francisco Neto, seu

atual comparsa. O avô aparece somente no primeiro ato, e escreve a carta de

confissão, que será responsável por solucionar parte da trama.

O herói da peça é conhecido por defender o mais fraco e agir em contraponto

com o vilão. Assim podemos compreender as ações de Alberto, as quais geralmente

estão em oposição às de De La Torre. Filho de um rico industrial, Perdinari, que fora

criado, sem saber, pelo assassino de seu pai. É apaixonado por Neli, filha de

Fernando, homem culpado e preso pela morte do italiano. Não tem o perfil típico do

herói absoluto, responsável por movimentar a trama, uma vez que a história

apresenta um vilão preponderante.

As ações de Alberto, principalmente no começo do espetáculo, são

submetidas às de De La Torre, devido ao próprio contexto conflituoso em que está

inserido: um jovem criado pelo seu principal inimigo e amante de Neli. Ganha a

empatia do público mais à frente ao mostrar-se, em oposição às artimanhas de De

La Torre, comouma personagem mais ativa que combaterá suas perversas ações,

principalmente depois da viagem a Portugal. Sua trajetória é de amadurecimento e

suas ações visam restaurar a justiça, através das cartas e provas, portanto sua

conduta não é motivada pela vingança.

Alberto seria representado pelo galã do elenco, o qual deveria ser jovem. Segundo o catálogo de tipos de Otávio Rangel, deve apresentar uma “beleza

consensual” a todos. Se isto não fosse possível, poderia apresentar uma simpatia

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irradiante, ser carismático ou sedutor. Na obra de Rangel existem oito subtipos de

galã e Alberto se enquadra no galã amoroso, o qual se expressa em nome do amor

e suas ações dependem da amada. A característica fundamental deste sentimento é

a de ser guiado pelo bom senso, respeito e desprovido de sensualidade. O galã do

Circo Nerino geralmente era interpretado por Roger Avanzi, filho de Nerino, quem

representou Alberto nesta montagem.

O par amoroso de Alberto é Neli, a heroína da peça, destinada a sofrer nas

mãos do vilão até ser salva pelo herói. Daniele Pimenta destaca o diferencial e o

traço marcante desta personagem:

(...) bem humorada e simpática, afetuosa, mas prática, diferente da heroína sofredora que se poderia esperar depois das situações por ela vividas. Essa construção faz com que a empatia do público pela personagem se confirme. (PIMENTA, 2005: 162)

Destoa um pouco da heroína convencional, sofredora e conformada, também

pela sua coragem na maneira de enfrentar as situações adversas e pertencer a uma

outra classe social, o que possibilita mostrar o ambiente e as relações dos menos

favorecidos economicamente. Como ela está apaixonada apresenta um otimismo e

alegria reconfortantes para o espectador, responsável por gerar a identificação com

a plateia. Além de apresentar a possibilidade da relação e conciliação, ao menos no

imaginário das pessoas, entre as duas classes sociais, desde que seja por

sentimentos amorosos.

A heroína seria interpretada pela ingênua da companhia, que se tratava de

uma atriz jovem, entre os 15 e 20 anos, podendo estar em fase de amadurecimento

profissional. As qualidades que a intérprete deveria apresentar, para facilitar a

identificação com o público, é a delicadeza, beleza, serenidade, elegância, discrição

e sua voz deveria ser límpida e suave. É uma figura que está sempre presente nos

melodramas. A ingênua do Circo Nerino nesta peça foi Tereza Avanzi Silva uma

jovem atriz, muito bonita e simpática.

A avó de Neli, mãe de Fernando, é a personagens que carrega a maior carga

dramática na peça, em contraponto com a heroína bem-humorada e simpática. Sua

condição reflete isso, por ser cega devido ao acidente de automóvel que matara sua

nora e arruinara sua família. D. Santa é responsável pela empatia do público.

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Seu anseio pela felicidade da família em contraste com as sucessivas desilusões, a força da emotividade de suas falas em contraste com a fragilidade de sua figura, tudo isso emociona o público e se constitui em um desafio para as atrizes que a representam. (PIMENTA, 2005: 159)

A cegueira acentua a fragilidade e contribui para a concretização de algumas

situações dramáticas, como a conversa dos amantes no segundo ato. Nesta

situação, permanece em seu quarto com Marli enquanto sua neta conversa

tranquilamente com Alberto, na sala de sua casa. É um desafio para as atrizes que a

interpretarão, porque seus sentimentos e falas são contrastantes, alternando

fraqueza e força constantemente. Devido a esta dificuldade, a atriz da companhia

destinada a este papel seria a dama central. Geralmente são intérpretes mais

maduras, e este seria o último papel destinado a elas. Interpretam personagens que

normalmente exigem muita sensibilidade e conhecimento cênico, e D. Santa é um

excelente exemplo. No Circo Nerino era interpretada por Armandine Ribolá Avanzi:

atriz mais madura e dona da companhia junto com seu marido, Nerino Avanzi.

Em contraposição a ela, Juca, o cômico da peça, moleque responsável por

criar momentos agradáveis de descontração. Apresenta-se como uma personagem

muito carismática, principalmente por se vincular ao núcleo do bem e ser amigo de

Neli. A comicidade desta personagem ocorre através de sua dificuldade em falar e

se expressar naturalmente e também por apresentar uma ingenuidade somada a

uma tolice que o particularizam. A partir da leitura das peças circenses deste período,

em especial as melodramáticas, é possível reconhecer que os momentos cômicos

são criados a partir da fala e comunicação das personagens, como por exemplo, a

gagueira de Juca e a surdez de Velasco. Esta é a maneira mais aparente de

comicidade revelada pelos textos, principalmente por ser o instrumento que o autor

tem para criar e expressar estes momentos de descontração necessários ao gênero

melodramático.

Sua simplicidade e ingenuidade são seu grande trunfo. Age

despretensiosamente, interfere e modifica a história, mas sempre com leveza e

simpatia. Juca, assim como a maioria das personagens cômicas dos melodramas,

tem a possibilidade de transitar entre os núcleos do bem e o mal, por ser “neutro”

neste jogo de opostos característico da trama melodramática. Também é

responsável por fazer oposição à D. Santa, nas situações em que suas falas são

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muito dramáticas. Esta personagem foi interpretada por Walmir dos Santos, o

palhaço Garrafinha, que entrou no circo em Maceió e permaneceu até o último

espetáculo da trupe. Mais à frente voltaremos a falar com detalhes de sua figura.

Benevides e Adélia são pai e filha portugueses que aparecem somente no

terceiro ato da peça. O primeiro será engraçado por suas estultices, já que, apesar

de ter muito dinheiro, é ignorante e atabalhoado. Não sabe ler e por isso confunde,

junto com Juca, as cartas numa cena cômica muito interessante. Sua filha é leviana

e apresenta um jeito espalhafatoso, principalmente no trato com os homens, postura

inaceitável para a mulher “honesta” da época. Devido à conduta moral duvidosa é

passível de graça e não conquistará a admiração da plateia. Aprende com alguns

rapazes expressões brasileiras que seu pai não entende e com isso o faz de bobo.

Ambos são responsáveis pela comicidade do terceiro ato, formada principalmente a

partir da incompreensão na fala e nas diferenças culturais entre o Brasil e Portugal.

Adélia e Benevides foram interpretados por Anita Garcia Avanzi e Gaetan

Ribolá. Anita era uma importante atriz do Circo Garcia que, após o casamento com

Roger, mudou-se com os pais para o Circo Nerino. Gaetan Ribolá não esteve entre

os fundadores do circo, mas o encabeçava, junto com Armandine e Nerino a

empresa. Era um artista muito importante tanto da primeira parte do espetáculo (de

variedades) quanto dos dramas. Percebemos que Adélia e Benevides eram

personagens de destaque por serem representadas por estes dois relevantes atores

da companhia, mesmo que apareçam somente no terceiro ato.

Outras quatro personagens que não são principais, mas auxiliam

demasiadamente o dramaturgo a contar esta história são: Perdinari, Fernando, Marli

e Velasco. O primeiro é um italiano e rico industrial. A história se intensifica a partir

do seu assassinato e se desenrola decorrente disto. Demonstra ser uma pessoa

bastante correta, como podemos perceber através da fala na qual afirma que aplicou

uma punição em Fernando, mas tem a intenção de recontratá-lo, em uma posição

superior, por reconhecer seu valor.

Fernando é pai de Neli e filho de D. Santa. Foi acusado injustamente pelo

crime da abertura da peça, aparece no primeiro e no último ato. É um homem muito

honesto, trabalhador, e preocupado com a família. Daniele Pimenta (2005:163)

comenta que ele é apresentado com falhas que o humanizam e o distanciam de ser

o herói da história, apesar de ser uma importante vítima do vilão. Seus erros ficam

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evidentes principalmente quando demonstra revolta contra Perdinari, pela demissão,

e por se sentir humilhado em aceitar a comida de Velasco.

Marli é a irmã de Juca que realiza o papel de ajudante e confidente de D.

Santa, entretanto há pouca informação a seu respeito. A última personagem é

Velasco, o dono do bar em que Perdinari é morto. Velho e surdo, apresenta uma

enorme impossibilidade de compreensão, a qual gera os momentos cômicos do

primeiro ato. Observamos haver uma personagem responsável pela comicidade em

cada ato da peça, salvo o último, no qual não há abertura para a descontração.

3.4 – Análise das cenas e personagens cômicas

3.4.1 – Primeiro ato a comicidade do surdo

Na abertura da peça, antes de Fernando e Perdinari entrarem em cena, há

um diálogo cômico entre Velasco e De La Torre. O engraçado nesta conversa é o

desentendimento provocado pelo problema de surdez do primeiro. Henri Bergson,

em seu ensaio sobre a comicidade, comenta sobre o cômico de caráter, que se

relaciona com essa característica de Velasco:

A verdade é que a personagem cômica pode, a rigor andar em dia com a moral estrita. Falta-lhe apenas andar em dia com a sociedade. (...) Um vício flexível seria menos fácil de ridicularizar que uma virtude inflexível. É a rigidez que parece suspeita à sociedade. (...) Quem quer que se isole expõe-se ao ridículo, porque a comicidade é feita, em grande parte, desse isolamento. Assim se explica por que a comicidade é tão frequentemente relativa aos costumes, às ideias – aos preconceitos de uma sociedade, para darmos nomes às coisas. No entanto, cumpre reconhecer, para mérito da humanidade, que ideal social e ideal moral não se diferem essencialmente. Podemos, portanto, admitir que, em regra geral, são exatamente os defeitos alheios que nos fazem rir, - desde que acrescentemos, é verdade, que esses defeitos nos fazem rir em razão da sua insociabilidade, e não da sua imoralidade. (BERGSON, 2007: 103 e 104)

De maneira resumida, Bergson concluí que o riso é produzido a partir do

isolamento social de um indivíduo que apresenta um comportamento rígido. Nesta

perspectiva, o fato de Velasco não ouvir é uma característica que o limita

socialmente e o afasta das pessoas, por não ter a flexibilidade auditiva necessária

para travar uma conversa dinâmica, além de desencadear uma série de equívocos

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na comunicação e durante a maior parte do tempo permanecer à margem dos

acontecimentos mais importantes do primeiro ato. Ao final do primeiro diálogo da

peça, além de Velasco não compreender adequadamente o que De La Torre lhe diz,

ainda acha que ele seja surdo também. Como podemos observar no diálogo

seguinte:

TORRE – (mais alto) Este whisky não é falsificado? VELASCO - Ah!... Sou sim senhor. TORRE - (admirado) Hein?!... VELASCO - Hein!?... TORRE - (a Francisco, irritado) Não há nada pior do que conversar com uma pessoa surda. (une a palavra ao gesto, indicando o ouvido) VELASCO - (a Francisco, apontando Torre) Ele é surdo!... Ah, bom! (volta ao balcão) (PIMENTA, 2005: 203 e 204)

Nesta passagem é cômica a confusão que Velasco, por não ouvir bem,

comete ao achar que De La Torre lhe perguntara alguma coisa a seu respeito,

quando na verdade indagava sobre o uísque servido. Em seguida há uma passagem

ainda mais engraçada, quando o dono do bar se equivoca ao compreender que o

seu interlocutor seja surdo. Com isso, Velasco demonstra não ter consciência de seu

problema auditivo, principalmente por agir sem considerar esta questão. A

inconsciência é destacada por Bergson como uma premissa relevante para a

personagem cômica.

A surdez também possibilita que De La Torre apresente suas intenções, como

a de matar Perdinari, na presença de Velasco. Esta é uma característica

interessante desta personagem: estar presente em cena a maior parte do tempo sem

interferir na história e nem intimidar as demais personagens. Dessa forma, parte da

construção cômica se dará a partir de suas ações cênicas ou atividades, como

enxugar os copos do bar, que podem se tornar risíveis dependendo da maneira que

forem realizadas. Sendo interpretado pelos palhaços, já havia a propensão de tornar

estas ações ainda mais engraçadas por meio de sua atuação específica.

Após a entrada de Perdinari e sua conversa com De La Torre, responsável

por aumentar ainda mais a tensão deste ato, Velasco volta à cena e comete um

equívoco relacionado ao pagamento do aluguel, numa cena cômica muito

interessante. O diálogo apresenta um movimento crescente no desentendimento do

italiano com o dono do bar. Quando o primeiro lhe pede água, Velasco entende se

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tratar do dinheiro, depois quando questiona faltarem cem cruzeiros, ele confunde e

traz a água. Porém, na terceira vez, Perdinari já está muito nervoso e lhe fala de

maneira “quase desesperada”, de acordo com a rubrica, gesticulando muito.

PERDINARI - Per la Madonna! Toda vez que venho aqui e o empregado não está, é assim. Me deixa quase louco! (entra Velasco, trazendo água) Eh!... não estou falando?... (apanha o copo, põe sobre a mesa e, quase desesperado) Faltam cem cruzeiros! (pausa) Cem fiorins!! (pausa) Cem massones!!! (corta. Rápido para Torre) Que é que eu vou falar mais? TORRE - Fala-lhe por sinais. PERDINARI - (abrindo as duas mãos) Faltam cem cruzeiros! Não foi isso que eu pedi. Faltam cem cruzeiros. VELASCO - Ah! Dez copos d’água? (vai a sair e Perdinari segura-o) PERDINARI - Não! (explica a frase mais com gestos do que com palavras) Aqui faltam cem cruzeiros! VELASCO - Ah, faltam cem cruzeiros? Eu vou buscar. Por que não falou antes? (sai) (PIMENTA, 2005: 223 e 224)

A crescente irritação de Perdinari em contraste com as reações passivas de

Velasco se torna cômica. Principalmente ao final, quando o surdo finalmente

compreende e lhe pergunta por que não dissera antes aquilo que tanto se esforçava

para dizer. A cena toda é criada para este desfecho inusitado e, portanto, ainda mais

engraçado: o italiano gesticulando e perdendo a paciência em contraponto com

Velasco, que não percebe os equívocos que comete. Novamente se trata do cômico

suscitado através da inconsciência de seu defeito físico e dos equívocos

desencadeados pela surdez.

Outro aspecto interessante diz respeito ao momento em que este diálogo está

inserido. Antes da entrada de Velasco, De La Torre e Perdinari conversavam a

respeito de Fernando e sua possível readmissão. O diálogo cômico interrompe o

sentimento de compaixão em relação a Fernando e distrai o espectador do foco do

assassinato, e, quando este finalmente acontecer, após esta conversa, criará um

impacto ainda maior nos espectadores.

3.4.2 – Segundo ato a comicidade do gago

A apresentação de Juca, a principal personagem cômica desta história, ocorre

após a conversa entre D. Santa e Marlina abertura do segundo ato. Ele cumprimenta

as personagens e em seguida é questionado se já é noite. Devido a sua gagueira,

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se confunde para responder, pois ele entrara em cena para chamar sua irmã para ir

embora, mas como é interrompido muitas vezes não se faz entender.

JUCA - (entrando) Boa... boa... boa noite. MARLI E SANTA - Boa noite. SANTA - Já é noite?! JUCA - Já... já... SANTA - Ah, já? JUCA - Não. SANTA - Não? JUCA - Já... já... MARLI - Mas o que é isso, Juca? Uma hora você diz quejá é noite, outra hora você diz que não? JUCA - Pois... num... num... num deixa eu... acabá defalá! Já... já... já são mais de 6 horas... MARLI - Então! Já é noite! JUCA - (irritado) Mas... mas deixa eu acabá de falá! MARLI - Então, fala logo, Juca. JUCA - Já... já... são mais de seis horas... MARLI - Mas você já falou isso, Juca! JUCA - (muito irritado) Ma...ma...ma... (num repentenervoso, se despenteando todo) Mais deixa eufalá! (Marli mostra-se irritada, D. Santa sorri)Já... já... já são mais de 6 horas e.. e... e... a...mamãe manda dizer que... que... que... logo que... que... que... a Neli chegá é para você ir para casa. (PIMENTA, 2005: 241 a 243)

Desde sua entrada em cena, pretende falar a seguinte frase: “Já são mais de 6 horas e a mamãe manda dizer que logo que a Neli chegar é para você ir para

casa.”. Porém, ao cumprimentá-las com “boa noite”, D. Santa o interrompe para lhe

perguntar se já é noite, mas como ele é gago provavelmente se concentrara para

falar e assim ignora o que D. Santa dissera. Em seguida ocorre uma série de

equívocos engraçados, pois as falas de Juca coincidem com as perguntas feitas por

D. Santa. É cômico o que a concentração demasiada de Juca ocasiona e se

assemelha com a análise de Vladimir Propp sobre o cômico gerado pelas situações

inesperadas:

Usando uma expressão um tanto paradoxal, é possível dizer que a distração é consequência de alguma concentração. Entregando-se com exclusividade a um pensamento ou preocupação, a pessoa não presta atenção aos seus atos, executa-os automaticamente, o que leva às consequências mais inesperadas. (PROPP, 1992:95)

Propp concorda com a premissa bergsoniana de o cômico ser gerado por

alguma ação mecânica, desconsiderando a maleabilidade da vida, como o fato de

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Juca se concentrar demasiadamente na sua fala e desprezar as perguntas de D.

Santa. Este é um traço forte desta personagem ao longo de toda a peça: quando sua

concentração está na fala muitas situações cômicas são geradas, por ignorar as

interferências externas. É engraçado também o fato de sua resposta corresponder à

pergunta feita, pois ele se preparara para falar o que a mãe pedira: “Já são mais de

6 horas...” e o início desta frase também serviu de resposta às perguntas de D. Santa. Este tipo de comicidade se assemelha com a análise de Bergson da

comicidade de palavras, mais precisamente com as interferências: “(...) a

interferência, quer dizer, de dar à mesma frase dois significados independentes que

se sobreponham.” (BERGSON, 2007: 87).

Outro elemento cômico desta cena está na crescente irritação de Juca (que

inclusive se despenteia todo de raiva) em relação às interrupções feitas pela irmã. O

jogo de intromissão, e a tentativa de completar as falas entrecortadas de Juca,

acontecem ao longo de toda a peça. Muitas vezes através da suposição, feita pelas

personagens, daquilo que Juca tenta falar. Nesta cena, Marli, por ser sua parente,

expressa a irritação com o irmão, atitude que as demais personagens não

apresentam de maneira evidente, devido à educação polida e decoro das relações,

característico do gênero. A impaciência em relação a Juca é algo comum na

conversa com um gago, responsável por gerar momentos engraçados.

Antenor conseguiu exprimir muito bem a dificuldade de Juca em formular

frases simples, e soube usá-la gerando interrupções e equívocos interessantes.

Como no momento seguinte deste diálogo, em que quase conta para D. Santa, e

para o público, que Neli e Alberto estão namorando. Nesta passagem, além da

cegueira de D. Santa, sua dificuldade de falar contribui para que sua irmã o

interrompa a tempo. Eles falam baixo (a ponto de o público ouvir e D. Santa não) e

Marli lhe pede para não contar. Neste momento o público, antes de D. Santa, fica

sabendo da relação do casal.

SANTA - Escute-me, Marli. Há pouco você disse-me que Neli,às vezes, fica muito alegre, tão feliz como se avida fosse um mar de venturas... Estive pensandopor que seria?... Ela sempre foi tão triste... JUCA - Ah... a s... a s... a senhora não sabia? (Marli leva-o para o canto) É por... que... ela... ela... MARLI - (a meia voz) Cale-se! JUCA - Por... por quê?

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MARLI - (baixo) Não quero que lhe diga. JUCA - (idem) O quê?... Vo...Você num sabe o que eu iafalá! MARLI - (idem ) Ia dizer-lhe que Neli está namorando oSr. Alberto, filho do Sr. De La Torre. JUCA - (idem) Taí! A...Agora você acertou. MARLI - (idem) Pois bem, não lhe diga. JUCA - (idem) Por... quê? MARLI - (idem) Porque Neli não quer. Ela mesma é quelhe quer dizer. JUCA - (idem) Tá... bom. En...tão eu num falo. Maisque... eles tão namorando, tão mesmo. SANTA - Perdoe-me a pergunta, Marli. Mas por que estãovocês conversando baixinho? MARLI - É o Juca que está me contando umas coisas, massem importância. (PIMENTA, 2005: 243 a 245)

O melodrama geralmente antecipa os próximos acontecimentos da trama

como uma forma de atiçar a curiosidade dos espectadores, e manter seu interesse

na história. Anunciar o próximo ato sem revelá-lo por completo faz com que o público

fique ansioso pelo que virá, como ao juntar amorosamente Alberto e Neli, filha do

suposto assassino do pai de seu amado. Podemos observar, através desta união, a

construção intrigante da história, que busca incessantemente despertar o interesse

do público.

Neste trecho, Juca realiza a importante função dramática de manter o

espectador onisciente da trama, característica do gênero melodramático. Toda a

encenação é criada visando estabelecer o diálogo com o público no sentido de

agradá-lo e de lhe instigar o interesse. Tanto o melodrama quanto as outras atrações

do circo se assemelham por prezar a relação de troca com os espectadores,

explicitada através da interpretação dos atores com a utilização da triangulação com

o público. O critério de escolha para o repertório dramático, para as atrações

circenses, até mesmo as piadas feitas pelos palhaços, sempre será de acordo com o

gosto popular. Esta particularidade possibilita que estas manifestações artísticas se

mantenham atualizadas, por se recriarem junto com o interesse mutável do público.

Dessa forma, conseguem acompanhar as mudanças sociais e as novas tendências

culturais, sempre no sentido da apropriação e ressignificação.

Em seguida da conversa cômica de abertura do segundo ato, finalmente Neli

e Alberto entram em cena, e então o interesse do público, em ver a figura dos dois

jovens namorados, finalmente é realizado. Nesta situação, o gago deflagra tudo o

que pensa em relação à amiga de maneira cômica e descontraída, sem prezar pela

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boa educação. É comum a personagem cômica transgredir a norma social e fazer

graça disso e Juca não se importa com as regras sociais de cordialidade, não é

polido em seus comentários, fala de maneira direta e grosseira, se comparado a

maioria das personagens da trama. Quando Neli entra em cena e diz que não tem

ninguém em sua casa, Juca lhe responde: “Num... num... num tem ninguém aqui

uma ova!En...tão eu n...num sô ninguém?” (PIMENTA, 2005: 246). Esta maneira de

falar é característica de muitas personagens cômicas: falar de maneira objetiva e

debochada, sem a polidez dos padrões de educação vigente, e isto suscitará o riso.

Neli, por outro lado, responde com gentileza, de acordo com seu tipo de heroína: “Oh! Desculpe, Juca. Não tinha visto você.”.

A fala mais debochada e direta revela outra forma de se comunicar

socialmente, e também demonstra que o mundo não é feito somente de cordialidade

e formalidade. Aproxima-se de uma fala mais cotidiana e popular e por isso gera

mais empatia com a plateia. Esta maneira de se expressar é engraçada

principalmente por ser dita por Juca, uma figura muito simpática, e ajudante do

núcleo do bem da história, que por isso conquistará a admiração do espectador.

NELI - Oh! Desculpe, Juca. Não tinha visto você. JUCA - É a...assim mesmo. Por...que tá namorando o...seu Alberto, já... já nem enxerga os amigos. NELI - Desculpe Juca. (a Alberto) Alberto apresento-te aqui o meu amiguinho Juca, a quem estimo como se fora um irmão. Juca, este é o Alberto, o meu namorado. Creio que já o conhecede vista. ALBERTO - (apertando a mão de Juca) Muito prazer. JUCA - O... o... ALBERTO - O mesmo? JUCA - O... o... o... NELI - Já sei. O prazer é todo seu. JUCA - Não. NELI - Não? JUCA - N... num é isso... que eu quero falá! ALBERTO - (sorrindo) Fale. JUCA - O s... o s... NELI - O senhor! JUCA - (muito irritado) Ma...ma...ma... (num repente,nervoso, mexendo outra vez todo o cabelo) Maisdeixa eu cabá de falá! O s... o seu nome éA...Aberto mesmo? ALBERTO - Ah, sim! Meu nome é Alberto Perdinari. JUCA - Mu...mu... ALBERTO - Muito prazer? JUCA - Taí! A...a...gora acertou. NELI - Vovó está lá dentro, Juca? JUCA - Tá. NELI - Escuta...Eu queria...

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JUCA - Já sei. É... é... (apontando os dois, dá umarisadinha maliciosa) É pra mim dá o fora. Eu vô...n...um... é preciso mandá. (sai rindodiscretamente) (PIMENTA, 2005: 246 a 248)

Outro aspecto de sua figura nos é revelado por falar aberta e francamente

com Neli sobre o fato de ela ter se afastado dele por que começou a namorar. A

maneira direta de apresentar seu descontentamento é cômica, principalmente por

falar na frente do próprio namorado. Em seguida, novamente é engraçada a situação

de Juca tentar falar frases muito simples como “O seu nome é Aberto mesmo?”,

“Muito prazer”, ser interrompido e se irritar com a impaciência das demais

personagens. Ao perguntar o nome do herói, o gago diz uma frase de duplo sentido,

indagando se ele é aberto, fala esta que pode servir de material cômico ao ator que

a realiza. No final deste trecho, interrompe de maneira grosseira, para o contexto

melodramático, o que Neli ameaçara lhe pedir, dizendo que “vai dar o fora” antes

que ela precise pedir.

No momento da despedida do casal, Juca, que ficara fora da casa, interrompe

dizendo que não pode ficar no sereno porque está com o calo doendo. Esta frase

pode revelar certa ingenuidade da personagem, porém parece se valer desta

desculpa como uma forma de justificar que está se sentindo mal e quer ir embora.

Demonstra um raciocínio de certa forma esperto, mesmo que ingênuo, para sair da

situação incômoda que se encontra. Esta fala é engraçada principalmente por

revelar uma conexão alógica feita por Juca com o fato de o sereno não ter nenhuma

relação com a dor no calo. Propp comenta a respeito do riso de atitudes alógicas,

que nos ajudará a analisar esta fala:

Ao lado do fracasso daquilo que se deseja por causas externas ou internas, há casos em que o fracasso se deve à falta de inteligência. A estultice, a incapacidade mais elementar de observar corretamente, de ligar causas e efeitos, desperta o riso. Nas obras literárias, assim como na vida, o alogismo pode ter dupla natureza; os homens dizem coisas absurdas ou realizam ações insensatas. (PROPP, 1992: 107)

De acordo, portanto, com o trecho acima percebemos que o alogismo

cometido por Juca está no que ele diz, com o fato de não ligar corretamente causa e

efeito. O raciocínio revelado por esta fala é de o aumento da dor no calo ser devido

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ao sereno e isto não é correspondente, por isso se torna engraçado. Quando Alberto

finalmente deixa a cena, Neli chama Marli com um assobio e pede para Juca dizer

que fora ele que assobiara. Quando D. Santa pergunta quem assobiara, Juca diz

que foi ele, porém em seguida revela a verdade: diz que foi Neli e ela pediu para

dizer que tinha sido ele. Dessa forma, expõe a situação que deveria ter sido

acobertada: Neli assobiou para avisar Marli. Este tipo de colocação geralmente

suscita o riso por surpreender o público e as personagens em cena e gerar uma

situação constrangedora.

Na hora de se despedir para sair de cena, Juca gagueja e só consegue

concluir a sua fala depois de Marli ter deixado a casa, cumprimenta todos e sai

correndo. Como não houve nenhum motivo que o fizesse agir assim, esta maneira

de se retirar torna-se descabida, e só poderia ser realizada desta maneira pela

personagem cômica da peça. Termina então a participação de Juca neste ato que,

em muitos momentos, contribui para o andamento da história mesmo que

aparentemente a atrapalhe. Ele é responsável por desviar a atenção do público da

trama que aos poucos se complica e intensifica. Neste ato, Juca reforça o fato de ser

um moleque ingênuo e tolo que age despretensiosamente dentro deste conflituoso

enredo.

3.4.3 –Terceiro ato a comicidade do tolo

Neste ato, Adélia e Benevides são os principais responsáveis pela comicidade.

Desde o começo a portuguesa se mostra muito debochada na maneira de falar e

agir. e, durante uma conversa com seu pai, utiliza inúmeras gírias que acabara de

aprender no Brasil. Benevides não entende o discurso da filhaporque não conhece

as gírias usadas e por interpretar literalmente o que a filha diz e não perceber que se

trata de figura de linguagem. Como podemos ver na cena a seguir:

ADÉLIA - Oh, papai! Mas isto aqui é bom! Eu quisera nãovoltar mais para Portugal. A coisa aqui é boa! Édo balaco-baco!... BENEVIDES - É do quê? ADÉLIA - É do balaco-baco. Aqui é cocoreco e pronto. BENEVIDES - (aparte) Ela está ficando maluca! (alto) O que écoroquéco? ADÉLIA - Cocoreco é bico de pato. Quer dizer que aquinão tem conversa mole pra boi dormir, não! BENEVIDES - Escuta; o que é que tem o bico do pato com aconversa do boi?

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ADÉLIA - (depois de rir) Qual! O senhor não manja mesmonada. Para falar com o senhor só mesmo àportuguesa. BENEVIDES - É lógico! Tu vens falar em baco-baco, emcoroquéco, em bico de boi, conversa de patoquando está dormindo! Vou lá entender essenegócio?... ADÉLIA - (depois de rir) O senhor não emboca uma! Osenhor não pode mesmo entender. No Brasil olero-lero é diferente. (pausa) Então, já cuidoudo casamento? BENEVIDES - Já falei ao Sr. De La Torre. Ele consente e disseque o filho gosta de ti. ADÉLIA - Eu bem o sabia! Não há homem que resista auma bela cachopa portuguesa!... BENEVIDES - Escuta aqui, minha filha, mas fala direito. Nãoenrola a língua, não. Tu amas esse rapaz? ADÉLIA - Eu gosto dele, mas amar não! Amor hoje em diaé manga de culete. BENEVIDES - Manga de culete? Taí. É por isso que eu nãogosto de modernismo. Nos meus culetes, eu nãodeixo por manga! ADÉLIA - Creio que desta vez acertei a mão! BENEVIDES - Acertou a mão aonde? ADÉLIA - Causarei inveja a todas as minhas patrícias.Mulher de um médico! Qual, papai, vou casarcom ele! É o meu pedaço! BENEVIDES - (espantado) Quê?! Falta um pedaço ao rapaz?Pois olha, eu não sabia. ADÉLIA - Fique sabendo agora. Mas com ele, papai, a conversaé outra. O Albertinho gosta de romantismo.E nessa matéria eu sou mestra. (PIMENTA, 2005: 272 a 275)

Percebemos que Adélia não considera as falas de seu pai, pois ao explicar

uma gíria utiliza outra no lugar, dificultando ainda mais a compreensão. Apesar de

Benevides conhecer algumas das palavras ditas pela filha, não compreende o

sentido atribuído a elas e por isso pensa que ela enlouqueceu. Este é um tipo de

comicidade ressaltada por Bergson e Propp, que se encontra justamente no jogo de

significados das palavras e expressões, que determinada cultura julga engraçado.

Poderíamos dizer que a maioria das palavras apresenta um sentido físico e um sentido moral, conforme a tomemos em seu sentido próprio ou no figurado. (...) Obteremos efeito cômico se fingirmos entender uma expressão no sentido próprio quando ela é empregada no sentido figurado. Ou ainda: Quando nossa atenção se concentra na materialidade de uma metáfora, a ideia expressa se torna cômica. (BERGSON, 2007: 85 e 86)

De acordo com o trecho acima, o diálogo se torna complicado por Benevides

interpretar o que sua filha diz no sentido literal, enquanto ela emprega o figurado.

Neste trecho é explorada a característica do tipo do português na cultura brasileira.

Muitas expressões nacionais utilizam o sentido conotativo que, somente através do

contexto, pode ser interpretado corretamente. Entretanto o povo português tem a

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fama de utilizar a fala estritamente no sentido denotativo, e disso resultam muitos

equívocos cômicos amplamente explorados pelas “piadas de português”.

Para o pai, o diálogo não tem coerência e por isso acredita que sua filha

enlouqueceu e fica muito preocupado. Entretanto, Adélia se aproveita desta situação

e o faz de bobo, pois não tem a intenção de se fazer compreender, isto também é

cômico. Ela se aproveita desta situação e encarna o tipo da filha que manda nos pais

e faz o que quer. Vladimir Propp comenta que é muito comum nas cenas da

literatura mundial e dos contos populares russos a situação de uma personagem

fazer a outra de boba, para isto é preciso haver uma personagem esperta e outra

ingênua. Adélia realiza o primeiro papel e se mostra, em oposição a seu pai,

articulada, pois em pouco tempo já se familiarizou com a diferença entre as línguas e

expressões. Também demonstra um caráter discrepante com o tipo feminino,

representado pela ingênua doce e recatada, demonstrado na sua maneira de agir e

se comunicar, como ao aprender as gírias com os homens e utilizá-las desta

maneira desenvolta. Esta conversa apresenta um crescente no desespero do

português, diante da incompreensão, o que aumenta ainda mais comicidade da cena.

Pai e filha são surpreendidos por Alberto e em seguida os pretendentes ficam

sozinhos em cena. Adélia se mostra muito interessada no rapaz, e lhe faz

declarações de amor, na forma de um jogo com as palavras, como fizera com seu

pai. Benevides entra silenciosamente em cena e ouve apenas uma frase, fora de

contexto, dita pela filha: “Pois eu desejava ser uma vela de cera”. Diante do que

viera antes, tem a certeza de que a filha enlouqueceu, e para se certificar pergunta a

todas as personagens que encontra: “Tu achas que uma mulher pode virar vela de

sebo?”.

Esta frase é repetida muitas vezes pela personagem ao longo do ato, e se

tornou um bordão de Benevides, reconhecido, inclusive, pela plateia. Daniele

Pimenta comenta, em seu livro, depoimentos de que os espectadores faziam a

pergunta junto com Benevides e assim estabeleciam um diálogo direto com o artista.

Os depoimentos se referem a apresentações feitas no circo-teatro dirigido por

Antenor Pimenta, porém é possível que reações similares ocorressem nos demais

circos brasileiros. Como podemos perceber nos comentários sobre as interferências

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do público feitos por Roger Avanzi na entrevista realizada para a pesquisa, no dia 18

de março de 2014:

No circo era muito vulgar isso, porque ia muita plebe, muito povo baixo. Tinha camarotes que eram pessoas de primeira classe, as cadeiras. Mas na geral, que chamavam de poleiro, sempre iam pessoas sem instrução e eles gostavam de mexer com os artistas e de achar graça na peça. Então tinha que fazer força para aguentar aquela plateia revoltosa. Mas sempre nos saímos bem no circo. O circo era mais difícil que no teatro. O teatro é mais sossegado. (...) No teatro uma atenção fantástica, e no circo era mais esculhambado. Parece que iam no circo só para se divertir, dizendo coisas que vinham na cabeça deles, o povo baixo da geral. Mas a gente tinha que aturar. Depois com a continuação dos espetáculos, nós íamos, vamos dizer, domando esse povo para eles saberem assistir. Falávamos muito com eles e ia melhorando. (...) Uma vez eu assisti em um circo aqui em São Paulo, quando eu vim passear aqui tinha um circo aqui em São Paulo e levava peças. E acontecia coisas assim: a moça tinha que roubar, parece que era O mundo não me quis parece, ela ia no cofre uma coisa em silêncio, né? Não falava nada, ai abria e tirava, aquele negócio, né? E ela era muito magra, magrinha, bem magrinha. Aí de repente tinha um gozador, era circo. O gozador que estava assistindo, e eu estava assistindo também, Eu fiquei bobo. Ele gritou: Saí daí. Bem forte. Saí daí, bacalhau de porta de venda!Bacalhau de porta de venda! E assim saiam essas piadas, né? (Entrevista realizada com Roger Avanzi em 18/03/2014)

Nesta fala, Roger se refere a dois espaços de representação: o circo e o

teatro, o último referente aos edifícios teatrais das principais cidades brasileiras do

período. Este local costuma ser elitizado, em decorrência de apresentar um preço

maior, e ser um lugar com regras claras de comportamento, o público tende a manter

o silêncio e também há menos interação entre os espectadores. O circo, em

contrapartida, permite uma maior relação por ser um espetáculo de entretenimento e

também devido à maneira da disposição física do público em relação aos artistas. O

tipo de atração exibida favorecia este tipo de relação, por estabelecer um jogo cênico

claro e direto com a plateia. Este tipo de reação, diante das diversas apresentações,

complementa e dialoga com as atrações, trazendo novos nuances para o espetáculo.

Como a fala de Benevides repetida exaustivamente ao longo da peça, a qual o

público conseguia prever e por isso dizia junto com o ator. Apesar de esta relação

mais livre com os artistas às vezes atrapalhar, como narra Roger na fala acima,

mencionando que eles atuavam como uma espécie de formadores de público.

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A próxima cena cômica deste ato ocorre entre Benevides e Juca, e prepara a

resolução da trama através do equívoco das cartas. O gago espera por uma

resposta da carta de Neli e, por demorar, entra à força na casa, se encontrando com

Benevides. O português está muito preocupado com sua loucura, novamente indaga

a todas as personagens se o acham maluco e Juca é o primeiro a dizer que não. Por

isso consegue sua proteção diante da ameaça do criado em colocá-lo para fora,

chama-o de amigo e lhe convida para sentar. Então lhe indaga seu famoso bordão

sobre a possibilidade de uma mulher virar vela de sebo, dessa forma Juca revela ao

público, através do aparte, que o português está sim maluco.

Neste diálogo, Antenor utiliza o recurso do aparte, o qual lhe possibilita revelar

o lado de Benevides, eufórico por ter encontrado alguém que não o acha maluco, e o

de Juca, que o acha maluco, mas, como tem sua proteção, não pode contrariá-lo.

Dessa forma, o descompasso e desentendimento de ambos ficam evidentes e isto

será muito cômico, principalmente no jogo com o espectador. Nesta peça, há pouca utilização do aparte (fala de uma personagem direcionada

para a plateia) pelo autor, por pretender criar uma história envolvente, sem

demonstrar a construção cênica. Antenor, segundo Daniele Pimenta (2005: 58 e 59),

considerava a interpretação dos atores de circo muito artificial e estereotipada, e

destacava o problema de acústica como responsável por este exagero. Por isto

procurava uma nova forma de representação para a sua companhia, cujo resultado

deveria ser o mais próximo do real, visando aumentar a identificação12

do público

com a história. Seu palco era equipado com microfones, a fim de que os atores não

recorressem à impostação nas suas falas. Apesar desta preocupação, dificilmente

um melodrama apresentado dentro do ambiente circense será confundido ou

encarado como realidade. Entretanto esta pretensão de Antenor revela uma

preocupação em tornar a encenação verossímil13

, com a possibilidade de

12 A identificação é um processo de ilusão em que o espectador imagina ser a

personagem representada. Segundo Nietzsche, o prazer da identificação advém do encantamento que ela produz, sendo este o fenômeno dramático fundamental: “ver-se a si próprio transformado diante de si mesmo e então atuar como se na realidade a pessoa tivesse entrado em outro corpo, em outra personagem.” (NIETZSCHE, 1992: 60)

13 “O verossimilhante é um elo intermediário entre as duas ‘extremidades’, a teatralidade da ilusão teatral e a realidade da coisa imitada pelo teatro. O poeta busca um meio de conciliar as duas exigências: refletir o real fazendo-o verdadeiro, significar o teatral criando um sistema artístico fechado em si mesmo.” (PAVIS, 2005: 429)

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identificação por parte do espectador. Os dramas circenses costumam ser feitos

para comover a plateia, levá-la as lágrimas e provocar fortes sentimentos.

A cenografia também completa esta intenção do autor, pois era diferenciada

por não utilizar telões pintados, mas mobília e uma ambientação completa para os

cenários. Antenor se preocupava em construir um espetáculo bonito para os olhos,

algo grandioso e impactante. Esta peça ressalta ainda mais este aspecto por

apresentar uma diversidade de ambientes e cenários, tais como: um bar, casa pobre

de Neli e D. Santa, casa rica de Alberto e De La Torre e a frente de uma igreja. Era

um grande desafio uma companhia circense, principalmente para uma que buscava

reproduzir os ambientes reais no palco, pois possuir móveis e ambientes para todos

estes espaços não era uma tarefa fácil.

Voltando ao aparte utilizado por Juca, identificamos este como um recurso

dramatúrgico em que o ator se direciona ao espectador e por isso o distancia da

identificação com as personagens. É interessante perceber sua aparição no contexto

de uma cena cômica dito pela personagem de Juca. O riso, em muitas cenas,

apresenta o elemento de distanciamento por se destinar à inteligência, pois muitas

vezes para rirmos é necessário “anestesiar o coração” (BERGSON, 2007). Esta cena

realiza o distanciamento em relação a história, tão importante no gênero

melodramático, como podemos ver ainda em sua continuação:

BENEVIDES - Faça-me o favor. Tu achas que eu estou maluco? JUCA - Não... O senhor tá co intestino da cabeça estragado. BENEVIDES - Isto sim, mas maluco não estou! Tu és meu amigo! JUCA - Eu...eu... BENEVIDES - Não diga nada. Um abraço!... (Abraça-o) JUCA - Eu...eu... BENEVIDES - Outro abraço! (torna a abraçá-lo) JUCA - Eu...eu... BENEVIDES - Outro mais! (abraça mais uma vez) JUCA - (levanta-se e afasta-se, aparte) O homem é loucoferóis!

BENEVIDES - Olhe, meu amigo, disponha de mim no quequiseres. JUCA - Eu...eu... venho buscar a resposta da carta queeu trouxe pro senhor A...A...Aberto. (PIMENTA, 2005: 300 e 301)

Apesar de Juca não ser o criado de Benevides, neste momento ele assume

este papel através da condição de ter que agradar-lhe mesmo que pense o contrário,

para que assim possa permanecer na casa. É muito comum na literatura a

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figura cômica do criado, o qual pertencente a uma classe social mais baixa e se

utiliza da sua esperteza para lidar com as demais personagens. Benevides, em

contraposição, pertence a uma classe social mais abastada, não tem estudo e é

muito tolo, por isso apresenta muitas atitudes insensatas ao longo da trama. Este

momento é o clímax da loucura do português, pois sua última esperança de

sanidade, revelada no contato com Juca, se mostra falsa. É cômico o descompasso

das ações e reações das personagens e, principalmente, o fato de Benevides

abraçar avidamente Juca, sem que ele entenda seus motivos.

Os inúmeros abraços, em seguida a fala de que o português está inteiramente

ao seu dispor, indica uma tendência homoafetiva. Anteriormente, em um diálogo com

sua filha, ele já indicara esta possibilidade quando Adélia diz querer se casar com

Alberto e Benevides lhe responde que ele também deseja. Somente a partir da

indagação de sua filha esclarece que deseja o casamento dela com o rapaz. A

comicidade gerada a partir da sugestão homoafetiva e, em algumas peças, a

apresentação de personagens homossexuais, é um recurso cômico amplamente

utilizado no circo-teatro. Também encontramos em inúmeros programas televisivos

posteriores, tais como em A praça é nossa, Os trapalhões e Chico City.

Diante desta disposição apresentada por Benevides, Juca aproveita a

oportunidade e diz que veio buscar a carta de Alberto, então o português ajuda a

encontrá-la. Na mesa está a carta que De La Torre enviaria a Francisco avô, e no

chão está a de Neli adulterada. Entretanto nenhum deles consegue ler, Juca diz não

conseguir porque foi escrito a tinta e ele só sabe ler a lápis. Esta fala é muito

engraçada por mostrar um ilogismo: não tem relação o material utilizado para

escrever a carta com o seu conteúdo. Ao invés de Juca revelar a verdade, de que

não sabe ler, ele usa uma explicação qualquer, impensada e ilógica, por isso

engraçada. Benevides continua esta mesma piada, ao dizer que não consegue

entender porque só sabe ler o português de Portugal. Juca o contesta afirmando

serem línguas parecidas, então o português completa: “Porque no Brasil o lero-lero é

diferente.” (PIMENTA, 2005: 302). É surpreendente, e cômico, ouvi-lo utilizar a

expressão dita por sua filha, pois anteriormente ele se demonstrava confuso quanto

ao significado, e agora já fala a expressão no contexto correto. Por não conseguirem

ler, Juca guarda as duas cartas e, antes de ir embora, Benevides novamente lhe faz

a incansável pergunta: “Tu achas que uma mulher pode virar vela de sebo?”. Então

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finalmente Juca, depois de conseguir o que procurava, fala que ele está maluco sim.

Com esta afirmação, Benevides se desespera e resolve se internar num hospício,

pois não lhe resta dúvida de sua insanidade. Para finalizar o diálogo cômico, Juca

diz ironicamente: “Ô portugueis! Eu vou estudar o seu caso” (PIMENTA, 2005: 304).

A história se solucionará mais à frente devido ao engano das cartas, um

procedimento comum nos melodramas. A carta funciona como um deus ex machina

responsável por solucionar parte das inúmeras peripécias da trama aparentemente

irreconciliáveis. Este é um recurso dramatúrgico que surgiu com o teatro grego, mas

se modificou com o passar do tempo e integrou outros gêneros literários,

principalmente no melodrama cuja tragédia foi bem influente. Patrice Pavis, em seu

Dicionário de Teatro, comenta sobre as diferenças na utilização deste recurso na

comédia e na tragédia:

A comédia usa de subterfúgios aparentados ao deus ex machina: reconhecimento ou volta de uma personagem; descoberta de uma carta, herança inesperada etc. Neste caso, uma parcela de acaso é admitida nas ações humanas. Para a tragédia, em compensação, o deus ex machina não é efeito do acaso e, sim, o instrumento de uma vontade superior; é mais ou menos motivado, sendo artificial ou inesperado apenas na aparência. (PAVIS, 2005: 92)

No equívoco das cartas, este recurso foi utilizado de acordo com a comédia

por envolverem personagens com ações ocasionais, e não por vontade divina, como

na tragédia. As peças melodramáticas sacras geralmente não apresentavam

personagens cômicas e nem situações engraçadas. Para haver comédia é preciso

transferir aspectos elevados para um plano corporal, este pensamento é

compartilhado por Bakhtin, Bergson e Propp. É cômico: “(...)todo incidente que

chame nossa atenção para o físico de uma pessoa quando o que está em questão é

o moral.” (BERGSON, 2007: 38). Portanto quando os aspectos morais, como no

melodrama e na tragédia, são a tônica da cena não há o riso: é preciso corporificá-

los para isto. Os bufões da Idade Média durante as cerimônias de iniciação dos

cavaleiros, por exemplo, uma das formas de satirizar era rebaixando ao corpo

aspectos da ideologia e cerimonial cavalheiresco, e assim conseguiam provocar o

riso franco dos espectadores.

Apesar de o melodrama ter muitas semelhanças com a tragédia clássica

grega, este é um dos pontos que os diferencia: a possibilidade de inserção de

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elementos cômicos diante de situações trágicas, tal como ocorre em Shakespeare

ou em Nelson Rodrigues. Como, por exemplo na peça de análise, o fato de uma

dupla cômica, por obra do acaso, ser responsável pela solução de uma trama

complexa motivada por um perverso vilão. Este ato termina com o anúncio do

casamento entre Alberto e Adélia que, no dia seguinte, partirão para Portugal junto

com Benevides. Dessa forma, De La Torre consegue adiar o conhecimento de

Alberto das cartas, em posse de Juca e Neli.

3.4.4 – Quarto ato o declínio da comicidade

Na montagem realizada pelo Circo Nerino, neste ato havia um momento

cômico, logo no início, com a entrada de Neli na igreja. Dona Santa permanece

sozinha na parte de fora, para pedir esmola, então Juca entra em cena. Segundo a

descrição de Walmir dos Santos, em entrevista realizada para esta pesquisa, ele

tinha um objeto que o ajudava a criar a comicidade neste momento:

E tinha uma cena muito engraçada, essa cena ela passava na frente da igreja.

A velha estava na igreja, ela foi com a neta pra pedir esmola na porta da

igreja. E a neta entra na igreja. Aí chega o Juca e vai encontrar com a Santa.

Aí começa a falar com a D. Santa, fazendo graça, gaguejando. Aí depois ele

deixa a D. Santa lá, e entra na igreja, com a latinha, fazendo barulho. Dá um

tempo e ele volta, ao invés de ele voltar com a latinha, ele volta com um

sininho. Aí a D. Santa pergunta para ele: “Juca, que houve? Você está com

um sininho?” E ele diz: “Pois é, D. Santa, eu entrei o padre me roubou minha

latinha, eu roubei o badalo dele.”. A plateia dava risada. (Entrevista realizada com Walmir dos Santos em 04/02/2015)

Esta situação cômica foi criada nesta encenação e, por agradar muito a

plateia, permaneceu em todas as apresentações. É interessante observar a

simplicidade da construção deste momento, pois a partir de um objeto simples, como

uma latinha, criou uma situação cômica com a senhora, com o padre e,

principalmente, com a plateia. Ao analisarmos somente o texto, não temos acesso a

aspectos cênicos como esse e, sendo esta uma arte essencialmente representativa

e construída por inúmeros outros criadores, vários acréscimos são feitos durante as

apresentações. Por isso, é comum haver elementos, como os descritos acima,

criados pelos artistas durante os ensaios e apresentações, visando estabelecer um

diálogo estreito com a plateia.

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A participação de Juca neste ato, apesar de reduzida, é muito importante, pois

ele é o responsável por planejar a maneira de prender De La Torre. Através de uma

ideia simples, característica da personagem cômica, conseguirá, no ato seguinte,

aprisionar o ardiloso vilão. Juca propõe enganá-lo dizendo que entregará as cartas

no dia seguinte em sua casa e pede a Alberto que leve a polícia no local. O herói

aprova a ideia e assim será concretizado o plano.

Há apenas uma circunstância cômica apresentada pelo texto de Antenor

Pimenta, quando De La Torre ameaça matar D. Santa e consegue a confissão de

Neli de que as cartas estão com Juca. Ao encontrá-lo o ameaça com um revólver e,

mediante um pagamento de dinheiro, Juca concretiza seu plano: diz que lhe

entregará as cartas no dia seguinte em sua casa. Neli fica arrasada com o amigo,

pois não sabe que as provas já estão com Alberto e desconhece o plano arquitetado.

Mesmo com a tensão desta cena, Juca consegue descontrair apresentando um tom

cômico sutil, mas muito importante para o momento:

TORRE - Não tem favor! As cartas, depressa! JUCA - Vira esse canhão pra lá! TORRE - Então entregue as cartas! JUCA - Qué vê? (vira os bolsos, mostrando que não temnada) Ó, viu? Num tá aqui. Tá em casa. Se osenhor pagá bem, eu dô as carta. TORRE - Dar-te-ei 100 cruzeiros.

JUCA - Não. Eu quero é 10 conto.

TORRE - 10 mil cruzeiros?! JUCA - Num sei se é 10 cruzeiro. Eu quero 10 conto. TORRE - (enérgico) E se eu não tos der? JUCA - Num dô as carta.

TORRE - E eu te mato!

JUCA - E eu vou chorá! TORRE - Eu não tenho aqui a quantia que você quer. Vouassinar um cheque, serve? JUCA - Tá bom. NELI - (enquanto Torre assina o cheque, abraçando D.Santa) Oh! Vovó, como sou desgraçada!...(chora) (PIMENTA, 2005: 337 e 338)

Independentemente de a situação ser bastante tensa, Juca age de maneira

descontraída, principalmente por não compartilhar com as preocupações de Neli e

estar no controle da situação, mesmo ameaçado por um revólver. Quando De La

Torre adverte que o vai matar, diz que vai chorar e esta reação é cômica por ser

inesperada e remeter a uma criança, à fraqueza de um homem. A personagem

cômica geralmente transparece as fragilidades humanas e por isso é engraçada,

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principalmente em contraste com as personagens melodramáticas virtuosas e de

ações assertivas, tal como o Clown Branco tenta ser. Neste ponto a figura cômica se

assemelha com o palhaço, conhecido por cometer erros e proceder de maneira

desajeitada, principalmente em contraponto com os corpos virtuosos dos artistas

circenses durante os números de variedades. O palhaço evidencia sua fraqueza e o

grotesco do seu corpo, rebaixa qualquer aspecto sublime, e por isso se torna

passível de riso.

3.4.5 –Quinto ato fim da comicidade

Apesar de não ter nenhuma fala neste ato, Juca é muito participativo.

Permanece com a polícia ao lado de fora da casa onde se passa o velório e realiza a

comunicação entre os policiais e Alberto. No momento de prender De La Torre, entra

junto com os policiais e também ajuda a capturar Francisco. Neste ato, porém, não

há espaço para o cômico ou qualquer descontração, como no anterior. A tragédia

acabara de acontecer, mesmo com a liberdade de Fernando, junto com o fato de D.

Santa voltar a enxergar, não aplacam o sofrimento e o impacto diante da morte da

heroína. De La Torre e Francisco devem pagar duramente pelo que fizeram e a

Justiça fará o que for possível para isto. A morte do casal principal não é

necessariamente algo ruim, explicitado pela apoteose que finaliza a peça através da

união deles no céu. Este desfecho reforça o amor puro e verdadeiro, preconizado

estereotipicamente pelo gênero melodramático, no qual não apresenta o viés da

realização verdadeira e real, mas o da idealização.

3.5 – Encenação do Circo Nerino

O ensaiador, no Circo Nerino, foi Agenor Garcia, que havia pouco tempo

integrara a companhia e realizara modificações significativas na maneira de criar os

espetáculos. A mais relevante foi a confecção de um palco, pois até então todas as

peças eram encenadas obrigatoriamente no picadeiro. Esta construção possibilitava

novos recursos cênicos, como a utilização do ponto, dessa forma, não era mais

preciso decorar todas as falas e a companhia conseguia ampliar seu repertório.

Havia ainda um segundo palco, ao lado do primeiro, para a música. Tudo isso

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possibilitava a criação de cenas paralelas, o que era muito comum nas montagens

de Agenor.

Ele era pai de Anita, que casara com Roger, ambos participavam do

renomado Circo Garcia e, em virtude do casamento, integraram a companhia Nerino.

Anita era considerada uma das melhores atrizes do circo-teatro, segundo o

depoimento de Roger no livro Circo Nerino: “Ela tinha a voz límpida e uma grande

presença em cena.” (AVANZI e TAMAOKI, 2004: 185). Além de ter sido considerada

uma excelente atriz por Procópio Ferreira, que lhe deu um retrato autografado para

indicar sua apreciação por seu trabalho. Dessa forma, Anita se tornou uma das

principais atrizes do Circo Nerino, e protagonizou junto com Roger inúmeros pares

românticos nas peças.

Após a saída de Agenor do Circo Nerino foram montadas poucas peças.

Mantiveram o repertório levantado por este importante ensaiador nas apresentações

seguintes até o término da companhia. Segundo Walmir dos Santos, em entrevista

realizada para esta pesquisa: “Então essas peças permaneceram por muito tempo.

Todas que foram montadas por ele. E depois disso, depois que ele saiu, foi montado

umas duas ou três peças, não teve mais continuidade com outro repertório. ”

Walmir dos Santos descreveu, na entrevista realizada, o figurino que usava e

um objeto especial que o ajudava a construir um jogo cômico com a plateia. Esta

caracterização nos ajuda a compreender alguns pontos da interpretação do circo-

teatro:

O Juca usava uma calça cumprida, tipo uma calça de velho que é muito grandona, sabe? Com um paletó meio grande, com uma peruca bem bagunçada e usava uma latinha para ficar fazendo barulho. Entrava em cena já estalando a latinha, né? (...) Chegava perto da cega e ele começava a chamar atenção dela tocando aquela latinha, fazendo barulho. Uma tampa de lata que você vai fazendo assim e ela estala. Era isso que a gente fazia. (Entrevista com Walmir dos Santos, realizada dia 04/02/2015)

A comicidade desta personagem se dava a partir da escolha do figurino, muito

comum ao do palhaço da parte de variedades, porém menos exagerado e sem a

maquiagem característica. A roupa larga, o desalinho dos cabelos, junto com o

barulho da latinha – objeto incômodo para as demais personagens – aproximam a

interpretação de Juca realizada na encenação com o palhaço de picadeiro. O

barulho incessante gerava, nesta montagem, desconforto nas outras personagens e,

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como na cena da igreja narrada anteriormente, momentos cômicos. Juca está

sempre envolvido em alguma confusão, e sua comicidade se dará, geralmente, por

desestabilizar de alguma forma aquilo que é esperado. Até mesmo a sua fala revela

isto, ao impedi-lo de travar uma conversa ininterrupta e dinâmica.

As confusões de Juca não são criadas visando causar intriga e complicar a

trama. Pelo contrário, ele é uma personagem simplória que age sem pensar e, por

isso, comete vários equívocos. Como na situação das cartas, do penúltimo ato,

quando consegue solucionar despropositadamente esta trama complexa e

conflituosa. É um jovem ingênuo, simples e tolo, que não demonstra preocupação

em dialogar com as condutas sociais, revelada por sua maneira direta de falar sobre

assuntos indelicados, como na situação em que reclama sobre a mudança no

comportamento de Neli após o começo de namoro. Este aspecto acaba suscitando

boa parte da comicidade de sua figura, assim como o fato de ser gago, conforme

destacado por Walmir dos Santos na entrevista realizada para esta pesquisa:

O Juca também, coitado, era um inocente também. Ele vivia assim, ele

acompanhava a cega lá com a menina, ficava na porta da igreja. Ele é

bem ingênuo também, uma figura bem ingênua. (...) Porque ele como gago

enche o ambiente e agrada a plateia. Chamava muita atenção a maneira

dele gaguejar, disso, daquilo. Era muito bom. Na última cena era diferente.

(Entrevista com Walmir dos Santos, realizada dia 04/02/2015)

A última cena não permitia qualquer tipo de piada ou descontração, devido ao

final trágico com a morte dos amantes, e por isso Juca não apresentava qualquer

fala. Antes de Walmir dos Santos assumir a personagem, Paulo Sobral, cantor de

músicas mexicanas da primeira parte do espetáculo, era o intérprete. Com sua saída

do circo, Walmir, que atuava como ponto, assumiu e substituiu com facilidade o

papel, por conhecer muito bem o texto. A construção da personagem já estava

pronta, seu o trabalho foi o de se apropriar da criação e torná-la verossímil na sua

interpretação. Este é um procedimento comum dos atores de circo-teatro, assim

como seguir as proposições feitas pelo ensaiador e dramaturgo. O ator deve se guiar

por estas indicações e criar uma interpretação que dialogue com o contexto, como

no caso do figurino e da latinha, propostas feitas pelo ensaiador Agenor Garcia.

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Ali foi criado mesmo pelo ensaiador, porque às vezes tem muita peça que ela vem com observação. No texto tem alguma observação referente ao que você deve fazer. Pode ser que nessa também tivesse: “O gago deve aparecer com isso assim. Qualquer coisa.”. Mas eu acho que ali inclusive que aquela da latinha deve ter sido uma criação, porque ele entra com a latinha e sai com o sino. Quer dizer, o padre tomou a latinha dele e então ele ficou bravo, tomou o badalo do padre, que é o sino. E ele fala: “O padre tirou minha latinha, e eu roubei o badalo dele”. Quer dizer isso são situações, criadas. Ajudam a criar, tem muitas coisinhas que na hora, vem assim a hora. Uma coisa que está ali dentro e a plateia gosta. (...) Às vezes num ensaio dá aquele estalo, e quando chega à noite e a gente faz. (...) A gente vai fazer e lembra que tem que ter, porque agradou a plateia, né? (Entrevista com Walmir dos Santos, realizada dia 04/02/2015)

A latinha possibilitou a criação desta situação particular no Circo Nerino,

extratextual, que funcionava muito bem no jogo com os espectadores e por isso foi

incorporada ao enredo. Dialogar com o público é uma das premissas desta arte,

comentada anteriormente e agora confirmada por Walmir, sendo boa parte do foco

de atenção do ator e artista circense. Uma arte que propõe uma linguagem direta e

clara, cuja função é entreter e se relacionar com o gosto dos espectadores.

O cenário é outro ponto que chama a atenção do público, principalmente

porque nesta peça há muitas mudanças sugeridas pelo autor, como o bar da

primeira cena, a casa de Neli e depois de Alberto, a frente de uma igreja e a

apoteose do final. Todos estes lugares eram ilustrados através de um telão pintado

no fundo e alguma mobília, conforme mencionado por Walmir na entrevista cedida à

pesquisa. Os edifícios teatrais desta época também costumavam apresentar, como

parte fundamental do cenário, telões pintados. Na peça analisada a casa da Neli, por

ser a mais simples, só tinha uma mesa e duas cadeiras, já a de Alberto era mais

sofisticada, com poltronas e adornos. Dessa forma, podemos observar que o cenário

ilustrava os ambientes de maneira bastante concreta e não só ilustrativa, como com

os telões.

O espectador é contemplado com a apoteose final, através do encontro dos

amantes, para a tranquilidade do público emocionado com a tragédia passada.

APOTEOSE Cenário: Céu. Uma escada de nuvens. No topo está Neli, vestida de noiva. Desce vagarosamente a escada e vai à coxia, estendendo a mão e trazendo Alberto. O par sobe a escada e uma porta no céu, em forma de coração vai se abrindo. Entram, olham-se e a porta se fecha. (PIMENTA, 2005: 369)

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A apoteose se refere a esta ‘imagem’ que finaliza o espetáculo. Não se trata

necessariamente de uma imagem como uma fotografia, mas de uma pequena ação

que condense o desfecho da história. A apoteose da montagem do Circo Nerino era

um momento de grande destaque e importância. Roger Avanzi, durante a entrevista

realizada para este trabalho, descreve este momento e a reação do público:

Nós fazíamos uma apoteose bonita, tinha um palco já naquele tempo. A moça morre, o rapaz vai pegar o cínico e o cínico atira nele, ele morre também. Mas vai se arrastando até onde está a esposa dele, a Neli. Cai por cima dela: “Neli, Neli” e fica morto, os dois mortos. Aí a luz rapidamente apaga e acende. A Neli já é outra moça que está imitando a Neli na cama. E ele, naquela mesma posição, sai pela cortina. Meu sobrinho entrava e ficava naquela posição. Então o povo via os dois ali, para os dois aparecerem na apoteose. Apoteose muito bonita. Nós fazíamos dois corações grandes, onde a gente entrava assim no meio, não entrava o corpo todo não, meio corpo, do lado e do outro. E ele ficava chamando: “Neli, Neli”. E aqueles corações iam andando assim, e eles iam andando dentro dos corações, até os corações se unirem. Era muito bonito, agradava muito e era o fim da peça. (Entrevista realizada com Roger Avanzi em 18/03/2014)

A apoteose do Circo Nerino, além de encerrar o espetáculo de uma maneira

reconfortante para o público, apresentava o elemento mágico da saída de Alberto e

sua aparição em seguida com Neli se unindo nos corações. Isto ocorria sobreposta à

imagem de Alberto caído morto em cima da amada na cama, realizada por outro ator.

Gerava muita admiração no público, como um número de mágica, o que agradava e

finalizava de uma maneira bonita em meio a tantos acontecimentos tensos. A

apoteose também é um recurso que observamos em outros estilos dramatúrgicos

como com o teatro de revista, que fora muito popular nesta época. Porém costumava

ser apresentado majoritariamente nos edifícios teatrais das principais cidades

brasileiras.

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4 – JERÔNIMO, O HERÓI DO SERTÃO

4.1 – Os autores e a história

Jerônimo, O Herói do Sertão foi uma importante radionovela dos anos de

1950 e 1960, escrita por Moisés Weltman (1932-1985). O autor nasceu no Rio de

Janeiro e desde jovem se dedicou a escrever novelas e programas para o rádio.

Jerônimo teve mais de três mil capítulos (3.276) de radionovela e ficou quatorze

anos no ar, de 1953 a 1967,pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro. A narração era

de Mário Lago e o valente Jerônimo tinha a voz do rádio-ator Milton Rangel, dublador

de filmes de Hollywood. O Moleque Saci era interpretado por Cauê Filho e era o

preferido da garotada. Caveira, na radionovela, atuava como o principal vilão, cujo

traço essencial era o disfarce, o que lhe permitia participar de muitos episódios sem

ser reconhecido.

Devido à enorme popularidade, Weltman fez a adaptação dos capítulos para

quadrinhos, cujos desenhos eram de Edmundo Rodrigues. O autor também atuou

como radialista e novelista, inclusive escreveu duas novelas nos primórdios da TV

Globo, Rosinha do Sobrado (a primeira novela, exibida em 1965, ano da fundação

da emissora) e Padre Tião (de 1966). Jerônimo foi adaptado para a televisão, em

duas versões, nos anos de 1973 e 1984.

A história deste herói brasileiro tem semelhança com os filmes de faroeste

norte-americanos muito em voga no período. O cinema, junto com o circo, era um

importante entretenimento da época, tanto assim que os autores circenses

constantemente adaptavam para o palco os filmes mais famosos. A criação deste

herói por Weltman foi inspirada no faroeste, porém adaptada à realidade brasileira,

num cenário de cangaceiros, colonos e fazendeiros. Este texto retrata as relações

entre as pessoas do meio rural, como compadrio e o coronelato, muito comuns no

Brasil na década de 50 e até hoje presentes em nossa cultura.

Joaquim Silva adaptou para o circo-teatro a radionovela, devido ao sucesso

que a mesma tinha junto aos ouvintes. Chamado de Quinzinho, no Circo Nerino,

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além de dramaturgo, era ensaiador, e foi responsável pela encenação da peça neste

circo em 1955. Existem outros textos dramáticos que mantêm a figura deste herói e

mudam somente alguns aspectos da trama e personagens. Inclusive o Circo Nerino

realizou duas outras encenações protagonizadas por esta personagem, chamadas

de Herança Maldita e Uma Cruz na Estrada, encenadas e escritas por Quinzinho no

mesmo ano da primeira.

Esta é uma peça curta cuja dinâmica e rápida velocidade dos acontecimentos

chamam a atenção. Em apenas sete páginas o autor soluciona os conflitos

desencadeados pelo embate entre os heróis e os vilões. A partir de uma trama

simples, construiu uma narrativa cujo elemento principal está nos acontecimentos

inusitados que se sobrepõem, com o objetivo de manter o interesse e a apreensão

do espectador em relação à história.

No enredo melodramático o traço principal é a surpresa iminente – marca que se encontra inserida na elasticidade característica da trama. Em comparação com outras formas artísticas, observa-se que nem a variação temática nem o colorido linguístico, todavia presentes, sequer rivalizam com a importância que o desdobramento inesperado tem neste gênero. É aqui que o artista aplica o máximo da criatividade. Leva o espectador de sobressalto em sobressalto para um desfecho, que nem sempre concede o repouso do final feliz. A capacidade para surpreender deve certamente ser associada ao caráter do enredo. Adotando uma peculiar linha de progressão, o melodrama se mantém aberto para incorporar sempre novos desdobramentos em vez de prefigurar o desfecho e persegui-lo em linha reta. A hipótese de distender a história é uma alternativa continuamente à disposição do criador. (HUPPES, 2000: 28)

Nesta peça, todos os atos terminam com a suspensão de algum

acontecimento importante, para ser resolvido no ato seguinte, tal como os romances

de folhetim lançados em jornais. O autor se dedicará à invenção dos conflitos e

soluções, que podem variar conforme a sua criatividade. Geralmente, o texto

melodramático se inicia com algum acontecimento relevante, envolvendo muitas

personagens, que será desdobrado ao longo de toda a narrativa. Esta maneira de

começar a história favorece este tipo de enredo surpreendente, pois a situação inicial

se apresenta com muitas possibilidades de encaminhamentos, como observamos na

peça em questão.

Jerônimo foi chamado à cidade de Serro Bravo por Eunice, pois sua irmã,

Maria José, uma importante fazendeira local, oprime seus familiares e empregados.

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Maria José contratou inúmeros capangas para maltratar seus colonos, a fim de lhes

tomar as terras e construir uma mina de carvão. Esta situação é apresentada logo

no primeiro ato, entretanto o conflito caminha a partir das intenções de casamento

dos vilões – a exploração dos pobres permanece como pano de fundo para a intriga.

Junto com seu comparsa, Coronel Ambrósio, Maria José cria inúmeras artimanhas

para casá-lo com sua irmã e ela mesma com o engenheiro da fazenda, Carlos.

No primeiro ato, o capanga de Maria José, o Caveira, contesta o senso

comum de que Jerônimo seja o maior pistoleiro do sertão. Garrafinha, um freguês do

bar, intercede pelo herói, fala mal da vilã, provocando a raiva de Caveira, que

ameaça lhe bater. Durante este diálogo, o mencionado justiceiro entra no bar

acompanhado de seu ajudante, Saci. Os dois discutem com o capanga e o herói,

após vencê-lo na luta física, revela sua identidade para as personagens em cena. O

Caveira e o Garrafinha deixam o bar, o primeiro apreensivo pelo encontro com esta

temida figura, o segundo com o objetivo de espalhar a notícia. Pouco tempo depois,

Garrafinha retorna com o aviso de que Maria José convidara o herói para um almoço

na fazenda. Ele aceita a proposta e pede ao mexeriqueiro que arrume um emprego

para Saci na casa da vilã.

O segundo ato se passa no dia seguinte durante o almoço na fazenda Sete

Morte, e a cena inicia-se com uma conversa entre os vilões da peça. Neste diálogo,

Maria José comenta com o Coronel que está financeiramente arruinada, mas tem

intenção de tornar sua fazenda a mais próspera da região através da exploração do

carvão mineral existente na terra. Foi feita uma análise de solo e o responsável é o

engenheiro da fazenda, Carlos, com quem Maria José deseja se casar. Ele, porém,

ama Eunice, pretendente do Coronel, que para conquistá-la empresta um dinheiro a

Maria José em troca de sua ajuda.Nesta conversa, a dupla revela seu receio com a

chegada de Jerônimo na cidade, e a intenção de chamá-lo para trabalhar com eles.

Quando o justiceiro chega à fazenda, entra solenemente, cumprimenta todos

os presentes, elogia a propriedade, em especial, a personagem de Maria José.

Entretanto, rapidamente percebemos a ironia de sua fala, pois comenta sobre a má

fama da vilã em destratar seus empregados. Rejeita o convite do almoço e diz que

veio apenas lhes dar um recado: de que o reinado da dupla de vilões irá acabar.

Coronel ameaça chamar seus capangas, mas Jerônimo lhe aponta a arma e assim

consegue sair da casa sem ser perseguido.

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Em seguida a esta rápida visita todos vão almoçar, menos Maria José e

Carlos, então ela lhe revela sua intenção de casamento, ele a recusa e diz que não

se casaria por dinheiro, mas por amor, e diz amar outra pessoa. Eunice entra em

cena e conversa a sós com o engenheiro, finalmente o público assiste ao amor

verdadeiro e correspondido do casal. Maria José interrompe esta conversa, mas não

demonstra surpresa com o encontro, pois já imaginara que a mulher amada seria

sua irmã. Ao ficar a sós com a rival, obriga-a a se casar com o Coronel e, mediante

sua recusa, ameaça prendê-la em um quarto somente a pão e água.

Para completar este quadro, Ambrósio entra em cena e conversa com Eunice.

Neste diálogo tenta agarrá-la à força para lhe beijar, porém é surpreendido por Saci,

que aparece armado para defender a moça. Entretanto Caveira surge

sorrateiramente, desarma Saci e rapta Eunice, obedecendo à ordem do Coronel.

Antes de o capanga concluir a ação, surge Jerônimo para libertar a senhorita e

expulsar os malfeitores de cena, quesaem humilhados por um pontapé de Saci.

O terceiro ato inicia com um monólogo do moleque pretinho para justificar sua

permanência na casa, apesar de ter defendido Eunice e apontado uma arma para o

Coronel. Mesmo que Saci tenha atuado junto com Jerônimo, não desconfiaram da

relação de cumplicidade dos dois. Há outro diálogo particular entre Maria José e

Coronel, em que ele a pressiona para persuadir Eunice a consentir com o casamento.

A vilã diz que tentará pela última vez falar com Carlos e, caso ele não aceite se

casar com ela, mandará matá-lo. Como é esperado, Carlos nega a proposta de

casamento, mesmo diante da possibilidade de pagar com a vida tal recusa. Ela

então convoca Caveira para executar o engenheiro e jogar seu corpo no abismo a

fim de não levantar suspeitas. Mais uma vez Jerônimo aparece para defender o

oprimido, atira na mão de Caveira e sai antes de ser perseguido.

No ato seguinte, Saci e Carlos conversam sobre os momentos difíceis de

ameaças e perseguições e o engenheiro comenta que não tem conseguido sequer

descansar. Saci lhe garante um sono tranquilo, pois ficará vigiando e, mediante esta

ajuda, Carlos se deita para dormir. Neste momento, a dupla de vilões entra no quarto

do engenheiro e rouba os documentos da análise de solo, porém Saci estava

escondido e vê a ação. Quando saem de cena, o ajudante acorda Carlos e

apressadamente vai chamar Jerônimo.

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Dona Sinhá bate na porta do quarto do engenheiro para pedir os papeis, pois

os interessados em explorar a terra estão na fazenda. Então ele percebe que fora

roubado, Maria José tenta incriminá-lo, dizendo que o engenheiro visa conseguir a

riqueza das terras. Dessa forma, convence todas as personagens em cena, até o

momento de Jerônimo esclarecer os equívocos e desmascarar os vilões, pois tem

provas através dos documentos furtados. O Coronel Ambrósio é preso e Maria José

se mata com um tiro, pois não suportaria ir para a cadeia e conviver com o fato de

sua irmã ter-se unido ao seu amado.

Quem ensaiou esta peça no Circo Nerino foi o próprio autor, Joaquim Silva.

Ele foi convidado pelos artistas deste circo para criar algumas peças, pois era um

escritor e ensaiador muito famoso na época. No Nerino realizou a montagem de três

peças, ampliando ainda mais o repertório dramático da companhia. O cenário desta

montagem era simples e permaneceu da maneira que fora idealizada pelo ensaiador,

após sua breve passagem por este circo. Walmir dos Santos comenta, em entrevista

realizada para esta pesquisa, os detalhes do cenário desta encenação:

No começo tinha um bar. Cenário simples. Era pintado com uma parede normal, com porta, né? A porta era só a entrada. Tinha um negócio de garrafas, também era pintado na parede, como se fosse uma prateleira. E tinha umas mesas e um balcão. (...) A fazenda era normal, uma casa de fazenda. Uma mobília de casa, uma mobília mais rústica, mais adequada de fazenda, não com muitos detalhes. Porque com muito detalhe, não tinha como carregar tanta coisa. Às vezes a gente consegue emprestado alguma coisa, mas não era muito frequente. (Entrevista realizada no dia 04/02/2015)

A função do telão pintado é a de ambientar os locais sugeridos pelo autor,

uma vez que eram utilizados poucos móveis e adereço nas todas peças. Por isso,

tinha que ser uma mobília mais neutra para servir à diferentes ocasiões, diminuindo

assim a carga que o circo deveria levar de um local para outro. Dessa forma, cabia à

pintura, colocada geralmente no fundo do palco, particularizar a encenação. Este era

um procedimento comum realizado nos circos-teatros da época: a utilização de uma

tela retratando o ambiente da peça e as diversas alocações sugeridas pelo autor.

A temática principal desta história é a reparação da injustiça, dessa forma o

herói ganha bastante destaque e se torna responsável por movimentar o enredo.

Suas ações dependem das atitudes dos vilões, as quais, em conjunto, interferem no

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enredo e modificam seu curso. Quando a busca pela realização amorosa é temática

principal, os vilões serão os agentes principais e as ações do herói se tornam menos

objetivas e diretas por dependerem também de sua amada, como, por exemplo, na

peça mencionada acima de Antenor Pimenta.

Estas duas matrizes temáticas (a reparação da injustiça e a busca pela

realização amorosa) são reconhecidas por Ivete Huppes como sendo os principais

eixos do melodrama, que frequentemente aparecem entrelaçados. Como na peça

em questão que, apesar da reparação da injustiça ser o principal enfoque do autor, a

busca pela realização amorosa é o motor da dupla de vilões, que não medirão

esforços e não considerarão a vontade alheia para conseguir concretizar esta união.

Jerônimo impedirá a execução dos planos ardis, pois aparece sempre nos

momentos críticos e suas ações são certeiras e imbatíveis.

4.2 – Personagens

Jerônimo é o herói da peça, muito valente e destemido, o típico herói imbatível.

Ele se tornou o justiceiro do sertão porque perdeu injustamente o pai, quando muito

jovem, então passou a se dedicar a ajudar os oprimidos e fazer justiça onde for

necessário. É um homem misterioso que em diversos momentos da história

desaparece e subitamente retorna, sempre no momento em que é necessário atuar.

Tem um ajudante, o moleque Saci, que, apesar de lhe auxiliar, não desempenha a

função de solucionar os conflitos, característica do herói.

Jerônimo nos lembra de pelo menos duas referências da época, uma social e

outra artística. A primeira, de ordem sociopolítica, é Lampião uma figura política

marcante do período que morrera de forma polêmica há apenas quinze anos. A

segunda referência, de ordem artística, é a dos heróis dos filmes de faroeste

americano, imbatíveis e temidos por todos. De maneira menos direta nos lembra

também Dom Quixote e Sancho Pança, principalmente no que se refere a dupla

principal. Entretanto Jerônimo é uma personalidade singular, ambientado em um

contexto brasileiro, o qual o aproxima do público local. Um homem muito seguro,

com ações firmes, força física e astúcia, além de manejar muito bem as armas que

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carrega, tal como os valores preconizados pelo cinema norte-americano. Foi

reconhecido, na época da radionovela, como um autêntico herói brasileiro.

O ator que o interpretará deve buscar atitudes tais como a do galã central,

descrito por Otávio Rangel em sua obra Técnica Teatral. Este tipo age com bom

senso, seus gestos e atitudes revelam a coerência de sua personalidade, pois já não

é mais um jovem inseguro. Melhor seria se fosse representado por um ator mais

velho, pois, de acordo com os valores do gênero melodramático, somente a idade e

a experiência poderiam trazer tais características. Sua aparência deve ser impecável

e provavelmente se trata de um homem forte, o que contribui para revelar de

imediato as características da personalidade de Jerônimo. No Circo Nerino foi

representado por Roger Avanzi, o galã. Na época da encenação ele era um ator

experiente que, com muita maestria, realizou o imbatível herói.

Saci é o ajudante de Jerônimo, personagem cômica por ser desbocado e

serrista. Ele não demonstra uma preocupação em falar corretamente, não utiliza as

concordâncias necessárias (comum à fala das demais personagens), apresenta um

linguajar informal, em que gírias e abreviações de palavras são comuns. É um

moleque esperto, valente e justiceiro, principalmente por atuar ao lado de Jerônimo,

porém em alguns momentos é briguento e gosta de arrumar confusão. Este é um

contraponto interessante com o herói que só briga se for realmente necessário e em

nome da justiça. Isso ocorre, por exemplo, no primeiro ato, quando Saci ameaça

bater no Caveira e Jerônimo intervém, mostrando para o público que só reage

depois de ser atacado.

A maior parte da comicidade do moleque ocorre a partir do que diz:

geralmente apresenta uma leitura inusitada e engraçada das situações da peça,

além de tirar sarro deliberadamente das demais personagens, principalmente más.

Outra característica, que o permite acompanhar o herói, está relacionada a sua

esperteza e rapidez no raciocínio. Mesmo sem a educação formal se sobressaí

perante as demais personagens, apesar disso, Jerônimo comenta, na radionovela da

época, que ele deveria ir para a escola por ainda ser muito menino.

Certamente seria interpretado pelo ator cômico da companhia que costuma

ser um palhaço. No caso do Circo Nerino foi interpretado por dois atores, Paulo

Sobral e depois por Walmir Santos, o palhaço Garrafinha da primeira parte do

espetáculo. Esta foi uma personagem que ganhou muito destaque nas

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apresentações deste circo e também na radionovela, especialmente entre o público

jovem. Mais à frente voltaremos a falar de Saci, analisando os momentos cômicos

por ele suscitados.

Maria José é a principal vilã da peça, que atua em conjunto com Coronel

Ambrósio. Ela procura agir com astúcia para assim recuperar a fortuna de sua

família que, com a morte de seu avô, perdeu tudo e se encontra endividada. Devido

a isto, deve dinheiro ao Coronel e pretende casá-lo com sua irmã, para abater a

dívida. Sua participação na trama é muito relevante por ser a responsável por

articular os planos da dupla de vilões. Trata com desdém e desrespeito sua irmã e

mãe, somente se mostra atenciosa com quem lhe traz algum proveito. Seu

comparsa, Coronel Ambrósio, lhe apoia apenas por interesse no casamento com

Eunice, caso isto não aconteça, ameaça Maria José de tomar suas terras pela dívida.

Isto o torna diferente do comparsa convencional, subordinado e executor dos planos

do vilão. Ele não precisa obedecer às regras impostas pela vilã e quem executará os

planos serão os capangas, principalmente Caveira.

Não é comum que o papel da vilã seja representado por mulheres, ainda mais

pelo fato de Maria José se mostrar muito ativa e impiedosa. Da dupla de vilões ela é

mais importante do que ele, principalmente porque tiram sarro de Ambrósio. Apesar

de não ser a personagem cômica ele é passível de graça pelo seu jeito tolo, sua

maneira de agir e por sua enorme covardia, o que o levam a ser o comparsa e não o

cabeça da relação. Já Maria José não é passível de graça devido a sua seriedade e

gravidade. Até mesmo a vestimenta revela parte de suas características, como

podemos observar através da fala de Jerônimo que ao entrar e se deparar com as

personagens a reconhece por estar “vestida tão amazonescamente” (MAVRUDIS,

2011: 19).

Maria José, além de desempenhar o papel de vilã, se declara e pede Carlos

em casamento, invertendo as posições de conquista usuais da época. Também é

quem cuida e manda na casa, em sua mãe e irmã. Somente o tipo da vilã poderia se

insinuar para um homem e ser a chefe da casa, comportamentos estes tipicamente

masculinos. Percebemos que até mesmo seu nome revela estas características,

através da junção de um nome feminino, Maria, e um masculino, José. Entretanto

toda sua força e poder somente são possíveis porque está resguardada por seus

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capangas armados, além da proteção de seu amigo Coronel Ambrósio que a

encoraja nos seus planos.

O Caveira é o principal capanga da dupla de vilões que, assim como Saci,

não utiliza as concordâncias necessárias para falar corretamente. Na radionovela era

um importante vilão das histórias narradas, cuja principal característica era o disfarce,

que o permitia aparecer em diversos capítulos. Entretanto na peça em questão não

representa o papel do vilão e também não utiliza disfarce. Um traço interessante

desta personagem é revelado logo no início: demonstra ter muita coragem e força,

porém ao se deparar com o herói se revela um covarde. Isso ocorre, por exemplo, no

momento do confronto do primeiro ato, depois de apanhar, sai de cena “correndo

comicamente” (MAVRUDIS, 2011: 13).

O seu nome é metafórico e revela algumas particularidades de sua figura,

explicitando sua função de matar as pessoas. Isto somente será possível com a

utilização de armas, pois não se trata de um homem astuto e forte. Pelo contrário, ao

lado de Jerônimo, o herói da trama, percebemos o quanto Caveira é fraco, porém

muito orgulhoso e confiante ao admitir ser o gatilho mais rápido do sertão. Somente

aparece quando solicitado e para executar alguma perversa ação dos vilões.

A ingênua da peça é Eunice, entretanto não apresenta muito destaque pela

temática ser a reparação da injustiça e não a busca da realização amorosa, na qual

costuma protagonizar. Mesmo assim sua participação é importante por ser quem

chamou Jerônimo para intervir na problemática e também por participar do conflito

amoroso protagonizado pelos vilões. Eunice, apesar de ser a irmã da vilã, preza pela

justiça e pelo cumprimento das leis, estes valores a caracterizam como ingênua e a

aproximam do núcleo positivo.

Carlos é o seu par amoroso. Trabalha na fazenda de Maria José como o

engenheiro responsável pela análise do solo e busca das riquezas para exploração,

a fim de aumentar a renda da família. Não apresenta características marcantes que

o particularizem, realiza, assim como Eunice, a função de dinamizar a trama através

dos conflitos amorosos. Apesar de não ser o principal galã da peça, porque este não

é o enfoque principal da trama, ele representa o galã amoroso, segundo a divisão

dos tipos acordados por Otávio Rangel. Os problemas enfrentados por este tipo

geralmente se referem à impossibilidade do amor. Ele agirá de acordo com seus

sentimentos, como podemos observar na história, pois, mesmo depois de ser

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ameaçado de morte, continua a morar e trabalhar na fazenda devido a sua relação

com Eunice.

Dona Sinhá não é uma personagem muito forte na trama, desempenha o

papel de mãe das duas jovens. Apresenta uma fragilidade que a deixa subordinada

às vontades de Maria José, permitindo que ela tenha ações desmedidas e a trate

grosseiramente. Preza pela lei e justiça, também se revela uma personagem com um

bom coração que não enxerga as maldades de sua filha. Por ser a dona da casa, em

muitos momentos se referem a ela como autoridade local, mesmo que seja somente

embasada no respeito a sua idade, pois Maria José é a verdadeira chefe da casa.

Outras duas personagens, de menor importância, são Sá Joana e Garrafinha.

Ambos aparecem somente no primeiro ato. Sá Joana é a dona do bar e também

quem conversa com Jerônimo sobre a atual situação da cidade, atuando como uma

espécie de narradora da trama. É interessante que sua personagem seja

desempenhada por uma mulher, pois o mais comum era que homens fossem donos

de bar. Percebemos que sua participação na trama, assim como a de Maria José,

revela uma transformação da mulher na sociedade, principalmente a partir da

década de 1950, momento em que foi escrito este texto.

Garrafinha é um freguês que vive bêbado e fala sem respeitar as regras

gramaticais, tal como Saci e Caveira. Ele não chega a desempenhar o papel da

personagem cômica, porém sua maneira de se expressar é característica deste tipo

por desconsiderar aspectos sociais relevantes. Comenta, por exemplo, na frente do

Caveira sobre as malvadezas de Maria José e termina por chamá-la de miserável.

Também é responsável por espalhar a notícia de que Jerônimo chegara à cidade.

Essa atitude é outra característica que o aproximam da personagem cômica:

articular acontecimentos da trama e dialogar com os dois núcleos de personagens,

do bem e do mal.

4.3 - O popular sertanejo

Esta trama retrata uma situação comum no Brasil do século passado, e em

muitas localidades persiste até os dias atuais: o latifundiário inescrupuloso que

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explora seus empregados, com uma lógica similar ao trato escravista. O poder é

conquistado através do dinheiro e posses, porém o imperativo principal são as armas

de fogo. No primeiro ato, esta situação é apresentada através da perspectiva do

povo, maltratado e injustiçado pela dupla de vilões. Eles pretendem obrigar os

sitiantes a abandonarem suas casas para construir uma mineração de carvão na

região. A história, porém, se encaminhará em torno da dificuldade de união amorosa

que os vilões pretendem conseguir. Para isso, utilizam a mesma lógica aplicada à

conquista da terra: através da força se impõem aos pretendentes e desconsideram o

fato de os dois não desejarem a união proposta pela desonesta dupla.

O cenário inicial consiste em um bar e a peça se inicia com uma música

caipira que exalta a figura de Jerônimo, o valente e temido justiceiro do sertão

brasileiro. Narra, através de versos, a história do famoso herói sertanejo errante, que

luta pelos pobres sem temer e “faz qualquer valente tremer” (SILVA, 2012: 10). Caveira, capanga da principal latifundiária da região, questiona a supremacia de

Jerônimo e afirma ser melhor do que ele no gatilho. A dona do bar e Garrafinha, um

freguês, não aceitam que falem mal da única pessoa interessada em defender o

povo contra os fazendeiros inescrupulosos. Durante a discussão, inesperadamente

Jerônimo entra no bar, acompanhado de seu ajudante, pedem algo para beber e

sentam-se em uma mesa. Garrafinha comenta sobre seu desejo de o herói aparecer

na região, pois Maria José se encontra no limite da perversidade, e complementa

dizendo que ela e o Coronel Ambrósio são dois miseráveis. Caveira revida o insulto

aos patrões, pega-o pelo colarinho e ameaça mostrar o peso do seu braço e a

certeza do seu tiro. E lhe pergunta se neste momento Jerônimo apareceria para

defendê-lo.

A plateia não conhece a figura de Jerônimo, mas pode intuir, através da

maneira como ele está caracterizado e de acordo com o tipo representado, que se

trata do famoso justiceiro. Sua figura gera um foco de tensão no espectador, que

apesar de não ter a certeza, tem a intuição de que seja ele. É comum também haver

esta situação nas comédias, quando o palhaço se mostra valente, porém quando

surpreendido por seu inimigo sua coragem se esvai e então se acovarda,

provocando o riso do espectador.

Jerônimo não interrompe a discussão, seu ajudante, Saci, é quem se

intromete, empurra e passa uma rasteira em Caveira. Em seguida diz para não bater

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em Garrafinha, avisa que conhece o herói e não admite difamar seu amigo dessa

forma. A resposta do capanga é extremamente preconceituosa e irônica, diz para ele

não se intrometer em conversa de homem, pois é um macaco de circo. Este

xingamento desperta a ira no moleque pretinho, que avança em sua direção para lhe

bater. Jerônimo então intervém e, de forma pacífica, de acordo com seu tipo de herói,

aparta os dois. Caveira, porém, está com os ânimos acirrados, por isso não se

conforma com a intromissão e pergunta quem é ele. Como não recebe nenhuma

resposta, acerta um soco no herói que cai chão. Ele se levanta e revida até o

capanga ser vencido e sua impetuosidade sanar.

Todos se admiram diante da valentia, pois o Caveira é temido na região, e

perguntam por sua identidade. Quando ele diz seu nome, há grande espanto e

comoção, e nesse momento há indicação de música, provavelmente seria uma

música de suspense que, junto com a surpresa das personagens, aumentaria ainda

mais a expectativa em relação a Jerônimo. O capanga se levanta do chão e corre do

bar, enquanto Garrafinha vai espalhar a notícia na cidade.

Em seguida há um diálogo entre a dona do bar, Sá Joana, Jerônimo e Saci,

em que a problemática principal da narrativa é comentada. Joana menciona a difícil

situação sofrida pelos colonos e por Eunice, e lhes conta que estão contratando

homens armados com o intuito de aumentar o exército de malvados, por isso eles

não terão impedimentos para entrar na casa. Dessa forma, Jerônimo resolve mandar

Saci para trabalhar na casa de Maria José, com o intuito de se informar e espionar a

dupla malfeitora.

Neste momento são interrompidos por Garrafinha que já contara aos vilões

sobre a chegada do famoso justiceiro. Volta para trazer a notícia de que o chamaram

para um almoço na fazenda no dia seguinte. O herói pede ao fuxiqueiro que informe

sua aceitação pelo convite e que encontre algum trabalho para Saci lá. Os dois saem

de cena e o ato termina com o aviso de Sá Joana para que o justiceiro tome cuidado

com o embate que pretende travar. Jerônimo diz que fará de tudo para o retorno da

paz na região e mostrará a estes bandidos o quanto vale a coragem e fé do povo do

sertão.

Este é o único ato da peça protagonizado pelo povo sertanejo, mencionado

ao longo de toda a trama. O ambiente do bar em que ele é apresentado favorece a

mistura de diferentes pessoas em um lugar de descontração e permite a livre

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expressão das personagens. O botequim propicia uma dinâmica cênica diferente da

sala de estar, onde ocorrem os próximos atos. Possibilita a execução da canção do

começo, realizada pelas personagens em cena, e também ações surpreendentes,

como a chegada de Jerônimo e em seguida a briga com o capanga.

Jerônimo é um herói do povo, conhecido por defender seus interesses e

manifestar a revolta social contra injustiças e despotismos dos latifundiários locais.

Nesta peça faz oposição aos fazendeiros Maria José e Coronel Ambrósio e seus

capangas, contratados para oprimir os pequenos proprietários e trabalhadores da

região. Esta é uma realidade do sertão brasileiro, especialmente no começo do

século XX, mas que podemos observar em alguns lugares até os dias atuais, em que

as leis eram feitas por aqueles que tinham o maior e mais armado bando de homens.

Tal como acontece com Severino, cangaceiro da peça O auto da compadecida,

escrita por Ariano Suassuna. Neste texto, esta personagem atuará como um “vilão”

da história, por ser quem mata todos em cena, inclusive o “herói” da peça (João

Grilo), depois de lhes roubar o dinheiro. Severino deixa claro que só executa as

pessoas para garantir seu sustento e de seu bando. Esta outra peça foi escrita por

Suassuna no ano de 1955, dois anos após a criação da radionovela. Percebemos

assim, que o herói sertanejo era muito representado nas diversas manifestações

cênicas, ora como um Robin Hood do sertão brasileiro ora temido como um

cangaceiro matador.

Jerônimo, entretanto, é idealizado, como muitos elementos das tramas

melodramáticas, e sua caracterização é bastante esquemática, como diversas outras

características deste tipo de trama. O primeiro ponto que nos chama atenção é o fato

de atuar somente com um jovem ajudante e não em bando, como era mais comum.

O segundo aspecto está relacionado ao seu caráter correto e bondoso até mesmo

para com seus inimigos, pois não lhes inflige qualquer mal despropositadamente. Os

cangaceiros e jagunços do interior brasileiro não apresentavam esta característica,

pois é notória a violência que muitas vezes eram obrigados a infligir para realizar

seus intentos e mesmo assim eram estimados e benquistos pelos menos favorecidos.

Mais relevante, ainda, é o fato de que toda a população sertaneja, renegando embora os jagunços pelo pavor que lhe infundiam, tinha neles padrões ideais de honorabilidade e de valor, cantados nos versos

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populares, e via, nos seus feitos mais violentos, modelos de justiça realçados e louvados. Por tudo isso, o cangaço e seus jagunços, sanguinário mas pios e tementes a Deus e aos santos de sua devoção, temidos, mas admirados, condenados mas também louvados, constituíam um produto típico na sociedade sertaneja. (RIBEIRO, 1995: 356)

Para Darcy Ribeiro, o cangaço é fruto deste sistema senhorial do latifúndio

pastoril de recrutamento de capangas para defender seus interesses, através da

utilização de violência e ferocidade. A exemplo deste sistema de leis próprias era

comum surgirem organizações sociais, movidas pelas mais variadas intenções, que

também atuavam com fúria e opressão, tal qual seu principal inimigo. Depois de

cada assalto, os cangaceiros repassavam aos pobres os bens conquistados, por

mais que fossem frutos de mortes, mutilações e exibições públicas de fúria. A

violência empregada se distancia sobremaneira de Jerônimo que, em muitas

passagens da trama, tem a possibilidade de fazer mal aos vilões, mas prefere agir

de acordo com a lei. Inclusive somente incrimina a dupla de fazendeiros após ter

provas concretas para prendê-los e entregá-los para o delegado local.

Caveira, o capanga, pertence à classe social oprimida e rechaçada pelos

grandes proprietários de terra, mas trabalha em prol de seus interesses. É a única

personagem do primeiro ato que destoa do coletivo, por apresentar menos

consciência social, ser inescrupuloso e servil aos interesses alheios. O conflito deste

ato será encabeçado por sua figura, devido à discrepância em relação às demais. As

outras personagens demonstram ter consciência de sua situação de opressão,

apesar de não conseguirem agir em relação a isto devido aos escassos recursos.

Este contexto não diminui a crença de que esta realidade possa mudar, revelada

através da canção de abertura da peça:

cantam Quem passar pelo Sertão

Vai ouvir alguém falar

No herói desta canção

Que eu venho aqui cantar

Se é pro bem vai encontrar Com o Jerônimo protetor Se é pro mal vai enfrentar O Jerônimo lutador

Filho de Maria Homem nasceu Serro Bravo foi seu berço natal Entre tiros e tocaias cresceu

100

Hoje luta pelo bem contra o mal

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Galopando está em todo lugar Pelos pobres a lutar sem temer Com Moleque Saci para ajudar Ele faz qualquer valente tremer (MAVRUDIS, 2011: 10)

A música narra a história de Jerônimo e, de maneira resumida, nos informa

alguns aspectos desta conhecida figura. Dessa forma, não é necessário criar

nenhuma situação ou fala sobre este tema, e ainda nos revela o ponto de vista dos

cantadores em relação ao herói: de esperança e confiança de que ele poderá salvá-

los da opressão. A canção é responsável por ilustrar, desde o primeiro momento da

peça, o universo sertanejo no qual a história orbitará.

Esta música era conhecida da plateia e popular na época, fez muito sucesso

na rádio e depois na telenovela, tendo sido gravada por artistas como Emilinha

Borba e Chrystian e Ralph. O circo-teatro tem a característica de dialogar com os

elementos culturais populares vigentes da época. Isto aumenta a interação com o

espectador, por apresentar algo que faz parte do seu cotidiano, e possivelmente lhe

agradará. Nesta peça, as personagens também são conhecidas do público, pois se

tratava de uma rádio novela e, no circo, as pessoas tiveram a possibilidade de

assistir algo que era somente conhecido através da escuta.

Ao longo do texto a música aparece em alguns momentos e desempenha

diversas funções. No primeiro ato, além da abertura, há indicação musical no

momento que Jerônimo revela sua identidade e serve para dar ênfase à surpresa e

admiração das personagens, além de destacar ainda mais sua figura. No segundo

ato, antes de entrar na casa da vilã, a canção inicial da peça é sugerida como fundo

musical. Neste momento Eunice, Dona Sinhá e Maria José especulam sobre quem é

este herói e o que viera fazer na cidade. A cantiga, neste contexto, responde parte

destas indagações através da narração de sua história e intenção em defender os

oprimidos.

A próxima indicação musical será no terceiro ato durante o sono de Carlos

com o roubo silencioso dos vilões, a rubrica menciona meia luz e música em surdina.

Serve para criar uma atmosfera favorável à execução do furto, envolver o

espectador e gerar apreensão diante deste acontecimento. Esta é uma cena sem

muitas falas e, portanto, as ações descritas na rubrica, como entrar no quarto

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silenciosamente, procurar e achar os documentos, serão preenchidas com a música

sugerida pelo autor. No final da peça, depois da última fala de Jerônimo, sua música

tema novamente é entoada como finalização da trama.

Percebemos que a utilização sonora aparece com diversos sentidos, porém

sempre complementando os elementos da encenação. Em alguns momentos serve

para reforçar algo que a interpretação e as falas já estão indicando, como a surpresa

diante da revelação de identidade do herói no primeiro ato. A canção pode aparecer

nas peças de circo-teatro como uma forma de acrescentar novos dados à história,

sem que para isso seja preciso encená-los, tal como a música de abertura. Também

é responsável por criar uma atmosfera para a realização de alguma ação cênica.

4.4 – A personagem cômica de Saci

Saci é o ajudante do herói, um jovem negro e brincalhão. Representa a

personagem cômica da peça, responsável por criar momentos de descontração e

conquistar a simpatia dos espectadores. Esta é uma história com muitas cenas de

ação e Saci, diante das circunstâncias tensas e difíceis, se revela bem participativo.

Em diversos momentos é briguento, porém em algumas situações se mostra covarde

e medroso, pois ele é o anti-herói. Se comparamos com Jerônimo, percebemos que

as atitudes de Saci nos ajudam a exaltar o herói, pois o público tem um comparativo.

Responsável por nos lembrar, dentro de um contexto melodramático, que o mundo

não é feito somente de opostos e idealizado, como preconizado pela maioria dos

tipos da trama. O fato de descontrair os momentos tensos, e por se mostrar

paradoxalmente valente e medroso, aproxima-o do palhaço da primeira parte do

espetáculo, o Augusto da conhecida dupla com o Clown Branco.

Segundo a pesquisa realizada por Bolognesi (2003) em inúmeros circos

brasileiros entre 1998 a 2001, não há no país o Clown Branco, tal como fora

concebido na Europa. A função desempenhada por este palhaço, nos circos

nacionais, geralmente é executada pelo Mestre de Pista (o apresentador do circo) ou

por outro Augusto, chamado de escada. A relação desta dupla de atores se

assemelha à concebida originalmente com o Clown Branco em que, no geral, um se

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mostra esperto e o outro atrapalhado. Mesmo com esta polaridade algumas

entradas de palhaço apresentam uma virada em que a personagem desajeitada, ao

final da cena, se sobrepõe à outra. As apresentações podem ocorrer entre os

números de variedade como uma forma de entreter o público, durante a troca dos

aparelhos circenses. Em circos menores, o palhaço se torna a atração principal e

dessa forma desenvolve narrativas e cenas mais longas.

No circo-teatro do século passado, Saci não seria representado com a roupa

e maquiagem características do palhaço, porém algumas atitudes e seu caráter lhe

aproximam desta conhecida figura circense. É responsável pelos momentos de

descontração e riso, dentro de um contexto melodramático, tal como as entradas do

palhaço depois de um número de risco, apresentado na primeira parte do espetáculo.

Esta personagem também é responsável por nos revelar os aspectos humanos mais

baixos e banais. Manifesta uma perspectiva, diante de fatos tensos, descontraída e

superficial, demonstrando haver outra maneira de encarar as problemáticas.

No Circo Nerino foi interpretado por dois atores, primeiro por Paulo Sobral,

importante cantor do espetáculo circense. E depois por Walmir dos Santos, que fazia

o palhaço Garrafinha.

O Jerônimo foi, quando eles montaram o Jerônimo, eu não trabalhava. Quem trabalhava era um outro ator, que era até um cantor, Paulo Sobral. Aí quando Paulo Sobral saiu, aí na última hora me jogaram o papel. Porque eu fazia a Mestiça, Tico-Tico. Fazia ...E o Céu Uniu Dois Corações, o gago, o Juca. E depois que o Paulo Sobral saiu, é que eu fui fazer o moleque Saci, no Jerônimo. (...) Até o tipo físico era parecido, só que era branco, ele que bem claro. Ele era cantor, ele cantava músicas em castelhano, sabe? Era um bom cantor brasileiro. (...) O moleque Saci ele fez poucas vezes, porque a peça foi montada e logo ele saiu. (Entrevista com Walmir dos Santos realizada em 04/02/2015)

Paulo Sobral foi o único ator cômico do Circo Nerino que não atuava como

palhaço na primeira parte do espetáculo. O mais comum eram aproveitarem a

atuação e habilidades dos artistas para representarem, no teatro, algo equivalente

ao que desenvolviam na parte de variedades. Podemos ressaltar diversos momentos

engraçados da peça cuja atuação de Saci se assemelha ao jeito do palhaço. No final

do primeiro ato, por exemplo, na circunstância em que Jerônimo pede ao ajudante

para trabalhar na fazenda de Maria José. Ele demonstra

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explicitamente estar com medo e, ao mesmo tempo, vontade de brigar. A maneira de

expressar esta contradição é cômica, como podemos perceber na cena:

SACI - Tá legar, Jeromo, tá legar! Eu sei que eu vou virar couro de cuíca, mas eu vou assim mesmo. Eu to memo com vontade de batê uma briguinha! Eta briguinha boa! GARRAFINHA - aparecendo ao fundo Sá Joana, bota mais uma aí. Joana serve GARRAFINHA - depois de beber Oia, Seu Jerônimo, eu já andei espalhando a notícia de que o senhô chegou em Serro Bravo! O Seu Ambrósio, o fazenderão marvado, tava lá na Fazenda Sete Morte conversando com a Sá Maria José, e inté mandaram convidá o sinhô pra i almoçá com eles amanhã. O almoço é as onze e eles não gostam de esperar não. JERÔNIMO - Muito bem! Pode voltar lá e dizer a eles que eu irei ao almoço. Peça também a essa tal Maria José que arranje um serviço aqui para este criolinho lá na fazenda. Esse coitadinho precisa trabalhar para se sustentar. Esse moleque é um coitadinho! SACI - Coitadinho é o fio de rato que nasce pelado! Eu vô! Mais se a coisa engrossá, eu garro o mato. Eta empreguinho bão... Vamos, Garrafinha. E que São Benedito nos ajude. (MAVRUDIS, 2011: 14)

Neste trecho é engraçada a maneira de Saci expressar, através de gírias e

ditados populares, seu receio em trabalhar na casa dos inimigos. A primeira fala: “Eu

sei que eu vou virar couro de cuíca, mas eu vou assim mesmo.”, demonstra, de

maneira inusitada, o receio em ser descoberto e “arrancarem sua pele”. Ele está

acovardado diante desta situação, no entanto, algumas de suas ações ao longo da

peça se revelam audaciosas e impetuosas. Inclusive, na mesma fala, diz que está

com vontade de brigar com os malfeitores, demonstrando um contraste com a frase

anterior. Esta característica se assemelha ao jogo do palhaço, que comumente

apresenta esta polaridade do medroso e corajoso, combinada das mais variadas

maneiras. Parte do jogo cômico está na apresentação dos opostos e nas reviravoltas

cênicas que eles possibilitam.

O objetivo principal que observamos nas falas de Saci é fazer graça e troçar

das personagens e situações. Como na fala seguinte, em que Jerônimo se refere ao

ajudante como um coitado para que Garrafinha não desconfie da relação dos dois e

arrume um emprego na casa dos inimigos, porém Saci não dialoga com esta

dissimulação. E lhe responde: “Coitadinho é o fio de rato que nasce pelado! Eu vô!

Mais se a coisa engrossá, eu garro o mato”. O objetivo desta fala é fazer rir, pois não

tem a intenção de responder ao herói, fingindo ser um crioulo que precisa trabalhar.

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Saci é um escarnecedor que gosta de brincar em todas as situações, inclusive nas

piores.

O fato de rir daquilo que nos amedronta é uma forma de lidar com uma difícil

situação oposta à melodramática. Esse raciocínio dialoga com o pensamento de

Bakhtin, do riso como regenerador e positivo.

O verdadeiro riso, ambivalente e universal, não recusa o sério, ele purifica-o e completa-o. Purifica-o do dogmatismo, do caráter unilateral, da esclerose, do fanatismo e do espírito categórico, dos elementos de medo ou intimidação, do didatismo, da ingenuidade e das ilusões, de uma nefasta fixação sobre um plano único, do esgotamento estúpido. O riso impede que o sério se fixe e se isole da integridade inacabada da existência cotidiana. Ele restabelece essa integridade ambivalente. Essas são as funções gerais do riso na evolução histórica da cultura e da literatura. (BAKHTIN, 2010: 105)

Se Saci refletisse dramaticamente14

sobre o fato de trabalhar na casa inimiga

e servir de espião, talvez não tivesse coragem de enfrentar a situação e se

prostrasse. Principalmente por não ter tanta força e nem destreza quanto Jerônimo,

ele não é o herói, sente medo e os sentimentos mais ordinários, como a maioria do

público. Este trecho dialoga diretamente com o contexto que as personagens

cômicas assumem nos dramas do circo-teatro brasileiro: dialogar com público e sua

realidade. O cômico muitas vezes aparece como o elemento que apresenta o

homem mais comum, ligado ao cotidiano de incertezas. Distancia do aspecto

sublime preponderante neste gênero, dos altos sentimentos e das situações limites,

e assim impede que o sério fique abstraído da realidade ordinária e concreta da

maioria das pessoas. Dessa maneira, como indica Bakhtin, o riso consegue

completar o sério, favorecendo sua comunhão com a sociedade.

No segundo ato, Saci apresenta um ato heroico diante da situação violenta de

Ambrósio em relação a Eunice. A covardia expressa no primeiro ato transmuta-se

em coragem, porém, diferentemente do herói, não resolverá a cena sozinho, mas

realizará uma interferência bastante cômica.

14

O termo dramático neste trecho é empregado de modo mais genérico relativo ao gênero oposto à comédia, em que se valoriza o sério e o grave em detrimento do riso.

105

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AMBRÓSIO - Os seus insultos não me atingem. Vou acalmar o teu ímpeto de orgulho, dando lhe o meu primeiro beijo de amor! tenta beijá-la EUNICE - esbofeteando-o Toma! Miserável!

AMBRÓSIO - avançando Atrevida... eu... SACI - aparecendo Êpa! Que valentia é esta com uma menina indefesa? Não, meu nego, com essa aí não! AMBRÓSIO - Saia da minha frente, cozinheiro atrevido. SACI - Cozinheiro que não é do teu fogão. Enquanto eu tiver aqui, ocê não faz essas valentias com sá Eunice. Senão ocê vai entrá pelo cano direitinho, bicho. AMBRÓSIO - Olha que eu sou capaz de... SACI - Já sei. É capaz de me amarrá e me dá um beijo. Oh beijinho de boca fedorenta, credo. AMBRÓSIO - avançando Patife! SACI - sacando o revólver Epa... Epa... Epa... Não engrossa... não engrossa, bicho, que ocê estorou o pneu! Fica longe de mim, seu coisa! CAVEIRA - entrando sorrateiramente, agarra Saci pelas costas Agora o negócio é comigo! Pode deixá, chefe! AMBRÓSIO - Espera, Caveira! tira o revólver de Saci Eu tomarei conta dele, enquanto você pega Eunice e leva para a minha casa. Vamos. Caveira executa, segurando Eunice em sua frente JERÔNIMO - aparecendo Para trás, todos! TODOS - Jerônimo! JERÔNIMO - Vamos, Saci, desarme-os. Saci executa Agora, Caveira, solte Eunice. CAVEIRA - Eu tô cumprindo orde, e vai ser meio difícil tirá ela das minhas mão. JERÔNIMO - dá-lhe uma bofetada e livra Eunice Agora vá para junto de sua mãe, senhorita. Vá. Que, por enquanto, ninguém a incomodará. Eunice sai Agora vocês, canalhas, saiam, saiam logo. saem os dois, cada um com um pontapé de Saci SACI - Eta pontapezinho bão! Agora vai embora, Jeromi. Antes que venha gente. JERÔNIMO - Adeus, Saci. Continue a vigiar esta casa até que Jerônimo possa acabar com esses miseráveis. Adeus! Sai (MAVRUDIS, 2011: 25 a 27)

Esta cena cômica acontece no momento auge deste ato, quando Ambrósio

agarra Eunice à força. Nesta situação, Saci aparece para ajudar, mas causa riso, ao

chamar Ambrósio de meu nego, logo ao entrar. Ele revela, através da fala, uma

intimidade que não existe entre eles, porém, de acordo com o contexto, percebemos

que se trata de uma ironia.

(...) na ironia expressa-se com as palavras um conceito mas se subentende (sem expressá-los por palavras) um outro, contrário. Em palavras diz-se algo positivo, pretendendo, ao contrário, expressar algo negativo, oposto ao que foi dito. A ironia revela assim alegoricamente os defeitos daquele (ou daquilo) de que se fala. Ela constitui um dos aspectos da zombaria e nisto está sua comicidade. O fato de o defeito vir a ser definido por meio da qualidade que se lhe opõe, coloca em evidência e realça o próprio defeito. A ironia é particularmente expressiva na linguagem falada, quando faz uso de uma particular entoação escarnecedora. (PROPP, 1992: 125)

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A situação de enfrentamento entre ele e Ambrósio demonstra a discrepância

deste tratamento, pois em palavras expressa uma intimidade enquanto suas ações

são de embate, confronto e distância. O ator poderá, através da entonação, revelar a

ironia de sua fala em contraste com as ações cênicas realizadas, como destacado

por Propp no fragmento acima. Em seguida o Coronel o chama de cozinheiro

atrevido e Saci lhe responde que não é cozinheiro do fogão dele e se ele não se

cuidasse entraria “para o cano direitinho, bicho”. Em muitas passagens o Coronel se

intromete nos assuntos da família e as personagens lhe respondem para não

interferir naquilo que não lhe diz respeito. De maneira análoga, o moleque diz que

não é o seu cozinheiro e, portanto, não precisa obedecê-lo. Revela não respeitar o

Coronel, ao ameaçá-lo, chamando-o em seguida de “bicho”, um tratamento

pejorativo, principalmente no contexto melodramático.

Saci surpreende Ambrósio e o público não só quando, com coragem, defende

Eunice do ataque, como um herói trapalhão, principalmente pelo modo zombeteiro

com que trata a situação “à priori” violenta. Sem dar valor à valentia do moleque, Ambrósio o ameaça, no que Saci responde de maneira extremamente cômica, ao

reverter para si a situação que presenciou e perguntar de maneira irônica se o vilão

quer beijá-lo à força também.

O Coronel fica furioso diante das afrontas e avança em sua direção, então

Saci lhe aponta uma arma e, por ainda estar no controle da situação, completa: “não

engrossa, bicho, que ocê estorou o pneu! Fica longe de mim, seu coisa!”. Novamente Saci utiliza uma expressão popular, estourar o pneu, querendo dizer que

Ambrósio passou dos limites. Também o chama de coisa, um tratamento pejorativo e

desrespeitoso. Desse modo, transparece que não respeita nem o Coronel nem Maria

José, a quem trata da mesma maneira. Novamente a fala de Saci chama a atenção

pela maneira popularesca, se comparada às demais personagens. Ele apresenta um

jeito debochado e brincalhão que será engraçado, principalmente nos diálogos com

os vilões, pois o público deseja vê-los humilhados por tais zombarias.

Como Saci representa a personagem cômica, ele não consegue resolver a

situação sozinho e Jerônimo precisa intervir, numa situação “deus ex-machina”. Ao

final deste ato, depois da solução do herói, que surgiu inesperadamente para salvar

o dia, Saci dá um pontapé no Coronel e em Caveira para mandá-los embora. Esta

maneira de colocá-los para fora dialoga com o comportamento baixo do tipo cômico.

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Saci age de uma maneira grosseira, diferente do que seria habitual a um salvador da

mocinha em perigo, e esta atitude mais uma vez se aproxima da compreensão

bakhtiniana do riso, principalmente por transferir para o plano corporal tudo o que é “elevado, espiritual, ideal e abstrato” (BAKHTIN, 2010: 17). Ao invés de mandá-los

embora de uma maneira elegante e ameaçadora, Saci apresenta uma ação que

rebaixa e aniquila qualquer polidez. Esta atitude novamente o aproxima do palhaço,

principalmente por utilizar elementos da baixa comédia, tais como surra de pauladas,

ponta pés, sem demonstrar as sutilezas presentes na alta comédia.

No quarto ato, no momento da revelação das vilanias da dupla, há uma

sugestão cômica de Saci como punição para o Coronel: sentar em um formigueiro

sem cueca. Apresenta um raciocínio descabido, responsável por rebaixar novamente

ao plano corporal, e ligado às partes inferiores do corpo, uma possível correção e

humilhação para o vilão. Essa solução é descabida para uma personagem como

Jerônimo, porém possível e imaginável para seu ajudante. O herói empunha um

revólver para intimidar o adversário, porém não pretende matá-lo, mas obrigá-lo a

assumir suas faltas e pagar por isso na cadeia. Somente a criatividade da

personagem cômica poderia conceber este raciocínio. A primeira frase da fala

seguinte de Maria José se refere a esta piada feita por Saci: “Basta. Basta de tanta

comédia.”, demonstrando, em sua perspectiva, a seriedade da situação.

Ainda no momento da solução da trama, Jerônimo pede ao ajudante para

pegar os documentos de Carlos, em posse de Ambrósio. O moleque empunha um

revólver e, caso o vilão não consinta em entregar os papéis, ameaça-o: “Se não eu

faço a sanfona tocá e você tem que dançá.”. Esta é uma maneira metafórica e

sarrista de intimidar o Coronel a não reagir e fazer o que ele deseja. Novamente a

ameaça de Saci suscita uma imagem ridícula e descabida de alguém dançar ao som

de uma sanfona ameaçado por uma arma, similar ao raciocínio do palhaço. A fala é

engraçada porque surpreende e rebaixa. Esta situação tenderia a ser dramática,

caso fosse realizada pelo herói ou vilão; porém nas mãos de Saci torna-se ridícula. A

cena se encontra logo após o desmascaramento de Maria José, seguido de Coronel

Ambrósio. Novamente traz o riso e faz o público relaxar um pouco em relação ao

destino da história.

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Em seguida Saci leva o Coronel para o delegado, que esperava fora de cena,

chutando-lhe o traseiro. Novamente evidencia o plano inferior corporal, tal como

ocorre em algumas esquetes de palhaço. Bolognesi, no seu livro Palhaços, narra

uma entrada chamada de O coração em que um palhaço supostamente mata o outro,

que cai no chão. O primeiro chora diante do ocorrido e é consolado pelo

apresentador, ele lhe sugere se certificar da morte através dos batimentos do

coração. O palhaço, porém, não sabe onde se encontra este órgão, então o

apresentador lhe diz as características. Todas as indicações são seguidas, de

acordo com o seu raciocínio cômico, então encontra as nádegas do morto, e

confirma o óbito devido ao mau cheiro percebido. Esta e inúmeras outras entradas

se referem às partes baixas do corpo, com o objetivo de despertar o riso.

Percebemos, através dos exemplos, que o mesmo acontece com Saci, personagem

que apresenta um caráter zombeteiro e por isso é muito desbocado e trapalhão.

Todas as qualidades ressaltadas que aproximam a personagem cômica do

palhaço de picadeiro se referem às características apresentadas por ambas as

figuras. Entretanto, se observarmos do ponto de vista da interpretação do ator,

perceberemos diferenças sensíveis, tal como mencionadas por Walmir dos Santos:

O que eu fazia como o palhaço Garrafinha (palhaço criado por Walmir na

primeira parte do espetáculo circense)15

, era o Garrafinha. Agora em cena era outra coisa. Mesmo sendo cômico, o que eu fazia não tem nada a ver com o Garrafinha. (...) A diferença na maneira de você falar, como você tinha que se expressar, até a maneira de gestos, essas coisas. Porque no palhaço você tem que falar mais do que fazer esse tipo de cena. Às vezes você tem um texto, que este texto tem que mostrar a comicidade. No palhaço. Na cena é diferente. Você tem um texto e você tem que fazer alguma coisa ligada àquele texto. Totalmente diferente do palhaço. O palhaço é engraçado, é uma coisa de graça. E lá na peça é cômico, é uma comicidade que você faz na peça. No palhaço você já tem um outro tipo de gesticulação. (...) Toma conta da cena. Você faz pirueta, você faz tudo para fazer graça, no picadeiro. Não é só falar, você tem que fazer as comicidades, gesticular. Porque às vezes você não é sozinho, você está com outro que ajuda você. (Entrevista realizada em 04/02//2015)

Observamos duas diferenças importantes ressaltadas na fala de Walmir, a

primeira se relaciona ao tipo de comicidade. Na peça, ela está atrelada e

subordinada ao texto, já a do palhaço é independente no sentido de buscar ações

fora do roteiro estabelecido, cujo objetivo é despertar o riso dos espectadores. Outra

15

Grifo nosso.

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diferença entre essas duas figuras se relaciona à gesticulação e à atuação, que, em

relação ao palhaço, são mais livres, por poder se articular de acordo com

improvisações. Neste jogo é possível incluir piruetas e grandes expressões cênicas

por parte dos intérpretes, que extrapolem as regras da realidade. No caso do

melodrama, o ator deve agir dentro de um outro contexto de representação, cuja

linguagem é mais contida, pois busca dialogar com a vida dos espectadores,

seguindo as convenções de um gênero dramático, e envolvê-los na encenação.

Mesmo com a intenção de realizar uma interpretação realista16

, o ator deve

considerar as condições espaciais que o obriga a falar mais alto, devido à

precariedade da acústica, a gesticularem de maneira limpa e sintética, o que

acarreta uma linguagem particular deste meio.

O modo de falar das personagens, como a fala mais regional e carregada de

sotaque de Saci, contribui para a explicitação das suas características e construção

cômica. Utiliza a expressão coloquial e popular, em que as exigências quanto à

gramática não são priorizadas, mas sim a fluidez na comunicação. Desse modo,

gírias e interjeições aparecem com frequência no seu discurso, assim como nas

falas das personagens de Garrafinha e Caveira. Eles desconsideram, portanto, a fala

formal comum aos heróis e vilões, gerando uma diferença sensível no decorrer da

história. Esta variação na comunicação é responsável, também, por sublinhar a

diferença social existente entre estes grupos.

No segundo ato e na abertura do terceiro há dois monólogos que evidenciam

a maneira coloquial de Saci se expressar. O primeiro descreve para o público o

emprego de cozinheiro que conseguiu na casa de Maria José, em contraste com sua

função de espião. O segundo monólogo serve para justificar a sua permanência na

casa, depois de ter defendido Eunice e ameaçado o Coronel com uma arma. Os dois

demonstram o linguajar popular utilizado por sua personagem. Escolhemos o

primeiro, por representar melhor algumas características particulares de sua figura e

também por ilustrar bem a sua fala coloquial:

SACI - vestido de cozinheiro Esse negócio de emprego de cozinheiro que o Jerônimo mandou arranjar pra mim não tá nada bão. Eu não sei se cozinho

16

Relativo ao movimento realista do teatro, que no Brasil começou em meados do século XIX, no qual se buscava uma encenação e interpretação mais próximas da realidade, visando imitá-la da maneira mais fiel possível.

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ou se vou escuitá atrais das portas. Isto ainda vai dá numa sujeira dos diabos. passos Xiiii... Aí vem as gentes, eu vou dá o fora. A dona lá da cozinha qué que eu vá lavá os prato e, ainda, qué que eu vá fazê as comida. Mas eu vô falá pra ela que se eu lavo, não cozinho. E se eu cozinho, eu não lavo. Vá pros quinto. Eta cozinheirinho bão! Sai (MAVRUDIS, 2011: 19)

Este momento acontece após o diálogo íntimo entre os vilões, na abertura do

segundo ato. Serve para contextualizar a situação do emprego que ficara suspenso

no ato anterior com a saída de Saci e Garrafinha. O monólogo revela a situação

contraditória, inusitada e cômica, de cozinhar preocupado em escutar atrás da porta.

A maneira de narrar esta impossibilidade, através do encadeamento de ideias e a

forma de apresentá-las, é engraçada. Demonstra claramente para o público a

situação desconfortável desta situação contraditória em que se encontra e assim

evidencia sua fraqueza. As personagens dramáticas, por mais que tenham

fragilidades, na medida do possível, tentam escondê-las do público. As imperfeições

do herói ou do vilão aparecem somente no sentido de superação e progresso, pois o

erro deve ser suprimido. A personagem cômica, ao rir de sua situação, demonstra a

possibilidade da derrota, inclusive é responsável por destacar o lado falho do homem.

A partir da repetição, ao longo do enredo, do mote lavar e cozinhar / espiar e

trabalhar, a personagem criará um jogo cômico interessante pela impossibilidade

gerada por esta situação. Neste monólogo, o moleque pretinho diz a frase que irá

repetir ao longo de toda a peça: “Eta cozinheirinho bão!”, apenas modificando o

substantivo da oração. Os circenses nomeiam esta frase dita ao longo de todo o

espetáculo de bordão, um recurso bastante utilizado pelas personagens cômicas.O

bordão gera um diálogo direto com os espectadores e se torna reconhecido e

esperado por eles. O conceito de repetição é o que mais caracteriza o uso do bordão

e é fundamental para o estabelecimento da comicidade – nele se manifesta tanto o

caráter mecânico da conduta humana quanto a espontaneidade propiciada pelo

sentido que se reconstrói com a recorrência. Neste contexto, o comediante pode

explorar amplamente as expressões de duplo sentido, principalmente com

conotações sexuais e relativas aos planos corporais mais baixos, como a

combinação de lavar e cozinhar da passagem destacada.

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Ainda no segundo ato, Saci interrompe a conversa entre Maria José e Carlos,

na qual ela se declara para o engenheiro. Este é um trecho curto, pois o moleque

pretinho apareceu somente para chamá-la, entretanto a maneira como se dirige à

patroa é bastante cômica:

SACI -que apareceu ao fundo Dona Maria, ixe, o pessoá tá esperando pra enguli o feijão. E o mió é a senhora i logo, se não a salada esfria. MARIA JOSÉ - Já vou, idiota, e saia da minha frente, seu pau de fumo. sai fuzilando SACI - Pau de fumo é a... Eta pauzinho de fumo bão! CARLOS - Saci, meu amigo, não sei o que será de mim. Estou entre a cruz e a espada! Eu amo Eunice e a irmã me persegue. Até com ameaças de morte. Será que precisarei abandonar esta casa? Deverei ir para longe da mulher que amo? SACI - Quá nada, Carlo. Oia, seu Dotô. O Jeromi anda por aí. E as coisas agora vai miorá muito. O Jeromi tá só aperparando o golpe finali pra pegá estes bandidos. Isto é tudo uns contra a lei. passos Xiii... Aí vem a Sá Eunice, eu vou dá fóra prá ôceis conversá mais à vontade. Mas tome cuidado com a Sá Maria Izé, hein. Té logo. Eta namorinho bão! Sai (MAVRUDIS, 2011: 22 e 23)

Neste trecho, a maneira deSaci se expressar, sem considerar a convenção

social, se torna engraçada, como ao dizer para a sua patroa que estão esperando

para engolir o feijão. Esta forma de falar é uma característica marcante das

personagens cômicas, entretanto Saci a enfatiza ainda mais devido a sua

personalidade de brincalhão e zombeteiro. Revela, com este tratamento, que não

respeita como deveria sua patroa, principalmente por ser seu secreto inimigo. Nesta

mesma fala há uma piada quando diz que a salada vai esfriar, que se deve ao

alogismo presente: a salada é uma comida fria que, portanto, não pode esfriar.

Vladimir Propp, no seu livro Comicidade e Riso,dedica um capítulo à temática do

alogismo e explica com detalhes este procedimento, utilizando como exemplo

diversas histórias da dramaturgia e contos populares russos.

Ao lado do fracasso daquilo que se deseja por causas externas ou internas, há casos em que o fracasso se deve à falta de inteligência. A estultice, a incapacidade mais elementar de observar corretamente, de ligar causas e efeitos, desperta o riso. (PROPP, 1992: 107) É possível dar-se também outra definição: pode-se entender o alogismo cômico como um mecanismo de pensamento que prevalece sobre seu conteúdo. (PROPP, 1992: 108)

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O alogismo reflete um mecanismo errado de pensamento, que ignora o

próprio conteúdo, a salada não pode esfriar por já ser servida fria. Porém não fica

tão claro se esta personagem comete este alogismo por graça, devido ao seu jeito

brincalhão e desbocado, ou por ignorância. O mais importante, entretanto, é resultar

o efeito esperado, gerar o riso no espectador e descontrai-lo da tensão estabelecida

na conversa entre Maria José e Carlos. Através da interrupção de Saci, o autor

realiza o movimento de tencionar e relaxar, com a oscilação entre o drama vivido

pelas personagens sérias e a comédia e descontração apresentadas pelo moleque

pretinho. O público momentaneamente muda o foco de atenção e “esquece” aquilo

que lhe afligia. Este ponto nos lembra de um recurso amplamente usado pelo

dramaturgo e encenador Bertold Brecht, que visava construir em suas peças um

distanciamento emocional do público em relação à história, a comicidade era um dos

recursos utilizados por ele.

A maneira popular de as personagens de Saci, Garrafinha e Caveira se

expressarem induz à identificação com uma camada social não escolarizada, que

possivelmente não teve acesso ao conhecimento letrado. Como podemos observar

na rádio novela, disponível na internet, em que Jerônimo diz ao seu ajudante para

estudar porque é importante para seu futuro e ele ainda é muito novo. A discrepância

social aparentada entre as personagens se relaciona com aquilo que Bolognesi

chamou de expressão psicossocial, relacionada à máscara da commedia dell’arte:

Na commedia, a força simbólica das máscaras reporta-se a sentidos sociais e psicológicos próximos de arquétipos: são expressões psicossociais. No jogo cênico das máscaras evidencia-se um embate entre estratos sociais distintos, como entre os zanni e Pantaleão ou entre criados e o Doutor. O antagonismo psicológico, por sua vez, pode ser notado no confronto entre Arlequim e Pierrô. O primeiro é enganador, misto de ingênuo e grosseiro; o segundo, honesto, terno e encantador. As características distintas (tanto sociais quanto psicológicas) se materializam em máscaras distintas, símbolo de situações-limite. (BOLGNESI, 2003: 178)

Percebemos que os tipos apresentados nos circos-teatros do início do século

XX guardam algumas semelhanças com a commedia dell’arte italiana. Ambos se

reportam a sentidos sociais e psicológicos parecidos, no embate entre o indivíduo e

a sociedade. Grande parte do cômico suscitado nesta peça pela personagem de

Saci se refere à diferença existente entre os padrões de comportamento nas

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distintas classes sociais. Ele desrespeita as convenções sociais de cordialidade e

respeito, e ainda fala de maneira informal, comete erros de gramática e utiliza

expressões populares. Através da maneira de se expressar e agir estas diferenças

serão sublinhadas, em contraste com as demais personagens.

O raciocínio apresentado pela sua personagem também se destacará por

revelar certa ingenuidade diante de algumas situações, pois se trata de um jovem

galhofeiro com pouca experiência de vida. Geralmente suas sugestões serão

desconsideradas pelas personagens por apresentar ideias absurdas e sem sentido.

A exemplo da solução de punição para o Coronel, comentada anteriormente, de

sentar em um formigueiro sem cueca. Na rádio, Saci era a personagem que mais

fazia sucesso com o público jovem, por pertencer e dialogar com os interesses deste

grupo.

Outro papel desempenhado pela personagem cômica nos melodramas se

refere em ser confidente de uma ou mais personagens. Carlos, em dois momentos

da trama, confia seus segredos e desabafa com o moleque, dessa forma revela

também ao público seus secretos sentimentos. Ivete Huppes ressalta que os apartes,

monólogos e confidências são convenções relevantes para a construção

melodramática e completa:

Semelhante ao coro da tragédia grega, esses recursos favorecem a compreensão por parte da plateia, além de representar uma alternativa de comunicação que se superpõe ao diálogo entabulado pelas personagens em cena. (...) Há casos em que contribuem para completar o retrato das personagens principais, aquelas a quem é reservado espaço para revelações e de quem o interesse da história demanda decifrar o ânimo oculto. Quando falam, sozinhas ou para um interlocutor – o confidente, ou o público, no caso do aparte – expressam motivos íntimos que não poderiam aparecer de outra maneira, a não ser desencadeando prejuízos muito graves. (HUPPES, 2000: 73 e 74)

O primeiro momento de confidência é na cena, já citada, de interrupção do

diálogo entre o engenheiro e a vilã. Carlos, além de revelar seu romance escondido

com Eunice, também demonstra sua apreensão diante da situação que se encontra:

ameaçado pela irmã de sua amada. Esta declaração contribui para aumentar a

expectativa em relação aos próximos acontecimentos, pois o interesse do público é

despertado ao não vislumbrar uma solução positiva cabível para estes conflitos. No

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quarto ato, antes do roubo responsável por solucionar a trama, há outra conversa

íntima entre estas duas personagens.

SACI -entrando Doutor Carlos, os homens das companhia das mina já chegaram. Daqui a pouco, eles deve ir pro escritório. O sinhô também tem que tá lá. O sinhô não é o engenheiro da engenharia que vai negociá as terra? CARLOS - Sim, mas eles só irão depois do almoço. E eu preciso descansar um pouco. SACI - Eu também acho que o senhô precisa descansá. A sá Maria Izé tem esfolado vossemecê no serviço, hein? CARLOS - Agora está muito pior. Ela desconfia de tudo que eu faço. SACI - Pois eu acho que o Doutor tá com uma sorte dos diabo. Tem escapado de cada armadilha de lascá. Eles tão querendo vê sua caveira! CARLOS - É que eu ando sempre alerta. Esta noite, quase não dormi, cuidando das amostras e dos documentos das terras. Estou cansadíssimo e com sono. E sempre com receio de que me aconteça qualquer coisa de mal. SACI - Olha, quando quisé descansar um pouco, é só me chamar que eu fico de olho aberto pro sinhô! E agora, escreveu num leu, eu chamo o Jeromi! CARLOS - Está bem. Eu vou procurar descansar um pouco. SACI - Pode ficá tranquilão. Eu vou inté a cozinha, mas não me demoro. Sempre eu tô por aqui mesmo. Quarqué coisa eu tô na ativa. Tchau. Sai CARLOS - Esse amigo vale ouro. Se não fosse por ele, muitas coisas de ruim já teriam acontecido nesta casa. Bem, eu estou mesmo esbaforido. Vou procurar repousar um pouquinho. recosta-se, adormece, música em surdina. Meia luz (MAVRUDIS, 2011: 35 e 36)

Saci atua como o confidente de Carlos, numa cena muito interessante, que

prepara o importante acontecimento do roubo que se seguirá. Através deste diálogo

o público é informado dos últimos acontecimentos da história, como as ameaças da

vilã, por isso o engenheiro não tem descansado e anda muito apreensivo. Saci

promete vigiar seu sono, assegurando que qualquer problema chamaria Jerônimo.

Depois de se retirar, Carlos enaltece o amigo e comenta sobre a importância de sua

presença na casa, no sentido de auxiliar na resolução dos últimos acontecimentos,

então adormece.

Neste momento os vilões aparecem e Saci, conforme prometera, se mantém

atento. Depois de a dupla pegar os documentos, o moleque acorda Carlos e sai para

chamar Jerônimo. Antes de deixar a cena, diz uma fala breve, mas muito engraçada: “Agora é que a tartaruga vai dar pulo”, que indica a possibilidade de desmascarar os

vilões. O cômico desta fala está no pensamento ilógico de uma tartaruga pular e no

fato de apresentar, neste momento de apreensão, esta imagem inusitada.

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A participação de Saci nesta cena é muito importante, primeiro por atuar como

confidente de Carlos e por isso permitir que intenções secretas sejam reveladas para

o público. E em segundo lugar por protegê-lo durante seu sono, cena esta que

possibilita o roubo dos documentos que solucionará a trama mais a frente. É

interessante a característica das personagens cômicas de acompanhar e completar

os acontecimentos da história. Por não serem os responsáveis pelos conflitos

principais, lhes é permitido mais mobilidade e troca de informações entre os núcleos

que compõem a narrativa. Saci trabalha para Maria José, ajuda Carlos e Eunice e

ainda comunica todos os acontecimentos a Jerônimo.

Durante as revelações feitas pelo herói, após o roubo, Saci realiza um

importante contraponto cômico deste momento maior de tensão. E é justamente esta

quebra que aumenta a curiosidade e o impacto dos próximos acontecimentos no

espectador, até o momento da revelação de que Maria José é a ladra e atua junto

com o Coronel. Todos em cena se espantam, o espectador, porém, não se

surpreenderá por se manter onisciente da trama. O que deseja ver é a reação das

demais personagens, diante das revelações, e saber como os vilões serão punidos.

A punição da dupla será a cadeia e o casal de enamorados terão o

consentimento de Dona Sinhá para o casamento, tudo parece se encaminhar para o

final mais justo possível. Neste momento Maria José sai de cena e se mata,

finalizando a peça de uma maneira surpreendente, causando grande impacto no

espectador. Esta é uma característica marcante do gênero melodramático, causar

fortes impressões. Nestes termos se aproxima da relação feita por Eric Bentley do

melodrama com a tragédia:

A compaixão pelo ‘herói’ é a metade menos impressionante do melodrama; a outra e mais impressionante metade é o medo, o temor provocado pelo vilão. Compaixão e temor: foi Aristóteles que, na Poética, fez a conjugação e procurou explicar o efeito total da tragédia nesses termos. (BENTLEY, 1981: 185) Talvez o êxito de um autor melodramático dependa sempre, primordialmente, da sua capacidade de sentir e projetar medo. Sentir deve ser fácil, pois o medo é o elemento em que vivemos. ‘Nada temos a temer senão o próprio temor’ é um slogan nada consolador, visto que o medo é o mais indestrutível de todos os obstáculos. Nisso reside a universalidade potencial do melodrama. (BENTLEY, 1981: 186)

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O fato de Maria José se matar surpreende o espectador e causa um impacto

maior do que se fosse somente presa. Este dado aumenta o temor do público diante

da história, sentimento que no melodrama será mais acentuado do que a compaixão,

segundo Bentley. Mesmo que este gênero não se processe da mesma forma, guarda

semelhanças com a catarse trágica, com o adicional da presença marcante da

personagem cômica. Ao longo da história do teatro mundial encontramos o temor e o

riso, que formam juntos uma combinação bem interessante de características e

particularidades à dramaturgia.

Uma das possíveis razões de o gênero melodramático ter se adequado ao

ambiente circense é por dialogar com emoções antagônicas, presentes nas duas

formas artísticas. Assim como observamos em muitos filmes, em diversos outros

gêneros teatrais e nas radionovelas e novelas brasileiras. O trecho abaixo se refere

à primeira parte dos espetáculos circenses, em que diversos números eram

apresentados alternados com as entradas dos palhaços, mas podemos observar

muita semelhança com a presença da personagem cômica no melodrama:

Ainda hoje, de acordo com Roland Auguet (1974, p.7), somente o espetáculo circense combina e alterna emoções tão antagônicas como a gargalhada descompromissada e o receio aflito diante do possível fracasso do acrobata em seu salto-mortal. O riso e a morte dão ao circo um registro emocional único e contraditório. (BOLOGNESI, 2003: 31)

Percebemos, através deste trecho, que a personagem cômica guarda

semelhanças com o palhaço também no que se refere à recepção e à impressão que

causam no público. Além de serem, geralmente, interpretados pelos mesmos atores,

como já foi mencionado. No Circo Nerino, os palhaços não se apresentavam nas

peças a caráter, tiravam a pintura, nariz e roupa. Mesmo assim eram reconhecidos e

apreciados de maneira análoga ao palhaço por demonstrarem o contraponto ao

sentimento de tensão estabelecido pelo drama, e, no caso do palhaço de picadeiro,

pelos números de risco.

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5 – A MESTIÇA

5.1 – Os autores e a trama

A Mestiça é uma peça de 1950, adaptada do romance de mesmo nome da

autora Gilda de Abreu. Esta escritora foi atriz, compositora, cantora lírica, diretora de

cinema e roteirista. Filha de um diplomata brasileiro e de uma cantora lírica, nasceu

em Paris em 1904 e se radicou no Brasil dez anos depois. Estreou no teatro em

1933 e no cinema em 1936, no papel principal da comédia romântica Bonequinha de

Seda. Em 1938 se casou com o cantor Vicente Celestino e em 1946 dirigiu o marido

no filme O Ébrio, tornando-se a segunda cineasta brasileira. Escreveu seis romances,

dentre eles A Mestiça, que foram adaptados para o rádio, cinema, teatro e circo.

Luciane Margarete Pizoquero, em sua dissertação de mestrado, além de apresentar

aspectos da vida pessoal de Gilda, narra com detalhes sua carreira como

cinegrafista junto com duas outras brasileiras, pioneiras da arte no país.

A versão da peça A Mestiça utilizada para esta análise é a do dramaturgo

Joaquim Silva, encontrado na coletânea organizada por Sula Mavrudis, porém quem

fez a adaptação para o Circo Nerino foi Agenor Garcia, também ensaiador da

montagem. Devido à dificuldade em encontrar este texto no Centro de Memória do

Circo, local onde se encontra todo o acervo do Circo Nerino, optamos por utilizar a

versão mencionada. Segundo consta no livro Circo Nerino, esta foi a obra na qual

Agenor mais se esmerou para produzir, pois escreveu com a intenção de ser

encenada por sua filha, Anita, no papel principal. Devido ao empenho, tornou-se um

grande sucesso de público, sendo reencenada muitas vezes neste circo. Nos dias de

sua apresentação, não havia a primeira parte de variedades, pois a versão de

Agenor tinha dez atos.

Em Maceió, A Mestiça estourou. Quando a temporada estava caindo, anunciávamos A Mestiça e era como se estreássemos de novo. Mas, quando não deu mais para disfarçar a barriga da segunda gravidez de Anita suspendemos a peça. Aí o povo foi para as rádios pedir para a gente reprisar A Mestiça. Nós explicamos que não era possível porque a atriz estava grávida. E o povo disse que não tinha importância, que ninguém

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reparava nesse detalhe. Então, já que o povo não se importava, continuamos a levar a peça com a mestiça barriguda mesmo. E olha que não era só ela, a Ayola, que fazia a mocinha, a Mimosa, também estava grávida, grávida de gêmeos. (AVANZI e TAMAOKI, 2004: 207)

Esta história retrata o enorme sucesso de bilheteria e o diálogo estreito que

estabelecia com o público, por isso era reprisada muitas vezes ao longo da

temporada. As personagens eram conhecidas, devido ao sucesso do romance,

inclusive a música que o feitor canta para a escrava era muito famosa na época.

A Mestiça era uma peça que agradava inteira. Eram dez atos que eram dez atos vividos mesmo, e a plateia vibrava. E tinham outras peças também que... Mas não tem como, a Mestiça eu acho que ela foi a maior evolução do Nerino com o teatro, a Mestiça foi nota dez. (...) Pela encenação, pela apresentação, pelo desempenho dos artistas, foi muito bom. Principalmente a dona Anita como Mestiça, né? Todos os personagens foram muito bons, porque a mãe do Roger fazia a dona da fazenda, o irmão fazia o marido dela, tinha um outro que fazia a filha, e tinham muitos outros personagens. E todos estavam muito bem entrosados. (Entrevista com Walmir dos Santos realizada em 04/02/2015)

Percebemos o resultado do trabalho de Agenor através da reação e recepção

do público, além do mencionado entrosamento entre os atores. Após o nascimento

da filha de Anita e Roger, o retorno da puérpera ao circo foi uma grande atração,

comentada por Walmir nesta mesma entrevista. O circo estreara em Fortaleza, mas

ela ainda não havia se apresentado na cidade, quando entrou pela primeira vez em

cena os espectadores não paravam de aplaudi-la. Tanto assim que encenaram a

peça durante a semana seguinte inteira e todos os dias encheram as arquibancadas!

Em uma foto do cartaz da peça (AVANZI e TAMAOKI, 2004: 208), percebemos se

tratar de um grande sucesso de público também através da maneira de o circo tratar

o espetáculo: “Atendendo ao pedido geral apresentará em formidável reprise o maior

cartaz do momento, a peça que alcançou o retumbante sucesso em suas primeiras

exibições: Um diabo de saias vermelhas que derrubou as barreiras da escravidão. ”

A trama aborda a escravidão no Brasil em uma época – década de 50 – de

abertura para esta temática e início de conquistas sociais dos negros no Brasil e no

mundo. O texto apresenta um sentimento de compaixão com os escravos, gera uma

identificação, e reflexão por mostrar o lado opressivo do tratamento que eles

recebiam. O mote de todas as cenas, mesmo com a existência de um conflito

amoroso, é a relação dos senhores com seus escravos. As vilãs da trama, Dona

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Maria e Mimosa, enquadram-se neste grupo devido ao modo como tratam os

empregados da fazenda. Em contraposição, o marido de Dona Maria, Gonçalves, e

o feitor são as personagens defensoras dos escravos e, por isso, pertencem ao

núcleo do bem.

A Mestiça é uma escrava mulata, filha de um homem branco com uma mulher

negra, porém desconhece quem seja seu pai e sua mãe já falecera, somente conta

com seu avô, Pai João. A paternidade será insinuada em diversos momentos da

peça e haverá um grande mistério em torno dela, sendo desvendada somente no

último ato. Neste momento, o fato de ela não ser escrava a livra de pertencer a

Tinoco e lhe permite casar com Luiz. Mestiça é uma moça extremamente envolvente

com os homens, conquista todos que a rodeiam, inclusive muitas personagens

comentam sobre o fato de seus encantos serem ardilosos. Costumam exemplificar

mencionando o suicídio do antigo feitor, devido ao amor não correspondido da jovem.

A história se passa na fazenda de Gonçalves, um senhor de engenho

diferenciado por tratar os escravos com respeito e dignidade. Logo na abertura da

peça, sua esposa e filha participam de duas situações em que oprimem Rosinha,

escrava que trabalha para as duas, e Tico-Tico, moleque pretinho e personagem

cômica do texto. Gonçalves faz o contraponto deste tratamento agressivo e defende

Tico-Tico, protegendo-o de levar o castigo imposto por Dona Maria. Esta situação

apresenta de antemão o mote que será desenvolvido ao longo de todo o texto – o

tema escravagista –, sendo esta uma característica marcante das peças

melodramáticas e também do circo-teatro brasileiro. Desde o primeiro ato os

espectadores estarão conscientes das principais problemáticas e já conhecerão

cada personagem da trama.

Amâncio, outro escravo, aparece em seguida e atua em parceria com Dona

Maria, responsável por executar os seus planos. Logo nas primeiras cenas, sua

dona lhe promete a alforria caso desapareça com a Mestiça, de quem sente imenso

ciúme, e prontamente ele aceita a proposta. Através de algumas falas deste ato,

percebemos em Amâncio o caráter de intriga e perturbador da ordem, que o fará agir

de maneira inescrupulosa ao longo da trama.

Luiz, o feitor da fazenda, filho de um amigo de Gonçalves, é outra

personagem apresentada neste ato. Ele é o galã da peça, um homem justo que trata

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os escravos bem. Filho do amigo de Gonçalves (no começo esconde sua identidade

para poder trabalhar na fazenda, dizendo-se afilhado do amigo e não filho), veio

para desempenhar o cargo de feitor, e assim aprender a administrar terras. Querem

casá-lo com Mimosa, porém a Mestiça é uma moça mais atraente, que rapidamente

desperta a atenção do rapaz.

Outro homem enamorado da escrava é o Mascate, vendedor ambulante das

redondezas. Ele sempre passa na fazenda para ver Mestiça e ela se aproveita dessa

situação para lhe pedir alguns presentes. As principais personagens motivadoras da

ação são apresentadas neste ato, e a última a ser introduzida é Pai João, um

escravo mais velho, muito experiente e sábio. Ele apresenta um contraponto

dramático da relação dos escravos com os senhores e narra alguns aspectos da

história da escravidão. É o avô da Mestiça que, junto com Gonçalves, guarda o

segredo da paternidade da escrava.

O primeiro ato é o mais longo da peça: aponta as situações que se

desenvolverão ao longo do espetáculo através de pequenos conflitos. A escrava

principal, entretanto, aparece pouco, apenas em três rápidos momentos, porém

sabemos muito a seu respeito através dos comentários das outras personagens.

Este ato serve para introduzir os principais tipos e situações da trama, através da

opressão do tratamento recebido pelos escravos e do encantamento que a Mestiça

gera nos homens. Podemos ter uma ideia de como era representada esta atraente

personagem no Circo Nerino, interpretada por Anita Garcia. É interessante reparar

que nesta montagem a Mestiça não usava qualquer maquiagem na pele e mantinha

a cor branca da atriz, como podemos observar na foto abaixo:

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Figura 10 - Anita Garcia caracterizada como Mestiça.

Fonte: Acervo pessoal de Walmir dos Santos

Observamos que o cenário desta foto é tridimensional (inclusive com um

cavalo real) e, portanto, não foi tirada ao longo da apresentação, uma vez que o

cenário era bidimensional, como poderemos ver na descrição cenográfica descrita

mais a frente. O segundo ato é mais dinâmico e rápido, intensifica as ações e

problematiza os conflitos com o desaparecimento da Mestiça, ao final. No começo,

ela quebra um vaso de Dona Maria, e Rosinha, que vira tudo, conta para a dona. No

momento de ser castigada, o feitor a defende e assume a culpa do ocorrido, dessa

forma Mariaé obrigada a voltar atrás no castigo. Esta situação sugere que Luiz já

esteja enamorado pela atraente escrava, apesar de negar quando indagado por Pai

João. Em seguida, Mimosa o convida para tomar um café, mas o feitor, por não ter

interesse algum na moça, recusa. Contrariada e enciumada, Mimosa chama

Amâncio e lhe ordena que leve a escrava para o cafezal e a impeça de voltar. O ato

termina com o suspense do rapto, porém Tico-Tico, amigo da Mestiça e personagem

cômica da peça, assiste ao ocorrido e segue os dois até o esconderijo.

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O terceiro ato ocorre no mesmo dia, à noite, quando Pai João percebe o

sumiço da neta. Ele avisa Gonçalves e Luiz, que prontamente se dispõem a procurá-

la, e o feitor pede ao moleque pretinho para lhe levar ao local do esconderijo. Ele

hesita um instante, pois fora ameaçado por Amâncio, mas, diante da proteção

prometida, aceita ajudá-lo e os dois saem de cena. Voltam com a menina nos braços,

muito machucada e prostrada, repousam-na em uma cadeira e buscam ajuda de um

médico da região. Na foto a seguir aparecem Roger segurando Anita nos braços,

ilustrando esta passagem da peça.

Figura 11 - Feitor e Mestiça Fonte: Acervo pessoal de Walmir dos Santos

Luiz revela na frente de todos que Mimosa fora a responsável pelo ocorrido e

manda acordá-la, porém o socorro da escrava se mostra mais urgente. Gonçalves

manda, a contragosto da esposa, Rosinha arrumar o quarto de hóspedes para

repousar e medicar adequadamente a Mestiça. Dona Maria não entende o motivo da

acusação do feitor e pergunta para a filha o que aconteceu, então ela lhe confessa

que mandou Amâncio levar Mestiça para o cafezal, mas não lhe dissera para

maltratá-la. Gonçalves, muito aborrecido, ameaça chicotear o escravo quantas vezes

forem os dias em que Mestiça ficar acamada.

O quarto ato se passa depois da recuperação da moça, neste momento novos

dados são acrescentados à trama, inclusive a partir da apresentação de duas outras

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personagens. No começo, Pai João entrega um par de brincos de prata a Mestiça,

dado por seu pai, quando soube de seu nascimento. Em seguida, Gonçalves

encontra o velho escravo e, durante uma conversa íntima, lhe confia os documentos

que comprovam quem são os pais da escrava. Ele tem o receio de sua esposa

descobrir a verdade sobre a paternidade, porém não deixa claro quem seja o pai.

Amâncio espreita a conversa e, após o escravo guardar os papéis em um baú,

rouba-os para chantagear o dono.

Este momento é interrompido pela chegada de Branca, comadre de Dona

Maria, e Tinoco, seu filho. O rapaz tem interesse em se casar com Mimosa, devido a

sua posição social, apesar de demonstrar desejo e admiração pela escrava. Tinoco,

ao encontrar com Luiz, reconhece-o dos bailes da corte em que os dois eram rivais.

Quando ficam sozinhos em cena, falam sobre Mestiça e percebemos ainda haver

uma concorrência entre os rapazes. Neste diálogo, o feitor não admite gostar da

moça e aposta dois bois que fará ela se apaixonar por ele. Ao final desta conversa,

Tico-Tico, que ouvira tudo, sai do esconderijo e vai contar para a amiga.

Ela se aborrece muito com a história e diz que não permitirá a concretização

desta aposta, mesmo que ele use da agressividade para forçá-la. Em seguida,

encontra o feitor, que tenta agarrá-la, mas ela se desvencilha e foge do moço. Pai

João surpreende este encontro e novamente alerta Luiz sobre o perigo dos

encantamentos de Mestiça, pois simpatizara com ele e não gostaria de vê-lo sofrer.

Ao final desta conversa, pela primeira vez, Luiz assume que talvez o escravo tenha

razão sobre seus sentimentos e depois sai de cena.

Gonçalves aparece e Pai João lhe revela que os documentos foram roubados.

Amâncio surpreende este diálogo, diz que os papéis estão com ele e ameaça

entregar para Dona Maria, caso Gonçalves não permita o casamento dele com

Mestiça. A escrava, entretanto, não deseja esta união e, para defendê-la, Pai João

tem o impulso de resolver esta situação a sua maneira. Então, no cafezal, mata

Amâncio e pega os documentos. Esta cena não ocorre no palco, o público tem

conhecimento dela através da notícia trazida por Tico-Tico. Todos se mobilizam para

descobrir o assassino e Luiz reúne os escravos, porém nenhum deles assume a

responsabilidade da morte. Ao final deste ato, Pai João confessa a Gonçalves e lhe

entrega os documentos recuperados. Podemos dizer que a morte do escravo é bem

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vista, e até mesmo desejada, pelo público, pois esta personagem não é carismática

e sempre age visando o infortúnio dos heróis.

O próximo ato ocorre durante a festa de aniversário de Gonçalves e Mestiça

dança com os brincos de prata que seu avô lhe entregara. Mimosa lhe arranca os

brincos e a chama de ladra, pois diz ser a dona da joia. Ela nega veemente a

acusação e fala que o Pai João foi quem lhe dera o presente. Para confirmar, Luiz

pede para Rosinha verificar se Mimosa teria outro par igual no seu quarto, porém a

escrava diz não encontrar. Dessa forma, Pai João deve ir para a cadeia e o feitor é

quem vai levá-lo. Mestiça lhe pede encarecidamente para ele não fazer isso com seu

avô, porém, devido às circunstâncias do roubo, Luiz é obrigado a agir desta forma.

No ato seguinte, o encontro de Mestiça com o feitor não é nada amistoso, pois

ela está muito chateada com a atitude dele. Durante este breve diálogo, Tico-Tico se

mantém escondido e, com a saída de Luiz, aproveita para aconselhar a amiga a não

agir desta forma, pois o feitor é quem pode soltar seu avô. E ainda complementa que

ela parece estar gostando do rapaz, Mestiça fica desconsertada com o comentário.

Com a saída de Tico-Tico, o feitor volta à cena e a escrava lhe pede desculpas pelo

tratamento dispensado, diz que lhe quer bem, então ele, animado com a mudança

de ânimo, lhe pede um beijo e ela consente. Novamente Tico-Tico observa

escondido e não controla uma risada diante do que vê, dessa forma deixa Luiz

embaraçado que sai de cena. Na foto seguinte temos representado o casal de

amantes em um momento de entrosamento e receptividade, como este da cena

descrita.

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Figura 12 - Mestiça e Feitor Fonte: Acervo pessoal Walmir dos Santos

O Mascate entra em seguida e Mestiça lhe entrega um pacote de dinheiro e

diz que fugirá com ele. Ao final da conversa lhe dá um beijo e desta vez quem

observa escondido é o feitor. Ele fica enfurecido com a moça e ameaça matá-la, mas

não tem coragem e sai de cena esbravejando. Tico-Tico, que novamente observava

tudo, pergunta para a amiga o que ela fez para o moço agir desta forma. Então ela

lhe conta seu plano: o pacote que entregara para o Mascate é um dinheiro que

Gonçalves deu para Luiz guardar, ela pretende incriminá-lo para vingar a prisão de

seu avô. O moleque pretinho, então, briga com a amiga e lhe conta que Luiz já

soltara Pai João da cadeia. Mestiça se desespera diante de sua atitude e não sabe

como solucioná-la, neste momento é interrompida pela entrada do Mascate. A moça

diz que não vai fugir e pede o dinheiro de volta, mas como ele não quer lhe entregar,

ela dissimula e resolve ir com ele para recuperar o pacote.

Em seguida todas as personagens estão em cena, pois Pai João voltara para

a casa e é recebido com muita comemoração e alvoroço. Maria indaga o motivo da

soltura e Luiz conta que Tico-Tico revistara o quarto de Rosinha e achara os brincos

de Mimosa dentro do pinico. Depois de recuperar a joia, o feitor pede ao velho

escravo que entregue os brincos à neta e, neste momento, Tico-Tico revela que ela

fugira com o Mascate. Todos ficam admirados e indignados por esta atitude,

principalmente o galã, que há pouco reconhecera sua paixão. Por ser o feitor da

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fazenda ele é obrigado a procurá-la, entretanto não deseja encontrá-la, tamanha é

sua raiva.

O ato seguinte começa com uma conversa entre Branca, Dona Maria e

Gonçalves sobre os últimos acontecimentos, porém são interrompidos por rumores

de fora da cena, pois Mestiça fora encontrada na beira do rio. Para castigá-la, o feitor

lhe amarra no tronco e ameaça chicoteá-la, porém não tem coragem de realizar

tamanha brutalidade e sai de cena. Na foto abaixo vemos uma ilustração deste

momento, através da ameaça do feitor com seu chicote.

Figura 13 - Feitor e Mestiça Fonte: Acervo pessoal de Walmir dos Santos

Mestiça pede para Tico-Tico levar o dinheiro de volta para o lugar de onde ela

tirou. Em seguida, Dona Maria pede para o feitor cantar uma música e ele entoa uma

canção que retrata seu amor e desilusão pela amada.Os amantes conversam e ela,

ainda amarrada no tronco, pede perdão a Luiz, porém ele está muito ressentido e

não aceita ouvi-la. Ao sair de cena o Mascate aparece e ela pede para ele contar a

verdade ao feitor, mas ele não quer perdê-la e diz que mentirá. Luiz estava

escondido e ouviu toda a conversa, então solta Mestiça do tronco e decide se casar

com ela. Pergunta a Gonçalves o preço da escrava, então ele, na frente de todas as

personagens, diz que lhe dará. Tinoco, entretanto, contesta, alegando que vai se

casar com Mimosa e por isso tem direito à metade dos escravos da fazenda, mas

que só deseja ficar com Mestiça.

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Pai João confessa que a escrava é sobrinha de Dona Maria e pede a todos

que a deixem ser feliz. Gonçalves então é obrigado a revelar que a moça era filha de

seu irmão e, por isso, alforriada desde pequena. Em seguida pergunta o que ela

deseja de presente, e Mestiça pede para ficar com Tico-Tico. Ele, desbocado, de

acordo com o seu tipo, pergunta se pode pedir um presente também, e diz que quer

comprar Rosinha. Ao final deste diálogo, e da peça, as quatro personagens deixam a

fazenda: Mestiça acompanhada do feitor e Tico-Tico montado a cavalo em Rosinha.

A versão, utilizada para análise, tem sete atos e termina com a saída dos

casais, porém a escrita por Agenor tem mais três, totalizando dez atos. O final da

peça encenada pelo Circo Nerino era mais elaborado, através da realização do

casamento entre Mestiça e o feitor com todas as personagens em cena. Até mesmo

Tico-Tico ganhava, neste momento, um grande destaque, a partir do figurino

proposto pelo ensaiador. Como podemos observar no trecho que segue:

Só a Mestiça que nós não tínhamos a primeira parte, porque eram dez atos.(...) A Mestiça terminava ali no casamento. A última cena era o casamento e ficam ali, o Roger, a Mestiça vestida de noiva, o Tico-Tico e o pessoal, os escravos, ficavam tudo ali em volta. Agora, para você ver, o circo acabou faz cinquenta anos, para mim já é um pouco distante. (risos) A memória. A memória está longe. (...) O Tico-Tico tinha muitas cenas bem agradáveis, bem dinâmicas. Por exemplo, no final do Tico-Tico, a festa, o casamento. Porque tinha o casamento do feitor com a Mestiça. Ele aparecia de fraque, cartola, era uma encenação assim que era orientação do próprio autor. Ela de noiva, o feitor de noivo e o Tico-Tico era como se fosse o... Como que chama? Como se fosse o pajem, de cartola, de casaca, sapato branco. (Entrevista realizada com Walmir dos Santos em 04/02/2015)

5.2 - Escravos e senhores

Esta peça tem como tema a escravidão no Brasil, a partir da ótica

convencional, dos senhores, porém apresenta uma posição a favor dos escravos,

revelando a condição subalterna, de castigos e maus tratos, a que estavam sujeitos.

Busca despertar um olhar de compaixão e gerar uma identificação que nos faz

repensar a relação entre as diferentes classes sociais e raciais, em um momento

posterior à abolição da escravatura. Mesmo sem haver mais o tipo de relação,

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senhor-escravo, narrada na peça, em 1944, momento de criação do romance por

Gilda de Abreu, havia um grande preconceito racial no Brasil. Principalmente devido

ao fato de os negros, geralmente, pertencerem a uma classe social mais

desfavorecida, por conta da inadequada incorporação desses indivíduos na

sociedade após abolição.

O censo de 1950 permite algumas comparações entre as condições de vida e

de trabalho de negros e brancos da população brasileira. Enquanto os primeiros

dificilmente integravam a classe patronal (4 empregadores para mil empregados

negros), os brancos eram os dominantes nesta área. Dos 4 milhões de negros

maiores de dez anos, apenas 20 mil estavam empregados. Os brancos, além de

deterem grande parte do trabalho assalariado, também possuíam a maioria das

propriedades (86 mil, na época), sendo muitos deles imigrantes vindos ao Brasil

algumas décadas antes do censo em questão.17

Nesta época, os movimentos sociais negros progressivamente se articulavam

nos grandes centros visando melhorar esta conjuntura. Um marco é a fundação, na

cidade de São Paulo, em Dezembro de 1954, da Associação Cultural do Negro

(ACN). Percebemos, dessa forma, uma preocupação em minimizar as discrepâncias

culturais e sociais, visando criar condições igualitárias para todos os brasileiros, além

de lutar contra o preconceito racial, marcante neste período.

Conforme aponta Miriam Garcia Mendes na sua pesquisa que resultou no livro

A personagem negra no teatro brasileiro, entre 1838 e 1888, no século XIX, com o

surgimento de uma vida teatral urbana mais ampla e elitista, o negro, que tinha

participação no teatro popular, passou a ter um lugar limitado na cena brasileira

oficial. No século anterior, era comum atores negros se apresentarem nas casas de

espetáculos, geralmente pintando o rosto de branco. Nesta época havia muito

preconceito com a profissão de ator, julgada desprezível pelas camadas sociais

superiores. Com a vinda da família real portuguesa para o Brasil, companhias

estrangeiras foram ganhando espaço e o ofício do artista cênico mudou de

configuração. De maneira que possibilitou o surgimento no século XIX de um ator

como João Caetano, interessado em “fundar um teatro nacional”.

17

Dados tirados do livro O povo brasileiro de Darcy Ribeiro,p. 231.

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Neste momento a participação do negro nos palcos dos edifícios teatrais

diminui consideravelmente, lhe restando majoritariamente os tipos que integram a

dramaturgia da época e os espaços mais populares de representação. Os tipos que

apareciam em algumas peças teatrais da época reproduziam os estereótipos da

sociedade escravista, sob o olhar dessa elite branca do período. As histórias mais

otimistas para este grupo eram os dramas abolicionistas e/ou realistas, que

defendiam sua liberdade numa época de transformações sociais. No final do século

XIX e começo do XX, principalmente no Rio de Janeiro, eram encenadas, nos

edifícios teatrais, as comédias de costumes cujo enredo gira em torno de

personagens, geralmente pertencentes a uma classe social mais abastada ou

mediana, que conversam e convivem dentro de um ambiente privado, como uma

sala de estar. Os tipos sociais recorrentes desfilavam e se relacionavam sob o julgo

do público, ávido em acompanhar suas peripécias.

E a hábil carpintaria teatral dos dramaturgos, sem muito esforço, como se trabalhassem receitas conhecidas, produzia peças que causavam um sucesso garantido. Pois, no fundo, o que elas faziam era exaltar os valores da classe média, pequeno-burguesa, então reivindicando seus direitos também no cenário político social brasileira, através dos movimentos armados do Tenentismo, cujo lema era Representação e Justiça... mas nada de transformações sociais... Como textos dramáticos, as peças eram fracas e careciam de valor artístico, coisa sensível a uma simples leitura. Mas funcionavam no palco e o sucesso que faziam possibilitou, pela primeira vez, a autores nacionais viverem só de escrever para o teatro. Além disso, procuraram criar uma linguagem de palco brasileiro, expressiva e coloquial, já apelando para a gíria e mistura de pronomes, quando necessário; inovação que seria largamente aproveitada no futuro. (MENDES, 1993: 21)

Embora seja altamente discutível a afirmação de Mendes de que as peças “eram fracas e careciam de valor artístico”, a própria autora destaca os pontos altos

deste tipo de dramaturgia. Eram textos que se completavam com a interpretação dos

atores e valorizavam vários aspectos da encenação, o que causava grande

admiração nos espectadores. A personagem negra, neste contexto, aparecia como

escravo ou empregado, pertencente a uma classe social inferior que costumava

servir as demais personagens.

Os tipos que encontramos na peça A Mestiça (como o negro velho - Pai João,

o moleque -Tico-Tico, as mulatas - Rosinha e Mestiça) são recorrentes na comédia

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de costumes e no circo-teatro da época. Esta semelhança dramatúrgica revela a

mistura e diálogo que sempre houve entre o circo e o teatro. Havia, e ainda há, o

intercâmbio incessante entre autores e dramaturgia, e também de artistas,

principalmente atores, que se apresentavam nos dois ambientes.

O espaço ocupado pelo negro no contexto artístico do começo do século XX,

especialmente das peças encenadas nos edifícios teatrais, era de um serviçal,

representado por um empregado, responsável pela parte cômica do texto, a mulata

sensual que desperta a atenção masculina, a criada espevitada, o negro velho que

representava o peso da idade, através de sua sabedoria e conhecimento. Nas peças

variavam os nomes e as características específicas, porém, de maneira geral, eram

esses os estereótipos apresentados, os quais se ligam diretamente à herança da

escravidão, embora no começo do século XX está já tivesse sido abolida há pouco

mais de sessenta anos.

Um exemplo de texto dramatúrgico que aparece um dos tipos citados acima é

a peça O Dote de Artur Azevedo, escrita em 1907. Pai João, como também é

chamado, atua quase como um figurante, responsável por apresentar ao público

momentos de emoção e enternecimento pelas atitudes carinhosas com o seu patrão.

Além de ter o mesmo nome, se assemelha muito com Pai João de A Mestiça, com a

diferença de a primeira peça se tratar de um ex-escravo e a segunda ainda se

passar durante a escravidão. Pai João do circo-teatro tem uma relação próxima com

seu senhor, porém o que irá gerar a emoção no espectador não serão os cuidados e

carinhos dispensados nesta relação, mas sua narrativa de um passado cruel e

desumano, desde sua saída da África até a sua atual situação de escravo. Ele terá

uma participação mais relevante e ativa do que na peça de Artur Azevedo,

protagonizando algumas situações dramáticas relevantes para o desenvolvimento do

enredo. Percebemos, através destes dois exemplos, que este era um tipo recorrente

na literatura brasileira: o velho que, a partir de sua experiência de vida, representa o

passado cruel e desumano de muitos africanos e por isso deflagra os abusos

ocorridos durante a escravidão.

Rosinha e Tico-Tico também representam tipos recorrentes na literatura da

época: da empregada encrenqueira e do moleque cômico. Ambos exercem uma

participação relevante para a obra, complicando-a e articulando determinadas

situações cênicas, sobretudo porque nesta peça o principal pano de fundo para a

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narrativa serão os escravos. Em relação à Tico-Tico mais a frente detalharemos as

cenas que participa e comentaremos sobre a construção de sua figura.

Mestiça também desempenha um tipo comum da literatura: a mulata sensual

e decidida que desperta a atenção e admiração masculina. Benvinda de A Capital

Federal de Artur Azevedoe Felisberta de Direito por linhas tortas de França Júnior

são dois exemplos deste tipo recorrente no teatro brasileiro. Elas ilustram uma

maneira de olhar para a mulher negra, jovem e bonita, valorizando seus atributos

sexuais e sua exuberância corporal. Benvinda é um tipo social mais esmiuçado do

que Felisberta por apresentar uma complexidade maior, ao buscar uma

independência e liberdade que, mesmo após de abolida a escravidão, ainda não

havia sido conquistada pela maioria. Dessa forma, ela desempenha um tipo que se

diferencia da subordinação esperada e apresenta à narrativa questões sociais

relevantes do negro na sociedade. Assim como Mestiça que, apesar de ser

exaustivamente galanteada por todos, também demonstra certa autonomia e muita

esperteza ao lidar com os homens que a cercam. É uma escrava cujas decisões e

escolhas são marcantes, por ser uma mulher de personalidade que arma artimanhas

para conseguir o que deseja, mesmo ainda subordinada a Gonçalves.

Esta peça lida com a lacuna social referente à relação patrão-escravo,

colocando em questão um assunto tão relevante para o público, como o tratamento

dos brancos para com os negros. Mestiça, personagem central da narrativa, é fruto

da mistura entre o homem branco e a escrava negra, gerando a atraente mulata,

conhecida por despertar a atenção dos homens. Segundo Nubia Hanciau18

, a

mulata é um tipo representativo na literatura brasileira e no teatro, cuja presença

costuma despertar alguns estereótipos relativos à mulher: vista como exótica, bela,

alegre, solidária, dotada de irresistível sensualidade, hábil cozinheira, com vocação

para a música, canto e dança. Através dela, percebemos que a autora do romance

criou um meio termo entre o negro, geralmente alvo de preconceito, e o branco

purista, que nega e encara como negativa qualquer mistura racial, comum em um

país como o Brasil. Darcy Ribeiro comenta em seu livro O povo brasileiro sobre a

mistura social existente, que apresenta um contraste intrigante:

18Em um artigo publicado In Cadernos Literários, vol. 7, 2002. Pela Universidade Federal do

Rio Grande.

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Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os suplicou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto da nossa fúria. (RIBEIRO, 1995: 120)

Este trecho integra o final do subcapítulo intitulado Os afro-brasileiros,em que

o autor aborda as questões desde a chegada dos negros no país até sua adaptação

e aculturação. Em nossa sociedade há uma mistura contrastante social, racial e

ideológica de povos tão díspares unidos na fundação do país com objetivos,

especialmente, trabalhistas. A peça tematiza esta fusão, através da personagem

Mestiça, e apresenta algumas nuances desta mistura cultural, demonstrando grande

destaque para os tipos de trabalho e posições sociais.

No meio do século XVI, para incrementar a produção açucareira, os negros

eram trazidos da África como escravos e, apesar de não participarem da construção

cultural dominante, encontraram brechas e a influenciaram de forma impactante. Na

África, havia muitos dialetos e os escravos que aqui chegavam pertenciam a tribos

diferentes, muitas vezes inimigas, e os que eram da mesma origem ficavam

separados como medida preventiva de futuras organizações rebeldes. Ao chegarem

às fazendas de cana, eram destinados aos trabalhos braçais mais pesados, tanto

assim que sua expectativa de vida ativa era de sete a dez anos.

A diversidade linguística e cultural dos contingentes negros introduzidos no Brasil, somada a essas hostilidades recíprocas que eles traziam da África e à política de evitar a concentração de escravos oriundos de uma mesma etnia, nas mesmas propriedades, e até nos mesmos navios negreiros, impediu a formação de núcleos solidários que retivessem o patrimônio cultural africano. (RIBEIRO, 1995: 115)

Os ideais dos senhores e aquilo que fosse compatível aos seus interesses era

a predominância, apesar disso, a identidade e valores dos negros sobreviveu como

uma cultura de resistência e, inclusive, de revolta. Darcy Ribeiro comenta que os

negros e índios conseguiram permanecer humanos dentro de um processo de

desfazimento de si e de autoconstrução, para absorver esta nova cultura e se

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integrar a esta verticalizada sociedade. Este processo gerou uma nova cultura, que

chamamos de brasileira. Muitos escravos conseguiam se incorporar de alguma

forma a nova sociedade, entretanto havia os que preferiam a morte ou a fuga. O

suicídio era muito frequente e a fuga era tão temerária porque quase sempre

resultava mortal.

A peça em questão aborda este aspecto, através da fuga da Mestiça com o

Mascate, porém o castigo recebido está muito aquém da realidade, provavelmente

em decorrência do amor que o feitor já demonstrara sentir. As penas para a

desobediência e fuga variavam entre “mutilações de dedos, do furo de seios, de

queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados criteriosamente, ou dos

açoites no pelourinho, sob trezentas chicotadas de uma vez, para matar, ou

cinquenta chicotadas diárias, para sobreviver.” (RIBEIRO, 1995: 120). Todos estes

castigos deixaram marcas profundas neste povo e em nossa sociedade, com as

quais a peça lida de alguma forma.

O trabalho escravo é apresentado através da perspectiva dos senhores,

principalmente porque nenhuma cena se passa na lavoura ou senzala. As fotos

anteriores eram ambientadas na lavoura, entretanto este não era o espaço de

encenação da peça circense no Circo Nerino. É interessante que, apesar de discutir

alguns pontos da condição do escravo, todas as cenas se passam na casa grande,

dessa forma, terão destaque os negros mais vinculados a este ambiente. Em apenas

uma cena há menção aos que trabalham na lavoura, quando Maria e Mimosa

reclamam de ouvir a canção que entoavam durante o trabalho. Neste momento,

Amâncio é convocado a reprimir os escravos, chama-os de cachorrada e lhes bate

com o chicote. Esta atitude é ainda mais terrível, porque ele age contra seu grupo e

semelhantes sem nenhuma piedade. Os escravos tinham que trabalhar

exaustivamente, como é descrito por Pai João em um diálogo com o feitor, além de

serem coibidos de se expressar através de uma canção, que exteriorizava a revolta

que sentiam por sua condição e exploração.

Mestiça também é tolhida quando, ao dançar durante a festa de Gonçalves,

Mimosa arranca os seus brincos e lhe chama de ladra. Somente nesta ocasião, uma

vez ao ano, conforme sublinhado por Pai João em uma conversa com Tico-Tico, os

escravos podem se divertir e expressar um pouco sua cultura. Entretanto a escrava

desperta a admiração e o interesse masculino, do mascate, de Tinoco (que renuncia

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a fortuna do dote para ter a Mestiça) e principalmente do feitor. Por isso Mimosa,

enciumada, interrompe bruscamente a exibição e lhe constrange sobremaneira,

acarretando, ao final deste ato, a prisão inocente de Pai João. A canção e a dança

são expressões comuns da retalhada cultura africana, porém são apontadas apenas

nestes dois momentos.

Mesmo que exista esta tônica na temática das narrativas, tanto do circo

quanto do romance, não havia o caráter de engajamento político que preconiza uma

mudança social. O circo, através de suas dramaturgias, questiona alguns pontos da

ordem vigente, porém sem desestabilizá-la totalmente, por não falar diretamente das

questões sociais mais delicadas. A história tematiza (dentro de um contexto de

escravidão, portanto remoto em relação ao tempo da encenação) a situação

complexa do negro no Brasil, em um momento social em que ainda havia muito

preconceito para com este grupo.

Nessa época existia muito preconceito. Hoje até ainda tem pessoas preconceituosas, também conta, né? Mas no índice melhor, porque já houve muito debate sobre isso condenando esse tipo de preconceito. Aliás, hoje estão condenando qualquer tipo de preconceito. Mas o preto era um preconceito muito acentuado, né? Moira- E você acha que a peça discutia isso de alguma maneira? Walmir- Não, acredito que não. Não, porque a Mestiça era filha de uma escrava com um senhor. E ela era muito benquista no meio da família, né? (Entrevista realizada com Walmir dos Santos em 04/02/2015)

Para Walmir dos Santos, e talvez para o público, o enfoque maior estava na

personagem Mestiça, sua relação com o feitor e com os familiares, por isso não via a

preponderância da discussão citada acima. Inclusive a Mestiça era representada,

nesta peça, com a cor branca da atriz, a qual não utilizava qualquer pintura como os

demais escravos. Isto a destacava e reforçava o enfoque principal da narrativa.

Entretanto, se analisarmos a história como um todo perceberemos que a temática

dos escravos está presente, mesmo que não proponha nenhuma mudança social

significativa.

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5.3 – A recriação do romance para o palco

Apropriar e recriar filmes, livros, radionovelas, músicas, mais populares e

transformá-los em peças teatrais era um procedimento comum nos circos brasileiros.

A mudança ocasiona algumas modificações necessárias à forma artística, como, no

caso analisado, do romance para a dramaturgia. A primeira cena da peça é bastante

ilustrativa para comentar as diferenças entre as formas artísticas e pode nos ajudar a

compreender um pouco o trabalho do dramaturgo Joaquim Silva sobre o romance de

Gilda de Abreu. A peça se inicia com a seguinte cena:

MARIA e MIMOSA bordando, entra ROSINHA ROSINHA-entrando com terrina de mingau - Nhanhá Maria, aqui tá a canjiquinha. Tá gostosa que inté faiz água na boca da gente. MARIA- Espera! Como é que você sabe que está gostosa? ROSINHA- Uai. Eu ponhei o dedo drento e porvei. MARIA-empurrando-a - Negrinha descarada... ROSINHA-chorando - Eu... não ponhei o dedo drento não! Eu só lambi a beradinha. MARIA- Negrinha sem vergonha... você vai tomar uma surra de chicote, sua coisa à toa. Suma daqui. Rosinha sai Esta negrinha está ficando insuportável. MIMOSA- A culpa é sua mesmo, mamãe... a senhora lhe dá certas liberdades. (MAVRUDIS, 2011: 10)

Esta cena, no romance, ocorre após a apresentação de Luiz, de seu pai e da

situação em que se encontram: inclinado a administrar as terras paternas, o rapaz é

indicado a se tornar o feitor de um amigo da família, como forma de aprendizado.

Luiz é a personagem escolhida pela autora para narrar o romance. É interessante

observar, nesta passagem, o recurso utilizado por Gilda de Abreu para explicitar o

caráter das personagens, através da descrição das vozes. Nessa passagem o feitor

acabou de chegar à fazenda e observa as personagens de longe, por isso, a voz

será responsável por revelar as características de cada uma. Antes da fala de Rosinha, por exemplo: “A voz da negrinha, chegou clara.” (ABREU, 1966: 54) e

Maria: “A voz da dona da casa fez-se ouvir... voz áspera, voz de quem está

acostumada a mandar e ser obedecida. Voz que lembrava o estalar do chicote...” (ABREU, 1966: 54).

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No teatro, as características descritas pelas vozes ficam a cargo do ator,

através da entonação, características físicas e composição da personagem. A

interpretação pode ser diferente da narração de Gilda, porém dialogarão com as

características gerais daquela figura. As falas de cada uma, entretanto, mantêm-se

de uma forma artística para outra, a mudança maior ocorre na maneira de narrar as

situações.

Depois de afirmar ter provado a canjica, Rosinha é descrita no romance como “(...) apavorada procurava remedar sem conseguir.” (ABREU, 1966: 55). A indicação

do dramaturgo para esta descrição é mais precisa e objetiva: “falar de maneira

chorosa”. Ainda na peça, Dona Maria ameaça dar uma surra na menina e a manda

sair de cena. No romance, a autora cria uma situação mais impactante, para a qual a

concretização cênica seria trabalhosa, como podemos observar:

E fora de si, D. Maria empurrou a pretinha, tigela e tudo com tanta força que, caindo no chão, a canjiquinha deu um banho em Rosinha que, de preta que era, ficou toda amarela! Mas mesmo assim, levantou-se rápida e desapareceu correndo levando a tigela e pratos quebrados para dentro, enquanto D. Maria continuava a descompostura. (ABREU, 1966: 55)

Encenar esta descrição não acrescentaria novos dados à trama, daria

trabalho aos atores (no sentido de quebrar a louça, sujar a atriz e o chão), e atrasaria

um pouco a dinâmica cênica. É uma descrição rica para o estilo literário, porém

pouco interessante para o circo. Através de uma fala simples, tal como “suma daqui”

o dramaturgo resolve a saída da escrava, causando um efeito similar com a narração

acima, porém menos constrangedor.

Em seguida Tico-Tico passa com uma cesta de ovos, e no romance afirma

que ele vem despreocupado. No teatro, esta indicação se transforma em ação, com

a indicação de que ele deve vir assoviando. Quando Maria lhe chama, sua reação é

descrita no romance da seguinte forma: “O moleque estremeceu. Toda a alegria

desapareceu. E foi com medo estampado na cara redonda que se aproximou das

donas da casa. Maria encarou-o com desprezo (...).” (ABREU, 1966: 55). Tico-Tico

reage desta forma pois acabou de comer alguns ovos sem autorização e é indagado

sobre o número de ovos recolhidos.

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Na peça, não há qualquer descrição de pavor como a citada acima, mas o

ator, dentro do contexto vivenciado pela personagem, poderá agir de maneira

análoga ao romance. O contraste entre a sua entrada distraída e a reação diante da

patroa chega a ser cômica e compõe os principais traços desta personagem. O fato

de ser interpretado, geralmente, pelos palhaços da primeira parte do espetáculo

circense, pode favorecer a interpretação exagerada e figurativa dos sentimentos e

impressões, tal como descritos acima pelo romance.

Outra diferença importante entre as formas artísticas aparece, por exemplo,

na descrição de Gonçalves, que entra em cena para defender Tico-Tico. O romance,

por ser um meio literário propício a transmitir pensamentos e emoções de maneira

mais íntima, nos introduz Gonçalves de forma particular. O leitor é convocado a

participar da cena através dos pormenores, dos interesses secretos das

personagens, geralmente ressaltados pelos autores. Nesse sentido, é interessante

destacar a forma como Gilda de Abreu apresenta esta personagem:

Uma voz máscula e calma cortou o ar como uma chicotada. Rosinha estocou assustada. Nos olhos de Tico-Tico acendeu-se a chama da esperança e correndo escondeu-se atrás de um homem já grisalho, que acaba de chegar e, como eu, apreciara a cena sem ser visto. Adivinhava-se no novo personagem o dono da casa, Sr. Gonçalves. Tudo nele indicava bondade, indulgência, serenidade. (ABREU, 1966: 56)

Luiz acabou de chegar à fazenda e resolve observar as personagens de longe

antes de se apresentar. Suas primeiras impressões são utilizadas pela autora para

descrever a história de maneira intimista, sendo esta uma característica deste estilo

literário. Uma visão resumida e simplificada das personagens, feita por alguém

recém-chegado – mesma posição do leitor, traça tipos reconhecidos socialmente e

bem delineados por Gilda de Abreu. Assim como o trabalho de construção da

personagem feita pelo ator circense também nos deixa claro, desde sua primeira

aparição, de quem se trata (vilão, heroína, cômico). As qualidades como bondade,

indulgência e serenidade, descritas para Gonçalves pela autora do romance, se

confirmarão, no teatro, desde o primeiro momento e com a evolução da história.

Através do figurino sóbrio, a voz do ator e sua atitude ao defender Tico-Tico, o

público entenderá qual o tipo representado por Gonçalves.

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O cenário no circo-teatro também deixa claro, desde o começo, de qual

espaço vê-se em cena, principalmente através do telão pintado, um elemento

estático. No caso da peça em questão, o ambiente sugerido pelo autor era o mesmo

em todos os atos: um pátio de fazenda. O cenário do Circo Nerino para esta

montagem também se mantinha o mesmo no decorrer da peça, descrito por Walmir

dos Santos como:

O cenário... Por exemplo a Mestiça era um cenário único, porque não dava pra mudar. Porque era feito na casa de fazenda, então aparecia uma entrada. Um degrau para a entrada da casa. E uma entrada lateral, tinha uma árvore. Na frente, tinha um tronco. E as cenas eram passadas todas ali. Era uma cena única. Moira- E tinha telão pintado atrás? Walmir- Tinha, era um canavial. (...) Na Mestiça todos os dez atos a cena era aquela. Não tinha como mudar, porque era uma casa de fazenda, era montada. Tinha aquela parte da varanda. Um palco, depois tinha uma parte mais alta, com aquela balaustrada da varanda. Era muito interessante, muito bem feito. (Entrevista realizada com Walmir dos Santos em 04/02/2015)

Percebemos que este cenário apresenta dois ambientes concomitantes: o da

casa de fazenda e um externo, que poderia ser o pátio, sugerido por Joaquim Silva.

Dessa forma, é possível trabalhar todas as situações cênicas, desde a conversa

íntima dos senhores, até a cena final com a Mestiça no tronco. O telão pintado serve

para ambientar e contextualizar melhor a narrativa, ampliava o ambiente através do

canavial, demonstrando se tratar de uma grande fazenda e não uma reduzida sala

de estar. Conforme podemos ter uma ideia na foto de número quatorze, na qual

aparecem todas as personagens da trama, com Mestiça ajoelhada no centro.

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Figura 14 – Encenação da peça A Mestiça.

Fonte: AVANZI e TAMAOKI, 2004. 209.

A busca do dramaturgo circense será sempre em transformar estados e

descrições em ações, além de permitir um espaço de criação para o ator, portanto

não esmiuçará tanto a leitura sobre a cena com rubricas, por exemplo. Seu trabalho

é elencar os principais acontecimentos e recriá-los dentro de uma lógica de

mobilidade e dinâmica, necessários à cena teatral circense. O romance literário é

utilizado pelo circo-teatro com bastante fidelidade em relação à trama e à

caracterização das personagens, e, por haver uma grande correspondência,

possibilitou uma relação duradoura entre estas duas formas artísticas.

5.4 – Análise dos momentos cômicos

Tico-Tico é a única personagem cômica da peça, responsável por

proporcionar características e momentos de descontração à trama. É um jovem

escravo negro da fazenda de Gonçalves, muito amigo de Mestiça e de Pai João, que

gosta de conversar e se relaciona muito bem com quase todas as personagens. No

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Circo Nerino foi encenado por Walmir dos Santos que descreve o figurino utilizado

da seguinte maneira:

Quando eu fazia o Tico-Tico eu me pintava daqui para cima. Porque aqui eu usava camisa fechada, não é? E o rosto todo pintado. E a peruca era uma peruca de neguinho mesmo. Na mão eu usava luva, a camisa aqui. E a calça, de um lado era curto, de outro lado mais comprido. E eu usava meias pretas. E uma sandália. (Entrevista realizada com Walmir dos Santos em 04/02/2015)

Esta caracterização surgiu a partir da necessidade dos circos em representar

as personagens negras, principalmente por não ter na companhia atores negros

suficientes para cada papel. O Circo Nerino, apesar de ter muitos artistas no elenco,

em apenas um breve momento de sua história um ator negro trabalhou na

companhia e representou estas personagens. Dessa forma, foi necessário criar a

caracterização, descrita acima, que se assemelhava muito de um circo para outro, e

resolvia as dificuldades da representação de algumas personagens. Até mesmo o

precursor do circo-teatro brasileiro, Benjamin de Oliveira, que era negro, quando

representava personagens brancas pintava o rosto de branco e usava peruca, para

não mostrar o seu tom de pele. Nos textos dramáticos desta época a cor da pele era

bem relevante, pois ainda estávamos próximos da abolição da escravidão e, portanto,

havia muitas questões sociais relacionadas a isso.

Moira- Porque vocês faziam esta máscara desta maneira? Walmir- Porque era a maneira mais fácil para você pintar o rosto sem problema. Porque a gente queimava a cortiça. Primeiro passava cerveja preta para poder passar o pó da cortiça. Para ficar uma maquiagem mais perfeita, né? Moira- E se tivesse algum ator negro vocês fariam da mesma maneira? Walmir- Não, não. Se tivesse um ator negro ele seria normal, né? Não precisaria a pintura. Moira- O Circo Nerino teve algum ator negro? Walmir- Teve. Nós tínhamos um ator que era de cor, às vezes ele fazia até o Pai João, na peça ele fazia o papel de preto mesmo. Não usava a máscara. Usava apenas uma peruca de cabelo de negro mesmo, né? Ele mantinha a pele normal, sem nenhuma maquiagem. Às vezes fazia um papel de mais idade e usava assim alguma coisa de barba grisalha, alguma coisa muito superficial.

Através deste comentário de Walmir dos Santos, percebemos o quanto o circo

buscava soluções práticas para superar os problemas que surgiam na

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encenação das peças escolhidas. Atualmente a companhia Os Fofos

Encenam,dirigida por Fernando Neves, faz um trabalho de resgate do circo-teatro,

através de textos antigos e da linguagem da encenação. Nesta companhia, as

máscaras são realizadas visando dialogar com a tradição mencionada. Dessa forma,

muitos elementos que antes eram uma necessidade prática, tornaram-se uma

convenção que visa estabelecer um diálogo com essa tradição teatral. No entanto,

em 2015, a comunidade negra se desagradou a partir de uma foto da personagem

cômica, uma empregada negra da peça A Mulher do Trem, e se manifestou através

das redes sociais, alegando se tratar de um black-face19

preconceituoso, o que

acarretou a organização de um debate sobre o tema e grande repercussão no meio

teatral. A companhia decidiu retirar esta máscara de cena, o que ilustra a

característica já mencionada neste trabalho de diálogo incessante do circo (no caso

citado do grupo teatral que se inspira nesta tradição) com seu público.

Na peça A Mestiça, Tico-Tico é caracterizado como descrito acima, e

desempenha um papel de extrema relevância para o encaminhamento dramatúrgico,

além de apresentar o cômico que suaviza as tensões da história. Ele revela uma

simplicidade que cativa demasiadamente os espectadores, principalmente pela

ingenuidade combinada com a bondade de sua figura. Em diversos momentos, suas

falas e ações são tolas, revelando uma importante característica, que colabora com

o efeito cômico pretendido em algumas cenas. Percebemos também um grande

destaque desta personagem na trama, por ser quem dinamiza e resolve algumas

situações dramáticas. Principalmente pelo fato de estar em cena constantemente e

espiar as conversas alheias, atitude esta que, em muitas ocasiões, resolverá as

problemáticas da narrativa.

O moleque desempenha um tipo recorrente na literatura da época: o negro

jovem, muito esperto e articulador de algumas situações que favorecem o

andamento da história. Geralmente se trata de figuras cômicas que, através de um

jeito brincalhão e despretensioso, possibilitam a criação de circunstâncias inusitadas

para as demais personagens. Outro exemplo da atuação deste tipo encontramos em

O Demônio Familiar de José de Alencar com a personagem de Pedro. O escravo

19 O blackface foi um movimento teatral norte americano do século XIX, em que atores

brancos pintavam o rosto de preto e representavam o negro, geralmente de maneira estereotipada e depreciativa.

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cria inúmeras peripécias envolvendo seus senhores, com a intenção de se tornar o

cocheiro de algum deles e, portanto, conquistar uma posição social mais elevada.

Neste caso, ele arma, e depois de descoberto é obrigado a desarmar, as confusões

relacionadas aos casamentos dos irmãos Eduardo e Carlotinha, sempre de maneira

cômica e inteligente. Tico-Tico também é o escravo jovem responsável pela

comicidade da peça, porém com a diferença de apresentar uma intenção de resolver

os conflitos e ajudar seus amigos, principalmente Mestiça. Entretanto sua dinâmica

cênica é bastante semelhante a Pedro, pois participa ativamente das situações ao

longo de toda a narrativa, criando momentos cômicos e de descontração.

Tico-Tico protagoniza, junto com alguns outros escravos, a temática sobre o

tratamento desrespeitoso que esta classe recebia de seus patrões. A diferença

essencial entre ele e os demais é apresentar uma perspectiva cômica diante das

situações dramáticas e de injustiça social. É responsável por descontrair os

momentos tensos de castigo e opressão e gerar uma leveza importante para a trama,

majoritariamente dramática. A primeira cena da peça é um castigo imposto à

Rosinha pelas vilãs, Maria e Mimosa, por ter experimentado a canjica que serviria às

duas. Em seguida Tico-Tico atravessa a cena com uma cesta de ovos e também

recebe uma repreensão:

MARIA-chamando - Tico-Tico! TICO-TICO- Pronto, Nhanhá! MARIA- Quantos ovos você recolheu hoje, moleque? Rosinha entra TICO-TICO- Eu só recoí duas dúzia, Nhanhá. As galinha parece que fizero greve e dexaro de botá ovo! MARIA- É mentira, Tico-Tico. Você está mentindo. TICO-TICO- Eu ju... ju... juro, Nhanhá, eu que... quero que... que... MARIA- Não jure falso, negrinho ordinário. Todas as vezes que você mente, gagueja. TICO-TICO- Tinha muitos ovos quebrado, eu acho que as galinha quebraro os ovo. ROSINHA- Mentira, Nhanhá... ele quebrô os ovo mais foi drento da boca. Toque... TICO-TICO- Tu não porva, negrinha faladeira, que fui eu. ROSINHA- Porvo sim! Tu tá ca boca cheia de ovo! MARIA- Rosinha, vai buscar a palmatória. (MAVRUDIS, 2011: 10 e 11)

Nesta cena, o jovem escravo apresenta duas falas cômicas: a primeira ao

justificar que as galinhas fizeram greve e a segunda dizendo que as mesmas

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quebraram os ovos. No primeiro caso, o engraçado se deve ao atribuir

características humanas à galinha, pois de acordo com o pensamento bergsoniano

sobre o riso, os animais serão risíveis na medida em que surpreendemos neles

atitudes ou expressões humanas. Tico-Tico inventa uma desculpa cômica, ao dizer

que as galinhas fizeram greve (atitude estritamente humana), para justificar o porquê

de ele não ter recolhido ovos suficientes. Esta imagem é engraçada e inusitada,

devido ao absurdo que nela contém, e revela uma desculpa tola e ingênua, que

dificilmente seria aceita pela patroa.

D. Maria pressiona-o, então ele cria mais ideias descabidas e termina por

dizer que as galinhas quebraram os ovos. Esta é outra frase absurda, pois nenhuma

galinha despedaçaria seus próprios ovos desta maneira. Estas duas falas, ditas em

seguida, evidenciam que ele está mentindo, e o mais interessante é observar o tipo

de raciocínio descabido usado pela personagem. Por isso, receberá a punição da

palmatória, porém Gonçalves impede que seja aplicado o castigo, e diz que ele

mesmo quebrara os ovos. A atitude do fazendeiro apresenta de antemão seu caráter,

bondoso com seus escravos, como ocorre com as falas e ações da maioria das

personagens neste estilo dramatúrgico. A situação cênica estabelece e revela a

polaridade existente na casa: mãe e filha destratam os trabalhadores da fazenda, em

contraponto com o pai, extremamente bondoso e zeloso para com eles.

O próximo diálogo cômico protagonizado por Tico-Tico será com Gonçalves, e

ocorre um pouco mais à frente. Apesar de breve, serve para ampliar a compreensão

destas duas personagens. Na situação, Rosinha xinga o escravo de filho de pai

incógnito, porém como ele não entende o significado consulta o patrão. Gonçalves

lhe pergunta se ele conhecera seu pai, e Tico-Tico, de acordo com a inocência de

sua figura, responde que seu pai morrera seis anos antes de ele nascer. É muito

interessante esta passagem por dois motivos: primeiro porque demonstra a liberdade

e cumplicidade que os escravos, principalmente os mais próximos, tinham com

Gonçalves, a ponto de realizar este tipo de conversa. E também devido à comicidade

expressa na ingenuidade do moleque em afirmar que seu pai morrera anos antes de

sua concepção. Percebemos se tratar de uma personagem sem muita malícia, que

apresenta um comportamento pueril, tamanha é sua inocência. Estas qualidades

apresentam um limiar muito tênue com a tolice, tamanha é a simplicidade

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e ignorância de seus raciocínios. Grande parte da construção cômica desta figura se

dará por estes motivos.

Após esta conversa, Pai João entra em cena sozinho e se apresenta ao

público. Pede a Deus que o leve embora deste mundo, pois está cansado de sofrer.

Ele é a personagem representativa dos sofrimentos vivenciados pelos escravos

desde quando deixaram sua terra natal, no continente africano. Demonstra a maior

carga dramática da peça, gera empatia e identificação, por ser uma personagem boa

e por participar do núcleo positivo da trama. Tico-Tico interrompe este momento e

pergunta se ele está falando sozinho. Ao saber que está conversando com Deus,

pede para Pai João rezar pelo sumiço da palmatória que sempre o castiga. É

interessante esta mudança de perspectiva de uma personagem para a outra, pois

enquanto o primeiro deseja algo tão sério como partir deste mundo, o segundo pede

algo mais ligado ao cotidiano, através do desaparecimento de um objeto de castigo.

Ambos representam o sofrimento vivido por esta classe social, porém de maneiras

diferentes: um mais dramático e sério, e o outro descontraído. Podemos dizer que a

fala de Tico-Tico chega a ser cômica de tão contrastante com o pedido anterior, de

morte.

A conversa continua e o moleque comenta sobre a festa do aniversário de

Gonçalves, na qual os escravos também podem se divertir e participar:

PAI JOÃO- Uai, vai tê festa aqui na casa grande? TICO-TICO- Entonce vancê não se alembra que no dia dos ano do Nhô

Gonçarve tem festa, e que os cumpade e as cumade brinca tudo aqui na

sala? PAI JOÃO- E no terrero brinca os escravo. Mais tomém, coitados, uma veiz

por ano é que eles pode adiverti um poco! TICO-TICO- Xiii... quando a Mestiça começá a se espaiá lá no terrêro, vai

sê um Deus nos acuda! PAI JOÃO- E a Nhanhá Mimosa tá contente ca festa? TICO-TICO- Se tá? Ela já encomendô inté um vestido novo pro Mascate!

Ela tá cu a esperança de arranjá um norvo! PAI JOÃO- Cala a boca, muleque do diabo. Se alguém ovisse o que ocê

disse... TICO-TICO- Ué... e não é verdade, Pai João? PAI JOÃO- É, Tico-Tico, mas fica sabendo que a gente num pode falá todas

as verdade. TICO-TICO- Ué, enconte cumo é que a gente faiz? Se a gente diz a

verdade, apanha, se a gente diz mentira, apanha tombém. Cumo é que faiz? PAI JOÃO- É calá a boca.

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TICO-TICO- Mais se eu num falá, eu fico cua língua dromente! (MAVRUDIS, 2011: 17 e 18)

Percebemos novamente a perspectiva dramática de Pai João, ao acentuar

que apenas uma vez no ano os escravos podem se divertir um pouco. Esta é uma

característica desta personagem ao longo de toda a trama e será importante para

evidenciar os maus-tratos e desrespeitos sofridos pelos escravos brasileiros. Por

isso, podemos dizer que Pai João se encontra entre as personagens principais da

narrativa, pois sua participação compõe, de maneira rica e diversa, a temática sobre

a relação dos senhores com seus escravos. Além de protagonizar algumas situações

dramáticas importantes e por ser avô da Mestiça.

O trecho cômico desta conversa é a fala descarada de Tico-Tico sobre a

intenção de Mimosa em arranjar um noivo. Naquela época, era muito indelicado se

referir a uma jovem solteira dessa forma, porém a personagem cômica fala sem

pensar ou considerar as regras sociais mais comuns. Esta é uma característica

corriqueira deste tipo, principalmente no contexto melodramático: falar o que todos

estão vendo, mas devido às boas maneiras são impedidos de comentar. Depois de

censurado, o moleque revida dizendo que apanha quando diz mentira e também não

pode dizer todas as verdades, por isso não compreende como deve agir. Demonstra,

dessa maneira, uma desmedida social, comum ao tipo cômico, em que a

inadequação às regras, ou o desconhecimento delas, é uma forma usual de

despertar o riso.

A transgressão desse código não escrito é ao mesmo tempo transgressão de certos ideais coletivos, normas de vida, ou seja, é percebida como defeito, e a descoberta dele, como também nos outros casos, suscita o riso. (PROPP,1992: 60) Ao mesmo tempo, essas normas podem mudar, às vezes, e mudam bem rapidamente. De início, as mudanças devem ser consideradas como transgressões de um comportamento comum e provocam o riso. Esta é a razão pela qual suscitam o riso as modas vistosas e insólitas. (PROPP,1992: 62)

Atualmente, falar de uma moça dessa maneira não seria tão descabido e

cômico quanto na época da encenação, em 1950. Como Propp afirma no fragmento

acima, mudanças ocorrem na sociedade e o que outrora era considerado um tabu

pode ser incorporado aos costumes. Antes disto, porém, qualquer atitude que inflija

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a norma pode ser vista de maneira cômica. Outro aspecto engraçado do diálogo

destacado acima é a impossibilidade de Tico-Tico se manter quieto, uma vez que

admite seu ímpeto de falar, alegando que ficaria com a língua dormente. Esta é uma

das suas características particular, ser mexeriqueiro e um bom informante, aquele

que está sempre ouvindo as conversas alheias e atento aos acontecimentos. Este

diálogo é interrompido pela entrada do feitor, e o moleque o apresenta a Pai João:

TICO-TICO-Entra Luiz - Aqui tá ele, Pai João. O nosso novo feito - a Luiz - oia moço, eu já tratei do seu cavalo. Dei bastante mio e sortei no pasto. LUIZ- Então toma lá! - dá-lhe uma moeda TICO-TICO- Uma pataca? Virge Nossa Senhora. Tô rico! LUIZ- Com tão pouco? TICO-TICO- Isso é muito dinheiro, moço! Eu vô guardá. LUIZ- Por que você fecha os olhos? TICO-TICO- É pra mim num vê o que tá lá drento. Rosinha disse que prantano dinhero em vespa de São João, brota que nem mio. LUIZ- E foi também Rosinha quem ensinou a você o lugar onde deve ser plantado o dinheiro? TICO-TICO- Sim sinhô. Ela feiz um buraco na terra e disse: “ponha aí o dinheiro que você for ganhando, senão não nasce!” LUIZ- E Rosinha gosta muito de você? TICO-TICO- Quá o que, moço. Ela tem uma reiva danada de mim. LUIZ- Então, Tico-Tico, você foi roubado. TICO-TICO- O sinhô tá brincano, não tá? LUIZ- Olhe lá dentro então. TICO-TICO- Mas se eu oiá não brota. LUIZ- Escuta Tico-Tico, você já viu alguma coisa sem semente brotar? TICO-TICO- O sinhô qué dizê que drento do buraco não tem dinheiro? LUIZ- Quero dizer que a Rosinha roubou o seu dinheiro! TICO-TICOchora - Ela me robô o meu dinheirinho. Cumo é que vai sê, minha Nossa Senhora da Aflição... LUIZ- Mas, o que é isto, Tico-Tico... um homem não chora. TICO-TICO- Nessa hora, eu não sou home! Cumo é que vai sê agora? LUIZ- Para que queria você aquele dinheiro? TICO-TICO- Era pra comprá a minha carta de arforria. LUIZ- Escuta! Não chore mais, se você for um bom rapaz, talvez ganhe a sua carta de alforria! TICO-TICO- O sinhô tá brincano, tá? LUIZ- Não, Tico-Tico, estou falando sério. Agora leve o meu cavalo para a estrebaria, cuide bem dele, porque, do tratamento que você lhe der, dependerá ou não a sua liberdade. - Tico-Tico sai (MAVRUDIS, 2011: 18 a 20)

Novamente as falas e atitudes de Tico-Tico serão engraçadas devido à

discrepância de suas reações, pois é descabido seu comportamento diante de tão

pouco dinheiro. Revela mais uma vez uma grande ingenuidade e ignorância, ao

mesmo tempo em que demonstra um choque de realidade entre a condição do feitor

e dos escravos. Para ele, que nada tem, qualquer moeda pode ser bastante e

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inclusive comprar sua alforria, esta condição é quase dramática, mas o tratamento

que é dado nesta cena, torna-a cômica. Tico-Tico acredita na ideia descabida de

Rosinha, sobre plantar, sem olhar, e esperar o dinheiro brotar. O fato de ele confiar

nesta história revela uma tolice enorme desta personagem, e compõe os principais

traços cômicos e características de sua figura.

Sua reação diante do fato de ter sido roubado, chorando e se lamentando,

será ainda mais risível em contraponto com a censura de Luiz, alegando que homem

não chora (um valor moral muito comum da época). A resposta de Tico-Tico é ainda

mais engraçada ao dizer que nestas horas não é homem. Este trecho, apesar de

cômico, explicita uma condição dramática: guardar qualquer moeda para comprar a

liberdade, que é um direito humano. Com a saída do moleque, Pai João narra o

drama vivido pelos escravos, desde a saída da África, verticalizando nos aspectos

comoventes, em contraponto com a cena anterior. Por isso, podemos dizer que esta

dupla de escravos desempenha, de maneira oposta, a mesma função na trama, um

através do riso e o outro das lágrimas.

Ao final do primeiro ato, há um diálogo descontraído entre Luiz, Gonçalves,

Maria e Mimosa, que Tico-Tico espia. Mimosa e seus pais desejam o casamento

dela com o feitor e deixam subentendido esta pretensão em diversos momentos da

história. Nesta conversa, ela o chama para nadar no rio da fazenda. Tico-Tico, então,

aparece do seu esconderijo, somente para o público, e diz uma fala que as demais

personagens não ouvem: “Xiii... eles vão tomá banho os dois, peladinho, peladinho...”

(MAVRUDIS, 2011: 27). Esta frase evidencia o interesse da moça no rapaz de

maneira rebaixada, por estar ligada diretamente com as partes corporais, ao

mencionar um banho nu e sugerir uma intenção sexual. É evidente que a proposta

de Mimosa não seria esta, pois os dois não são casados, mas a leitura da

personagem cômica envereda nestes termos e assim consegue o riso franco do

espectador. Os bufões, na época medieval, transferiam ritos elevados ao plano

corporal, sendo este, segundo Bakhtin, um dos princípios típicos da comicidade, tal

como realizado muitas vezes pelos palhaços. Percebemos uma analogia com esta

passagem de Tico-Tico, porém devemos ressaltar que não é somente desonroso

tratar as coisas nestes termos, uma vez que:

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Degradar significa entrar em comunhão com a vida da parte inferior do corpo, a do ventre e dos órgãos genitais, e portanto com atos como o coito, a concepção, a gravidez, o parto, a absorção de alimentos e a satisfação das necessidades naturais. A degradação cava o túmulo corporal para dar lugar a um novo nascimento. E por isso não tem somente um valor destrutivo, negativo, mas também um positivo, regenerador: é ambivalente, ao mesmo tempo negação e afirmação. (BAKHTIN, 2010 :19)

Dentro do contexto histórico em que está inserido, falar da relação homem e

mulher nestes termos é um tabu, porém ele menciona algo comum a vida de todas

as pessoas. Quando um homem e mulher se casam há este tipo de união, entretanto

o amor preconizado socialmente neste gênero exclui a relação carnal, a personagem

cômica é quem nos lembrará disso em diversas narrativas de circo-teatro. Em

algumas histórias a relação sexual aparecerá no contexto da criadagem e algumas

vezes ligada aos vilões, ou ao núcleo negativo do elenco. Esta fala contrasta com a

cena que se seguirá, com a entrada da Mestiça para servir-lhes um café. A escrava

suja o vestido da Mimosa e por isso recebe uma agressão que lhe faz sangrar. Luiz

oferece seu lenço para limpar, e depois disso Mestiça se retira de cena. O feitor e

Gonçalves também saem aborrecidos pela violência desnecessária e reclamam do

que viram. Esta é uma cena que aumenta a tensão e compaixão do espectador em

relação à escrava e à situação desumana que muitas vezes eram tratados os

escravos negros.

Mãe e filha permanecem em cena, então Maria comenta enraivecida que o

feitor já se encontra enamorado pela Mestiça, e sai de cena lamentando: “Ah meus

tempos! Meus tempos!...” (MAVRUDIS, 2011: 28). Tico-Tico é quem finaliza o

primeiro ato, satirizando e imitando a patroa ao repetir a frase dita por ela. Para o

intérprete, geralmente um palhaço da primeira parte do espetáculo, esta fala era um

material interessante – uma vez que eles são mestres em imitações escarnecedoras –, que poderia render muitas risadas e finalizar o primeiro ato de maneira leve e

descontraída.

Tico-Tico explora os muitos esconderijos do cenário (a varanda, os móveis da

casa, a árvore), principalmente no segundo ato, em que assiste a dois momentos,

sem ser visto, que lhe permitirão ajudar Mestiça a se livrar de Amâncio. Mimosa

pede para o escravo carrasco levar a encantadora escrava para o cafezal e não a

permitir voltar para a casa grande. Isto porque já percebera que seu pretendente,

Luiz, se apaixonara pela moça e decide fazer qualquer coisa para afastá-la dele.

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Tico-Tico é a única personagem que assiste à cena do rapto e fica sabendo o local

do esconderijo. Inclusive este é o final do ato, apresentando muita tensão e mistério

diante dos próximos acontecimentos. Nesta circunstância, o fato de estar escondido

contribui para a dramaturgia e possibilitará a solução dos conflitos mais à frente.

No ato seguinte, apesar de não suscitar nenhum momento cômico relevante,

Tico-Tico é a personagem principal, da qual todos dependem. Quando Pai João, Luiz

e Gonçalves percebem o desaparecimento da escrava, vão perguntar ao moleque

onde ela poderia estar. Ele se nega a dizer, pois fora ameaçado por Amâncio e,

mediante a proteção dos donos da fazenda, vai com Luiz até o local. A Mestiça está

muito machucada e prostrada, pois fora chicoteada pelo carrasco. Então a repousam

numa cama e Tico-Tico vai chamar o médico para atendê-la. Percebemos esta

personagem bastante atuante neste ato, responsável por dinamizar a cena e

contribuir com a sua solução.

O seguinte ocorre após a recuperação da escrava e a cena inicia com uma

conversa entre Pai João e Mestiça, em que ele lhe entrega um par de brincos de

prata, presente de seu falecido pai. Tico-Tico interrompe o diálogo e pede para

Mestiça acompanhá-lo, pois os compadres de Gonçalves chegaram à fazenda. Esta

interrupção faz com que Pai João fique sozinho em cena, e possibilita realizar uma

conversa íntima com Gonçalves sobre a paternidade da escrava.

Outra participação relevante do moleque é espiar escondido a conversa entre

Tinoco (filho da comadre de Maria) e Luiz sobre a atraente escrava. O feitor aposta

com o amigo que a conquistará, enquanto o outro acredita que ele é quem será

dominado pela formosa jovem. Fiel à amiga Tico-Tico imediatamente conta à

Mestiça o combinado, em uma cena bastante cômica:

MESTIÇA- Que que foi, Tico-Tico?

TICO-TICO- O moço feitô não presta!

MESTIÇA- Que foi que ocê disse? TICO-TICO- Eu disse que o moço feitô não presta. Eu vi ele conversano cu

Nhô Tinoco sobre ocê. E eu fiquei cu sangue ferveno nas veia. MESTIÇA- De mim? O que foi? Fale. TICO-TICO- Ele apostô que ia fazê ocê se apaxoná pru ele... MESTIÇA-

Mintira. TICO-TICO- Juro pru são Benedito cumo é verdade. Ele apostô dois boi e

uma vaca cu Nhô Tinoco. MESTIÇA- Pru que que os home são tão mau? Eles ataca sempre quem

não pode se defendê.

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TICO-TICO- Eu não sô mau! MESTIÇA- Mais ocê não é home. TICO-TICO- Num sô home? O que é que eu sô então? MESTIÇA- Ocê é Tico-tico. - com grande sentimento e carinho TICO-TICO- Mestiça, ocê tá sentino arguma coisa? Tá cu zoio parado. MESTIÇAchorosa - Eu pensei que ele tinha coração! TICO-TICO- Uai, e ele não tem coração? MESTIÇA- Num tem não. Mas a Mestiça não hai de abaxá a cabeça. Ele

pode amarrá meu corpo no tronco, pode batê, se quisé, mais o coração da

Mestiça, ninguém há de prendê. Nem mesmo esse moço feitô! TICO-TICO- Isso Mestiça, mostra prele que ocê é home! – sai

(MAVRUDIS, 2011: 49 e 50)

Esta conversa, apesar de complicar ainda mais a trama, é descontraída e

engraçada, desde a forma de Tico-Tico comentar o que ouvira até os

desdobramentos que a notícia trouxera. Ele relata a aposta de maneira exagerada e

enfática, nitidamente decorrente da afetação provocada pela novidade, e distorce

alguns pontos, como ao dizer que apostaram, além dos dois bois acordados, uma

vaca.

Neste trecho a escrava faz uma piada com o amigo ao dizer-lhe que ele não é

homem. Tico-Tico, por sua vez, e de acordo com seu tipo ingênuo e tolo, não

contraria a jovem, apenas lhe pergunta o que ele seria. E ao final da conversa, diz

para a amiga mostrar que é homem, devido à firmeza e resolução ao afirmar que

não abaixará a cabeça para o feitor. Esta piada é ainda mais engraçada do que a

primeira, feita por Mestiça, devido à inversão de gêneros, e a aparente inconsciência

do escravo ao cometê-la.

A última participação de Tico-Tico neste ato é extremamente relevante, pois

atua como mensageiro da notícia da morte de Amâncio, e em seguida sai com Luiz

para enterrar o corpo. Percebemos, em diversos momentos, que o moleque exerce o

papel de mensageiro, ao trazer notícias e chamar personagens a mando de outrem.

Esta função é relevante para o desenrolar da trama e contribui com a dinâmica

cênica, como na ocasião, já mencionada, em que ele chama a Mestiça e deixa Pai

João sozinho, possibilitando a conversa íntima entre ele e o patrão.

No quinto ato, apesar de Tico-Tico estar presente, o enfoque estará no

suposto roubo dos brincos de prata, exibidos por Mestiça. No ato seguinte voltará a

atuar na trama, numa cena em que se mantém escondido e ouve um diálogo tenso

entre o feitor e Mestiça. Ela ainda está chateada porque Luiz levara Pai João para a

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prisão. O moleque entra em cena, após a saída do feitor, para aconselhar a amiga.

Fala para ela não tratá-lo dessa forma, pois ele pode tirar seu avô da cadeia. Ela

está com muita raiva e então Tico-Tico comenta que talvez esteja gostando de Luiz.

Novamente o moleque diz uma verdade, que dificilmente seria comentada por outra

personagem, fato característico de seu tipo cômico e de seus traços particulares:

não medir palavras e falar o que lhe vem à mente. Ao mencionar esta possibilidade,

enfurece a amiga, que manda chamar o Mascate, e mais uma vez Tico-Tico atuará

como um mensageiro.

Quando o moleque sai, Luiz entra em cena e a escrava dissimula estar

arrependida e lhe pede desculpas. O rapaz pede um beijo e ela aceita, neste

momento Tico-Tico ri escondido, deixando o feitor constrangido e por isso sai

rapidamente. O público se surpreende com a atitude da jovem, pois ainda não sabe

que se trata de um plano de vingança contra o feitor, por ter levado Pai João para a

cadeia. Dessa forma, é interessante que o tão esperado beijo dos amantes seja

surpreendido pelo amigo, pois não se trata de um momento verdadeiro, como

saberemos através do diálogo seguinte com o Mascate. Apesar de não ser uma

intervenção cômica, a presença de Tico-Tico apresenta o aspecto de descontração,

em um momento que deveria ser sublime e sem distrações, pois o público deseja ver

esta união.

Em seguida, Mestiça se encontra com o vendedor e lhe pede para guardar um

dinheiro, cuja intenção é incriminar Luiz, e aguardá-la para fugirem juntos. Nesta

conversa, o Mascate a beija e agora quem espia é Luiz, que fica enfurecido e

ameaça matá-la com um punhal, mas não tem coragem e a deixa sozinha em cena.

Tico-Tico espiava ao fundo e lhe pergunta o que o rapaz fizera para receber esta

atitude, então ela revela seu plano de vingança. O amigo a alerta sobre as injustiças

que está cometendo, pois Luiz já soltara seu avô. O Mascate entra em cena e a

situação se intensifica ainda mais. Durante este diálogo a personagem cômica tem

apenas duas falas, que não obstante servem para diminuir a tensão estabelecida e

explicitam o pensamento do público quanto às atitudes da escrava. Na entrada do Mascate ele diz: “Agora é que vai pegar fogo.” (MAVRUDIS, 2011: 66) e um pouco

mais à frente, depois de Mestiça dissimular que fugirá com ele, Tico-Tico fala:

“Pronto. Virô a casaca traveiz...” (MAVRUDIS, 2011: 67). Ambas explicitam, de

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maneira cômica e descontraída, o pensamento confuso do público, na tentativa de

decifrar as atitudes contrastantes da escrava.

Ao final deste ato, o moleque confessa a fuga da amiga para as demais

personagens, apesar dela ter pedido segredo. Neste contexto, o escravo se

expressa com dificuldade, diferente dos momentos anteriores em que fala sem medir

as consequências: “São Benedito que me ajude a sortá a língua. A Mestiça fugiu

com o Mascate!” (MAVRUDIS, 2011: 69). Ele somente revela a verdade, pois todos

procuram por ela, tamanha é sua lealdade para com a amiga. Novamente

observamos ao longo de todo este ato, e podemos dizer da peça, que Tico-Tico atua

como um importante dinamizador e articulador de acontecimentos.

No último ato, o feitor encontra a fugitiva, amarra-a no tronco, porém, na hora

de chicoteá-la, desiste e sai de cena. Permanecem Pai João, a escrava e Tico-Tico:

PAI JOÃO- Minha Mestiça no tronco... que judiação! MESTIÇA- Não foi judiação não! Eu mereci o castigo. O moço feitô foi até bão... num bateu! TICO-TICO- Ah! Se fosse comigo... MESTIÇA- O que é que ocê fazia?

TICO-TICO- Eu? Num fazia nada! MESTIÇA- Tico-Tico, quando eles tivé aqui, ocê vê se entra pela janela e bota o dinhero lá no escritório! TICO-TICO- E onde tá o dinhero?

MESTIÇA- Aqui na minha cintura.

Tico-Tico pega o dinheiro e sai (MAVRUDIS, 2011: 73 e 74)

Neste breve diálogo, Tico-Tico faz uma piada curta, mas com uma função

dramatúrgica relevante para a situação. A escrava acabou de voltar e deve ser

castigada pela fuga, com o agravante, na visão do feitor, de ter sido motivada por

razões amorosas. O público, porém, sabe a verdade e espera ansiosamente a

maneira como se dará a resolução de tais problemáticas, portanto é um momento de

apreensão e expectativas. Dentro deste contexto, Tico-Tico faz uma piada ao criar a

expectativa de que se fosse o feitor aplicaria um castigo mais forte. Quando

questionado, o moleque termina por dizer que não faria nada, quebrando a

possibilidade criada.

Ao analisar os mecanismos que desencadeiam o riso, Propp comenta um

pensamento kantiano sobre o cômico produzido através do fracasso de uma

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expectativa. Nesse sentido percebemos a potencialidade da fala de Tico-Tico em

desencadear o riso do espectador, que contradiz com o seu caráter, passivo e

brando. Dificilmente veríamos uma atitude carrasca e agressiva, tal como insinuado

por sua primeira fala. Propp acrescenta um elemento na interpretação do discurso de

Kant:

A teoria de Kant precisa apenas de um reparo: o riso surge somente quando a expectativa frustrada não leva a consequências sérias ou trágicas. (...) Se considerarmos com atenção esta teoria descobriremos que sua essência se reduz a um certo desmascaramento. O pensamento de Kant admite uma ampliação e pode ser expresso da seguinte forma: ‘nós rimos quando esperamos que haja alguma coisa, mas na realidade não há nada.’ Este ‘alguma coisa’ é uma pessoa que é tomada por algo de importante, de significativo, de positivo. O ‘nada’ é aquilo em que ela realmente se transforma. (PROPP, 1992: 145)

Percebemos que esta cena dialoga com a compreensão deste autor, pois não

há qualquer consequência séria desencadeada pela quebra de expectativa.

Observamos, inclusive, o contrário, pois é esperado que ele vá dizer algo importante

quando na verdade não tem nada para revelar, e isto é cômico. Em seguida, Tico-

Tico tem a função de devolver o dinheiro roubado por Mestiça e novamente

desempenha o papel de intermediar as relações e situações cênicas.

Um pouco antes da resolução final, o Mascate entra em cena e, depois de

Mestiça lhe pedir avidamente para revelar a verdade sobre a fuga, diz que mentirá

para ficar com ela. Pai João é responsável por aumentar ainda mais a tensão deste

momento, ao ameaçar de morte o inescrupuloso amante. Tico-Tico e o feitor ouvem

a conversa escondidos e então entram em cena para desmascará-lo. Luiz pede

perdão à escrava e finalmente o casal poderá se unir. O público se sente aliviado

diante das resoluções apresentadas e, neste contexto, Tico-Tico diz ao vendedor: “Mascate, eu acho bão ocê dá o fora, porque ocê já sobrô.” (MAVRUDIS, 2011:78).

Esta fala revela francamente a situação, ao explicitar diretamente a circunstância

constrangedora, e por isso será cômica. Ajuda a tirar um pouco da tensão criada na

cena anterior atravésda ameaça de Mascate.

Da mesma forma, acontecerá um pouco mais à frente com a entrada de todas

as personagens.Finalmente haverá a revelação sobre a paternidade da escrava, e

também o fato de Luiz ser filho do grande amigo de Gonçalves, enquanto todos

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pensavam se tratar apenas de um afilhado. Ao saberem ser o herdeiro do rico

fazendeiro, Mimosa demonstra seu desapontamento:

LUIZ- Sim. Eu sou Luiz Francisco da Silva, filho de seu grande amigo. MIMOSA- Ah, mamãe... se eu soubesse... TICO-TICO- Num diantava nada, ocê já tá sobrano há muito tempo. GONÇALVES- Agora, minha sobrinha, pede o que quiseres a seu tio! MESTIÇA- Eu queria que o sinhô me desse o Tico-Tico. GONÇALVES- Pelo que vejo, queres levar-me todos os escravos. Pai João já é teu também. MESTIÇA- Mas Pai João não é escravo. Já é home livre. GONÇALVES- Está bem. Podes levar o Tico-Tico. TICO-TICO- Qué dizê que eu agora sô livre? Que tal agora uma garapinha, bem fresquinha? Num é bão, Sá Maria? MARIA- Isso mesmo, Tico-Tico. Vá buscar uma garapa bem fresquinha. Vá depressa. TICO-TICO- E para aí... se a senhora quisé, que vá buscá. Eu agora sô livre! – risos - Nhô Gonçarve, eu também posso pedi? GONÇALVES- Pode. TICO-TICO- Eu quero que o sinhô me venda a Rosinha! GONÇALVES- E você tem dinheiro para comprar a Rosinha? TICO-TICO- Eu compro à prestação. GONÇALVES- Rosinha não me pertence! Pertence à minha mulher... se ela quiser vendê-la... MARIA- Não! Não é para venda! GONÇALVES- Então, Tico-Tico, leve-a de presente. TICO-TICO- Oba... agora aquela negra me paga! - sai correndo MESTIÇA- Adeus então, meu velhinho querido. Adeus. LUIZ- Adeus para todos. TICO-TICOgritando dedentro - Espera, que eu também vô! - entra montado “à cavalo” em Rosinha (MAVRUDIS, 2011: 80 e 81)

Nesta circunstância, o comentário do escravo explicita para Mimosa que ela

não foi a escolhida por Luiz e está sobrando, sendo a ainda mais cômico do que

quando dirigido ao Mascate. Primeiramente por ser dirigido a uma mulher, devido ao

contexto cultural daquela época, e em segundo lugar, por se tratar da filha de sua

dona. Demonstra um descaramento desta personagem, possível apenas no contexto

de final de peça e resolução dos conflitos e problemáticas, pois antes certamente ele

seria repreendido por falar desta forma.

Seguindo esta mesma lógica, após conseguir a liberdade, Tico-Tico diz a sua

ex-dona para ela mesma pegar a garapa fresquinha, pois ele não precisa mais

seguir suas ordens. Esta inversão de postura, realizada de maneira tão abrupta e

surpreendente, torna-se engraçada. O escravo mal se libertou e já demonstra ter

uma desenvoltura e despojamento, característico de seu tipo. Tanto assim que em

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seguida pede para comprar a Rosinha, mas por não ter o dinheiro necessário diz

que pagará a prestação.

Em um primeiro momento, não é possível compreender a razão do interesse

na escrava, pois eles constantemente brigavam e se desentendiam. Somente na fala

seguinte fica explícito o motivo: vingança pelas injustiças feitas por Rosinha, que,

por ser mais esperta do que Tico-Tico, sempre o enganava e o tratava como um tolo.

Para finalizar a peça de maneira descontraída e leve, ele sai de cena e, ao voltar,

aparece montado a cavalo nela. Este desfecho está de acordo com a estrutura geral

da peça, que não revela tão grandes tensões quanto as duas outras obras

analisadas neste trabalho, portanto é condizente um final cômico e alegre como este.

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6 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise das três peças dentro do universo circense, particularmente do Circo

Nerino, possibilitou uma maior aproximação com as personagens cômicas dentro do

contexto melodramático. Vimos que tais figuras são tão importantes quanto as

demais para criar uma trama mais complexa e interessante. Havia muitas peças,

representadas nos circos-teatros no começo até meados do século XX, que não

apresentavam comicidade alguma. Geralmente estas tramas são idealizadas e se

distanciam da realidade imperfeita da vida. As personagens são verticalizadas em

suas obstinações pessoais e não se modificam ao longo da história. Quando a

personagem cômica está presente, ela traz uma dinâmica e uma leveza à narrativa,

que interfere até mesmo na caracterização das demais, principalmente por

humanizá-las de alguma forma.

O surgimento deste tipo de teatro ocorreu dentro de um contexto de formação

de valores e estabelecimento cultural, apesar de ter se transformado muito desde

então. Lugares longínquos e povos díspares foram agrupados na então criada nação

brasileira, tal como a conhecemos atualmente quanto à extensão territorial, língua,

costumes e valores. O branco europeu, com o espírito de colonizador e de quem

quer lucrar por meio da terra, impôs sua cultura subjugando o restante da população,

formada principalmente por índios e negros. Através do teatro, e mais à frente

também no espetáculo circense, os europeus conseguiram transmitir sua cultura e

valores. No entanto, a cultura dos povos subjugados tem relevância fundamental e

estruturante na formação do povo brasileiro, além de interferirem e modificarem

aspectos dramatúrgicos. A dramaturgia de circo-teatro do período estudado, que

muitas vezes perdura até os dias atuais, apresenta esta raiz histórica.

Controvérsias à parte, o fato é que o surgimento do circo-teatro veio ligar definitivamente a história do circo à história do teatro no Brasil, tanto pelo ingresso de companhias de teatro nas empresas circenses como pela disseminação das representações teatrais por todo o país. As companhias montavam peças portuguesas, histórias bíblicas, adaptações de romances franceses, tudo que pudesse atingir e comover as platéias do interior de um país tão heterogêneo como o Brasil. (PIMENTA, 2004: 23 e 24)

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Percebemos, de acordo com o trecho citado de Daniele Pimenta, que a

história do teatro circense sempre teve algum diálogo com o teatro realizado dentro

dos edifícios teatrais das principais cidades brasileiras. Em ambos os contextos, as

figuras cômicas tinham grande importância para o melodrama, responsáveis por

distanciar o espectador da identificação proposta por este estilo dramatúrgico. Os

teóricos do riso, elencados para este estudo, nos deixam claro que o cômico

geralmente se relaciona com algum defeito do homem, com as partes baixas e

inferiores, e o primeiro aspecto motivador é o distanciamento emocional. Como o

exemplo a relevante participação de Tico-Tico no enredo de A Mestiça, interferindo

na identificação sentimental do público e completando a narrativa.

Por mais que a função dentro da trama se assemelhe entre as personagens

cômicas, ela assumirá diversas facetas, como observamos no decorrer das análises

das três peças que integram este trabalho. Em cada uma das encenações, a

comicidade terá características particulares, sempre em consonância com as

personagens que a suscitam e com as características específicas das narrativas.

Elas materializam a comicidade possível para aquele enredo e são importantes para

contar aquela história particular. Este trabalho aborda tipos diferentes de

melodramas (dois amorosos, em perspectivas diferentes, e outro heroico), que muito

nos ajudaram a compreender a temática pretendida.

Em ...E o Céu Uniu Dois Corações Juca apresenta uma ingenuidade e

inconsciência de seu defeito na fala, que o tornam engraçado, divertido e leve. Estas

características combinam com o tipo de melodrama em que está inserido: amoroso,

cujo foco da narrativa está na união dos jovens amantes. É uma trama que narra o

amor puro e impossível de um casal, separado por sua família. Este amor é

desprovido da parte carnal e material, pois não chega nem mesmo a se concretizar,

de tão sublime e elevado. Este tipo de narrativa vai ao encontro de um valor muito

propagado pelo gênero melodramático, de que o amor “verdadeiro” é maior do que

sua realização. Trata-se de uma trama arquetípica, por apresentar relações que

poderiam ser encenadas em diversas épocas da história, sem se tornarem datadas.

Talvez por isso seja representada com êxito até os dias atuais nos circos-teatros

brasileiros. Podemos dizer que se trata de uma versão nacional para o conhecido

tema de Romeu e Julieta de William Shakespeare.

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Juca combina com esse contexto apresentando uma comicidade leve e

despretensiosa, por suas piadas serem, basicamente, relacionadas a sua dificuldade

com a fala e por sua maneira de agir. É um moleque que tem atitudes infantis, sem

muita reflexão, apenas motivadas por sua vontade. Esta, muitas vezes, se envolve

questões pequenas, quando comparado às das demais personagens, como seu

aborrecimento diante do descaso de Neli depois que começara a namorar. Esta é

uma preocupação ínfima se comparada com a importância da realização do amor

entre os amantes, que chegará a lhes custar a vida.

Em Jerônimo, o herói do sertão, apesar de encontrarmos uma complicação

amorosa também, o foco do enredo será o herói imbatível contra os vilões. Haverá

confrontos com agressões físicas e ameaças com armas entre o coronelismo

(representado pela dupla Maria José e Ambrósio) e o justiceiro do sertão. A

comicidade de Saci será criada através de sarcasmo e ironia, que combinam com as

tensões apresentadas pelo enredo. Saci demonstra ser valente, por empunhar uma

arma e trabalhar ao lado de Jerônimo e, em muitos momentos, a comicidade

aparece quando está denegrindo as personagens, principalmente más. Há, portanto,

uma clara diferença em relação à personalidade e jogo cômico de Juca, por um se

tratar de um ingênuo e o outro ser esperto e zombeteiro.

Tico-Tico em A Mestiça é quase uma mistura entre as duas personagens

cômicas, no sentido de apresentar uma ingenuidade combinada com seu jeito

travesso de moleque da fazenda. A história desta trama abordará a conquista

amorosa do feitor com a Mestiça, porém com uma tônica diferente da peça ...E o

Céu Uniu Dois Corações. Não se trata de um amor irrealizável e idealizado, mas

algo possível e concreto, mesmo com todas as dificuldades e percalços. A Mestiça é

uma mulher conquistadora e sensual, bem diferente do perfil singelo de Neli. Dessa

forma, Tico-Tico não será tão inocente quanto Juca, se mostra mais malicioso e

brincalhão, porém não terá o sarcasmo apresentado por Saci.

Observamos, a partir desta breve análise, que a personagem cômica combina

com as características do enredo melodramático e dialoga com elas, materializando

a comicidade daquele texto específico. Em todas as tramas estudadas essas

personagens desempenham um importante papel, articulando, complicando as

problemáticas e diminuindo a tensão dos acontecimentos mais relevantes.

Geralmente são personagens que têm a facilidade de transitar entre os núcleos do

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bem e do mal e por isso conseguem articular muitas situações, levando e trazendo

informações importantes. Como Tico-Tico, que está presente em quase todas as

cenas resolvendo as problemáticas do enredo e dinamizando os acontecimentos.

Por isso, não podemos dizer que se trata de personagens secundárias, como em

alguns casos são classificadas, reconhecendo apenas como protagonistas o casal

de enamorados e o vilão.

As três personagens cômicas se assemelham também por integrar uma

classe social economicamente menos favorecida, e geralmente desempenham a

função de empregado nas tramas, tal como os palhaços. As histórias de circo-teatro

costumam ambientar as narrativas em lugares privados de uma elite econômica

favorecida, da qual a personagem cômica destoará quanto às atitudes e

comportamentos. Suas falas e ações costumam ultrapassar a barreira do decoro e

boas maneiras, destoando, portanto, das demais. A comicidade que transparece ao

ler os textos se encontra, sobretudo, nas falas. Os gestos e ações cômicas ficam a

cargo do intérprete, que geralmente tem uma aproximação com os palhaços e,

dessa forma, era comum surgirem ações cômicas que extrapolavam os limites do

texto. Um exemplo claro, mencionado neste trabalho, é o sininho de Juca na peça ...E o Céu Uniu Dois Corações, descrita por Walmir dos Santos. Aliás, a

improvisação e a criação extratextual são um dos pilares principais do intérprete

circense, sobretudo dos cômicos.

A análise de cada situação risível mostra que o engraçado geralmente é

suscitado por uma falha humana, alguma quebra de expectativa e às partes

inferiores do corpo, bakhtianamente falando. A maneira de se relacionarem com as

problemáticas das tramas é responsável por apresentar outra perspectiva às

histórias. Torna estes enredos, de heróis e vilões, real e mais verossímil, ao

apresentar uma postura mais humana, de pessoas que erram e têm atitudes

insensatas e corriqueiras. A dramaticidade das personagens cômicas é bem

diferente do tom preponderante nesta dramaturgia, carregado de temas

extraordinários e decisórios: o amor impossível que acarreta a morte dos amantes, o

justiceiro do sertão que defende o mais fraco, o amor da escrava que derruba

barreiras sociais importantes. Todas essas temáticas estão fora do cotidiano comum

da maioria das pessoas da plateia. A personagem cômica, portanto, estabelece uma

ponte entre os espectadores e artistas/autor da obra.

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O momento em que a comicidade está inserida também pode ser relevante,

principalmente quando suspende um acontecimento cênico importante e penoso. A

interrupção aumenta ainda mais o impacto sobre os espectadores, principalmente

porque o público é distraído e quando a situação angustiante voltar a acontecer, será

ainda mais forte. Um exemplo disto é o assassinato de Perdinari na peça ...E o Céu

Uniu Dois Corações. Neste caso, a interrupção, através do jogo cômico suscitado

por Velasco, será responsável por suspender a iminência de morte e, portanto,

aumentar ainda mais o impacto quando esta finalmente acontecer.

Este tipo de dramaturgia, de maneira mais ampla, pertence a uma tradição de

textos que obedecem a uma construção narrativa bem clara, em que os conflitos

dramáticos são polarizados entre personagens boas e más. O que irá diferenciar um

enredo de outro será a problemática particular daquela história e as personagens

que estarão envolvidas. Este tipo de dramaturgia fez, e ainda faz, muito sucesso no

Brasil, sendo amplamente difundida e divulgada. A curiosidade do público será

despertada na maneira de contar a história e na progressão dos acontecimentos,

pois o desfecho pode, muitas vezes, ser o mesmo, alternando entre o final “feliz” e o

trágico. Apesar de, geralmente, ser desvalorizada pela crítica teatral, devido a sua

simplicidade estrutural, devemos reconhecer no melodrama a busca por um diálogo

estreito com a população brasileira (principalmente no reconhecimento de tipos e

comportamentos sociais) e por valorizar a encenação, o contato com público. Disso

decorre o fato de ainda ser apreciada, como podemos observar nos circos-teatros

atuais, nas telenovelas e nos programas humorísticos em geral. É uma dramaturgia

que claramente busca estabelecer uma ponte com questões atuais, assim como o

espetáculo circense.

Um exemplo claro a respeito desta ligação estreita com o público foi a

polêmica sobre um possível racismo surgido a partir de uma personagem negra da

peça A mulher do trem encenada pelo grupo Os fofos encenam. Nesta situação, o

grupo teatral resolveu tirar esta personagem da cena e estreitar ainda mais os laços

com o seu público, razão pela qual realiza sua arte. Esta situação ilustra bem como

os tipos sociais, apresentados nas dramaturgias circenses, são mutáveis e se

adéquam à sociedade e costumes de seu tempo.

A relação com os espectadores começa a partir da linguagem escolhida do

espetáculo, uma vez que é visada a compreensão e a aceitação positiva do público.

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O circo tem uma característica particular neste ponto, pois os elementos populares,

aqueles conhecidos pela maior parte da população brasileira, podem ser agregados

na construção da apresentação. Desde a música que toca na rádio, até qualquer tipo

de referência dos meios de comunicação de massa, tudo é possível de participar do

espetáculo, desde que estabeleça alguma ligação com a peça encenada ou com o

número de variedades da primeira parte. Como, por exemplo, a encenação da peça

Jerônimo, o herói do sertão, uma importante radionovela nacional da época, que

apresentava uma música conhecida de trilha sonora. Esta era uma referência

unânime para o público de todas as regiões, que apreciava demasiadamente estas

apresentações, principalmente por haver este diálogo de consonância com seu gosto.

Disto resulta o primeiro objetivo deste tipo de espetacularidade: agradar os

espectadores, a ponto de voltarem no dia seguinte e suas arquibancadas estarem

sempre cheias.

Outro aspecto a ser consideração relativo à linguagem é em relação ao

espaço do circo. Em geral, trata-se de um palco semi-arena que comporta muitas

pessoas, mais de trezentas, e exige um tipo de atuação ampla e direta. Os números

da primeira parte do espetáculo eram pensados visando atingir visualmente até as

últimas cadeiras, e, no teatro, o intérprete tinha que apresentar um gestual, figurino,

maquiagem e impostação vocal que também cumprissem com esse objetivo. Isto

possibilitou a construção de uma linguagem particular, que, há alguns anos, vem

sendo admirada e investigada pelos grupos teatrais contemporâneos, como o Teatro

Mambembe, o Grupo Galpão, Barracão Teatro, Os Fofos Encenam, entre tantos

outros.

Outro aspecto inerente à linguagem circense tem relação à rotatividade de

peças, pois a cada dia se encena um texto diferente. Mesmo que os atores já

tivessem ensaiado algumas vezes, o resultado costuma ser de acordo com as

possibilidades existentes em relação à figurino, ao cenário, à reprodução exata do

texto falado, tudo isto é limitado devido às condições de como era elaborada a

apresentação. Com o tempo, o intérprete desenvolvia um jeito particular de

representar e se familiarizava com o repertório, daí a importância da definição e

estabelecimento do tipo específico de cada ator. Esta questão toca em um ponto

crucial do artista circense: por mais que ele planeje e ensaie, a sua performance

continua a se construir no momento da representação para o público.

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A busca pelo gosto popular não excluí o circo de integrar a cultura brasileira

de maneira mais ampla. Muito pelo contrário, por refletir o gosto da maioria e

partilhar, de alguma forma, das referências nacionais, podemos reconhecer o

espetáculo circense como uma manifestação da cultura popular brasileira por

excelência. Mesmo buscando dialogar com as referências majoritárias, os circenses

também se inspiravam nas representações realizadas nos edifícios teatrais, como

podemos observar através da dramaturgia. Um exemplo claro é a peça Deus lhe

pague,de Joracy Camargo, que em 1933 estreava nos palcos das casas de

espetáculo construídas nas principais cidades, com Procópio Ferreira no papel

principal, e em 1950 era representada no Circo Nerino. Era comum haver o

intercâmbio entre os artistas de teatro com os de circo, ligação esta que os livros de

história do teatro não mencionam. Como, por exemplo, o episódio em que Grande

Othelo tenta se apresentar no Nerino, porém devido a uma série de infortúnios, sua

estreia foi adiada. Assim como na entrevista concedida para este trabalho em que

Roger menciona sua participação em uma peça de Tchekhov:

Por exemplo, eu trabalhei aqui com Tônia Carreiro. Eu fiz uma peça russa, com ela e outros artistas de primeira classe, aqui em São Paulo, eu trabalhei aqui no teatro com ela. E ela chamava-se... Como é o nome da peça, meu Deus do céu? O jardim das cerejeiras, do russo Tchekhov, não sei o que lá Tchekhov. Bom, eu fazia o mordomo da família. Não era cômico não. E tinha as coisas das cerejeiras, até que compraram aquilo e o mordomo muito velho e tal. E... Só tinha uma palavra que o público ria, como é que era? Eu ia falar com ela e a Tônia dizia para mim: Como você está velho Firs, como ficou velho. E eu dizia apenas, não era comicidade não, era da peça mesmo: É porque faz muito tempo que eu nasci. E o público achava graça dessa fala. E terminava a peça, com o mordomo né? Eles indo embora todos e ele ficava ali, só ficava o mordomo. E ele fazia umas falas bonitas e terminava morrendo, ele morria. Então, era eu que encerrava a peça, o público batia palma, eu levantava e os outros iam entrando. (Entrevista realizada no dia 18/03/2014)

Ao longo da história das artes cênicas no país, sempre houve o intercâmbio e

transversalidades culturais entre o circo, realizado em baixo da lona, e o teatro, dos

edifícios teatrais. Os exemplos mencionados em relação à dramaturgia e artistas são

apenas uma forma de troca, há inúmeras outras que contribuem sobremaneira à

ambas linguagens. No que se refere à dramaturgia, observamos haver uma grande

semelhança entre os textos das comédias de costumes e do teatro romântico

dramático, realizado nos edifícios teatrais, com os melodramas e comédias

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circenses. E quanto aos artistas, sempre houve uma troca de aprendizado e saberes

através dos convites para apresentações em outros espaços, como o exemplo de

Roger e Grande Othelo. Ampliar o conhecimento que se tem acerca do circo e

estudá-lo, tal como se estuda o teatro ocidental, é extremamente importante para as

artes cênicas, principalmente por se tratar de manifestações artísticas que sempre

se relacionaram e influenciaram mutuamente de alguma forma.

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8 – ANEXOS

Transcrição das entrevistas

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Entrevista 1 – Roger Avanzi Roger – Nós trabalhamos algumas vezes e uma das vezes foi no dia 7 de setembro,

que tem aquelas festas de estudantes e tal. Então eu esqueci de colocar. Me deram

o retrato e eu não coloquei no livro. Quer ver? Eu vou lhe mostrar o retrato que me

deram, este não está no livro.

(Mostra a foto) Era o último espetáculos nosso na cidade. O último espetáculo já começava assim,

tirava uma coisinha, outra coisinha, para assim que terminar já adiantou o

expediente, né? Nós desarmamos aqui a fachada do circo, aquela fachada bonita,

ficou só a parte de baixo. É na frente do circo, mas está sem a fachada bonita, com o

nome. Aqui está explicado por que aqui está sem a fachada. Bom, nós armávamos

este circo de acordo com a cidade que a gente ia funcionar, né? Porque numa

cidade muito grande, armava o circo com três mastros, outra vez quatro mastros. Às

vezes era redondo, menor, outras vezes era oval, crescia assim, então nos circos

das cidades menores, não valia a pena armar um circo grandão assim. A gente ia

para o Norte e Nordeste, nas capitais que eram grandes e nas pequenas também.

Bom, é isso aí, acontecia essas coisas, né? Olha essa foto. Em palestra eu costumo dizer que eu fazia acrobacia em cima do

cavalo, trabalhava muita acrobacia em cima do cavalo. Às vezes eu errava e fazia

em baixo do cavalo. Eu participo da maçonaria, como pode ver nessa foto. A minha

senhora no Circo Garcia com o pai dela que era da família Garcia. Ali eu, meu pai e

meu filho. Meu filho. Ali eu em Brasília que me convidaram para entregar esta

moeda bonita para o Lula. Ali eu fui no Jô, muito agradável ele, muito simpático. E

depois, eu te mostro melhor. Essa aqui é uma pintura que me deram. Eu gosto de falar sobre circo, né? Eu gosto de falar sobre o circo que eu nasci, o

circo da minha família, meu pai, minha mãe, meu tio. Meu pai, quando perguntavam

a ele, ele era o Picolino I, de onde ele é, ele dizia: eu sou contrabando, fui feito na

Itália e nasci no Brasil. Veio de contrabando. E minha mãe, francesa. Minha mãe Armandine Ribolá, meu tio Gaetan Ribolá e a

minha tia Myris, eram os três franceses que trabalhavam no Circo Nerino. Às vezes

eu to falando uma coisa, depois quero mudar para outra coisa e me esqueci do que

estava falando.

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Já te falei que o Circo Nerino dava espetáculos duplos. A primeira parte de

acrobacias e a segunda parte de teatro. Dependia né? Nós levávamos todo o gênero

de teatro: levávamos as comédias, os dramalhões, comédia de palhaço, comédia de

grã-fino e dramalhões.

Moira - No começo, a segunda parte dos espetáculo eram comédias do Picolino?

Roger – É, eram só as comédias no começo.

Moira – Depois tiveram episódios de lutas livre?

Roger – Antigamente, em quase todos os circos. Eu estou falando bem antigamente,

um pouco mais velho que o Nerino, que era o mais velho de todos. Eles usavam, o

Nerino também, lutas romanas, para atrair público, que gostava disso aí. Então tinha

muitas coisas também, além das lutas. Pode perguntar.

Moira – Teve um momento que houve cinema...

Roger – Cinema também, meu tio ele ficava inventando coisas. Tinha vezes que era

a primeira parte acrobacias e a segunda, ele comprou umas máquinas grandes, uma

parafernália e armou lá no circo. E passava, mas não dava muito certo não, o povo

queria ver o circo. Cinema já tinha na cidade, né? Era isso aí.

Moira – Só depois que teve o teatro dramático?

Roger – Sim. O teatro dramático. Nós levamos bastante, e muitas peças religiosas

também. Nós levávamos A Canção de Bernadete, que se passava na França, né?

Levávamos Os milagres de Santo Antônio, que a senhora viu o retrato no livro, né?

Eu era o Santo Antônio. E agradava tanto essas peças aí. Levávamos A paixão de

Cristo também, a vida de Jesus, né? Quase todos os circos apresentavam a vida de

Jesus, mas só na semana santa, sexta-feira santa e tal. E nós levávamos sempre,

porque estávamos no Nordeste e Norte e eles gostavam, eram muito religiosos,

naquele tempo, né? Hoje, mudou muito. Tinha cidade que a gente tinha que dar

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duas sessões e o público ficava lá fora esperando para assistir a segunda sessão.

Bom, teatro. Muitos dramas estão no livro, mas não todos. Quando aparecia um

filme muito importante, nós dávamos um jeito de fazer este drama no nosso circo, e

levávamos do cinema. Por exemplo, nós levamos: Sempre no meu coração, era um

filme bonito. Extraído daquela música: ...Sempre no meu coração. (canta) O mundo

não me quis, uma peça religiosa, belíssima, belíssima. E tinham outras. Assim de

cabeça assim não aflora bem os nomes todos, viu? Mas tinham muitas, religiosas.

Agora tinham os dramalhões, muitos dramas. O meu sogro era do Circo Garcia. Ele

veio com a filha, ela começou a trabalhar conosco, tempos depois ele saiu do Garcia.

Eram dois irmãos que tomavam conta: Antolin e ele era o Agenor. O Agenor é o que

está com ela, segurando o cavalo. Passaram e vieram trabalhar conosco no nosso

circo, e ele que tomava conta das peças no Circo Garcia, do teatro, que era um circo

quase que só de teatro, né? O Garcia, o Antolin era um grande ator, o dono do circo.

Seu Agenor era ator, mas ele construía as peças, né? Como tirava do cinema e

assim por diante. Então ele passou a ensaiar, antigamente no teatro, no circo, em

toda a parte onde levava peças, tinha o ensaiador, chamava-se quem ensaiava as

peças. Hoje não existe mais o ensaiador. O ensaiador mudou, com o mesmo nome,

mas agora é o diretor. Agora chama-se diretor. E eu fiz muitas peças. A senhora que

gosta de peças, por acaso sabe, o nome da madame X da Ré Misteriosa?

Moira – Não...

Roger – Mas sabe que teve essa peça. Foi até filmado, a peça teve no cinema

também, madame X. Ela chama-se. Bom, agora quando eu lembrar eu vou falar o

nome. (risos). Nós levávamos muito essa peça. Ela fazia a minha mãe, eu fazia o

advogado que a defendia sem saber que era a minha mãe e tal. Dava um trabalho,

na defesa eu tinha uns bife desse tamanho pra falar. Bom, eu comecei a falar sobre

o teatro do nosso circo. Todos os circos do Brasil tinham teatro, mas preparavam um

palco, faziam um palco. O teatro era um palco e as acrobacias no picadeiro. Teatro

no palco, nós fomos os últimos a montar um palco. Fazíamos tudo no picadeiro,

inclusive comédias e dramalhões. Nós levávamos, no picadeiro era teatro de arena.

Como se chamavam aqui, também tinha teatro de arena. Agora acontece que no

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picadeiro não tinha jeito de colocar o ponto. No palco, o ponto fica ali meio escondido

pontuando para os artistas, né? Hoje não tem mais ponto, né? Eles não usam mais

ponto. Mas nós então usávamos, antigamente aboliram, mas então nós usávamos.

Nós usávamos forçado porque no picadeiro não tinha ponto. Então tinha que decorar

mesmo. Toda noite uma peça diferente, um drama diferente. E haja estudar e botar

na cabeça. Eu gravava muito, hoje está muito fraco, a minha cabeça falhou. Mas é

isso aí. A senhora tem um nome, ou algum nome, de algumas peças? Continue

fazendo as perguntas.

Moira – Como eram distribuídos os papéis na companhia?

Roger – Eu fazia o galã, minha esposa fazia a ingênua, bem para trás. Tinham

outras pessoas da companhia, Teresinha, outras sobrinhas, que faziam também,

ajudavam no papel menores, numa ingênua. A minha mulher começou a não gostar

mais de fazer a ingênua, ela disse que estava velha, já queria fazer os papéis mais

idosos, né? Ela era uma revelação mesmo, fazia qualquer papel, fazia papel de

criança, de velha, de moça, tudo que desse para ela, ela desempenhava. Muito bem.

Ela gostava muito de uma peça que se chamava. A peça se chamava Maria da fé,

muito bonita! Ela se espalhava naquela peça, ela se espalhava. Foi aí que o

Procópio Ferreira assistiu e ficou encantado, deu um retrato dele para ela, com

dedicatórias, elogiando o papel dela. Muito bem. A Anita, ela chama-se Ana, o

diminutivo Anita, é tudo a mesma coisa Ana ou Anita. Então, nós não tínhamos o

palco, ainda. Fomos os últimos a fazer o palco. No livro, já tem alguma coisa sobre o

palco. Não é muito perfeito não porque endireitando e tal. A banda de música, nós

sempre tivemos orquestra no circo, depois eu lhe falo um pouco sobre música no

circo, que está no livro também. Antigamente era um coreto na frente do circo, quer

dizer dentro do circo, na entrada do povo. Entrava no circo, era em cima. Quando

fizemos o palco, passou o coreto ao lado do palco, que tinham peças que usavam

muita música, por exemplo, O Ébrio, nós levávamos O Ébrio, e eu fazia o Ébrio, era

sempre eu. Tinha que cantar duas músicas, né? Eu cantava aquela primeira porta

aberta: Vivia neste mundo sem teto Dormia às noites num banco tosco de jardim. Essa era a primeira música. A segunda é a música tema: Porta aberta por Jesus de

Nazaré Esta porta não se fecha, contra ela não há queixa, são os braços de Jesus.

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Bom, tinha muita música. A música acompanhava, eu cantava ali no palco pertinho e

a música acompanhava, né? Muito bom. E outras peças também, tinha uma peça

chamada Homem sem lei e sem Deus, muito boa peça. Fala em Deus, aparecia

Jesus no último ato e tal, mas não era uma peça bem religiosa não. Tinha as

aparições assim. Então, continue perguntando.

Moira – Os dramas tinham personagens cômicas...

Roger – Ah sim. Quase todas as peças tinham personagem cômica, às vezes muito

importante e bem forte. Outras vezes uma coisinha, uma palavrinha assim uma coisa

ou outra. Por exemplo, eu trabalhei aqui com a Tônia Carrero, eu fiz uma peça russa

com ela, e outros artistas de primeira classe aqui em São Paulo. Eu trabalhei aqui no

teatro com ela e chamava-se... Como era o nome da peça, meu Deus? O jardim das

cerejeiras. Do russo lá, ele era um autor Tchekhov. Bom, eu fazia o que toma conta

das casas... Como é? O mordomo da família. E tinhas as coisas de cerejeiras, até

que compraram aquilo, o mordomo muito velho e tal. Só tinha uma palavra que o

povo ria. Uma hora eu ia falar com ela e a Tônia dizia para mim: “Como você está

velho Firs. Como você ficou velho.” Eu dizia apenas, não era comicidade não, era

peça mesmo: “É porque faz muito tempo que nasci.” E o povo ria. Achava graça

disso. E terminava a peça, com o mordomo, né? Eles iam embora e só ficava o

mordomo. Ele fazia umas falas bonitas e terminava morendo. Ele morria. Então, eu

encerrava a peça. O povo batia palma, eu levantava, cumprimentava e os outros iam

entrando para cumprimentar. Eu falo isso porque a minha filha é gaita, essa que a

senhora viu aí. Eu encerrava a peça. Então quando perguntavam sobre o que eu

fazia na peça ela, com a gozação dela, dizia: Meu pai é que enterra a peça. (risos)

Comicidade. E assim, eu agradava muito, fazia muito sucesso com Os milagres de

Santo Antônio. Não é? Muito, muito sucesso. Nós levávamos perfeitos os milagres

todos que ela fazia e tal, dos peixes que saiam da água, e outras coisas. Dos

milagres, muitos milagres. Continue perguntando, quem sabe eu vou lembrando.

Moira – Quem fazia as personagens cômicas? Os palhaços?

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Roger – Olha, geralmente do palhaço que era a parte cômica do circo. Então, feito

pela parte cômica. E quando eu fazia o Picolino, substituindo meu pai, fiquei fazendo.

Depois eu tive que fazer teatro, sem ser palhaço. Teatro à paisana, mesmo o galã de

muitas peças, daquelas comédias. Comédias boas como: Pense alto, como Marido

número 5, Compra-se um marido. Eram comédias, mas altas comédias, finas

comédias. Muito bom, agradava muito. Eu era o galã, não era palhaço, era o galã. E

tinham aqueles pastelões de circo também, coisas totalmente de circo: Picolino, o

gostosão, Picolino, na casa dos urubus, e assim por diante. Nós intercalávamos,

durante a semana aqueles dramalhões, para chamar a atenção. Quando era sábado

e domingo, uma coisa mais leve, mais rápida e mais leve. Muito bem. Tínhamos a

primeira parte circense muito variada porque toda a noite tinha que mudar. Então,

depois sempre tinha um diretor, naquele tempo ainda era ensaiador, para ensaiar as

peças. Agora, depois teve uma época que não tinha ensaiador. Então, eu passava a

montar peça também. Não tinha jeito eu montava. Eu montei uma peça, a última que

montei foi daquela música Boneca cobiçada. Conhece a música? Tinha a peça e

depois eu montei. Eu passei a ser um pouco do ensaiador também. Eu estava tão

acostumado. Então, aí eu já fazia à paisana, fazia a comicidade também dessa peça

e tal, mas não de palhaço, alguma coisa cômica que tinha na peça. E outras peças

assim que tinha alguma coisa cômica. Eu passei a ficar atrapalhado quando eu

passei a fazer... Eu fazia as peças à paisana, galã, depois eu tomei a parte do meu

pai do Picolino. Passei a fazer o palhaço principal do circo, que era o Picolino. Aí eu

misturava. Fazia o galã no teatro, o palhaço na primeira parte. Era difícil de fazer.

Misturar bem a coisa, como a senhora mesmo falou, que era mais a parte cômica.

Mas muitas vezes tinha a parte cômica que não era um palhaço, era uma pessoa

comum que fazia a parte cômica. Tinha uma outra peça que agradava muito

também... Bom, já falei alguma e a outra não vem na cabeça agora. E o que mais,

tem mais perguntas? Eu vou depois recordando essas coisas e encaixando com o

que for lembrando. Pode continuar

Moira – Como o público reagia nesses momentos cômicos das peças dramáticas?

Roger – Achavam graça, em vez de chorar, faziam deboche. No circo era muito

vulgar isso, porque ia muita plebe, muito povo baixo. Tinha camarotes que eram

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pessoas de primeira classe, as cadeiras. Mas na geral, que chamavam de poleiro,

sempre iam pessoas sem instrução e eles gostavam de mexer com os artistas e de

achar graça na peça. Então tinha que fazer força para aguentar aquela plateia

revoltosa. Mas sempre nos saímos bem no circo. O circo era mais difícil que no

teatro. O teatro é mais sossegado.

Moira- Então o público interferia muito nas peças?

Roger- Interferia sim. No circo, né? E já essa peça que eu fiz com a Tônia Carrero e

outros artistas de primeira classe trabalhamos aqui em São Paulo, trabalhamos no

Rio de Janeiro. Mas teatro o povo assistia classicamente. Muito bem, não tinha

palhaçada, não tinha nada. Era uma coisa séria mesmo. No teatro, no circo era difícil,

não era fácil não. Uma vez eu fui assistir um circo aqui em São Paulo. Uma vez eu

assisti em um circo aqui em São Paulo, quando eu vim passear aqui tinha um circo

aqui em São Paulo e levava peças. E acontecia coisas assim: a moça tinha que

roubar, parece que era O mundo não me quis parece, ela ia no cofre uma coisa em

silêncio, né? Não falava nada, ai abria e tirava, aquele negócio, né? E ela era muito

magra, magrinha, bem magrinha. Aí de repente tinha um gozador, era circo. O

gozador que estava assistindo, e eu estava assistindo também, eu fiquei bobo. Ele

gritou: Saí daí. Bem forte. Saí daí, bacalhau de porta de venda! Bacalhau de porta

de venda! E assim saiam essas piadas, né? Porque o circo antigamente o palhaço

mexia muito com a plateia. Já estão voltando, né? Hoje em dia, os grande circos

estão usando o palhaço falar com a plateia também. Inclusive esse circo Du Soleil,

quando veio para São Paulo o palhaço usa muito a plateia, bastante. E nós fazíamos

desse jeito também. No teatro uma atenção fantástica, e no circo era mais

esculhambado. Parece que iam no circo só para se divertir, dizendo coisas que

vinham na cabeça deles, do povo baixo da geral. Mas a gente tinha que aturar.

Depois com a continuação dos espetáculos, nós íamos, vamos dizer, domando esse

povo para eles saberem assistir. Falávamos muito com eles e ia melhorando. Não

era fácil não, mas conseguíamos, porque se não, não dava certo. Por exemplo nós

armamos uma vez em Fortaleza, no tempo forte da guerra, 1938/39. Em 1939

quando estava no auge da guerra, nós tínhamos peças da guerra também. Peças

antigas que eram adaptadas para a guerra atual. Ou então peças novas feitas para a

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guerra. Tinha uma peça chamada Os Sicários de Hitler, era uma delas. E

mandávamos fazer roupas, tipos franceses, tipos americanos, ingleses, que tinham

os aliados. Os russo eram os aliados, naquele tempo tal. E até dos alemãs, que na

peça eram os inimigos. E íamos fazendo grande coisa. Fizemos tão bom ali dessa

temporada que nós ficamos com o circo no mesmo terreno, demoramos seis meses

naquele terreno. Por que? Por causa das peças, né? Por causa da guerra que

tinham muitos militares. Tinha peças militares que nós usávamos metralhadoras,

fuzis, essas coisas, os militares que traziam deles lá para emprestar para nós

usarmos no circo. O militar com aquelas coisas de guerra. E também, tanto em

Fortaleza como em Natal, nós tivemos em Natal. Nós íamos dar espetáculo lá em... Como chamava ali? O lugar que tinham os americanos lá, muitos americanos, uma

sede americana lá. Tem até um nome lá. Eu não posso nem lembrar mais. Parece

que era Parnamirim, onde os americanos ficavam. E nos íamos dar espetáculos

para eles. Eu tenho um livro de ouro, muito bonito. Parece que tem qualquer coisa,

no livro lá. O comandante do exército agradecendo e tal. E em Natal, na capital,

tinha uma boate America, tinha um outro nome lá. E nós íamos também, levávamos

nossa orquestra para tocar. Levava alguns números lá para apresentar. Sempre de

graça, nunca cobrávamos nada para os militares. Então eles agradeciam e diziam

que aqueles que estavam prestes a conhecer o perigo da guerra e tudo, se distraiam

e tal. Bom, vamos para a frente.

Moira – Eu vou perguntar de três peças e o senhor me fala o que se lembrar. E o

Céu Uniu Dois Corações?

Roger – Essa peça é de um autor aqui de São Paulo. Como era o nome dele, meu

Deus do céu? Antenor Pimenta. Eu tenho o livro da sobrinha dele, fala tudo da vida

dele. E fala muito dessa peça que ele fez. Como é o nome mesmo? E o Céu Uniu

Dois Corações. Nós levamos muito e agradava muito, muito, muito. Nós fazíamos

uma apoteose bonita, tinha um palco já naquele tempo. A moça morre, o rapaz vai

pegar o cínico e o cínico atira nele, ele morre também. Mas vai se arrastando até

onde está a esposa dele, a Neli. Cai por cima dela: “Neli, Neli” e fica morto, os dois

mortos ali. Aí a luz rapidamente apaga e acende. A Neli já é outra moça que está

imitando a Neli na cama. E ele, naquela mesma posição, sai pela cortina. Meu

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sobrinho entrava e ficava naquela posição. Então o povo via os dois ali, para os dois

aparecerem na apoteose. Apoteose muito bonita. Nós fazíamos dois corações

grandes, onde a gente entrava assim no meio, não entrava o corpo todo não, meio

corpo, do lado e do outro. E ele ficava chamando: “Neli, Neli”. E aqueles corações

iam andando assim, e eles iam andando dentro dos corações, até os corações se

unirem. Era muito bonito, agradava muito e era o fim da peça. Essa apoteose. A peça se chama A pupila do senhor pastor. O pastor era eu. A outra filha, mais

nova do que ela, pequena. As duas eram uma só. Aparecia primeiro a pequena,

depois no outro ato já era a grande. A primeira ficava ao lado da mãe, e a mãe

morria. Em cena, numa cama. E a mãe estava muito mal, muito mal e a filha, era

fantástica a minha filha, as duas. A minha filha entrava pequeninha, cega, chorando

com a mãe. O povo tudo chorava, não fazia algazarra nessa não. Depois acabava

aquele ato e o segundo ato era o pastor, mais idoso. No primeiro ato eu usava uma

peruca bonita. No segundo ato tirava e ficava careca. E aí era a mesma filha, adulta.

As duas eram cegas. E tinha, não sei se era um filho, o que que é, que queria casar

com a filha. Aí o pastor não queria e tal, é enredo de peça, muito bonito, muito bonito.

No fim, terminava, essa filha morria também. E lá no monte grande e tal, o pastor

levava ela assim no colo, e fazia umas falas bonitas, jogava ela no precipício. Eu não

lembro mais dessa, faz tempo também. Era a única peça que ela tomaram parte. A

pequena não, a pequena fazia mais peças. A Ronita estudava mais, a Roseli, como

era pequena, ficou mais tempo no circo e tomava parte das peças. Muito bem. Tem

mais outra peça?

Moira – A outra é A Mestiça.

Roger – Nem me fale da Mestiça: Mostraram-me um dia na roça dançando Mestiça

formosa de olhar azougado Um lenço de cores nos seios cruzado Nos lobos das

orelhas pingentes de prata Que vive... Bom, eu cantava isso na peça. Tinha uma cena, porque a Mestiça era a minha senhora. Como essa peça era um

sucesso, sucesso! O povo queria... Quando nós estávamos em Maceió, com aquele

sucesso, aquele sucesso. Mas a minha senhora ficou grávida. Quem fazia a Mimosa

era a filha do Piolin, Ayola. Ela fazia a Mimosa, estava grávida também. E a gravidez

dela eram de duas meninas. Então estava bem volumosa. Então nós anunciávamos,

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pelo rádio, porque o povo queria A Mestiça “queremos A Mestiça”. A gente

anunciava, não tinha televisão naquele tempo, anunciava no rádio, mandava o rádio

anunciar que não podíamos mais levar A Mestiça porque a Mestiça estava em

estado interessante, e a Mimosa também. Então eles respondiam: “Nós não ligamos

para isso não”. Eu vou lhe contar uma coisinha que estava no livro também, talvez a

senhora vá lembrar. Se não lembrar, fica sabendo agora. Nós estávamos em Maceió,

como eu falei agora, conforme agradava tremendamente A Mestiça, né? E tinha que

levar A Mestiça. Quando a temporada ia baixando, diminuindo o povo, anunciava A

Mestiça e era o mesmo que estrear de novo. A Mestiça é do meu sogro Agenor que

extraiu do romance, ele fez a peça do romance, tem um romance A Mestiça. Muito

bem! Então, eu estava falando que em Maceió fez muito sucesso. E chego lá em

Maceió uma companhia de teatro. Por sinal o dono do circo era o Mesquitinha, era

um dono de, um ator cômico que tinha uma companhia de teatro e era famoso.

Mesquitinha. Ele vinha trabalhando até Maceió, chegou em Maceió, estreou o teatro.

O teatro até bom e ele muito bom artista, mas o espetáculo não agradava, o povo

não ia assistir. Nós tivemos que ajuda, o nosso circo, minha família, né? Porque eles

estavam necessitando já, já vinham perdendo dinheiro. Coitado. Tivemos que

comprar uns telões, uns armários, umas coisas que nós não precisávamos, mas

para ajudar também. Mas não é isso que eu quero dizer. O que eu quero dizer é o

seguinte. Uma vez eles vieram assistir o nosso espetáculo. E eles assistiram o nosso

espetáculo e por acaso era A Mestiça. Quando levávamos A Mestiça era só a peça,

não tinha a primeira parte cômica. Porque a peça era um pouco grande, tinha dez

atos. Cumprida, né? Então agradava muito, muito, muito. Não tinha como entrar, era difícil no circo, era difícil de sentar. Nós falávamos: “Olha

o colega do ramo, eles se ajeitam em qualquer lugar, eles ficam”. E eles se ajeitaram.

E tinha um ator, e esse ator era... Como se diz essas coisas? Era... Ele não era bem

homem. Como se diz? Era mulher e homem misturados. A senhora sabe o que eu

quero dizer. Tem um nome desse pessoal, sexual... Não sei que lá. Ele era assim.

Ele era delicado, tudo o que ele fazia era delicado, e tal. Depois o meu cunhado,

irmão da minha senhora, casou com a filha do Piolin, Ayola. E estavam trabalhando

no circo. Ela fazia a Mimosa e tal, ele fazia sempre o feitor, não era o galã da peça.

Então eles foram embora, saíram do circo, porque ela deu a luz em crianças também.

Eram duas meninas e uma morreu, não vingou. E a outra

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estava bem, queriam tratar melhor e então vieram para São Paulo. E muito bem.

Estão em São Paulo. E um dia o Nelson, marido dela, que o Piolin era sogro dele.

Ele era casado com a filha do Piolin. Estavam na porta do circo antes de começar o

espetáculo conversando, de tarde, na porta do circo e na rua. Dentro do circo, mas

entre a porta e o circo. Alguns artistas, o Nelson e o Piolin, conversa, conversa

informal. Estavam lá conversando sobre isso, isso, aquilo. Aí chegou este artista do

Misquitinha, esse delicado, chegou, cumprimentou a todos, entrou na conversa

também. Todo mundo já conhecia ele. Ele era artista de teatro e tal, mas era desse

jeito. De repente ele falou: “Seu Piolin, seu Abelardo, que o Piolin chamava-se

Abelardo Pinto. Seu Piolin, eu estava com a companhia do Misquitinha em Maceió. O senhor não sabe o que foi que eu vi.” “O que foi que você viu lá?” “Eu vi, eu fui ao

circo que tinha lá, estavam levando A Mestiça, mas seu Piolin a moça que fazia a

Mestiça estava grávida! Com o bucho desse tamanho. Pois é, eu fiquei bobo de ver

aquilo. Como é que a ingênua da peça está grávida e está representando? Como é

que tem coragem disso aqui?” Aí o Nelson, que era irmão dela. Irmão da Anita, disse:

“Ah, isso não tem importância não. Ela é minha irmã. Quem fazia isso era a minha

irmã, uma grande artista.” Ele já ficou meio sem saber o que fazer, o que falar.

Estava falando mal da moça e era irmã do Nelson. Aí ele disse: “A Mestiça não era

nada, ela usava umas saias grandonas feito escrava, quase não aparecia. Mas o

pior mesmo era a mocinha a Mimosa, que estava grávida dupla com o bucho desse

tamanho.” E ele metendo o pau, o que ela estava fazendo a mocinha? A Mimosa da

peça com uma barriga desse tamanho. Aí o Piolin falou: “Bom, às vezes é obrigado,

Ayola é a minha filha.” “É sua filha?! Oh, desculpa, desculpa.” Então ele deu um fora,

não estava dando certo. Que coincidência, né? Ele estava falando da irmã do Nelson

e da filha do Piolin. Pois é bobagem, coisas que aconteciam. A Mestiça estava presa no tronco, com as mãos presas no tronco, em cena. De noite,

de madrugada, eu saia da casa, que tinha no teatro a frente de uma casa. Eu saia, o

microfone já estava enganchado lá. Eu saia com o violão, ia perto do microfone e

cantava “A Mestiça”. E ela estava presa porque ela tinha fugido, para encontrar uma

coisa interessante da peça. E ele terminava de cantar, ia no meio do palco e falava:

“Porque você fez isso, Mestiça? Porque você fugiu?” “Mas eu voltei seu feitor, eu

voltei.” “Não voltou não, porque a Mestiça que eu amei morreu. Cai o pano. Fim

desse ato.

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E o público ficava encantado. No final ele casava com ela. Na frente da casa descia

um portão, um negócio que já estava preparado. E era o altar de uma igreja. Entrava

um padre, tinha o moleque Saci, também que era cômico também, muito cômico.

Entrava de braço com ela e ele fazia nosso casamento. E nós terminávamos a peça

casando. E a Dona Maria era brava, a mulher do Nhô Gonçalves. Mas não queira

saber que sucesso era essa peça. Que peças você foi arrumar do Circo Nerino! Que

coisa! (risos) Mas muito boa, muito boa a peça! Agradava, mas agradava. Uma vez

em Natal... O pano do circo a gente encerava para quando chover não atravessar

água. E só estava encerado um pedaço, ainda não estava encerado tudo. O pessoal

da geral, das cadeiras, correram tudo para o picadeiro, porque não chovia ali. E caia

aquela chuva e nós levando A Mestiça. E agradou do mesmo jeito. Aí eu falava: A

Mestiça é uma peça que agradava no seco e no molhado. Agrada de todo o jeito!

(risos) Eu tenho uma pena de nós não levarmos mais essas coisas aqui. Agradava o

público e nós que estávamos representando.

Moira – E aquela: Jerônimo, o herói do sertão?

Roger – Quem era o herói do sertão? Quem você acha que era?

Moira – O senhor?

Roger – Era eu sim. Jerônimo era uma peça que a rádio Nacional do Rio inventou.

Tinha o Jerônimo e o companheiro dele, o moleque Saci. Jerônimo, o herói do sertão,

já está dizendo o que ele era. Então nós levávamos, tinha umas duas ou três peças

com o Jerônimo, o herói do sertão. Era um diretor que ensaiava as peças, que

extraia de livretos, disso, daquilo, e fez as peças. Uma chamava-se, era... Três

peças. Eu me lembro, deixa eu ver qual que me lembro. Ah, meu Deus do céu como

estou ruim, faz tempo que não faço palestras, não faço essas coisas. Faz muito

tempo. Porque eu só fazia de Picolino. Fazia palhaçada de Picolino. Depois como eu

estava cansado comecei a fazer palestras. Depois eu fiquei doente, fiquei

hospitalizado um tempo. E esse tempo foi passando, passou um tempo e as

palestras foram ficando, ficando. Então, essa peça aí o Jerônimo, o herói do sertão,

ele sempre trabalhava para o bem, não é? E tinha os cínicos, aquela coisa, ele

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lutava, usava revolver. Muito bem. E o moleque Saci era ajudante dele, era o cômico

da peça. E uma chamava-se Herança Maldita. Parece que é nesta peça que não

tinha um homem que não tinha uma perna. Era uma perna de pau, quando ele

andava fazia toc, toc, toc. E ele sempre aparecia de noite, em silêncio. Aí o povo já

sabia que era ele. Sabia que era o bandido, o fantasma, sei lá. Ele briga por causa

de herança. E o Jerônimo sempre estava ali, tomando conta das coisas, né?

Botando as coisas no jeito. No fim descobriram que essa perna era mentira, ele tinha

a perna boa, ele que botava um negócio ali. E era da família, irmão da moça... Era

uma coisa assim. Mas o povo gostava, viu? Gostava os grã finos e o poleiro da geral.

Tinha uma outra que se chamava Uma cruz na estrada, e tinha outra mais também.

Jerônimo, o herói do sertão e o moleque Saci. Levávamos em propagandas,

programas assim para espalhar, com o retrato do Jerônimo e do moleque Saci. E da

Mestiça também, do feitor com a Mestiça. Bonitos programas, bonitos.

Moira – Quem fazia o moleque Saci?

Roger - O moleque Saci parece que era o... Tiveram dois que fizeram. Porque

depois do moleque Saci da Mestiça, era o mesmo que fazia no Jerônimo. Até o

nome, moleque Saci também. Um pretinho, na Mestiça, que fazia a comicidade

também, mas não tinha aquele defeito nas pernas não. Tinham dois rapazes

baixinhos, que se pintavam de negro, para fazer o moleque Saci. Um era o cantor do

circo, ele chamava-se, ele morreu já, ele chamava-se: Paulo Sobral. Grande cantor

pernambucano que fazia muito sucesso. Ele cantava no circo músicas mexicanas e

ele se apresentava como o mexicanito. Ele se arrumava no violão, cantava aquelas

músicas mexicanas e agradava bastante.

Moira – Na primeira parte do espetáculo?

Roger – Na primeira parte sim. Ele fazia ponto também, quando precisava ele ia

para o ponto, para a caixa do ponto. Ele que fazia o ponto. E o outro depois era só o

ponto, pois esse saiu. E aquele que fazia o ponto saiu, era o Walmir, baixinho

também. Fazia a mesma coisa que o outro mudou, apenas saiu um e entrou o outro.

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Paulo Sobral o cantor e Walmir, um rapaz que entrou no circo em Maceió, porque

gostava da gente, da família. E acompanhou o circo, acompanhou o circo e ficou no

circo, não saiu mais do circo. Até parar o circo ele ficou no circo. Deixamos ele em

Cruzeiro. Puxemos ele numa fábrica de vagões, de trem essas coisas. Ele era

inteligente. Ele mora em Cruzeiro. Ele tem família, tem irmãos, filhos, a senhora dele

e tudo. De vez em quando ele vem passear com a senhora aqui. De vez em quando

eu ia lá. Agora não saio mais nem de casa. Do jeito que estou, né? Tenho

dificuldade para andar. Bom, acabou então?

Moira – Só tenho mais uma pergunta. Vocês mencionou que tinham uma orquestra,

a música era bastante presente no Circo Nerino, não é? A orquestra fazia também

as sonoridades da peça? Aqueles sons que enfatizam o acontecimento cênico?

Roger – Nós tínhamos duas coisas que faziam isso. Nós tínhamos os aparelhos de

som, porque nós usávamos no palco microfones com caixas acústicas. Para a gente

não usar o microfone falava bem forte para os microfones pegarem. E nos aparelhos

de som tinha essas músicas bonitas, conforme precisava a peça. E muitas peças,

muitas músicas eram do circo, orquestra do circo que fazia. Então tinha esses dois

movimentos musicais. Conforme eu já lhe disse, eu cantava a Porta aberta, com os

músicos acompanhando. Já O Ébrio já estou num bar muito esculhambado que o

ébrio vivia ali. Ele e o companheiro dele, o... Vicente? Não me lembro como era o

nome do ébrio.

Moira – Gilberto?

Roger – Gilberto Silva. Olha aí está melhor da cabeça do que eu. (risos) Gilberto

Silva e o companheiro dele era o... Como era mesmo o nome dele? Ele era meio

cômico esse homem. Tanto que duas coisas engraçadas no final da peça: ele já

tinha abandonado, a mulher fugiu e levou as joias com tal. Aí eles ficaram

conversando na mesa do bar, ele o companheiro dele. Bebendo, os dois bebões

mesmo. Sempre tinha que vir uma garrafa de cerveja geladinha para a gente

aproveitar também, né? Bom, vou falar qualquer coisa ligeiro disso aí. O... Como era

o nome do companheiro dele? Bom, eu vou lembrar. Ele perguntava: Gilberto, você

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que é médico o que acha das mulheres? Se eu lembrar alguma coisa vou falar, viu? Se eu lembrar. Se eu não lembrar, fica por isso mesmo. “As mulheres, meu amigo,

são...” Aí ta vendo, tudo empacado. “são prisioneiras?” Não. “As mulheres são

sofredoras desde o berço até o túmulo, mas quando a mulher tem o dom da

maternidade, quando vê o rosto do nenê, elas...” Ta tudo errado, tudo errado. “Todo

sofrimento desaparece como por encanto. E ela é feliz. Pela vaidade da procriação.” Quem está escutando é o dono do bar e é um português broco, daqueles

portugueses bem burro mesmo. Qualquer conversa que eles tinham, ele ia escutar. Quando acabo de falar isso, ele batia na mesa e dizia: “Eu que o diga.” “Ué, seu

Manoel já procriou?” “Não senhor, eu não, minha mulher.” “Nós estamos falando de

procriação e o senhor se espremeu todo aí.” “Eu não gosto de brincadeira, comigo

não hein? Não brinca comigo não.” Então eles falavam: “Poxa que susto, hein? Eu

pensava que tinha chegado a nossa vez.” Bom, uma era essa, a partezinha cômica. A outra entra no bar dois ou três. Uma senhora, um senhor e tal. Que eram esse

povo que vem conhecer o país e tal, eram turistas. Turistas. Entravam e sentavam

numa cadeira, pediam uma bebida e tal, ficavam ali. E depois ficam olhando e

chamava: “O senhor aí.” Era eu, o Gilberto Silva. “Quem eu?” “O senhor, chega até

aqui, por favor.” Eu chegava até eles. “Como é o seu nome?” “Eu já tive um nome,

mas já esqueci. Esqueci do meu nome.” “Porque é que o senhor bebe?” “Eu bebo

para lembrar também. O senhor quer saber porque eu bebo? Eu vou lhe explicar

porque eu bebo.” Aí é que ele cantava O Ébrio: Tornei-me um ébrio e na bebida

busco esquecer Aquela ingrata que eu amava e que me abandonou. E cantava O

Ébrio todo ali, a música do Ébrio. E dizia para ele: “É por isso que eu bebo”. E ia

saindo lá para a mesa. Aí ele chamava o Pedro Cruz! Sabia que eu ia lembrar: Pedro

Cruz. E chamava: “O senhor, faça o favor.” O outro era meio gozador. “Quem eu? Já

vou tal” Ia para lá capengando mesmo. Aí perguntava para ele. Uma comicidade rápida, o

povo ria. “Porque é que o senhor bebe?” “Ah, eu bebo para esquecer.” “Esquecer o

quê?” “Não sei, não lembro, já esqueci” E o povo gostava. “Esquecer o quê?” “Não

sei, já esqueci.” E saía. Eram as duas partes cômicas, aí chegava a mulher e tinha

aquele negócio todo, era o final da peça. Chegava a mulher, ele ia entrando. A

Marieta que fugiu com o outro cara. E ela estava procurando o marido que era o

Gilberto. Aí o Pedro que já conhecia a história, da mulher e do Gilberto. Ia recebê-la.

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Marieta: “Quero ver. Vamos lá falar logo.” “Não, você fica escondida, primeiro vou

falar com ele, depois eu lhe chamo.” Aí que ele fazia aquela fala: “Gilberto, você que

é médico. O que você diz das mulheres?” Aquela coisa que lhe contei. Aí ele dizia:

“E se sua mulher aqui aparecesse?” “Minha mulher?” “Eu estou falando por acaso.

Por acaso ela aparecesse. Você perdoava?” “Perdoava.” “Palavra de homem?” “De

homem e de bêbado também”. Aí ele saia e chamava ela, que estava escondida lá.

Ela ia falar com ele: “Gilberto.” E se ajoelhava na frente dele. Ele se assustava:

“Marieta” Aí olhava para o Pedro Cruz e o Pedro Cruz falava: “Eu falei por acaso, eu

falei por acaso.”. O povo ria dessas bobagens que ele fazia. “Perdão Gilberto,

perdão.” “Você já foi perdoada”. Quando ele casou com ela, ela deu uma medalha

com um coração, ela dizia que este era o meu coração para ele. “Você está

perdoada. Há muito tempo que eu já lhe dei o seu coração”. Ele tirava a correntinha

com aquela medalha: “E eu lhe devolvo o seu coração”. Devolvia a medalha para ela

que era um coração. E saia andando. “O Gilberto, você não ia perdoar?” Aí vem a última palavra da peça, que encerra a peça, a palavra chave da peça e termina a

peça. “Você não falou que perdoava?” “Eu falei que perdoava, mas não falei que me

reconciliava.” E saia andando: “Tornei-me um ébrio...” E saia cantando e a cortina ia

descendo. Como agradava sucesso. Todas essas peças que você falou foram

sucesso fantástico do Circo Nerino. E nós levávamos as outras também, as

comédias, porque demorava nas cidades, quer dizer, onde a cidade era maior, a

população era maior, podia demorar mais. Cada espetáculo é um novo programa,

tanto da primeira parte quanto do teatro. E tinha sempre bastante gente assistindo o

circo, a temporada toda. E fizemos muito sucesso de ponta a ponta do Brasil. O que

a senhora quer saber mais?

Moira – É só uma curiosidade, o senhor disse que é maçom. Sempre teve essa

relação do circo com a maçonaria?

Roger – É. Em quase toda a cidade que nós íamos, nós dávamos um espetáculo

para a maçonaria. Porque eles estavam quase sempre construindo o templo deles e

eles pediam um tijolinho do templo para nós. Nós dávamos aquele tijolinho era o

resultado de um espetáculo. Entregava para eles e eles compravam os tijolinhos que

eles queriam lá para fazer. E eu tive muita sorte na maçonaria, sempre ajudando,

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sempre ajudando. E tinha o livro em que explicavam como nós ajudávamos, nisso e

naquilo da maçonaria. Eu fui iniciado em Fortaleza, por causa daquele tempo, que

tem um tempo para ser iniciado na maçonaria. Porque tem um tempo, se não tiver

morando na cidade, e eles tem que fazer aquela pesquisa da pessoa, o que é o que

não é. Entrou eu e meu tio Gaetan. A senhora sabe quem é Gaetan, né? Muito bem.

O homem da garganta de platina, o pato rouco. Em Fortaleza. Então lá eu cheguei a

ser levado até o grau trinta, o último grau é trinta e três. Do trinta para o trinta e três

é difícil, muito, muito difícil. Tem que estudar muito e eu estudei. Aí eu não queria

mais ser elevado na maçonaria. Eu achava que o grau trinta, era o cavaleiro Kadosh

era muito bom e não precisava mais alto. Mas cheguei aqui em São Paulo, tem um

irmão aqui ele é formidável, muito amigo. Ele disse: “Você vai subir, você vai passar

para o grau trinta e um. Então trate de comprar o livro tal e tal. Quando estiver pronto

você me avisa e faz o exame e passa para o grau trinta e um”. Assim foi com o grau

trinta e dois, eu não queria mas ele... Aquela pessoa que dá um empurrãozinho de

ombro, né? Pois é, grau trinta e dois, eu tinha que ir no palácio maçônico toda

semana para ouvir o que eles falavam, para estudar. Comprava os livros, eu tenho aí

ainda os livros. “Você agora vai pegar o último grau: trinta e três. Só que o grau trinta e três só é entregue no Rio de Janeiro. Quando você estiver

pronto nós vamos ao Rio de Janeiro e recebe o grau trinta e três.” Eu sabia do nome,

o que eles faziam lá, sabia tudo, nem disso eu me lembro mais. Faz tempo viu? Aí é

que foi fogo, estudar aquele grau trinta e três, minha nossa Senhora. Mas eu

consegui estudar, fui ao Rio, recebi o grau trinta e três, é o último grau da maçonaria.

Pois bem, tempos depois, está vendo que estou com uma medalha aqui no peito?

Esta medalha é a última medalha que a maçonaria entrega para o maçom. Última

coisa. É o maior evento que tem na maçonaria, esta medalha. É a medalha de Dom

Pedro I. Tem muito pouca gente que tem essa medalha. A senhora não faz ideia.

Veio o grão mestre geral da maçonaria no Brasil, veio de Brasília que é a sede do

grande Oriente. Veio aqui em São Paulo no dia da minha recepção para entregar a

medalha e pôr no meu pescoço. Foi um festão, um festão. Esse retrato fizeram dois,

um me entregaram e o outro levaram para o palácio maçônico e ficou exposto lá.

Igual a esse. Pois bem, foi um festão. Agora veja como acontecem as coisas. Esse

era a última medalha que chegava, pouco tinham essa medalha, poucos chegavam

a ela. Felizmente, graças a Deus, eu cheguei. Agora, veja só o que

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aconteceu. Quiseram me homenagear na minha loja, aqui em São Paulo, como me

elogiaram para receber aquela medalha. Mas a maçonaria não tinha mais medalhas.

Aquela era a última, dali para cima não tinha mais. Sabe o que eles fizeram?

Fizeram uma outra medalha, pouco menor do que esta, porque cada medalha, no

centro, tem a figura da pessoa. Essa aí tem o Dom Pedro I, na minha tinha a minha

figura no centro. E era uma medalha, quando eles queriam homenagear uma pessoa.

Fantástico, incrível, não gosto nem de falar sobre isso. Pois é, agora eu quase não

posso fazer mais nada. A maçonaria precisa daquele vigor e tudo. Você sabe que

desfilei agora no carnaval? Nossa foi fantástico, eles fizeram... Era da Vila Maria. A

escola de desfile. Eu já tinha sido de circo, de rádio (tinha rádio no circo, eu fui de

rádio), eu fui de teatro, aquele velho que lhe contei do teatro. Eu fui de... Do que

mais eu fui? Eu fui de muita coisa na vida, muita coisa, nem me passa pela cabeça.

Só faltava ser de carnaval. Como é? Do carnaval? É como se fosse sambista,

carnavalesco! Agora eu sou carnavalesco também. Eles fizeram... Essa caminha que

eles fazem no desfile. Ano passado eles desceram para o segundo grau, segunda

posição. Então eles queriam voltar para o primeiro, então eles fizeram coisas alegres,

brincadeiras do passado. E entrou o circo. O pessoal da maçonaria usava este

desfile. Vieram me chamar se eu queria fazer o Picolino lá. Eu nunca fiz, mas eu vou

fazer Picolino. “Você vai desfilar, tá? Esse negócio tem que subir, passar para a

primeira posição.” Eles fizeram uma cabeça, duas vezes o tamanho desta sala. Tem

tanto retrato aí. Enorme a cabeça do Picolino. Da língua do Picolino, saia uma língua

comprida, subiam por trás e escorregavam pela língua. E eu ficava em cima da

cabeça, fantasiado, cumprimentado o povo. O negócio foi um sucesso! Ganhamos o

desfile. Muito bom. Fiz da minha vida feliz. Muito feliz!

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Entrevista 2 – Walmir dos Santos

Walmir - Ela ficou na cidade esperando a hora de ir para a maternidade. E eu com a

responsabilidade de ligar para o Roger para ele vir, porque o circo estava numa

cidade vizinha. E desse encontro, dessas visitas que eu tinha frequente com ela,

para saber se ela precisava de alguma coisa, chegou no final do ano e eles me

convidaram para passar as férias. Eu estava de férias da escola, estava terminando

o primeiro ano do ensino médio e trabalhava na secretaria da escola. Estava de

férias dos dois lados, né? Aí fui passar essas férias com eles, e essas férias durou

quinze anos. Aí o circo acabou aqui, em Cruzeiro. E já tem cinquenta. Tinha quinze,

eu fiquei no circo, trinta. Mais cinquenta aqui, oitenta.

Moira – E o senhor sempre voltava para a sua cidade natal, Maceió?

Walmir – Voltei pouquíssimas vezes. Na época do circo, eu fui duas ou três vezes. E

minha mãe veio, meus irmãos vieram também. Aí ficamos aqui em Cruzeiro, daqui

de Cruzeiro eu fui duas vezes só a Maceió. Depois eu nunca mais fui.

Moira - E tem parentes lá?

Walmir – Tenho primos que eu nem me lembro mais, que já nem devem estar vivos.

Que quantos anos eu saí de Maceió?

Mas foi uma aventura muito gostosa. Foi muito bom! Deixou muitas saudades em

todos os lugares. Ele funcionou um mês e meio seguindo. Quando nós chegamos

aqui eles já estavam com aquela ideia de fechar o circo, encerrar as atividades. Já

havia um tempo que eles estavam querendo, e veio vindo, veio vindo, chegou aqui

em Cruzeiro, eles resolveram.

Aí, a maioria dos outros artistas foram para outros circos, eu não tinha intenção de ir,

porque eu fui praticamente criado com eles. Com quinze anos eu fui morar com eles

né? E fiquei por aqui.

Aí, fui estudar, porque eu tinha parado de estudar. Não tinha ensino médio à noite. O

único ensino médio à noite era o técnico de contabilidade. Aí eu fui fazer. E quinze

dias depois que o circo acabou entrei na fábrica. Eu casado já e com três filhos,

tinha que trabalhar, né?

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Moira – E o circo sustentava todos, não é?

Walmir – Sim, tinha salário, todo mundo era assalariado, tinha seu. E eu fiquei de pé

e mão amarrada, porque era eu, a esposa, três filhos, minha mãe e irmã; estavam

comigo. Mas logo, como diz o ditado: Deus é muito generoso e muito bom, e não

despreza ninguém, né? Me arrumou um emprego logo. Com treze dias e eu estava

trabalhando. E fiquei na fábrica quase trinta anos, me aposentei na fábrica. Aí

terminei o técnico e fui fazer faculdade, terminei administração. Depois fui dar aula

no CEMA, de contabilidade. Depois mandei uma proposta e fui para Jundiaí,

trabalhar em uma empresa em Jundiaí. Lá eu fiz pós-graduação. Tudo que dava

para eu fazer, eu estava fazendo. Até que um filho quis montar uma empresa e pediu

para que eu viesse para cá. Eu fiquei dez anos em Jundiaí. Aí ele falou pai eu quero

o senhor aqui, aí eu vim, né? O que é que a gente não faz pelos filhos? Mas tudo foi

válido, não posso reclamar de nada. De vez enquanto tinha as voltas, né? Mas muito

bom! Eu estou feliz, porque os quatro, todos bem. A minha filha que é a segunda,

primeiro é o marido daquela menina, depois é a minha filha. Ela é psicóloga, trabalha

muito, tem consultório em Salvador. Teve aqui comigo por três anos, montou

consultório aqui, trabalhou muito. Foi embora agora para Salvador, todo mundo

querendo segurar ela, ninguém queria que ela fosse embora. Trabalhou em um

Instituto em São José, o Instituto VOCE. Nossa foi um show! Mas está na Bahia, ela

gosta de lá. Em Salvador mesmo. Tem apartamento, é solteira, não quis saber de

casamento, não quis saber de filhos. Ela falou: Meus filhos são meus sobrinhos,

acabou. Esta bem.

O Jerônimo foi, quando eles montaram o Jerônimo, eu não trabalhava. Quem

trabalhava era um outro ator, que era até um cantor, Paulo Sobral. Aí quando Paulo

Sobral saiu, aí na última hora me jogaram o papel. Porque eu fazia a Mestiça, Tico-

Tico. Fazia ...E o Céu Uniu Dois Corações, o gago, o Juca. E depois que o Paulo

Sobral saiu, é que eu fui fazer o moleque Saci, no Jerônimo. Até o tipo físico era

parecido, só que era branco, ele que bem claro. Ele era cantor, ele cantava músicas

em castelhano, sabe? Era um bom cantor brasileiro. O moleque Saci ele fez poucas

vezes, porque a peça foi montada e logo ele saiu.

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No livro Circo Nerino não tem nada sobre o Garrafinha. O meu nome foi dado devido

a um personagem, que era o Garrafinha. Que era uma peça de estreia, não me

lembro o nome agora, eu sei que o personagem se chamava Garrafinha. Foi eles

cismaram que eu ia ser, o Roger ficou doente, foi para São Paulo fazer um

tratamento, ficou alguns meses fora, então me jogaram essa fria. Eu fiquei uns

quatro ou cinco meses fazendo o palhaço principal, até o Roger voltar. E depois que

ele voltou eu continuei trabalhando com ele, mas não como palhaço, eu fazia o

clown que eles chamam. Cada vez que ele precisava sair, ou estava cansado, ele

falava: hoje você vai. E nas matinês era eu que fazia.

Moira – O pai dele já não estava mais atuando?

Walmir – Não, o pai dele morreu em 62. Ele morreu uma semana antes de minha

filha nascer.

Moira – E o senhor era muito próximo dele?

Walmir – Muito próximo, muito mesmo, era como se fosse o meu pai. Eu cuidava

muito dele, tudo que ele precisava era eu. Às vezes a filha dele fala: “Papai o Walmir

não está aqui.” “Tudo bem eu espero”. Ele fazia um curativo, ele tinha um eczema,

ele fazia curativo. Esse curativo era eu que tinha que fazer. Alguém fazia quando eu

não estava, às vezes eu saia com o Roger para ver praça, fazer a visita na cidade

para poder montar o circo, e ele tinha que fazer o curativo e a filha: “Pai vou fazer o

curativo.” “Não, quando o Walmir chegar...” “Pai, o Walmir vai chegar tarde”. “Não

tem problema, a hora que ele chegar”. Mas terminava fazendo, porque não podia

ficar esperando. Mas eu chegava e tinha que desmanchar o estava feito e fazer de

novo. Ele não ficava satisfeito, tudo, tudo, tudo, a medicação, tudo. A dona Ivone,

que era filha, a própria Armandine, que era esposa, ele queria que eu fizesse. E eu

fazia, aquilo ali foi muito bom, foi uma coisa assim que até hoje eu sinto, porque foi

um paizão para mim. E o meu filho mais novo era pequeninho, nossa ele era

apaixonado por criança! Então já tinha mais alguma coisa para me ligar, né?

Quando ele foi para o hospital, lá em Itabira, fui eu e o Roger. Na hora de ficar lá, eu

tinha que ficar. O Roger falava: “Pai, o Walmir está cansado. Eu fico aqui e ele vai

embora”. “Não, ele tem que ficar”. Aí ficava eu e o Roger. Mas sempre assim, até a última hora. No domingo que ele faleceu foram dois espetáculos, o espetáculo da

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matinê e o da noite. Eu estava morto de cansado, a minha filha era novinha, não

dormia direito, eu estava morto de cansado, aí eu falei para o Roger: “Hoje eu não

vou ficar, to muito cansado”. Aí ele falou assim: “É, você pode ir embora”. Aí eu fui

falar com ele, não adiantou, ele começou a chorar. “Não, não vai, não vai”. Aí eu falei

para o Roger: “Avisa lá que eu não vou”. Aí ele mandou o sobrinho para ficar lá

também comigo. Naquela noite ele faleceu.

Moira – Foi durante o espetáculo?

Walmir – Não, foi após o espetáculo, foi bem... Eu já acabado o espetáculo, tinha ido

para lá pra ficar, pra dormir e não ia ficar, e terminei ficando, mandei só avisar em

casa que eu ia ficar. E naquela noite ele faleceu.

Moira – E a sua escola foi o Circo Nerino?

Walmir – Foi, a minha história de circo e teatro foi no Circo Nerino, eu não conheço

outra.

Moira – Em Maceió o senho teve contato com algum outro circo?

Walmir – Não foi o único circo. O primeiro contato que eu tive com o circo, de assim

me aproximar, foi o Nerino em 1951.

Moira – E você então aprendeu sobre palhaço e criou o Garrafinha. Ele tinha um

figurino específico?

A maquiagem era diferente do Roger, a vestimenta também era diferente. O meu era

uma calça preta e um paletó xadrez. Eu até tenho fotografia, né? Tudo no Nerino e

até hoje a família... Eu me ligo muito. E até hoje o Roger, ele e a esposa são os

padrinhos do meu primeiro filho. E o menino que faleceu era meu afilhado. Quer

dizer a gente estava muito ligado, muito ligado.

Moira – O senhor atuou com os dois, com o casal, muitas vezes, não é?

Walmir – Nossa muitas vezes. Eu me lembro que no teatro sempre trabalhamos

juntos. Quando ele fazia o Jerônimo, eu fazia o moleque Saci. Ele fazia o feitor da

Mestiça e eu fazia o Tico-Tico. No Céu Uniu DoisCorações eu fazia o gago, a mãe

dele era a velha cega e a Anita era a menina que cuidava da velha. Então a gente

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estava sempre ali, né? E no dia a dia também. No dia a dia tudo a gente estava junto.

Moira – O senhor lembra como era que chegava uma nova peça para a companhia?

Walimir – Olha, quando eu comecei com o circo, ele já tinha um repertório. E esse

repertório permaneceu muito tempo, algumas foi ensaiado A pecadora, mais duas ou

três peças que foram ensaiadas, porque na época que eles montaram o teatro era o

pai da Anita que era o responsável. Era o ensaiador, o senhor Agenor Garcia. Então,

essas peças permaneceram por muito tempo, todas, que foi montada por ele. E

depois disso, depois que ele saiu, foi montada mais duas ou três peças e não teve

mais continuidade com outro repertório.

Moira – Ele saiu em função do que?

Walmir – Porque ele estava querendo descansar, então ele foi embora para São

Paulo. Ele saiu do circo, não foi morar em outro.

Moira – O senhor chegou a ensaiar as peças com ele também?

Walmir – Não, quando eu comecei as peças já estavam montadas. Quando saia um

eu entrava na vez dele, sabe? Eu substitui muito o Paulo Sobral. Os papeis de

cômico, geralmente era o Paulo Sobral que fazia. Quando ele saiu eu assumi todos

os papeis do Paulo Sobral. Eu estava ali, eu era o ponto, né? Na época eu era o

ponto, então eu sabia a cena. A Mestiça, por exemplo, eu pontuei a Mestiça muito

tempo. Aliás, todos os papeis que ele fazia, quando ele saiu eu já fui eu que assumi,

todos eles. Inclusive no Deus lhe pague ele fazia o mendigo junto com o Roger, esse

mendigo fui eu que fui eu fazer. O Juca, o gago, o Tico-Tico, o moleque Saci. O

moleque Saci ele fez na ocasião em que a peça foi montada, logo ele saiu.

Moira – E quem monta essa peça foi o Joaquim Silva ou o senhor Agenor?

Walmir – Não, teve algumas peças que foram montadas pelo Joaquim Silva, mas a

maioria foi pelo seu Agenor.

Moira – Acho que o Jerônimo foi pelo Joaquim Silva, não foi?

Walmir – O Jerônimo foi.

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Moira – Ele veio de outro circo?

Walmir – Não sei, porque quando vinha alguém assim, já vinha com alguma

referência ou... Eu não tenho bem noção como que foi que ele começou. Eu lembro

que ele veio para lá, começou a montar as peças e eu não sei qual foi a referência

dele para o Nerino.

Moira – Ele ficou pouco tempo? Só o tempo de ensaiar essas peças?

Walmir – Sim e depois saiu.

Moira – Como vocês ensaiavam?

Walmir – A gente lia o texto, inclusive era eu que datilografava toda a peça por papel

de cada personagem. E depois nós íamos fazer a leitura, né? Cada um recebia a

sua fala e o ponto, a pessoa que ia pontuar, ficava ali para acompanhar, não é?

Então a gente fazia toda a leitura, cada um com o seu papel, até ir para a cena

treinar para a apresentação. Aí já sem o papel, só ouvindo o ponto.

Moira – E isso duravam muitos dias?

Walmir – Não, não, não, durava o quê? Uns quinze dias no máximo. Nós

ensaiávamos todos as tardes, né? Às duas horas começava o ensaio, ia das duas

às cinco.

Moira - E o seu Agenor, que ensaiou muitas peças, orientava os atores, dizendo o

que fazer?

Walmir – O ensaiador interferia sim, na maneira de você falar, como você devia

estar em cena. Tudo isso o ensaiador tinha que passar. Quando já estava entrosado

já não tinha mais problema. Como eles ensaiavam as peças.

Às vezes saía uma pessoa e tinha que ensaiar outra pessoa para substituir, mais aí

era rápido, porque um personagem só. Não tinha muito trabalho todo o elenco, era

só um, era mais rápido.

Eu, por exemplo, fui ponto muito tempo, eu não tinha problema, eu sabia as peças

todas. Quando eu ia para a cena, se faltava um e tinha que substituir, eu já não tinha

problema. Ensaiava, porque era indicado o ensaio, para você ter mais ou menos

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noção da posição em cena, aquela técnica toda que nós temos, né? Mas o texto

mesmo eu não tinha mais problema.

Moira - Tinha algum espaço para improvisação? Ou vocês se atinham ao texto

mesmo?

Walmir – Por exemplo, as comédias, comédia você tem muito espaço para

improvisar alguma coisa, né? Às vezes um personagem que é o cômico da peça,

você não pode fugir muito, mas você tem a chance de sair com alguma coisa na

hora, né? Improvisar alguma coisa, sempre tem. Nos dramas não, você tem que

seguir à risca o texto, né? O público vibra muito. Nós tínhamos um público

sensacional, o Nordeste inteiro era muito bom para teatro. E a esposa do Roger foi

uma excelente atriz, ela era muito conhecida no Nordeste. Fortaleza, eu lembro,

quando nós chegamos em Fortaleza ela não estava, ela estava em São Paulo

esperando uma filha e ela ficou em São Paulo na casa dos pais. Ela ficou quatro

meses em São Paulo. Quando ela voltou, a peça de estreia dela, porque ela era

conhecida porque ela tinha sido do Garcia. Quando ela entrou em cena, a primeira

vez na peça, a plateia aplaudiu assim que foi uma coisa fantástica. Só na

apresentação dela. Quando ela retornou, a estreia dela nessa volta, foi com A

Mestiça. E nós levamos a semana inteira a peça. Todos os dias a casa cheia. E ficou

uma coisa muito bacana, porque eu já tinha muito entrosamento com ela, né? E

quando ela voltou foi justamente A Mestiça que eu também já estava entrosado e a

primeira aparição dela, ninguém esperava, porque ela estava fora e quando estreou

o circo ela não estava. Mas ela era conhecida, tinha muito recorte de jornal na

cidade falando dela com o Garcia, quando ela estava no Garcia. Então foi uma

apoteose a aparição dela. E cada vez que ela entrava em cena, podia repetir a peça

todos os dias, a primeira aparição dela era um aplauso. Foi fantástico! Muito bom. A

montagem da peça era muito boa, muito boa.

Moira – Nos dramas o público chorava?

Walmir – Chorava, chorava.

Moira – Gostava mais do que as comédias?

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Walmir – Não, as comédias sim a turma gosta muito, mas o pessoal, a plateia de

circo e do teatro é uma plateia mais sentimental. A paixão de Cristo, por exemplo,

você via a plateia chorando na apresentação. Tinha uma peça, por exemplo, o

próprio O Mundo Não Me Quis a gente chorava em cena, na plateia. Porque a turma

vibrava mesmo na apresentação, era muito bom! Eu vivi muito isso aí, era muito bom!

E a família ainda está marcada em mim. Porque a minha adolescência, eu cresci lá.

O seu Nerino, pai do Roger, era muito preocupado, ele conversava muito comigo,

dava muito conselho, porque eu sem pai e sem mãe lá. Meus pais no Nordeste e eu

viajando com o circo. Eu não podia pôr o pé fora da calçada. Valeu muito.

Moira – Era um circo bem família, não é?

Walmir – Bem familiar. Eu me considerava um da família, porque eles sempre

falavam: era parte da família, você faz parte da família. E eu me sentia assim.

Moira – Tinham outras pessoas que vieram de outros lugares assim como o senhor?

Walmir – Não tinha não. Tinha os artistas contratados que formavam a família, né?

Mas não tinha esse elo que eu tive, assim de ficar ligado mesmo à família.

Moira - E era comum terem artistas contratados? Ou foi mais no final?

Walmir – Ah sim, sempre teve artista contratado. Por exemplo, na época que eu

entrei no circo tinha a família da Anita que tinha um irmão que trabalhava, uma

cunhada que trabalhava, os mais próximos eram eles. A maioria era contratado.

Tinha o Hernani que era o sobrinho do seu Nerino, da família, mas eram poucos da

família. A maioria era contratado. Quando contratava o artista já contratava para

viajar com o circo.

Moira – E geralmente eram artistas da primeira parte do espetáculo?

Walmir – Não, como ator também. Nós tivemos alguns contratados que trabalhavam

no teatro. O Jurandir, o Wilson Moia, tinha bastante, mas é que nome assim eu não

me recordo.

Moira – E dos artistas fixos eram quantos mais ou menos?

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Walmir – Eram o Roger, Anita, Armandine (que era mãe do Roger), o Gaetan (que

era o tio), quatro. Enquanto esteve lá o Willy (que era sobrinho do Roger), cinco, a

esposa Ivani, seis, e depois eles saíram do circo, né? Saíram e foram para outro

circo. Aí tinha três irmãs do Willy, uma casou nova, casou com 17 anos com um

bancário e ficou na Bahia numa cidade. Era a Alice e a Teresa, as duas irmãs. Todas

as duas trabalhavam no teatro e no picadeiro. A Alice fazia acrobacia, fazia balé,

fazia arame, fazia trapézio. Ela era estrela. A Alice era uma estrela no picadeiro. No

teatro ela participava também, fazia papeis muito bons! Na época que a dona Anita

esteve em São Paulo de licença, ela fez alguns papeis que a dona Anita fazia. Só

que ela não tinha muito tamanho, era baixinha, mas era uma grande artista. Hoje

não está trabalhando mais porque ela tem duas filhas e as duas são artistas do

Cirque du Soleil. Elas moram em Las Vegas, a Alice fica seis meses lá e seis meses

no Brasil, porque ela não pode morar definitivamente. As meninas têm casa lá, ela

vai e fica com as meninas. Tinha também na época o pai dessas meninas, ele foi do

circo, ele trabalhava no circo também, no Nerino. Trabalhava ele e o pai dele

também, o pai dele era ator, o Belmiro, chamavam ele de Babi. Muito tempo ele

trabalhou no teatro também.

Moira – E o público gostava das duas partes? Tinha alguma preferência?

Walmir – Gostava sim, gostava muito das duas partes. O circo chamava mais

atenção por causa disso, porque nós tínhamos a primeira parte, de variedades, com

o trapézio, acrobacias, o palhaço. E terminava a primeira parte, a banda ficava

tocando alguma coisa, para preparar o palco, até começar o teatro. O espetáculo era

separado em duas partes: o picadeiro e o palco. As duas agradavam muito, muito.

Só A Mestiça que nós não tínhamos a primeira parte, porque eram dez atos. Tinha

uma outra que tinha muito, mas assim mesmo tinha uns dois ou três números, que

era O Direito de Nascer. Era muito longa a peça, então a variedade era muito

pequena. Era um número, o palhaço e mais um outro número e já começava o teatro,

né?

Moira – O senhor lembra de quem foi a adaptação da peça ...E o Céu Uniu Dois

Corações?

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Walmir – Quem ensaiou foi o seu Agenor, mas o texto eu não sei de quem que era.

Porque quando eu entrei no circo o Agenor já estava saindo do circo, né? Já estava

chegando um outro ensaiador. Não me lembro o nome dele agora... Era um senhor

baixinho e gordo. Depois ele casou com uma moça que trabalhava no circo. Agora

não me lembro o nome dele. Ele foi há algum tempo o ensaiador das peças de teatro.

Montaram algumas outras peças. Eu não me recordo o nome dele. Você me

desculpa, porque hoje eu estou com a memória fraca, porque a gente passa, né? Aí

você não tem uma frequência de falar sobre isso, então...

Moira – Como era a reação do público com as suas personagens cômicas?

Walmir – O público ria muito, gostava muito. Tem pessoas que vão ao circo e não

gosta do drama, gosta mais da parte cômica, né? Então sempre existe o pessoal que

gosta mais do drama do que da comédia. Mas a gente não dá para perceber, porque

a gente sabe que está agradando. Porque embora ele não goste muito, mas não

desagrada. Agora a parte cômica a turma ria muito, ria muito. Isso é uma coisa que a

gente sente, né? O cômico dá para sentir a reação da plateia.

Moira – E o senhor se pintava para fazer estas personagens?

Walmir - Quando eu fazia o Tico-Tico eu me pintava daqui para cima. Porque aqui eu

usava camisa fechada, não é? E o rosto todo pintado. E a peruca era uma peruca de

neguinho mesmo. E a mão eu usava luva, a camisa aqui. E a calça, de um lado era

curto, de outro lado mais comprido, mas eu usava meias pretas. E uma sandália.

Moira – E o figurino do Juca?

Walmir – O Juca usava uma calça cumprida, tipo uma calça de velho que é muito

grandona, sabe? Com um paletó meio grande, com uma peruca bem bagunçada e

usava uma latinha para ficar fazendo barulho. Entrava em cena já estalando a latinha,

né? Chegava perto da cega e ele começava a chamar atenção dela tocando aquela

latinha, fazendo barulho. Uma tampa de lata que você vai fazendo assim e ela estala.

Era isso que a gente fazia. E tinha uma cena muito engraçada, essa cena era

passada dentro de uma igreja. A velha estava na igreja, foi com a neta, pedir esmola

na porta da igreja. E a neta entra na igreja, aí chega o Juca e vai encontrar com a

dona Santa. Aí começa a falar com a dona Santa, fazendo graça, falando

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gaguejando, né? Aí depois ele deixa a dona Santa lá e entra na igreja com a latinha,

fazendo barulho. Aí dá um tempo e ele volta, ao invés de ele voltar com a latinha, ele

volta com um sininho. Aí a dona Santa pergunta para ele: “Juca, que houve? Você

está com um sininho?” Aí ele, falando gaguejando: “Pois é dona Santa, eu entrei o

padre roubou minha latinha e eu roubei o badalo dele”. A plateia vibrava, descontraía,

era muito bom.

Moira – Por quem foi criado esta situação?

Walmir - Ali foi criado mesmo pelo ensaiador, porque às vezes tem muita peça que

ela vem com observação. No texto tem alguma observação referente ao que você

deve fazer. Pode ser que nessa também tivesse: “O gago deve aparecer com isso

assim. Qualquer coisa.”. Mas eu acho que ali inclusive que aquela da latinha deve

ter sido uma criação, porque ele entra com a latinha e sai com o sino. Quer dizer, o

padre tomou a latinha dele e então ele ficou bravo, tomou o badalo do padre, que é

o sino. E ele fala: “O padre tirou minha latinha, e eu roubei o badalo dele”. Quer dizer

isso são situações, criações. Ajudam a criar, tem muitas coisinhas que na hora, vem

assim a hora. Uma coisa que está ali dentro e a plateia gosta. Às vezes num ensaio

dá aquele estalo, e quando chega à noite e a gente faz. A gente vai fazer e lembra

que tem que ter, porque agradou a plateia, né?

Moira – O senhor percebe alguma relação dessas personagens com o seu palhaço

Garrafinha?

Walmir - O que eu fazia como o palhaço Garrafinha, era o Garrafinha. Agora em

cena era outra coisa. Mesmo sendo cômico, o que eu fazia não tem nada a ver com

o Garrafinha. A diferença na maneira de você falar, como você tinha que se

expressar, até a maneira de gestos, essas coisas. Porque no palhaço você tem que

falar mais do que fazer esse tipo de cena. Às vezes você tem um texto, que este

texto tem que mostrar a comicidade. No palhaço. Na cena é diferente. Você tem um

texto e você tem que fazer alguma coisa ligada àquele texto. Totalmente diferente do

palhaço. O palhaço é engraçado, é uma coisa de graça. E lá na peça é cômico, é

uma comicidade que você faz na peça. No palhaço você já tem um outro tipo de

gesticulação. Toma conta da cena. Você faz pirueta, você faz tudo para fazer graça,

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no picadeiro. Não é só falar, você tem que fazer as comicidades, gesticular. Porque

às vezes você não é sozinho, você está com outro que ajuda você.

Moira – A comicidade do palhaço é através de diálogo?

Walmir – Muitas vezes através do diálogo. Você já tem um tema e vai dialogar ali. E

tem outras coisas assim que acontecem, por exemplo o Roger tinha uma montagem

em que aparecia uma pessoa, estava ele e a Anita, aparecia uma dizendo: “Poxa,

você saiu de casa, não deixou dinheiro, os filhos passando fome.”. Quer dizer, Anita

era mulher dele, como é que tem uma outra lá cobrando o dinheiro do leite das

crianças? Aí fica aquele negócio, ela fica brava e ele quer resolver. Aí de repente

aparece outra: “Ô seu canalha, você saiu de casa, me deixou sozinha, a criança está

lá chorando, eu não tive um tostão para comprar o leite.”. Já eram duas, todas as

duas reclamando da mesma coisa! Aí ele tem um desfecho: “Vamos resolver o

problema? – tudo cômico, né? – Você está falando que é minha mulher e está

passando fome. Você também. Vamos fazer uma coisa? Vamos dividir o tempo.

Segunda, terça e quarta eu vou ficar com você. Quinta, sexta e sábado eu fico com a

outra.”. Aí um gaiato grita: “E o domingo?”. Aí ele responde: “O domingo estou de

folga.”. Quer aproveitar. (risos) Quer dizer... São desfechos, né? Em cena, no palco,

você não tem esse tipo de desfecho, mas no picadeiro você pode fazer. Ele vestido

de palhaço, as mulheres não, as mulheres são madames.

Moira – E tinha palhaça mulher?

Walmir - Não, não tinha.

Moira – O senhor lembra quais os tipos dos dramas que o público gostava mais?

Walmir – Não, o público gostava muito de peças teatrais, assim dramas. Gostava

muito de comédias, às vezes você percebia que agradava muito a plateia, era

dividido e agradava muito. Eu não vou te dizer essa peça agradou mais, porque você

está ali você percebe a reação da plateia. Agradava bem. Mas A Mestiça, por

exemplo, era uma peça que agradava inteira, eram dez atos que eram dez atos

vividos mesmo. E a plateia vibrava. E tinham outras peças também que agradavam,

mas como A Mestiça, ela foi a maior evolução do Nerino com o teatro, A Mestiça foi

nota dez.

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Moira – Mas por quê?

Walmir – Pela encenação, pelo cenário, pelo desempenho dos artistas, foi muito

bom! Principalmente a dona Anita como a Mestiça, todos os personagens foi muito

bom. Por exemplo, a mãe do Roger fazia a dona da fazenda. O irmão fazia o marido

dela. Tinha uma outra que fazia a filha, e tinha muitas outras personagens e todos

estavam muito bem entrosados.

Moira – O romance que inspirou a peça era muito famoso na época? Tinha

radionovela?

Walmir - O romance era muito procurado. Radionovela eu não lembro se teve

alguma radionovela da Mestiça, eu não lembro. Só lembro mesmo da peça. Essa

peça foi uma adaptação do pai da dona Anita, do seu Agenor.

Moira – Ele fez pensando na filha?

Walmir – Eu acredito que sim, porque quando eu conheci eles a peça já estava

montada, né? Tinham dez atos, não tinha variedades. Eram três horas de espetáculo.

Muito bom! Ali ficou muito bom, porque o Roger como o feitor, a Anita como a

Mestiça foi uma dupla sensacional.

Moira – O senhor acha que a peça colocava em questão o preconceito com os

negros?

Walmir – Não, eu não acredito eu tenha esse tipo de preconceito não.Nessa época

existia muito preconceito. Hoje até ainda tem pessoas preconceituosas, também

conta, né? Mas no índice melhor, porque já houve muito debate sobre isso

condenando esse tipo de preconceito. Aliás, hoje estão condenando qualquer tipo de

preconceito. Mas o preto era um preconceito muito acentuado, né?

Moira- E você acha que a peça discutia isso de alguma maneira?

Walmir- Não, acredito que não. Não, porque a Mestiça era filha de uma escrava com

um senhor. E ela era muito benquista no meio da família, né? Era uma escrava, mas

uma escrava... Como se diz? Mais preparada. Tinha preconceito, devia ter algum

preconceito sim. Você vê que hoje com essa evolução ainda existe muito

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preconceito, imagine naquela época que eram escravos, que ninguém dava muito

valor a um escravo, né? Tinha um escravo que era bem chegado à casa, que era o Pai João, um preto velho.

Quem fez muito tempo foi o pai da dona Anita, seu Agenor. Depois passou a ser

uma outra pessoa, depois que seu Agenor saiu do circo e parou de viajar. Entrou

uma outra pessoa, mas na minha época ainda era ele que fazia. Como chama ele? A

fisionomia não me é estranha. Joval. Era um alto, magro, ele fazia, andava muito

curvado, era muito interessante.

Moira – Para fazer as personagens dramáticas o ator tem que...

Walmir – Tem que ter uma base boa. A Armandine também, porque ela como dona

da fazenda era muito severa. Não era igual o marido, porque o marido era uma

pessoa dócil. Ela que fazia a vilã.

Moira – E os vilões o público?

Walmir – Rejeita, né? (risos)

Moira – Dessas três peças, como eram os cenários?

Walmir - O cenário... Por exemplo a Mestiça era um cenário único, porque não dava

pra mudar. Porque era feito na casa de fazenda, então aparecia uma entrada. Um

degrau para a entrada da casa. E uma entrada lateral, tinha uma árvore. Na frente,

tinha um tronco. E as cenas eram passadas todas ali. Era uma cena única.

Moira- E tinha telão pintado atrás?

Walmir- Tinha, era um canavial.

Moira – E quem pintava? Eram vocês mesmos?

Walmir – Tinha gente no circo que pintava, sempre teve alguém que fizesse esse

trabalho de pintura. Artista mesmo ou empregado que eles contratavam para fazer,

mas sempre tem.

Moira – O cenário não mudava na Mestiça?

Walmir - Na Mestiça todos os dez atos a cena era aquela. Não tinha como mudar,

porque era uma casa de fazenda, era montada. Tinha aquela parte da varanda. Um

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palco, depois tinha uma parte mais alta, com aquela balaustrada da varanda. Era

muito interessante, muito bem feito.

Moira – Essa época já era encenada no palco?

Walmir – Já era no palco. Tinham dois palcos, o do músico era do lado e usava só o

palco principal.

Moira – E o cenário do ...E o Céu Uniu Dois Corações?

Walmir – Tinham muitos cenários. Tinha a cena da igreja que aparecia e igreja e um

banco na frente. E um telão pintado de igreja com porta e tudo, né? E depois

apareciam outras cenas, quando era uma casa, mobília, variava de cena. E no final

tinha a apoteose tudo montado. Tinha mobília em cena, mobília normal com poltrona,

essas coisas. A casa da Neli era uma casa mais simples, era uma mesa. Carregava

tudo de uma cidade para outra. Tinha tudo. Porque você chegava numa cidade você

nunca ia conseguir ficar arrumando móveis. Acontecia, às vezes você pedia

emprestado para alguém um jogo de sala. Não era muito comum, mas acontecia às

vezes. E a gente era bem cedido, não tinha problema. A pessoa gostava, porque o

circo agradava na cidade, o circo agradava muito. Sabe que a gente marcava a

última semana, o último espetáculo. Era pedido, era pedido para a gente ficar mais,

ficar mais.

Moira – E na sua época ainda existia a rádio do Circo Nerino?

Walmir – Tinha a rádio e tinha autofalante também, né? Tinha um autofalante que

ficava lá no mastro e tinha a aparelhagem, então a turma ficava tocando,

anunciando o espetáculo. As pessoas iam no circo pedir para ficar, faziam um

abaixo assinado. Tinha muito abaixo assinado. Isso que já tinha ficado um mês, o

povo estava querendo que a gente ficasse mais.

Moira – Cada noite era uma peça diferente?

Walmir – Nós tínhamos um número de peças muito bom. Então de repente vinha um

pedido para você apresentar uma peça. Então a gente apresentava. A Mestiça, por

exemplo, estreava o circo na cidade, anunciava A Mestiça e passava três dias

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seguidos. Aí depois vinha um pedido para passa A Mestiça e você tinha que montar

tudo e passar A Mestiça. Era o grande sucesso. Foi um grande sucesso.

Moira – E o cenário do Jerônimo?

Walmir – Era um cenário mais simples. Uma casa tinha, não sei se era estrada. Uma

coisa bem simples. A peça foi montada e ela permaneceu até o fim no mesmo estilo,

não houve mudanças, cenário, tudo. Do jeito que o ensaiador montou a peça e criou

toda aquela estrutura de cena, permaneceu.

Moira – E o ensaiador dizia como vocês deviam falar?

Walmir – Não, de acordo com o que você lê da peça e interpreta a cena. É claro que

alguma coisa você tem que ter alguma orientação. Às vezes você fala e você pensa

que está falando direito e o ensaiador acha que não, que tem que mudar, porque

você vê muito disso, eles estão sempre modificando a maneira de você falar. Porque

às vezes você fala, mas não está falando de acordo com o sentido da situação. Mas

isso raramente acontece, porque quando você está ali acostumado com as cenas,

não tem problema. Você ensaia uma outra peça você já está acostumado com

aquele ritmo de teatro. Você sabe, você lendo aquilo ali você lembra a maneira que

você tem que interpretar.

Moira – Como era o cenário do Jerônimo?

No começo tinha um bar. Cenário simples. Era pintado com uma parede normal,

com porta, né? A porta era só a entrada. Tinha um negócio de garrafas, também

pintado na parede, como se fosse uma prateleira. E tinha umas mesas e um balcão.

A fazenda era normal, uma casa de fazenda. Uma mobília de casa, uma mobília

mais rústica, mais adequada de fazenda, não com muitos detalhes. Porque com

muito detalhe, não tinha como carregar tanta coisa. Às vezes a gente consegui

emprestado alguma coisa, mas não era muito frequente.

Moira – Então tinha uma preocupação com os cenários e figurinos?

Walmir – Tinha, tinha. O próprio ensaiador administrava isso, né? Ele administrava a

maneira que você ia se vestir, como você ia se vestir. E mesmo o histórico da peça,

o script da peça, já dizia como você devia se vestir, já vinha assim com detalhes,

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né? Indicações de figurinos e ações, sempre tinham umas orientações. Geralmente

nos ensaios você já era orientado, a maneira como você devia agir. O próprio script

dava uma síntese e você tinha que desenvolver durante a apresentação.

Moira – Entre essas quatro personagens: Juca, Saci e Tico-Tico, tinha alguma

semelhança? Quais características o senhor ressalta entre eles?

Walmir – Não, o Juca era uma coisa, o Saci era outra coisa e o Tico-Tico outra coisa.

O Saci e o Tico-Tico são dois moleques pretinhos, só que o Saci era mais, porque o

Tico-Tico era um moleque de fazenda, um escravo, não é? O Saci já era um

personagem totalmente diferente do Tico-Tico. Era preto tudo, mas era mais

incrementado. Era uma roupa mais normal, né? O Tico-Tico era moleque com calça

curta, ainda pela metade. Então era um pouco diferente a característica.

Moira – Tem alguma outra história que o senhor lembre? Algo que marcou?

Walmir - O Tico-Tico tinha muitas cenas bem agradáveis, bem dinâmicas. Por

exemplo, no final do Tico-Tico, a festa, o casamento. Porque tinha o casamento do

feitor com a Mestiça. Ele aparecia de fraque, cartola, era uma encenação assim que

era orientação do próprio autor. Ela de noiva, o feitor de noivo e o Tico-Tico era

como se fosse o... Como que chama? Como se fosse o pajem, de cartola, de casaca,

sapato branco. Umas coisas assim.

Moira – Quem era a Rosinha, o senhor lembra?

Walmir – A Rosinha eu não lembro da menina não... Teve uma época que a Alice, a

sobrinha do Roger, fez esse papel. Mas ela não fez muito tempo não, porque depois

ela passou a fazer a Mimosa. Teve uma época que ela fez a Mimosa, teve uma outra

pessoa que fez a Rosinha.

Moira – E essa mudança de personagem na companhia se dava porquê?

Walmir – Porque às vezes falta uma pessoa que saiu e tinha que ser substituído,

então fazia as trocas, né? Por exemplo, saiu a menina que fazia a Rosinha, saiu a

menina que fazia a Mimosa. Aí a Alice teve que fazer a Mimosa, aí teve uma outra

pessoa para fazer a Rosinha, do próprio elenco. Ali entrou uma outra menina que fez

a Rosinha. Gente do próprio elenco mesmo, às vezes nem aparecia, fazia mais

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comparsaria, qualquer coisa, mas tinha condições e foi fazer a Rosinha. Ela não

aparecia muito. Ali os que mais apareciam eram: o feitor, o Tico-Tico e a Mestiça. O

senhor da fazenda e a esposa que apareciam, mas ali era quase os três. Eu entrava

nos dez atos. Não ficava um ato fora, era cansativo. Muita atrapalhada (risos).

O Saci é bem diferente do Tico-Tico. As cenas, o papel em si, é bem diferente do

Tico-Tico. Porque o Saci, ele é... Jerônimo, o herói do sertão, quer dizer o Saci era

uma pessoa do sertão ali. Ele era um capanga do Jerônimo, suponhamos, quer dizer

era uma situação diferente do Tico-Tico. Porque o Tico-Tico era um moleque. O Saci

já não, o Saci não era um moleque, o Saci já era uma figura diferente. O Tico-Tico

era um moleque de fazenda, que o senhor da casa, o casal da fazenda, queriam eles

ali. Ficava ali na casa de fazenda. Já o Saci não, o Saci estava com o Jerônimo, pra

o que desse e vier. A comicidade era diferente. O Tico-Tico era totalmente inocente.

Moira – E o Juca?

Walmir - O Juca também, coitado, era um inocente também. Ele vivia assim, ele

acompanhava a cega lá com a menina, ficava na porta da igreja. Ele é bem ingênuo

também, uma figura bem ingênua. No último ato ele permanece ali inerte. Porque ele

é uma figura para dar uma ênfase na apresentação, né? Porque ele como gago ele

enche o ambiente e agrada a plateia. Chamava muita atenção a maneira dele

gaguejar, disso, daquilo. Era muito bom. Na última cena foi diferente.

Moira – E como era a apoteose?

Walmir – Sabe que eu não lembro como era a apoteose? Porque lá eles faziam

muito assim, quando tinha uma apoteose, faziam uma montagem que desse para os

dois subirem e a plateia perceber. Mas no ...E o Céu Uniu Dois Corações eu não

lembro como eles faziam. A Mestiça terminava ali no casamento. A última cena era o

casamento e ficavam ali o Roger, a Mestiça de noiva, o Tico-Tico e os escravos, o

pessoal, estava tudo ali em volta, final do casamento.

Agora é um pouco, porque você vê eu tenho. São cinquenta, o circo acabou faz

cinquenta anos, cinquenta anos para mim já é um pouco distante. (risos) A memória

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tá longe. Cinquenta anos, eu cheguei aqui em 64, já estamos em 2015, né? São

cinquenta e um anos, né?