a percepção na montagem fílmica como processo de ordenação interior: filmes produzidos por...

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1 A percepção na montagem fílmica como processo de ordenação interior: filmes produzidos por jovens em Sapopemba - periferia de São Paulo Autores: Eveline Stella de Araujo, jornalista e antropóloga, doutoranda na Faculdade de Saúde Pública da USP, bolsista Capes-DS, integrante dos grupos de pesquisa CERNE-USP e do GEMA- USP. [email protected] Co-autor: Paulo Rogério Gallo, Livre-docente da FSP/USP.Coordenador do grupo de pesquisa GEMA-USP [email protected] Resumo: Este artigo analisa os processos de montagem em filmes etnográficos como humanizador do discurso científico. Ao acompanhar a produção fílmica de jovens de periferia, em São Paulo, esta noção aparece replicada. A parceria estreita entre roteiro e montagem (Carrière:1996) permite analisar o discurso sobre o que “deveria aparecer” nos filmes, a percepção idealizada do socialmente visto, e o que efetivamente é colocado nos filmes. A noção de percepção no processo criativo é para Ostrower (2013) motivada por uma percepção consciente vinculada às ordenações interiores na construção de significados. As reflexões das antropólogas-cineastas Catarina Alves, sobre o roteiro na produção de filmes etnográficos e as representações fílmicas; e Rose Satiko, sobre a construção do significado na percepção das relações entre pesquisador e pesquisado, foram importantes para pensar o campo de pesquisa em questão. Outro tópico deste artigo são as tensões nas relação dos antropólogos-cineastas com os editais de produção fílmica e demais formas de fomento. Palavras-chaves: Cinema; filmes etnográficos; jovem; periferia. Abstract: This article analyzes the montage processes in ethnographic films as humanizing of scientific discourse. By observing the filmic production of young people in the outskirts, in São Paulo, this notion appears replicated. The close partnership between script and montage (Carrière: 1996) allows us to analyze the discourse about what "should appear" in the movies, the idealized notion by the socially seen, and what is effectively placed in movies. The notion of perception in the creative process is to Ostrower (2013) motivated by a conscious perception linked to the inner

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Este artigo analisa os processos de montagem em filmes etnográficos como humanizador do discurso científico. Ao acompanhar a produção fílmica de jovens de periferia, em São Paulo, esta noção aparece replicada. A parceria estreita entre roteiro e montagem (Carrière:1996) permite analisar o discurso sobre o que “deveria aparecer” nos filmes, a percepção idealizada do socialmente visto, e o que efetivamente é colocado nos filmes. A noção de percepção no processo criativo é para Ostrower (2013) motivada por uma percepção consciente vinculada às ordenações interiores na construção de significados. As reflexões das antropólogas-cineastas Catarina Alves, sobre o roteiro na produção de filmes etnográficos e as representações fílmicas; e Rose Satiko, sobre a construção do significado na percepção das relações entre pesquisador e pesquisado, foram importantes para pensar o campo de pesquisa em questão. Outro tópico deste artigo são as tensões nas relação dos antropólogos-cineastas com os editais de produção fílmica e demais formas de fomento.

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    A percepo na montagem flmica como processo de ordenao interior: filmes

    produzidos por jovens em Sapopemba - periferia de So Paulo

    Autores:

    Eveline Stella de Araujo, jornalista e antroploga, doutoranda na Faculdade de Sade Pblica

    da USP, bolsista Capes-DS, integrante dos grupos de pesquisa CERNE-USP e do GEMA-

    USP. [email protected]

    Co-autor: Paulo Rogrio Gallo, Livre-docente da FSP/USP.Coordenador do grupo de

    pesquisa GEMA-USP [email protected]

    Resumo:

    Este artigo analisa os processos de montagem em filmes etnogrficos como humanizador do

    discurso cientfico. Ao acompanhar a produo flmica de jovens de periferia, em So Paulo, esta

    noo aparece replicada. A parceria estreita entre roteiro e montagem (Carrire:1996) permite

    analisar o discurso sobre o que deveria aparecer nos filmes, a percepo idealizada do

    socialmente visto, e o que efetivamente colocado nos filmes. A noo de percepo no processo

    criativo para Ostrower (2013) motivada por uma percepo consciente vinculada s ordenaes

    interiores na construo de significados. As reflexes das antroplogas-cineastas Catarina Alves,

    sobre o roteiro na produo de filmes etnogrficos e as representaes flmicas; e Rose Satiko,

    sobre a construo do significado na percepo das relaes entre pesquisador e pesquisado,

    foram importantes para pensar o campo de pesquisa em questo. Outro tpico deste artigo so as

    tenses nas relao dos antroplogos-cineastas com os editais de produo flmica e demais

    formas de fomento.

    Palavras-chaves: Cinema; filmes etnogrficos; jovem; periferia.

    Abstract:

    This article analyzes the montage processes in ethnographic films as humanizing of scientific

    discourse. By observing the filmic production of young people in the outskirts, in So Paulo, this

    notion appears replicated. The close partnership between script and montage (Carrire: 1996)

    allows us to analyze the discourse about what "should appear" in the movies, the idealized notion

    by the socially seen, and what is effectively placed in movies. The notion of perception in the

    creative process is to Ostrower (2013) motivated by a conscious perception linked to the inner

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    orderings in the construction of meanings. The reflections of anthropologists filmmakers

    Catherine Alves on the roadmap for the production of ethnographic films and filmic

    representations; and Rose Satiko on the construction of meaning in the perception of the

    relationship between researcher and researched, were important to think about the field of

    research in question. Another topic of this article are tensions in the relationship of

    anthropologists filmmakers with the edicts of film production and other forms of fomentation.

    Keywords: Cinema; Ethnographic film; Young people; Outskirts.

    Criar to fcil ou difcil como viver. E do

    mesmo modo necessrio.

    Fayga Ostrower (2013 [1977]:166)

    Este artigoi analisa processos de montagem em filmes etnogrficos como uma forma de

    escrita acadmica que pretende humanizar o discurso cientfico. Ao analisar processos criativosii

    na produo flmica com jovens de Sapopemba, periferia da zona Leste de So Paulo, temos

    replicada esta noo ao constatar a humanizao do discurso social por meio da montagem

    produzida pelo grupo pesquisado. A parceria estreita entre roteiro e montagem (Carrire:1996)

    permitiu analisar o discurso nativo sobre o que deveria aparecer nos filmes, a percepo

    idealizada do socialmente visto, e o que efetivamente colocado na montagem. Estes revelam o

    que eu quero ver no filme que estou produzindo, ou seja, a percepo do mundo desejado,

    evidenciando que a prtica acaba por exigir escolhas e definies reveladoras tanto do social

    quanto do imaginrio. Estas escolhas acontecem em meio a uma srie de contingncias da

    realizao flmica, sejam elas financeiras, estruturais, e/ou pessoais.

    As reflexes de duas antroplogas-cineastas foram fundamentais para pensar o papel

    desta pesquisadora em campo e a produo de conhecimento compartilhado na experincia de

    produo flmica conjunta. De Catarina Alves importa a discusso que faz sobre a funo do

    roteiro na produo de filmes etnogrficos e os processos de representao. De Rose Satiko so

    caras suas reflexes sobre a construo do significado na percepo das relaes entre

    pesquisador e pesquisado, e a apropriao da linguagem flmica pelos informantes da pesquisa na

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    construo de narrativas flmicas a partir dos diversos repertrios vividos, como a msica, por

    exemplo.

    Rose Satiko pesquisou em contextos relacionados ao trabalho com arte-educao em

    condies sociais adversas, como o Projeto Guri, com a produo dos curta-metragens Vrus da

    msica (2004) e Pulso: um vdeo com Alessandra (2006); em outra pesquisa ela atuou com jovens

    privados da liberdade - internos da Fundao Casa, com a produo do curta Microfone, Senhora

    (2003). Uma de suas observaes nessas produes que o aprendizado artstico cria

    sensibilidades e conscincia: ...a prtica artstica era um meio, para esses jovens, de construo

    de imagens, sensibilidades e identidades que se sobrepunham a autoimagens e esteritipos

    ligados ao universo da juventude, da pobreza e s associaes constantes deste criminalidade e

    violncia urbana (Hikiji 2009:144). A produo de um filme em conjunto surge como uma

    possibilidade de dilogo com os sujeitos da pesquisa, inspirada nas propostas de Jean Rouch

    sobre antropologia compartilhada. Esta perspectiva implicou em processos reflexivos e

    dialgicos, entre pesquisador/pesquisado, nos quais os sujeitos da pesquisa so construdos na

    interao para a realizao do filme. Pensando sobre a afirmao de Mac Dougall sobre fazer

    filme ser um modo de esculpir a experincia, em Microfone, Senhora (2003) foi esculpida a

    criao da visibilidade por sujeitos marcados pela invisibilidade, no qual um jovem da Fundao

    Casa torna-se o protagonista do filme a partir da percepo de que poderia ter voz, ao solicitar o

    microfone da pesquisadora. Em Pulso: Um vdeo com Alessandra (2006) a experincia esculpida

    foi a ressignficao dos espaos como a casa (negao do espao pelos adultos) e a rua (interdito

    referido ao perigo pelos adultos), para casa como uma conquista de espao para o estudo e a rua

    como sociabilizao da prtica artstica.

    Nos filmes Vrus da Msica (2004) e Pulso: Um vdeo com Alessandra (2006) a

    montagem foi regida pelo ritmo musical das narrativas, um entrosamento sensvel entre sons e

    imagens, marcados pela concentrao, pacincia e repetio to exigidos na prtica musical. Mas,

    foi a reelaborao de si enquanto sujeitos sociais a partir da relao de colaborao entre os

    pesquisados e a pesquisadora que marcou o vnculo estabelecido. Rose Satiko comenta que ao

    elaborar o artigo - Vdeo, msica e antropologia compartilhada: Uma experincia intersubjetiva

    (2009) - quase que totalmente antes da edio final de Pulso:Um vdeo com Alessandra, o

    mesmo funcionou como uma espcie de roteiro conceitual para o vdeo. O que refora a

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    necessidade de algum tipo de escrita associado ao fazer flmico, seja um roteiro ou anotaes

    sobre as decupagens, ou um esboo que organize a montagem. Para Rose Satiko, a mdia visual

    permite construir conhecimento por familiarizao, compreende-se com isso que a proximidade

    de universos produzida pelas opes das construes narrativa permite a introjeo do

    conhecimento pela identificao do mesmo com uma percepo interior de ordenamento do

    mundo (Ostrower 2013), o que o torna no apenas lgico mas significativo para todos os

    envolvidos no processo de feitura e visionamento do filme.

    A escrita, como processo de reflexo e definidora de intenes importantes para a

    conduo do filme, a fase do processo criativo que revela a ordenao interior do realizador e a

    coloca em causa com o exterior, na dialogia com seus pesquisados. Revela e organiza o vivido, o

    imaginrio, e a compreenso da percepo que temos sobre ambos.

    Nesse sentido, Catarina Alves (2009) refora a importncia do processo de pesquisa

    preliminar e definio do campo; da escrita do roteiro; da reescrita desse roteiro durante o

    processo de montagem como metodologia de produo do conhecimento por meio do cinema.

    Procurando responder a pergunta: Como escrever um projeto com base numa ao cuja

    continuidade se desconhece?, Catarina Alves fornece indicaes desse processo de escrita. Ela

    parte da pesquisa campo e terica que antecede a gravao para conhecer em profundidade os

    protagonistas, as tenses que envolvem o contexto de gravao, isso lhe permite projetar numa

    espcie de anteviso s possibilidades de dilogo e conflitos, desenhando um projeto de

    narrativa possvel, que ser construdo efetivamente na medida em que as imagens so analisadas

    diariamente aps o trmino das filmagens, proporcionando uma reflexo desta mesma narrativa

    com suas alteraes ou consistncias em relao ao projeto inicial. O roteiro como lugar de onde

    partem as reflexes e para onde elas convergem:

    A escrita um processo importantssimo no cinema. Para mim, depende um bocado das condies de produo. Por exemplo, no filme O Arquitecto e a Cidade Velha tive dinheiro para

    estar mesmo a escrever num atelier com tutores e ajuda de colegas. (...) Vai-se pondo tudo no

    papel, o projecto algo que vai nascer no papel: vo-se colocando as cenas, vo-se colocando os

    personagens e os contactos dos personagens, vai-se tentando construir uma srie de situaes.

    Depois, h uma pesquisa que envolve ler livros, consultar filmes, tudo isso. Acho que um dossier

    de documentrio deve ser um dossier escrito e bastante completo. A escrita importante como

    processo para se chegar aonde queremos, mesmo que depois no momento da rodagem no

    estejamos agarrados ao guio (Alves 2011).

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    O roteiro sofre alteraes durante o processo de gravao e de montagem de acordo com a

    dinmica dos acontecimentos e tenses do campo. Potencializa as possibilidades de construo

    das narrativas e antecipa solues para os impasses e desafios da filmagem.

    Com uma produo flmica que compreende ttulos como Senhora

    Aparecida (1994), Swagatam (1998), realizados em Portugal e Mais Alma (2001), O Arquitecto e

    a Cidade Velha (2003), realizados em Cabo Verde, a realizadora entende que a Antropologia

    Flmica deve ser capaz de mostrar o sentido profundo, do interior de uma sociedade, em vez de

    apresentar as coisas de um modo didctico, do exterior (1998: 4). A cmera, para Catarina

    Alves muito mais do que um modo de documentar a realidade um meio de expresso para

    examinar ao detalhe a vida social, podendo o filme representar o evento observado, ela refora

    que a representao flmica deve estar em constante dilogo com a representao que aqueles que

    participam do filme tem de si prprios. Catarina Alves segue as proposies do cinema

    observacional, na vertente de MacDougall, e adota a noo do filme como um trabalho compsito

    no cruzamento de perspectivas culturais, pensado a partir de uma reflexividade profunda

    constitua-se das ambiguidades e do tempo de espera, tornando-os visveis, trazendo elementos

    familiarizadores para que o espectador possa se posicionar no contexto apresentado. A cmera,

    para ela, um elemento ativo e catalisador da relao triangulada entre o realizador do filme, os

    personagnes e a audincia, a partir de eventos e interpretaes significativas.

    Com essas reflexes, passamos para nossa prpria experincia de antropologia flmica

    compartilhada, quando em 2012, sugerimos a um grupo de jovens (14-22 anos) do Centro de

    Juventude da Sociedade Amigos do Bairro de Sapopemba (CJ/SAB-Sapopemba) que

    produzissem filmes para participar do Festival do Minuto - festival de filmes promovido pela

    internet com vrias categorias, incluindo o Minuto Escola destinado para alunos de escolas

    pblicas. Na poca, como parte da estratgia de observao acompanhamos uma formao edio

    com Movie Maker, ministrada por um professor do prprio CJ. Depois de algumas semanas

    discutindo e propondo exerccios conjunto para desenvolver alguma curiosidade sobre o fazer

    flmico e tambm para que os jovens se familiarizassem com a introduo da cmera no dia-a-dia

    deles (diga-se que foi utilizado uma cmera fotogrfica digital comum que possui a funo

    filmar), e contando com um conhecimento bsico em fotografia gerado por uma oficina paralela

    ministrada na mesma poca e outra oficina de Graffiti, foi pensado um roteiro colaborativo onde

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    eles indicavam os temas que estavam mais prximos do seu cotidiano numa espcie de

    brainstorn. Foi assim a primeira experincia concreta de filmagem. Discutimos um roteiro, ou

    podemos chamar uma anotao de sequncia pouco definida de cenas, procurando alinhavar os

    temas levantados por eles. Dentre esses estavam um jogo de futebol entre amigos, uma briga de

    marido e mulher, meninos alheios ao fato desenhando em um espao prximo, a dana e o

    grafite. Esses temas fizeram parte da encenao final, mas no processo de fomento de ideias

    ainda estavam presentes na narrativa o parcourt (um tipo de corrida que tem como obstculos as

    estruturas da cidde), o funk (msica e baile) e o UFC (estilo de luta livre que passa na TV), tal

    conjunto nos levou a pensar em uma apropriao bastante peculiar de alguns elementos do Hip

    Hop agregado a outras expresses locais. Sendo que na montagem final dos filmes eles

    colocaram somente as cenas referentes abaixo.

    Outro fator bastante desafiador foi o acesso e a familiarizao com a internet e as redes

    sociais, pois em grupo ficou estabelecido que teramos uma conta no Facebook para tirar dvidas

    ou comentar sobre os roteiros e processos de filmagem durante o perodo de produo, o nome

    escolhido pelo grupo foi CjMinuto, que se tornou tambm o nome do projeto.

    Logotipo desenvolvido pelos jovens do projeto

    CJ Minuto da turma de 2012 para foto do perfil

    no Facebook.

    A imagem da capa foi produzida em parceria com um dos jovens desenhistas do

    projeto Cine CJ, de 2014, e a pesquisadora para o banner do festival de filmes

    realizado tanto como devolutiva para o campo quanto para observao do

    visionamento pela pesquisadora.

    Fotograma do filme Junto e Misturado, com imagens da primeira experincia flmica coletiva, campo

    etnogrfico em 2012.

    Fotograma do filme Junto e Misturado, sobre o desafio danado entre a garota e o rapaz.

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    Trs jovens comentaram que no entendiam nada de internet, que no tinham computador

    em casa e outro jovem disse que no tinha interesse em ter conta no Facebook por causa da igreja

    que ele frequentava, nesses casos acompanhamos a produo diretamente na formao de edio

    que receberam, at porque o Facebook para a pesquisadora foi pensado mais como uma estratgia

    de aproximao com os pesquisados, em um ambiente virtual e descontrado, no qual puderam

    falar sobre qualquer assunto inclusive de filmes. Houve todo o tipo de dificuldade: como o sinal

    da internet bastante instvel na regio, o prprio regulamento do festival que entre outras

    formalidades, trazia questes de direitos autorais de sons e imagens da internet, algo distante

    ainda da realidade vivida por esses jovens.

    Apesar da recomendao para gravarem cenas no muito longas, com at 5 minutos cada

    para facilitar a edio, e das recomendaes para que trouxessem os arquivos em todos os

    encontros para baix-los no computador, tivemos algumas dificuldades relacionadas falta de um

    habitus de produo, como o caso de um dos rapazes que gravou vrias imagens no celular e

    depois de esquecer vrias vezes de levar o cabo para baix-las no computador ainda vendeu o

    celular com o chip das imagens, ele acabou gravando tudo novamente e a sim terminou o filme

    em parceria com um outro colega do CJ, por sinal um dos melhores produzidos. Esse filme em

    particular so evidenciados como eles percebem a regio onde moram, o lazer, a visualidade do

    espao que habitam. Essa vivncia me fez lembrar inevitavelmente da experincia vivida por

    Flaherty, entre os esquims, quando a segunda verso produzida superou em muito a primeira,

    perdida em um incndio acidental.

    Houve ainda outra situao de produo bastante interessante e que ainda nos

    debruamos sobre ela para entend-la a de um outro grupo com 8 rapazes, no qual estavam os

    Fotograma do filme Na Rua

    Fotograma do filme Na Rua

    Fotograma do filme Na Rua

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    trs rapazes que no tinham muito acesso com a internet, chegam para mim e dizem que no

    conseguiram gravar cenas curtas, que um dos rapazes do grupo tinha tido a ideia de gravar sem

    corte a ida para o jogo de futebol. Ficou meio grande e nem sei se vai dar para usar porque na

    hora do jogo ningum quis gravar, contou um deles. Pedi para ver a gravao e qual foi a mimha

    surpresa: o filme estava pronto assim mesmo do comeo ao fim, uma tomada etnogrfica que

    mostrava todos os tipos de habitao, os modos de lazer das diversas idades, as diferenas de

    paisagem entre vielas, ruas esburacadas e grandes avenidas, as crianas da regio e o modo de

    chamar cada colega para o jogo de futebol, esse certamente no iria para o Festival do Minuto,

    mas cogitamos a possibilidade de envi-lo para o Festival de Curta-Metragem de So Paulo. Eles

    no entenderam porque havamos gostado tanto do filme e conversando explicamos a

    importncia que aquelas imagens tinham por serem to reveladoras de um universo em que as

    pessoas de fora do bairro tinham imensa dificuldade em acessar, principalmente pela

    cumplicidade que existiu entre quem gravou as imagens e o territrio mostrado. Neste grupo,

    quatro deles eram desenhistas, e dois deles foram selecionados para um curso de animao no

    Instituto Criar, em So Paulo. Para o Festival do Minuto eles acabaram fazendo um filme com o

    nome Enfim, futebol, uma aluso ao primeiro filme com a parte do jogo. Mas, dando-se conta

    da referncia preferiram mudar o nome para Os Donos da Bola.

    Fotograma da cena sobre as diversas formas de lazer na

    regio de Sapopemba, Zona Leste de So Paulo, gravadas

    em uma nica sequncia de 12 minutos, pelo grupo que

    fez o filme Os Donos da Bolal, citado acima.

    Fotograma da cena de moradia da regio da mesma

    sequncia mencionada ao lado. Quando chamavam um

    colega para o jogo de futebol.

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    A definio dos grupos ocorreu pela afetividade e afinidade, alguns grupos foram

    formados somente por rapazes, em outros somente por garotas, e em menor nmero tivemos

    alguns grupos mistos. Para analisar os processos criativos procuramos estabelecer relaes entre

    as narrativas construdas e a inteno inicial da realizao do filme, considerando as dificuldades

    na produo e os processos de escolhas e solues acionados por eles. Essa triangualao nos

    permitiu analisar os processos de excluso das imagens, indicando por oposio os motivos das

    escolhas. A utilizao dos elementos sonoros na composio filme e as opes de montagem com

    elementos de corte, transio e outros recursos que deram a dinmica dos filmes sinalizou o

    quanto eles se apropriaram da linguagem flmica como forma de expresso. Utilizamos para esta

    anlise a noo de percepo desenvolvida por Ostrower (1977) sobre processos criativos, para

    ela ... a percepo consciente na ao humana se nos afigura como uma premissa bsica da

    criao, pois alm de resolver situaes imediatas o homem capaz de a elas se antecipar

    mentalmente, estando vinculada, segundo a Autora, com ordenaes interiores, associadas aos

    processos afetivos e ao ntimo sentimento de vida, na construo de significados, pois ela

    considera que h no processo de criao uma integrao do consciente, do sensvel e do cultural.

    Ao conversar sobre a inteno inicial dos filmes estimulando um processo de imaginao

    sobre o mesmo, permitimos aos jovens um deslocamento do real fsico do objeto para o real da

    ideia do objeto, o falar sobre o que se desejava contar no filme projetou uma representao das

    coisas e dos contedos por esses jovens o que os possibilitou avaliar e significar a fala. Esta

    dinmica na comunicao estudada por Habermas (2012) e nos processos criativos, por

    Ostrower (2013), o que redunda numa dupla reflexividade: uma sobre o tema e outra sobre a

    representao desse tema. Pesquisar processos criativos uma forma de acessar e compartilhar

    formas de ordenao interior, com seus referenciais afetivos e vividos, v-los transformados da

    subjetividade para a objetividade em forma de expresso comunicativa e poder compartilhar

    esses referenciais e amplific-los das possibilidades vividas pelo contato. Depois da primeira ida

    a campo pudemos acompanhar pela relao mantida no Facebook algumas trajetrias e quo

    grata foi v-los envolvidos em sonhos e projetos que os estimulam a intervir ou a melhorar a

    prpria comunidade em que vivem. Muitos fizeram outras formaes no campo das visualidades,

    outros buscaram na Pedagogia uma aproximao com a arte-educao, para valorizao de seus

    territrios. O que pudemos acompanhar de perto foi a aproximao de um dos desenhistas de um

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    pesquisador da Faculdade de Sade Pblica, que estava com dificuldades para encontrar algum

    que desenhasse para ele um avatar cadeirante, necessrio para a observao do processo de

    escolha de avatares por crianas com deficincia, fizemos a mediao e estipulamos o valor

    mnimo pelo trabalho e o rapaz fez o desenho, recebeu pelo seu trabalho. A pesquisa teve

    continuidade e foi defendida com sucesso, sendo o nome do desenhista includo na dissertao do

    mestrado, uma insero inimaginvel, produzida pelo vnculo e pela habilidade em gerar novas

    possibilidades de relaes.

    Entre outros aspectos vemos ainda a necessidade de mencionar a adaptao dos

    antroplogos-cineastas aos editais de fomento da produo de cinema que possibilitam viabilizar

    novas pesquisas no campo do filme documentrio etnogrfico, prtica relativamente comum no

    exterior, mas ainda incipiente no Brasil. Pelas discusses que temos acompanhado junto ao

    Laboratrio de Imagem e do Som em Antropologia da USP (LISA/USP) as principais questes

    esto relacionadas tica para os antroplogos e a esttica para os editais. A produo de filmes

    etnogrficos sofrem alguns constrangimentos ao se adequarem aos editais ofertados, mesmo aos

    editais do Etnodoc que deveriam ter maior proximidade com os filmes etnogrficos. Entretanto, o

    que deveria fomentar a produo de filmes acaba por vezes saindo mais custoso pelo fato de ter

    que cumprir toda uma srie de exigncias referentes qualidade de captao da imagem e do

    som, o que no uma preocupao fundante na antropologia. Por exemplo, a obrigatoriedade de

    todas as falas do documentrio serem audveis e inteligveis, quando sabemos que em certas

    situaes rituais algumas falas esto relacionadas ao segredo e no devem mesmo ser entendidas.

    A profissionalizao no campo da pesquisa etnogrfica flmica prope novos desafios para a

    Antropologia no dilogo com o Cinema. Como superar esses impasses? Como traduzir situaes

    etnogrficas em representaes flmicas sem comprometer a tica das relaes da pesquisa e a

    qualidade do conhecimento produzido? importante refletir sobre essa interface e projetar essas

    preocupaes j no esboo do roteiro antecipando solues para o campo de pesquisa, testando

    ou experimentando situaes antes de grav-las definitivamente, sempre priorizando a tica e o

    respeito pelos pesquisados, o contedo, o conhecimento gerado, primeiramente e depois os

    padres exigidos quando se pretende adentrar neste mundo dos editais, to cheio de meandros,

    segredos e cdigos ainda distantes da academia.

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    Referncias bibliogrficas:

    CARRIRE, Jean-Claude. 2006. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

    COSTA, Catarina Alves. 1998. O filme etnogrfico em Portugal: condicionantes realizao de

    trs filmes etnogrficos. Disponvel em:http://www.bocc.ubi.pt/pag/costa-catarina-filme-

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    intersubjetiva. In: BARBOSA, Andra; CUNHA, Edgar Teodoro da; Hikiji, Rose Satiko G.

    (Orgs.). Imagem-Conhecimento: Antropologia, cinema e outros dilogos. Campinas-SP. Papirus.

    HIKIJI, Rose Satiko G. jan./jun. 2013. Rouch compartilhado: premonies e provocaes par

    uma antropologia contempornea. In: Rev. Iluminuras. Porto Alegre, v.14, n.32, p.113-122.

    MacDOUGALL, David. 1998. Visual anthropology and the ways of knowing. In:

    MacDOUGALL, David. Transcultural cinema. Princeton, Princeton University Press. pp. 61-92.

    OSTROWER, Fayga. 2013 [1977]. Criatividade e processos de criao. Petrpolis. Vozes.

    ROUCH, Jean. The camera and man. In: HOCKINGS, Paul. Principles of visual anthropology. Berlin/ New York: Mouton de Gruyter, 1995.

  • 12

    SIMES, Marta. 2011. Catarina Alves Costa: A escrita um processo importantssimo no cinema. In: Novas & velhas tendncias no cinema portugus contemporneo. Disponvel em: http://hdl.handle.net/10400.21/905 . Acessado em 18 de nov. de 2013.

    Referncias flmicas:

    Vrus da msica. (2004). 20 min. Dir: Alessandra Cristina Raimundo; edio: Alessandra Cristina

    Raimundo, Rose Satiko Hikiji e Giuliano Ronco; realizao: LISA/USP; apoio: Fapesp.

    (http://vimeo.com/43896641 ).

    Pulso: Um vdeo com Alessandra. (2006). 32 min. Direo, roteiro e pesquisa: Rose Satiko

    Hikiji; edio: Rose Satiko Hikiji, Giuliano Ronco e Fernanda Frasca. realizao: LISA/USP;

    apoio: Fapesp. (http://vimeo.com/32565910 ).

    Microfone, Senhora (2003).16 min. Direo, roteiro e pesquisa: Rose Satiko Hikiji;

    edio:Gianni Puzzo e Rose Satiko Hikiji; realizao: LISA/USP; apoio: Fapesp.

    (http://vimeo.com/44455754 ).

    Senhora Aparecida. (1994). Direo e realizao: Catarina Alves Costa;

    (https://www.youtube.com/watch?v=vTpGFHsLY14 )

    Swagatam. (1998). 54 min. Direo: Catarina Alves Costa; produo: SP Filmes. (

    Mais Alma. (2001). 57 min. Direo, realizao: Catarina Alves Costa; edio: Olivier Blanc;

    montagem: Pedro Duarte; Ps-produo de som: Joo Lucas; Produo: Catarina Mouro, Co-

    produo: Laranja Azul-RTP; Apoios: ICAM, RTP, IPAE, Fundao C. Gulbenkian.

    (https://www.youtube.com/watch?v=j8mNY98ZE9Y&feature=kp )

    O Arquitecto e a Cidade Velha (2003). 72 min. Direo e realizao: Catarina Alves Costa;

    imagem: Joo Ribeiro e Catarina Alves Costa; som: Olivier Blanc; montagem: Dominique Paris e

    Pedro Duarte; msica: Tito Paris; mixagem de som: Jean-Marc Schick; talonage: Philippe

    Couteax; produo: Laranja Azul; co-produo: Jour J Productions; produo executiva: Catarina

    Mouro; produtora-associada: Sylvie Randonneix; apoios financeiros: Icam, RTP, Media

    Distribuio, IA, Instituto para o Desenvolvimento, CNC, UNESCO, DAPA, Ministrio dos

    Negcios Estrangeiros Francs, Voisnart, RAI SAT, Cmara Municipal do Porto.

    (https://www.youtube.com/watch?v=jAuCJEW1-pw ).

    Referncia dos filmes produzidos no projeto CJ Minuto

    1. Na Rua..., 2012: https://www.festivaldominuto.com.br/videos/30233?locale=pt-BR

    2. CJ diferente..., 2012: https://www.festivaldominuto.com.br/videos/30720?locale=pt-BR

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    3. Amizade :) verdadeira, 2012: https://www.festivaldominuto.com.br/videos/30723?locale=pt-BR

    4. Os Donos da Bola, 2012: https://www.festivaldominuto.com.br/videos/30729?locale=pt-BR

    5. Criatividade de adolescente, 2012: https://www.festivaldominuto.com.br/videos/30736?locale=pt-BR

    6. Desafio da bexiga, 2012: https://www.festivaldominuto.com.br/videos/30739?locale=pt-BR

    7. Sentimentos expressos na parede, 2012: http://www.minuteen.com.br/videos/20950?locale=pt-BR

    8. anime, rocok e outras coisas, 2012: https://www.festivaldominuto.com.br/videos/30732?locale=pt-BR, este link no funciona

    pois no houve liberao da msica utilizada.

    9. Toque Fcil, 2012: https://www.festivaldominuto.com.br/videos/30733?locale=pt-BR

    10. C.G.R.: Colorindo nosso bairro, 2012: http://www.minuteen.com.br/videos/20908?locale=pt-BR

    11. Junto e Misturado, 2012: no disponvel virtualmente.

    i Este artigo inclui as consideraes feitas ao trabalho intitulado A percepo na montagem flmica: um processo de

    ordenao interior apresentado na 29 Reunio Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto

    de 2014, Natal/RN, GT- 05: Antropologia da imagem, montagem e conhecimento.

    ii Agradecimento Prof DrMaria da Penha Costa Vasconcellos pelas primeiras avaliaes das anlises dos filmes do

    Projeto CJ Minuto.