a participaÇÃo da comunidade como...
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Universidade de BrasíliaFaculdade de Direito
C u r s o d e E s p e c i a l i z a ç ã o a d i s t â n c i a e m D i r e i t o S a n i t á r i o p a r a
M e m b r o s d o M i n i s t é r i o P ú b l i c o e d a M a g i s t r a t u r a F e d e r a l
M o n o g r a f i a F i n a l d e C u r s o
A PARTICIPAÇÃO DA COMUNIDADE COMO DIRETRIZDO SUS:
DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E CONTROLE SOCIAL
A I N C O N S T I T U C I O N A L I D A D E D A S L E I S Q U E E S T A B E L E C E M O S
G E S T O R E S D E S A Ú D E C O M O P R E S I D E N T E S N A T O S D O S
C O N S E L H O S
A L E X A N D R E A M A R A L G A V R O N S K I
O r i e n t a d o r e s :
M s c . M á r c i o I ó r i o A r a n h a
E s p e c i a l i s t a L e n i r S a n t o s
T u t o r a :
J a n i n e K a n a a n
Diretor da Faculdade de Direito: Prof. José Geraldo de Sousa Júnior
Coordenadora de Pós-Graduação: Profa. Loussia Musse Felix
Coordenadores do Curso: Prof. José Geraldo de Sousa Júnior e Prof. Márcio Iório Aranha
Consultora de Saúde: Dra. Conceição Aparecida Pereira Rezende
Consultor Jurídico: Prof. Sebastião Botto de Barros Tojal
Consultora de Ensino à Distância: Profa. Mária de Fátima Guerra de Sousa
Consultora de Metodologia e Monografia Final de Curso: Profa. Loussia Musse Felix
Brasília, 07 de julho de 2003.
A l e x a n d r e A m a r a l G a v r o n s k i
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“Nada há, na história do Estado Brasileiro que se
assemelhe aos Conselhos de Saúde da atualidade, seja pela
representatividade social que expressam, seja pela gama
de atribuições e poderes legais de que são investidos, seja
pela extensão em que estão implantados por todo o país,
nas três esferas governamentais” (Antônio Ivo de
Carvalho in Conselhos de Saúde no Brasil: participação
cidadã e controle social”)
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ÍNDICE
ÍNDICE...............................................................................................................................................................3
DEDICATÓRIA................................................................................................................................................4
AGRADECIMENTOS .....................................................................................................................................5
SUMÁRIO..........................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO.................................................................................................................................................8
CAPÍTULO I – A MODERNA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E SUA CONSAGRAÇÃO NACONSTITUIÇÃO DE 1988...........................................................................................................................12
I.A - A DEMOCRACIA ....................................................................................................................................12I.B. - A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E SUA CONSAGRAÇÃO NO TEXTO CONSTITUCIONAL......................14I.C. CONTEXTO DEMOCRÁTICO DA CONSTITUINTE DE 1987/1988..............................................................22
CAPÍTULO II –OS ANTECEDENTES HISTÓRICOS E A CONSTRUÇÃO DA PARTICIPAÇÃODA COMUNIDADE COMO DIRETRIZ CONSTITUCIONAL DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE(SUS) .................................................................................................................................................................27
II.A – O MOVIMENTO DE REFORMA SANITÁRIA E SEUS DESDOBRAMENTOS NO APRIMORAMENTO DA
SAÚDE NO BRASIL COM INCREMENTO DA PARTICIPAÇÃO DA COMUNIDADE..............................................27II.B – A 8A. CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE E SUA INFLUÊNCIA NA CONSTITUINTE 87/88 .............30
CAPÍTULO III – CONTROLE SOCIAL E PARTICIPAÇÃO POPULAR NA GESTÃO DO SUS.O PAPEL DOS CONSELHOS E DE SUAS PRESIDÊNCIAS...............................................................42
III.A – CONTROLE SOCIAL E PARTICIPAÇÃO POPULAR. CONCEITO E DISTINÇÃO......................................42III.B. O PAPEL DOS CONSELHOS DE SAÚDE NA EFETIVAÇÃO DO CONTROLE SOCIAL E DA PARTICIPAÇÃO
POPULAR. A EFETIVAÇÃO DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA ......................................................................46III.C - PODERES DELIBERATIVOS E FISCALIZATÓRIOS DOS CONSELHOS: NECESSÁRIA INDEPENDÊNCIA.ATRIBUIÇÕES DA PRESIDÊNCIA E A INCOMPATIBILIDADE DO GESTOR PARA A FUNÇÃO. A SITUAÇÃO DO
CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE E DOS CONSELHOS NO MATO GROSSO DO SUL....................................50III.D – OS CONSELHOS MUNICIPAIS EM MS. UMA ESPERANÇA. ...............................................................75
CAPÍTULO IV – A INCONSTITUCIONALIDADE DAS PREVISÕES LEGAIS QUEESTABELECEM OS GESTORES COMO PRESIDENTES DOS CONSELHOS .............................81
IV.A - INCONSTITUCIONALIDADE POR CONTRARIEDADE AOS ART. 1°, II, E PARÁGRAFO ÚNICO
(CIDADANIA E DEMOCRACIA PARTICIPATIVA) E AO ARTIGO 198, III (PARTICIPAÇÃO DA COMUNIDADE
COMO DIRETRIZ DO SUS) .............................................................................................................................82IV.B – INCONSTITUCIONALIDADE POR VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE E AO DA
PROPORCIONALIDADE OU RAZOABILIDADE.................................................................................................84IV.C - INCONSTITUCIONALIDADE POR CONTRARIEDADE AO PRINCÍPIO DA MORALIDADE (ART. 37, CAPUT).......................................................................................................................................................................91
ALGUMAS PROPOSTAS PARA A CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVACOMO DIRETRIZ DO SUS E O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO............................................98
BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................................................102
ANEXOS.........................................................................................................................................................105
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DEDICATÓRIA
Dedico este meu trabalho aos conselheiros de saúde do Mato Grosso
do Sul, com os quais renovei (e renovo a cada dia) minha crença na democracia
brasileira. Muito aprendi sobre Direito Sanitário e a efetiva cidadania nos vários
contatos com "Seu" Alcides Ribeiro, Denise Mansano, “Dona” Evilásia Barbosa, Jonas
Cavada, Júlio das Neves, Mabel Pitthan e Maria Inês Carvalho da Silva, todos
conselheiros estaduais que acreditam na força transformadora da participação popular e
empenham esforços pessoais na construção de um mundo melhor, contribuindo, muitas
vezes anonimamente e sem remuneração (não raro até com prejuízos financeiros em
razão do tempo subtraído da atividade profissional), para a construção de um Sistema
Único de Saúde verdadeiramente democrático, universal, descentralizado e com
atendimento integral.
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AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, agradeço aos organizadores do curso, que
acreditaram e investiram na idéia de capacitar membros do Ministério Público em
Direito da Saúde, instrumentalizando-nos para melhor atuar como legitimados coletivos
especialmente incumbidos de zelar pela observância dos serviços de relevância pública
(dentre os quais a saúde) aos direitos assegurados na Constituição Federal de 1988.
Contribuíram, inequivocamente, para o aprimoramento do Sistema Único de Saúde.
No âmbito da Procuradoria da República do Mato Grosso do Sul,
agradeço especialmente à estagiária Yara Bianca Bellucci, que muito contribuiu para a
elaboração deste trabalho com as primeiras e aprofundadas pesquisas e coleta de
material e também ao servidor Francisco Gomes de Souza Júnior, outro “especialista”
em Direito Sanitário, e ao servidor Antônio Pires, que igualmente contribuíram na
obtenção do material de pesquisa.
Foi igualmente fundamental o auxílio dos servidores do Serviço de
Documentação Parlamentar da Câmara dos Deputados, particularmente de Manoel
Ramos Júnior, nas pesquisas que fiz sobre a constituinte. Sem as orientações por ele
repassadas, minhas buscas teriam sido infrutíferas, visto que não obstante o material
seja farto, tanto no próprio setor, como na internet, as vias de pesquisa são
excessivamente complexas.
Por fim, mas não menos destacado, é meu agradecimento às
servidoras e servidor da Secretaria Executiva do Conselho Estadual de Saúde, Edelma
Lene Peixoto Tiburcio, Jhonny Cabral, Mabel Vasconcelos e Mariléa Medeiros Ferreira,
que não apenas disponibilizaram-me seu farto material, como, especialmente a última,
auxiliaram na pesquisa referente às leis municipais e à realidade do Estado de Mato
Grosso do Sul no que se refere ao tema focal desta monografia. Com constante
dedicação à viabilização do Conselho, essas servidoras contribuem significativamente
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para a efetivação da participação da comunidade como diretriz do SUS, havendo dentre
elas também exemplos (como Mariléa Ferreira) de atuação destacada em outros
conselhos ou entidades da sociedade civil organizada, o que permite uma compreensão
mais ampla tornando-se, assim, duplamente qualificada no assunto.
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SUMÁRIO
Partindo de um panorama sobre a moderna teoriademocrática, especialmente no que respeita à democraciaparticipativa, e de sua consagração na Constituição daRepública Federativa do Brasil de 1988, a presentemonografia contextualiza a “participação da comunidade”como diretriz do Sistema Único de Saúde, disposiçãopresente no art. 198, III, do Texto Constitucional.
Para tanto, investiga as origens da previsão, intimamenteligadas ao Movimento de Reforma Sanitária iniciado nadécada de 70 e, de forma mais concreta, à 8a. ConferênciaNacional de Saúde, realizada em Brasília, no ano de 1986,em cujo relatório final a participação da população nagestão do SUS e o controle social foram inseridos comdestaque dentro de uma concepção global do modelo deatenção à saúde que seus cerca de cinco mil participantes,entre profissionais da área e usuários, idealizaram para opaís. A importância e a legitimidade social da Conferênciarestaram evidenciadas nos trabalhos constituintes, queadotaram suas diretrizes como ponto de partida eacabaram consagrando muitas delas (como a participaçãoda comunidade e o conseqüente controle social) no textofinal promulgado em 1988.
Aprofunda, na seqüência, as atribuições dos conselhos desaúde que, juntamente com as conferências, ganharamconcreção na Lei 8.142/90, regulamentadora do inciso IIIdo art. 198 antes referido, bem como as atribuições dosrespectivos presidentes, demonstrando a incompatibilidadedessa função com a de gestor da saúde.
Partindo dessas premissas, a monografia termina pordemonstrar a inconstitucionalidade das disposições legaisque prevêem os gestores de saúde (ministro e secretáriosde saúde) como presidentes natos dos respectivosconselhos, na medida em que elas afrontam, a um sótempo, a concepção de democracia participativa adotadapelo constituinte de 1987/88 (art. 1°, II e parágrafo único),a ratio legis do art. 198, III; o princípio da igualdadeconsagrado no art. 5°, caput, e o princípio da moralidadeadministrativa, art. 37, todos da Constituição Federal de1988.
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INTRODUÇÃO
Todo o membro do Ministério Público que atue de forma efetiva na
área de saúde terá (ou deveria ter), necessariamente, uma surpreendentemente
enriquecedora e profícua interação com os Conselhos de Saúde, de regra desconhecidos
do candidato que estuda para o respectivo concurso. Apesar da profundidade exigida
para se alcançar aprovação, o objeto de estudo é diverso. Debruça-se o candidato sobre
processo civil e penal, juntamente com o direito material relativo às matérias
tradicionais (constitucional, administrativo, tributário, econômico, civil, penal e
eleitoral); estuda também os instrumentos legais de defesa da denominada tutela
jurisdicional coletiva (ações civis públicas para defesa de direitos difusos, coletivos e
individuais homogêneos de relevante interesse social); todavia, a Lei 8.080/90 (Lei
Orgânica da Saúde) continua uma ilustre desconhecida. A Lei 8.142/90 tanto mais. O
exercício da profissão corrige essa distorção: o aprendizado cotidiano transcende os
livros e leva o membro do Ministério Público a descobrir os caminhos passíveis de
concretizar o estudo teórico. Esse processo será tanto maior quanto mais intenso for o
contato com a sociedade e a realidade envolvente.
Nesse contexto, o convívio com os conselheiros de saúde talvez seja o
mais enriquecedor aprendizado de cidadania que pode alcançar o membro do Ministério
Público. Compostos por prestadores de serviço de saúde, públicos (governo) e privados
(25%), representantes dos trabalhadores de saúde (25%) e dos usuários (50%) e sendo
seus membros escolhidos pela respectiva categoria1, os conselhos conseguem reunir
todos os setores diretamente interessados no funcionamento do SUS e viabilizar, assim,
uma discussão plural e qualificada sobre o sistema.
1 A identificação dos segmentos representados e a paridade dos usuários em relação aos demais estáprevista na Lei 8.142/90. Outros delineamentos referentes à composição dos conselhos constam daResolução n. 33/02 do Conselho Nacional de Saúde (ver anexos), na qual indentifica-se o perfil dasentidades que indicam os representantes dos usuários, incluindo sindicatos de trabalhadores urbanos erurais, conselhos comunitários, associações de moradores, de portadores de deficiências ou patologias, dedefesa do consumidor, etc. O rol dessas entidades normalmente consta da lei respectiva e o processo deescolha fica a cargo de cada qual. Após indicado o nome do conselheiro ao Poder Executivo respectivo aeste, de regra, incumbe a nomeação (há vezes em que a prerrogativa é do próprio conselho), para ummandato de dois anos, prorrogável. A função, embora não remunerada, é de relevância pública.
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Revigora a crença no regime democrático em que vivemos, cuja
defesa é uma das funções institucionais do Ministério Público (art. 127, CF), perceber o
espírito cidadão comprometido com a melhora da sociedade, especialmente do Sistema
Único de Saúde, que conselheiros estaduais como a combativa Denise Manzano,
advogada que dedica grande parte de seu tempo às questões do SUS, não raro com
prejuízos profissionais e financeiros, ou como Evilásia Barbosa, outra representante dos
usuários que, não obstante seus cabelos absolutamente brancos e sua residência em
Nova Andradina, cidade distante mais de 300 quilômetros da Capital, preside aquele
conselho municipal, comparece e participa ativamente das reuniões do Conselho
Estadual de Saúde, ou ainda Alcides Ribeiro, representante do mesmo segmento,
aposentado, incansável combatente que está sempre apontando falhas e indicando
soluções sensatas e possíveis para os problemas do SUS. Muito tem o membro do
Ministério Público a aprender com esses cidadãos.
A idéia e a conformação legal dos Conselhos de Saúde é
extraordinária. Fruto dos ventos democráticos que sopraram em 1988, quando a
sociedade brasileira ainda exultava com o novo momento de sua história, registrado em
uma Constituição avançada, dirigente e voltada para a redução das desigualdades sociais
e a construção de uma sociedade plural e democrática, a implementação, nas leis 8.080
e 8.142, de um modelo de participação social não apenas fiscalizatório (o que já é um
significativo avanço) mas também deliberativo no que se refere à definição de
estratégias, trata-se de um verdadeiro “choque” positivo de democracia.
Tamanha revolução, contudo - e seria ilusório acreditar que não fosse
assim - encontrou (e encontra ainda hoje) enormes dificuldades de implementação, pois
estabeleceu uma nova relação de poder entre o cidadão e o governante. Este, tão
desacostumado a ser fiscalizado, tende a ver como indevida qualquer ingerência do
povo em seu modo de governar, mesmo quando sua legitimidade executiva advém das
urnas. Há sempre, neste caso, o argumento de que, eleito, ganhou um mandato para agir
secundo suas idéias, exclusivamente, como se a eleição lhe conferisse “carta branca”.
De fato, a legitimidade advinda das urnas possui um valor intrínseco muito relevante,
mas não absoluto. Primeiro, porque o titular do poder continua sendo o povo; segundo,
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porque nossa Constituição não consagrou apenas a democracia representativa, pela qual
se viabiliza a eleição de representantes, indireta, portanto, mas também a direta, dentre
as quais destaca-se a participação popular (parágrafo único do art. 1° da Constituição da
República e, no caso da saúde, com previsão específica no art. 198, III, CF).
Contra essas dificuldades deve insurgir-se o Ministério Público,
contribuindo para a consolidação do Estado Democrático de Direito traçado na
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Uma dessas dificuldades, típica resistência dos governantes em
repartir poder com a sociedade, são as previsões normativas relativas a cada conselho
que impõem como seu presidente o próprio gestor dos recursos da saúde, seja o ministro
de Estado (Decreto 99.438/90, art. 2°, caput, disposição inalterada até hoje, muito
embora vários decretos presidenciais tenham versado sobre o Conselho Nacional de
Saúde) ou o secretário estadual ou municipal de saúde. No Mato Grosso do Sul, por
exemplo, a lei que instituiu o Conselho Estadual, 1.152/91, prevê o Secretário de Estado
de Saúde como seu presidente nato. Essa coincidência verifica-se em 34 dos 77
municípios sul-matogrossenses, ainda que nem sempre advenha de uma imposição
legal.
Tal situação é induvidosamente muito nociva, tanto no que respeita à
evolução da democracia brasileira, na medida em que mantém a tutela do Estado sob o
cidadão, quanto no que se refere à moralidade da gestão pública, visto que, como órgão
fiscalizador da execução da política de saúde, inclusive nos seus aspectos econômico e
financeiro (art. 1°, §2°, Lei 8.142/90), não pode ser presidido justamente pelo agente
público fiscalizado, o gestor das verbas da saúde (de regra o secretário).
A par dessa nocividade, há induvidosa inconstitucionalidade em razão
da afronta aos dispositivos asseguradores da democracia participativa (art. 1°, parágrafo
único, CF), da participação da comunidade como diretriz do Sistema Único de Saúde
(art. 198, III) e, igualmente, aos princípio da igualdade (art. 5°, caput, CF) e da
moralidade administrativa (art. 37, caput).
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Essa é a temática que se apresenta nesta monografia. Trazendo alguns
subsídios doutrinários sobre democracia, debruça-se o texto sobre as disposições que
prevêem a participação da comunidade na direção do SUS, suas origens e razão de ser,
bem como sobre o papel conferido pela legislação aos conselhos e aos respectivos
presidentes. Com esses subsídios demonstra a inequívoca afronta ao texto constitucional
das leis que estabelecem tais previsões e, assim, viabiliza representações de
inconstitucionalidade por membros do Ministério Público junto a seus Procuradores-
Gerais (com atribuição para propositura de ADIn). Dessarte, poder-se-á estabelecer uma
verdadeira cruzada contra tal prática e, assim, contribuir sobremaneira para a
democratização da gestão na saúde.
Vê-se, assim, a importância do tema e sua valia prática.
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CAPÍTULO I – A MODERNA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E SUA CONSAGRAÇÃO NA
CONSTITUIÇÃO DE 1988
I.a - A democracia
Talvez a definição mais conhecida, sucinta e essencialmente correta
de democracia seja aquela dada pelo primeiro presidente norte-americano, Abrahan
Lincoln: “governo do povo, pelo povo e para o povo”. A fórmula de Lincoln, como
denomina CANOTILHO2, reconhece no povo o titular e a fonte de todo poder (todo
poder emana do povo – art. 1°, parágrafo único, da CF), bem como que o governo se
fundamenta na vontade e no consentimento popular (pelo). A idéia de finalidade (para o
povo) lembra que um governo democrático só se legitima na medida em que se volta à
satisfação dos interesses dos titulares do poder3.
A definição dicionarizada não foge do ensinamento da doutrina e
acrescenta um outro elemento de interesse: a fiscalização do poder. Assim, consta do
verbete democracia, no dicionário Aurélio, a seguinte definição: “doutrina ou regime
político baseado nos princípios da soberania popular e da distribuição eqüitativa do poder, ou seja, regime
de governo que se caracteriza, em essência, pela liberdade do ato eleitoral, pela divisão dos poderes e pelo
controle da autoridade, i. e., dos poderes de decisão e de execução”.
Trata-se de um regime político, vale dizer, um “complexo estrutural de
princípios e forças políticas que configuram determinada concepção do Estado e da sociedade”4 que se
opõe à autocracia e repousa sobre dois princípios fundamentais:
- a soberania popular (o poder é a única fonte de poder; o poder
emana do povo”) e
2 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3a. ed,Coimbra: Almedina, 1999. p. 281.3 Cf. SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16a. ed, São Paulo: Malheiros,1999. p.139.4 Ibidem, p. 128.
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- a participação, direta ou indireta, do povo no poder, para que este
seja efetiva expressão da vontade popular5.
A mesma doutrina identifica duas formas de exercício da democracia:
a indireta, por meio da eleição de representantes (democracia representativa), e a direta
(com alguns institutos de democracia semidireta) que se caracteriza pela participação
direta e pessoal (não eletiva) da cidadania na formação dos atos do governo 6. Vale
ressaltar que JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, juntamente com Jorge Miranda
os maiores constitucionalistas portugueses, coloca o “princípio da participação” dentre
os concretizadores constitucionais do princípio democrático7
Confrontando tais ensinamentos com o artigo 1° da Constituição da
República de 1988, especialmente seus incisos indicadores da soberania e da cidadania
dentre os fundamentos do Estado Democrático de Direito em que se constitui a
República Federativa do Brasil, e o parágrafo único, segundo o qual todo poder emana
do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos
desta Constituição, vê-se claramente que que o constituinte de 1988, do alto de seu
poder inaugural, ilimitado, autônomo e incondicionado8, adotou a democracia, em toda
sua plenitude, como regime político brasileiro.
Como ressalta CARLOS AYRES DE BRITTO9, advogado sergipano,
Doutor em Direito Público pela PUC/SP, recentemente indicado para Ministro do
Supremo Tribunal Federal, a democracia brasileira já não é exclusivamente
representativa, ante o parágrafo único do art. 1°, resgatando o componente que faltava
no célebre conceito lincolniano, dando-se uma satisfação parcial a Jean-Jacques
Rousseau, para quem “a soberania não pode ser representada”. Há, assim, um
verdadeiro redimensionamento da soberania popular com os espaços abertos para a
democracia participativa.
5 Cf. SILVA, Ibidem, p. 1356 Cf. SILVA, Ibidem, p. 1457 Op. cit., p. 2938 MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 10a. ed, São Paulo: Atlas Jurídico, 2001. p. 549 Cf. BRITTO, Carlos Ayres. Distinção entre “controle social do poder” e “participação popular” p.122. In: Revista de Direito Administrativo. Vol. 189, Rio de Janeiro, jul-set 1992, pp. 114-122.
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Vê-se, pois, que as duas formas de democracia (representativa e
participativa) foram consagradas no texto constitucional e estão expressamente referidas
no supra transcrito parágrafo único. A indireta, que pressupõe o direito ao voto e a
eleição de mandatários do povo, está regulada no Capítulo dos Direitos Políticos e nos
artigos 28, 29, 45, 46 e 77, dentre outros, que prevêem os cargos eletivos e disciplinam
como se desenvolve o processo da eleição de representantes. Sobre os espaços que o
constituinte reservou ao povo para o exercício da democracia direta ou participativa,
vale dizer, para o exercício do poder sem o intermédio de representantes eleitos, tratará
o próximo tópico.
I.b. - A democracia participativa e sua consagração no textoconstitucional
A democracia é um conceito histórico, um “processo de afirmação do povo
e de garantia dos direitos fundamentais que o povo vai conquistando no correr da história”, como bem
lembra JOSÉ AFONSO DA SILVA10, razão pela qual a democracia da antigüidade
grega não é a mesma dos tempos modernos; nem a democracia burguesa capitalista
corresponde à democracia popular, como lembra o mesmo autor.
Esse processo histórico de construção do conceito presente de
democracia não pode desconsiderar a fase em que vivemos, de sociedade de massa, nem
as manifestações do poder constituinte originário que, a cada momento de evolução
histórica, preocupa-se em ao mesmo tempo assegurar, por escrito, alguns avanços já
consagrados no meio social e outros pretendidos, futuros. A Constituição não pode
nunca perder sua perspectiva prospectiva, sob pena de já nascer ultrapassada.
Considerados esses fatores, seria despropositado pretender uma volta,
por exemplo, a uma democracia ateniense, de discussões públicas nas praças. As
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grandes dimensões da burocracia pública moderna o impedem. Por outro lado, não se
pode desconsiderar que, em uma sociedade cada vez maior e mais complexa, confiar
todo o exercício do poder apenas a representantes eleitos de tempos em tempos tende a
afastar o povo do governo e desconsiderar as peculiaridades locais na condução do
destino dos cidadãos. Não por outra razão o constituinte de 1988 fez uma clara opção
pelo reforço do poder municipal, local, e pelo incremento da participação da população
na gestão da coisa pública (democracia participativa), ampliando os espaços de
deliberação política e fiscalização da cidadania. E não o fez de forma dissociada da
doutrina, que tem estudado cada vez mais esses fenômenos.
Veja-se, a propósito, o pensamento de NORBERTO BOBBIO11:
“Hoje, se se deseja apontar um indicador de desenvolvimento democrático, este não
pode mais ser o número de pessoas que têm o direito de votar, mas o número de
locais, diferentes dos locais políticos nos quais se exerce o direito de voto; sintética
mas eficazmente: para dar um juízo sobre o Estado de democratização, num dado
país, o critério não deve ser mais o de “quem” vota, mas o do “onde” se vota (e fique
claro que aqui entendo o “votar” como ato típico e mais comum do participar, mas
não pretendo de forma alguma limitar a participação ao voto). … deveremos
procurar ver se aumentou não o número de eleitores, mas o espaço no qual o cidadão
pode exercer seu próprio poder de eleitor.”
E cita o autor um exemplo italiano: “Podemos, assim, considerar reforma
democrática a que instituiu os conselhos escolares.”
Na mesma linha o pensamento de PAULO BONAVIDES, em
monografia sobre o tema:
“… a democracia participativa configura uma nova forma de Estado: o Estado
democrático-participativo que, na essência, para os países da periferia é a versão
mais acabada e insubstituível do Estado social…. Ao Estado liberal sucedeu o
Estado social; ao Estado social há de suceder, porém, o Estado democrático
participativo que recolhe das duas formas antecedentes de ordenamento o lastro
10 Op. cit., pp. 129 e 13011 BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. 8a. ed, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, pp. 68/9
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positivo da liberdade e da igualdade. E o faz numa escala de aperfeiçoamento
qualitativo da democracia jamais dantes alcançada em termos de concretização”12
É esse também o pensamento de MARIA SYLVIA DI PIETRO que,
ao traçar um quadro evolutivo do Estado de Direito, do Liberal para o Social e deste
para o Democrático, identifica como característica essencial deste último a participação
“já não mais por delegação nem simples colaboração” mas “mediante a atuação direta do particular na
gestão e no controle da Administração Pública”13.
Na mesma senda, JOSÉ AFONSO DA SILVA ao distinguir o Estado
Democrático de Direito do Estado Liberal de Direito e do Estado Social de Direito:
“Este [o Estado Democrático] se funda no princípio da soberania popular que
‘impõe a participação efetiva e operante do povo na coisa pública, participação que
não se exaure, como veremos, na simples formação das instituições representativas,
que constituem um estágio da evolução do Estado Democrático, mas não o seu
completo desenvolvimento”14.
O mesmo autor, citando o doutrinador espanhol Elias Diaz, lembra
que a concepção mais recente do Estado Democrático de Direito remete à idéia de
“Estado de legitimidade justa” (ou Estado de Justiça material), “fundante de uma sociedade
democrática, qual seja a que instaure um processo de efetiva incorporação de todo o povo nos
mecanismos do controle das decisões, e de sua real participação nos rendimentos da produção”.15
Caminhamos, pois, para um novo modelo de Estado, delineado no
texto constitucional de 1988 que, já no caput do art. 1°, declara constituir-se a
República Federativa do Brasil em um Estado Democrático de Direito fundado na
12 BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa. São Paulo: Malheiros,2001, pp. 19/2013 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Participação Popular na Administração Pública. In: Revista deDireito Administrativo . Vol. 191. Rio de Janeiro, jan-mar 1993, p. 3214 SILVA, José Afonso. O Estado Democrático de Direito. In: Revista do IAB , Ano XXXIV, n. 93, 3°trimestre de 2000. A transcrição que faz o autor é de CROSA, Emilio, Lo Stato Democratico, Turim,UTET, 1946, p. 2515 ibidem. O autor remete sua posição à obra de DIAZ, Elias.Estado de Derecho e Sociedad Democrática,Madri, Editorial Cuadernos para el Diálogo, 1973, pp. 139-141.
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cidadania (inciso II) e no parágrafo único do mesmo artigo explicita que todo o poder
emana do povo, que pode exercê-lo não apenas por meio de representantes (democracria
liberal-representativa clássica), mas também diretamente. Neste modelo, cabe ao povo
organizado um novo papel na condução dos destinos da nação, razão pela qual restaram
asseguradas no texto constitucional inúmeras formas de participação direta da cidadania
no governo, conforme abordado adiante. Estão, assim, estabelecidos pela Constituição
os fundamentos de uma democracia participativa16.
Já se debruçando sobre o texto constitucional, conclui JOSÉ AFONSO
DA SILVA17 que:
“A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser um processo
de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3o, I), em que o
poder emana do povo, deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por
seus representantes eleitos (art.1o, parágrafo único); participativa, porque envolve a
participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos de
governo; pluralista, porque respeita a pluralidade de idéias, culturas e etnias e
pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a
possibilidade de convivência de formas de organização e interesses diferentes na
sociedade; há de ser um processo de liberação da pessoa humana das formas de
opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos
individuais, políticos e sociais, mas especialmente da vigência de condições
econômicas suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício.”
Além da previsão genérica do parágrafo único do artigo 1°, a
Constituição Federal de 1988 prevê inúmeras formas específicas de democracia
participativa, dentre elas a prevista no inciso III do art. 198 que estabelece como diretriz
do Sistema Único de Saúde (SUS) a participação da comunidade. São vários os
exemplos trazidos pela doutrina.
16 Cf. MAUÉS, Antônio Moreira.Ordem Social: Fundamentos da Democracia Participativa, passim. In:SCAFF, Fernando Facury (Coord.). Ordem Econômica e Social: Estudos em Homenagem a AryBrandão de Oliveira. São Paulo: LTr, p. 32-4217 Ibidem
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JOSÉ AFONSO DA SILVA18, além da iniciativa popular de projeto
de lei à Câmara dos Deputados, do referendo e do plebiscito, consultas formuladas ao
povo para que delibere sobre matéria de acentuada relevância, todos os três previstos
nos incisos do art. 14 da Constituição e regulados pela Lei 9.709/98, mesclando
democracia direta (pois não há eleição de representantes) com indireta (na medida em
que é utilizado o aparato eleitoral para recolhimento dos votos), identifica vários outros
exemplos de efetiva participação da cidadania. Cita expressamente a ação popular (CF,
art. 5°, LXXIII) e o disposto nos artigos 10 (participação dos trabalhadores e
empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais
ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação) e 11 (eleição de um
representante dos empregados das empresas com mais de duzentos, para promoção de
negociações diretas com os empregadores19), estes dois últimos como exemplares do
direito coletivo de participação sob uma perspectiva corporativa20. Aponta ainda outros
artigos que guardam maior similaridade com o previsto no artigo 198, III, CF: o artigo
31, §3° (“as contas dos Municípios ficarão, durante sessenta dias, anualmente, à
disposição de qualquer contribuinte, para exame e apreciação, o qual poderá questionar-
lhes a legitimidade, nos termos da lei”); o 37, §3° (participação do usuário na
administração pública direta e indireta, especialmente sobre as reclamações relativas à
prestação de serviços públicos, o acesso dos usuários a registros administrativos e a
informações sobre atos de governo e a disciplina da representação contra o exercício
negligente ou abusivo de função pública); o 74, §2° (legitimidade de qualquer cidadão,
na forma da lei, para denunciar irregularidades ao Tribunal de Contas da União); o 194,
VII (caráter democrático e descentralizado, com gestão quadripartite - trabalhadores,
empregadores, aposentados e governo - nos órgãos colegiados da seguridade social); o
206, VI (gestão democrática do ensino público, na forma da lei) e o 216, §1°
(colaboração da comunidade na proteção do patrimômio cultural brasileiro), todos
dispositivos da Constituição Federal de 1988. Sendo a saúde um dos pilares da
seguridade social (art. 194, caput) e exemplificativo o rol apresentado pelo autor, como
18 SILVA, José Afonso. Curso, op. cit., pp. 145/619 O exemplo, na verdade, não se harmoniza com os demais, por duas razões: não diz com a relação entrecidadão e Estado, no âmbito da qual se dá a relação de poder que caracteriza o regime democrático eprevê a eleição de representante, procedimento típico da democracia indireta.
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se constata da expressão “tais como” por ele utilizada, percebe-se que a falta de
referência expressa ao artigo 198, III, deveu-se basicamente à referência já constante do
art. 194, VII, não retirando daquele, de forma alguma, a condição de exemplo de
democracia participativa, inclusive em razão da similaridade que guarda com os demais
exemplos. Prova do acerto dessa conclusão encontra-se em outro trecho da obra de
SILVA onde, ao tratar do direito coletivo de participação direta dos cidadãos no
processo político e decisório21, o autor cita lado a lado os artigos 194, VII e 198, III.
Neste segundo trecho o autor faz interessante relação entre o disposto nesses dois
artigos e a fiscalização popular prevista no art. 31, §3°, também da Constituição
Federal, considerando todos direitos coletivos não corporativos (diferentemente do do
art. 10) de participação no processo político e decisório. A relação também ocorre na
saúde, em que a participação da comunidade como diretriz do SUS assume, ao mesmo
tempo, uma característica de exercício e fiscalização do poder político.
Da mesma forma, ANTÔNIO MAUÉS22 traz à colação vários
exemplos de democracia participativa na Constituição citando com absoluta
propriedade, além dos artigos 10; 194, VII; 198, III e 206, VI, também os artigos 204, II
(participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação
das políticas de assistência social e no controle das ações em todos os níveis) e 227, §7°
(que aplica ao atendimento às crianças e aos adolescentes o disposto no art. 204), ao
tempo em que observa que várias das disposições estão relacionadas com a Ordem
Social. Não por acaso, visto que ela, de regra, trata de direitos fundamentais que
demandam prestações positivas do Estado para as quais é fundamental garantir eficiente
aplicação de recursos: seja evitando desvios, seja priorizando as áreas de maior
relevância para a comunidade, viabilizando, assim, mais efetiva e célere erradicação da
pobreza e redução das desigualdades sociais, objetivos da República brasileira (art. 3°,
III). Trata-se, de fato, de uma área em que a comunidade tem muito a contribuir.
20 Conforme melhor classifica o autor quando trata do direito coletivo de participação. Curso, op. cit., pp.264/521 Ibidem, pp. 264/522 Op. cit. , p. 33
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Visto o conteúdo da concepção de democracia participativa e sua
indissociável relação com o Estado Democrático de Direito, bem como a recepção
daquela na Constituição de 1988, cabe avançar na reflexão de modo a obter as primeiras
conseqüências de interesse do presente estudo.
Para tanto convém ter presentes os quatro princípios cardeais
componentes da estrutura constitucional da democracia participativa segundo PAULO
BONAVIDES23:
- o princípio da dignidade da pessoa humana,
- o princípio da soberania popular,
- o princípio da soberania nacional e
- o princípio da unidade da Constituição
Para o autor, que confere especial importância ao princípio da
soberania popular, nele englobando a idéia de participação popular (diferentemente de
SILVA, que vê, como já analisado, dois princípios norteadores da democracia: o da
soberania, que se refere à fonte de poder, e o da participação), o referido princípio
“compendia as regras básicas de governo e de organização estrutural do ordenamento jurídico, sendo, ao
mesmo passo, fonte de todo o poder que legitima a autoridade e se exerce nos limites consensuais do
contrato social. […] Em suma, o princípio da soberania popular é a carta de navegação da cidadania rumo
às conquistas democráticas, tanto para esta como para as futuras gerações.”24
Ocorre que, como bem assevera BONAVIDES “essa democracia já é
direito positivado no parágrafo único do art. 1° da Constituição” ao que complementa “Mas resta
inanimada e programática naquele dispositivo tutelar, por obra do silêncio, da omissão, do egoísmo e das
deserções dos dois poderes que legislam e governam o País.”25
Embora as críticas do autor mereçam sempre, pelo caráter
comprometido com a democracia e a cidadania que demonstram, profundo respeito e
atenção, é preciso reconhecer que, no que se refere ao objeto desta monografia, não se
23 BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa. Op. cit., p, 1024 Ibidem, p. 1125 Ibidem, p. 24
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pode imputar nenhuma responsabilidade ao legislador ordinário federal pela não
implementação efetiva do controle social, visto que ele deu ao art. 198, III, CF, em
menos de dois anos de vigência da nova ordem, concreção nas leis 8.080/90 e 8.142/90.
Fê-lo, é verdade, sob os ímpetos da constituinte, talvez sem sequer perceber o alcance
revolucionário da disposição, mas fez e muito bem. E mais, condicionou o recebimento
dos recursos federais, pelos Estados e Municípios, à instituição dos conselhos de saúde,
com composição paritária, nos termos do Dec. 99.438/90 (art. 4°, Lei 8.142/90). Ou
seja, além de criar os Conselhos e conferir-lhes amplo poder fiscalizatório e
deliberativo, a lei garantiu sua implementação na medida em que condicionou o repasse
de recursos federais – sempre tão almejados pelas esferas estadual e municipal - à sua
instituição. Ou seja, o legislador ordinário federal fez sua parte.
Todavia, quando da regulamentação da matéria as articulações
reacionárias dos governos acabaram por sobreporem-se ao ideário constitucional e
foram editadas normas que previam o ministro ou os secretários de saúde como
presidentes natos dos conselhos. Foi assim já no Decreto 99.439/90 (não havendo
alteração, no particular, pelo Decreto 1.448/95, nem nos que se seguiram), que dispôs
sobre a organização e atribuições do Conselho Nacional de Saúde e nas legislações
estaduais que se seguiram, como as do Mato Grosso do Sul, já referida. Vê-se, assim,
que o problema não é falta de regulamentação legal, mas regulamentação
inconstitucional. A responsabilidade está, então, com o Poder Judiciário, que pode
fulminar normas por vício de inconstitucionalidade e, por conseqüência, com todos
aqueles legitimados para a propositura de ações diretas de inconstitucionalidade, dentre
os quais o Procurador-Geral da República (art. 103), ao qual qualquer membro do
Parquet pode dirigir representações com vistas à propositura das ações referidas.
Voltando à doutrina de BONAVIDES. Dentre os princípios referidos,
densificadores da democracia participativa, interessa sobremaneira ao objeto desta
monografia o referente à unidade da Constituição, verdadeiro elemento hermêutico
chave para a elucidação de cláusulas constitucionais. Tal princípio compreende,
segundo o autor, “tanto a unidade lógica – hierarquia de normas oriunda da rigidez
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constitucional – como a unidade axiológica – ponderação de valores, proveniente da
necessidade de concretizar os princípios insculpidos na Constituição”26
Com base nos dois princípios trazidos pelo célebre e combativo
constitucionalista (o da soberania popular, do qual decorre a participação popular – de
base axiológica e o da unidade da Constituição – critério hermenêutico), é possível
construir a compreensão de que, ao menos naqueles pontos em que a própria
Constituição previu a participação direta da cidadania no exercício do poder, há
uma reserva deste pelo povo que não pode ser usurpada por seus representantes.
Se o povo, como fonte do poder político e titular do poder constituinte, é o titular do
poder que delega a seus representantes, toda vez que resguardar a si, no próprio texto
constitucional originário, o exercício do poder, essa área não pode ser exercida pelos
representantes eleitos, pois não é abrangida pelo “mandato” representativo. Vale dizer,
toda vez que a própria Constituição previr a participação popular, esta deve ser
entendida como uma reserva ao poder do povo em relação a seu representante, que deve
ser respeitada sob pena de malferir o texto constitucional. Este raciocínio será
aprofundado no primeiro tópico do Capítulo IV.
I.c. Contexto democrático da constituinte de 1987/1988
Salvo raras exceções27, equivocadas, reconhecem os doutrinadores28
na Constituinte de 1988 um poder originário, fruto da nova ordem política que se
instalara no país. O fato de não ter havido uma revolução, vale dizer, uma quebra
institucional, não diminui a importância nem a amplitude da mudança que se operou.
Pelo contrário, ter conseguido o Brasil pôr fim à ditadura militar sem quebra
26 Ibidem, p. 1127 Manoel Gonçalves Ferreira Filho, não obstante reconheça que o poder constituinte de 1988 estivesseliberto de limitações materiais e circunstanciais – características típicas do Poder Constituinte Originário -sustenta que a Constituição de 1988 é fruto do Poder Constituinte Derivado, por ter sido convocada poruma Emenda Constitucional (n. 26, de 27 de novembro de 1985).28 Nesse sentido: SILVA, José Afonso, Curso, op. cit., pp. 90-92; BASTOS, Celso Ribeiro. Curso deDireito Constitucional , pp. 92-4; MORAES, Alexandre. Direito Constitucional , op. cit., p. 37
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institucional é motivo de comemoração, especialmente se considerada a realidade
histórica latino-americana.
Abria-se o que Tancredo Neves denominou “Nova República” fase
que, segundo famoso discurso seu, pronunciado em Maceió, se definiria “pela eliminação
dos resíduos autoritários e pelo início, decidido e corajoso, das transformações de cunho social,
administrativo, econômico e político” requeridos pela sociedade brasileira29. Com a Nova
República abria-se no país o caminho para uma nova proposta de desenvolvimento,
baseada na democracia, na liberdade e na cidadania.
O movimento que remontava à abertura partidária de 1979, em que o
antigo bipartidarismo deu lugar a cinco novos partidos: PDS (Partido Democrático
Social – antiga Arena, partido do governo), PMDB (Partido do Movimento
Democrático Brasileiro), PDT (Partido Democrático Trabalhista), PTB (Partido
Trabalhista Brasileiro) e PT (Partido dos Trabalhadores), se incrementou com a
significativa vitória da oposição nas eleições para Governador em 1982 e culminou com
o amplo movimento popular pelas Diretas Já, em 1984, que reuniu milhões de pessoas
em manifestações de rua em quase todas as capitais brasileiras, e a eleição de Tancredo
Neves para a Presidência da República em 15 de janeiro de 1985. Inaugurava-se uma
nova ordem política no Brasil. O fato de ter sido essa eleição indireta, pelo Colégio
Eleitoral formado pelo Congresso Nacional, não invalida ou desmerece o movimento,
visto que o eleito encarnava seu simbolismo renovador, na medida em que era seu
legítimo líder e representante. Apesar da trágica doença responsável pela sua morte em
21 de abril de 1985, seu vice-presidente e sucessor, José Sarney, viu-se compelido a dar
continuidade à consolidação da Nova República, não obstante fosse um dissidente da
antiga Arena, então integrante do partido resultante dessa dissidência, o PFL (Partido da
Frente Liberal), que garantiu, junto com o PMDB a vitória no Colégio Eleitoral a
Tancredo Neves.
Foi nesse contexto que o Congresso Nacional, em 27 de novembro de
1985, por meio da Emenda Constitucional n. 26, encaminhada pelo Presidente José
29 apud SILVA, José Afonso. Curso, op. cit. p. 90
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24
Sarney ao Congresso Nacional que a aprovou e promulgou, convocou a Assembléia
Nacional Constituinte, a ser composta pelos congressistas eleitos no pleito que
ocorreria em novembro de 1986. Em 1° de fevereiro de 1987, instalou-se a Assembléia
Nacional Constituinte, na modalidade congressional.
Foi, sem dúvida, uma constituinte democrática. Seu regimento previa,
no art. 24, a apresentação de emendas populares e foram 122 as apresentadas. Dentre
estas, várias relativas à saúde, destacando-se a de número 50 (PE00050-4), apresentada
por entidades representativas do Movimento de Reforma Sanitária, que tiveram decisiva
participação na 8a. Conferência Nacional de Saúde (de 1986), objetivando garantir a
inclusão das propostas lá aprovadas na discussão da constituinte 30.
Sem um projeto prévio, o texto começou a ser configurado em 24
subcomissões temáticas, integrantes de 8 comissões temáticas31. A saúde foi discutida
na Subcomissão B, que cuidava também da seguridade e do meio ambiente, no âmbito
da Comissão da Ordem Social (VII). Nessa subcomissão, composta por 24 constituintes,
foram ouvidos, em 15 audiências públicas, 32 entidades e instituições das três áreas
temáticas, afirmando ELEUTÉRIO RODRIGUES NETO32 que todos os grupos ou
correntes que se dispuseram a depor foram ouvidos.
Os anteprojetos aprovados nas várias subcomissões e comissões foram
encaminhados para a Comissão de Sistematização, cujo relator era o constituinte
Bernardo Cabral, que apresentou em 25 de junho de 1987 o primeiro trabalho reunindo
todos os anteprojetos, numa peça de 551 artigos, que acabou por ganhar o apelido de
“Frankenstein”33. Após essa primeira sistematização foram apresentadas
30 A emenda referida foi apresentada pelo Conselho Federal de Medicina, pela Federação Brasileira deNutrição e pelo Sindicato dos Enfermeiros do Distrito Federal, e contou com 55.117 subscritores. A 8a.Conferência Nacional de Saúde e sua influência na Constituinte serão objeto de tópico próprio.31 OLIVEIRA, Mauro Márcio. Panorama do Funcionamento da Assembléia Nacional Constituinte. In:Fontes de Informações sobre a Assembléia Nacional Constituinte de 1987: Quais são, onde buscá-las e como usá-las . Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 1993.32 Cf. RODRIGUES NETO, Eleutério. A Saúde na Constituinte: uma Análise Preliminar, p. 98. In:Caderno CEAC/UnB (Centro de Estudos e Acompanhamento da Constituinte da Universidade deBrasília), ano 1, n. 1, pp. 95-101.33 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 14a. ed, São Paulo: Saraiva, 1992, p. 93
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aproximadamente 40.725 emendas, em três estágios de discussão, até que, em 15 de
setembro de 1987, o relator apresentou um substitutivo de 336 artigos.
Neste momento, tendo os constituintes que não participavam da
Comissão de Sistematização (CS) se apercebido de que estavam excluídos do efetivo
processo decisório, visto que havia então a idéia de que o Projeto de Constituição
encaminhado pela CS ao plenário contaria com uma espécie de presunção de aprovação,
pelo que só uma emenda que obtivesse o voto da maioria absoluta (280) dos
constituintes poderia alterá-lo, foi aprovada uma alteração regimental que permitiu a
apresentação de novas emendas ao projeto. BASTOS denominou esse movimento de
“revolução democratizante”34, na medida em que levou para o plenário as grandes
dicussões.
Em 27 de janeiro o plenário reuniu-se para dar início às votações,
tendo sido aprovada, no dia seguinte, as primeiras matérias: o preâmbulo e o Título I.
Foram 20 meses de discussões que culminaram na aprovação de um
texto que ficou consagrado como Constituição Cidadã, na feliz expressão de Ulisses
Guimarães, presidente da Assembléia Nacional Constituinte, que assim a denominou
porque, diferentemente de todas as demais constituições brasileiras, começava pela
consagração dos direitos e garantias fundamentais e não pela organização do Estado,
evidenciando a importância dessa matéria para a nova ordem que se instaurava. JOSÉ
AFONSO DA SILVA, corroborando a adequação da expressão cunhada, ressalta que a
Constituição de 1988 “teve ampla participação popular em sua elaboração e, especialmente, porque
se voltou decididamente para a plena realização da cidadania”35.
Eram novos tempos. Passados vinte anos de ditadura militar o povo
brasileiro ansiava por democracia acima de tudo. Eram tempos econômicos difíceis (a
inflação beirava os 1000%) de uma década que ficou conhecida como perdida,
designativo só concebível sob o aspecto exclusivamente econômico, visto que
34 Cf. ibidem, p. 9535 SILVA, José Afonso. Curso, op. cit., p. 92
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politicamente significou a grande virada democrática. Inúmeros movimentos populares -
e o da saúde era um dos mais organizados - surgidos ainda na ditadura, aguardavam
ansiosos para dar seu grito de independência. Começava a se firmar, no Brasil o
chamado Terceiro Setor, cujo lobby na constituinte garantiu a liberdade, a
independência e o estímulo ao associativismo civil (cf., por exemplo, os incisos XVII a
XXI do art. 5° da Constituição). Na área da saúde, todos os setores interessados,
especialmente médicos, usuários e prestadores, haviam preparado as bases do que viria
a ser o Sistema Único de Saúde na 8a. Conferência Nacional de Saúde, realizada em
Brasília, em 1986, com ênfase na descentralização e na participação da comunidade. A
população que fora, aos milhões para as praças exigir eleições diretas já e frustara-se
com a eleição pelo Colégio Eleitoral, esperava, agora, alcançar a pretendida democracia
no novo texto constitucional.
Nesse contexto histórico-sociológico surgiu a Constituição de 1988.
Nele devem ser analisados seus dispositivos.
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CAPÍTULO II –OS ANTECEDENTES HISTÓRICOS E A CONSTRUÇÃO DA PARTICIPAÇÃO
DA COMUNIDADE COMO DIRETRIZ CONSTITUCIONAL DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE
(SUS)
II.a – O Movimento de Reforma Sanitária e seus desdobramentos noaprimoramento da saúde no Brasil com incremento da participação dacomunidade
Um dos aspectos mais relevantes da configuração constitucional do
Sistema Único de Saúde está em suas origens. Provavelmente nenhuma outra seção da
Constituição Federal de 1988 tenha alicerces tão sólidos e legítimos em um movimento
social construído há mais de uma década antes da constituinte - o chamado “Movimento
de Reforma Sanitária” - como é o caso da Seção II (Saúde) do Capítulo da Seguridade
Social. Constituído por pessoas e grupos organizados voltados para a crítica do modelo
dominante de atenção à saúde e, em um segundo momento, para a elaboração e defesa
de um projeto alternativo, o Movimento de Reforma Sanitária foi determinante no
processo de reforma sanitária pelo qual passou (e passa) nosso país, tendo fornecido as
bases do vigente Sistema Único de Saúde, dentre as quais a participação da
comunidade. O próprio movimento é a primeira expressão real da importância dessa
participação na construção do SUS.
Como ressaltou CARVALHO36 desde meados da década de 70
desenvolviam-se movimentos paralelos ao Estado, ainda de baixa visibilidade que,
aliados a movimentos sindicais na área de saúde (especialmente de médicos),
procuravam articular-se para provocar a revisão do modelo de assistência à saúde então
vigente: contributivo (só os segurados da previdência tinham acesso aos serviços de
saúde), burocrático (centralizado em Brasília sem qualquer participação popular37),
36 CARVALHO, Antônio Ivo de. Conselhos de Saúde no Brasil – Participação Cidadã e ControleSocial. Rio de Janeiro: FASE/IBAM, 1995, p. 3837 O Conselho Nacional de Saúde, instituído desde 1937 pela Lei 378, era então regulado pelo Decreto67300/70 que, não obstante lhe tenha atribuído funções e estrutura mais definidos, mantinha-o comoórgão consultivo do do Ministério da Saúde e integrado quase que totalmente por representantes do PoderExecutivo (12 dos 16 membros). Com o passar dos anos, especialmente a partir do Decreto 79056/76,
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adepto de uma orientação medicalista e privatizante e vinculado ao Ministério da
Previdência. Lutavam, nesse primeiro momento, pela ampliação do acesso e por maior
participação popular.
Com a criação do CEBES – Centro Brasileiro de Estudos em Saúde,
em 1976, e da ABRASCO – Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde
Coletiva, em 1979, deu-se ao movimento um contorno institucional e um significativo
incremento para o debate político-ideológico, viabilizando-se a sistematização de
propostas alternativas ao sistema. Essas duas entidades, que tiveram significativa
participação na Constituinte de 1987/8838, consolidaram sua identidade programática no
I Simpósio sobre Política Nacional de Saúde, promovido pela Comissão de Saúde da
Câmara dos Deputados, em outubro de 1979, do qual resultou o histórico documento
“Democratização e Saúde”, baseado em estudos realizados pelo CEBES, onde se
propunha a criação de um Sistema Único de Saúde, universalizado, equânime,
descentralizado e participativo39.
No início da década de 80, a crise da Previdência (responsável pela
maior parte das prestações e gastos em saúde no país) ganhava contornos preocupantes,
resultado, basicamente, da diminuição na arrecadação resultante da recessão e do
desemprego crescentes e das fraudes e desvios de recursos cada vez maiores por
absoluta falta de controles institucionais e sociais. Reconhecendo a existência da crise, o
Governo buscou o envolvimento de setores da sociedade (muitos deles oriundos do
“Movimento de Reforma Sanitária”) para solucioná-la, postura que resultou na criação,
em setembro de 1981, pelo Decreto 86329, do CONASP – Conselho Consultivo de
Administração de Saúde Previdenciária. O Conselho foi composto por 15 membros
regulamentando a Lei 6229/75 (que disciplinava o Sistema Nacional de Saúde), o CNS, cujarepresentatividade “não alcançava senão uma elite médica”, no dizer de CARVALHO (ibidem, p. 33), foiassumindo um perfim eminentemente técnico-normativo, com a criação das Câmaras Técnicas, previstasnas Portarias 360/77 e 204/78. Somente após o Decreto 99438/90, já sob a nova orientação consagrada naConstituição de 1988, o Conselho Nacional de Saúde passa a ser integrado por representantes dasociedade e assume novo e decisivo papel na construção de um novo modelo de saúde, tornando-seelemento chave nesse processo.38 Veja-se, a propósito, o espaço aberto a essas entidades nas audiências públicas da Constituinte, noanexo (atas da 11ª e 12ª reuniões ordinárias da Subcomissão de Saúde, Seguridade e Meio Ambiente.39 Cf. RODRIGUES NETO, Eleutério. A Saúde na Constituinte: uma análise preliminar, p. 96. In:Caderno CEAC/UnB, Brasília, ano 1, n. 1, p. 95-101
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escolhidos pelo Presidente da República a partir de lista quíntupla apresentada por
diversas entidades, resultando numa composição de sete representantes governamentais,
três patronais, três dos trabalhadores e dois da área médica, evidenciando-se, assim, uma
maioria de membros representando a sociedade civil.
Como anotou CARVALHO40, das várias propostas apresentadas pelo
CONASP apenas dois grandes projetos foram efetivamente implementados: o de
racionalização das contas hospitalares (com a introdução da AIH – Autorização de
Internação Hospitalar) e o das ações integradas de Saúde (AIS). Estas úlimas
operacionalizaram-se através dos convênios trilaterais entre Ministério da Previdência e
Assistência Social, Ministério da Saúde e Secretarias Estaduais de Saúde, a partir dos
quais duas diretrizes que viriam a caracterizar o SUS começaram a consolidar-se: a
descentralização, pelas transferências financeiras sistemáticas aos Estados e
Municípios, e a participação da sociedade na gestão e no controle dos serviços de
saúde , com a constituição de Comissões Interinstitucionais em Saúde (CIS),
CR(regional)IS, CIM(municipal)S, com a participação dos gestores governamentais, em
um primeiro momento e, na seqüência, também de prestadores públicos e privados,
profissionais e usuários, antecipando o papel que depois seria desempanhado pelos
Conselhos de Saúde no controle social do sistema. No Município do Rio de Janeiro, a
partir de 1984, desenvolveu-se, por decisão da respectiva CIMS, uma singular
experiência de gestão descentralizada, com a criação dos Grupos Executivos Locais
(GELs) nas cinco áreas de planejamento em que estava dividido o município,
compostos pela totalidade de diretores de unidades de saúde existentes na área e igual
número de representantes da comunidade ali existente, inaugurando-se, assim, o
princípio da paridade que depois foi consagrado na Lei 8.142/90.41
Com a abertura do governo à participação da sociedade organizada
por ocasião da crise da Previdência, especialmente com a criação das CIS, o Movimento
de Reforma Sanitária passou a ocupar espaços de destaque no governo e pôde, assim,
viabilizar a institucionalização da participação comunitária e popular na gestão do
40 Cf. op. cit., p. 43.41 Cf. op. cit., p. 46.
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sistema de saúde como elemento estratégico do processo da reforma sanitária que se
empreendeu, abrindo espaço para a criação dos conselhos de saúde como são hoje
concebidos.
O Estado tornara-se mais permeável e a sociedade mais madura nas
suas lutas pela melhoria dos serviços de saúde. Estava aberto o caminho para a
institucionalização da participação da comunidade como principal meio de garantir a
adequação das políticas de saúde às necessidades da sociedade, bem como um eficaz
controle social na repressão a fraudes e desvios de recursos. Essas finalidades, todavia,
só poderão ser plenamente atendidas com efetiva independência dos conselhos, para o
que esta monografia pretende contribuir.
II.b – A 8a. Conferência Nacional de Saúde e sua influência naConstituinte 87/88
A 8a. Conferência Nacional de Saúde (CNS), realizada entre 17 e 21
de março de 1986, em Brasília, presidida por Sérgio Arouca, então presidente da
FIOCRUZ42, foi o ponto culminante do chamado “Movimento de Reforma Sanitária” e
do amplo processo de discussão por ele promovido. Conjugando os vários fatores
democratizantes inspiradores da Nova República, tendo sido precedida por conferências
preparátorias estaduais e municipais, e contando com a participação de quase 5.000
pessoas, sendo 1.000 delegados, distribuídos entre produtores de serviços de saúde
(profissionais) e usuários (sociedade civil organizada), a 8a. CNS marcou de forma
impactante o início do exercício, na arena estatal e em larga escala, da participação
institucional de representações da sociedade civil no processo de concertação de
interesses e pactação de políticas em saúde. Correspondeu, ademais, a uma estratégia de
ampliação do debate setorial com a inclusão da sociedade civil organizada, com vistas a
42 Sérgio Arouca responde hoje (maio/2003) pela Secretaria de Gestão Participativa e de Vigilância emSaúde do Ministério da Saúde, dentro da qual se inserem as questões relacionadas ao Controle Social. Éde se esperar que, nesta condição, garanta todos os meios necessárioas à efetiva participação dacomunidade tal qual preconizado na 8a. CNS.
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alcançar o acúmulo político necessário à reforma sanitária propugnada pelo Movimento
de Reforma Sanitária, como registra ANTÔNIO IVO DE CARVALHO43.
Como referem ELEUTÉRIO RODRIGUES NETO44 e ÁGUEDA
WENDHAUSEN45, as propostas da 8a. CNS passaram a nortear o processo de Reforma
Sanitária Brasileira, ressaltando a articulista que se abriam a partir dela as portas para
um modelo de saúde democrático, em oposição ao modelo tradicionalmente autoritário
e excludente, acordando-se que o “controle social” e a descentralização política e
administrativa seriam elementos importantes para garantir o direito universal e
igualitário à saúde, objetivo central da Reforma Sanitária Brasileira.
Foi convocada pelo Decreto 91.466, de julho de 1985, com o
desafiador compromisso de propor uma ampla reforma setorial, visto que tinha como
temário:
“I – a saúde como direito inerente à personalidade e à cidadania;
II – reformulação do Sistema Nacional de Saúde, em consonância com os princípios
de: integração orgânico-institucional, descentralização, universalização e
participação; redefinição dos papéis institucionais das unidades políticas (União,
Estados, Municípios e territórios) na prestação de serviços de saúde;
III – financiamento setorial.”
O artigo 3° do referido decreto previa de forma inédita a participação
da sociedade civil, melhor detalhada no artigo 2° do regimento interno da conferência,
que definia como delegados os representantes: “de organizações sindicais de
trabalhadores rurais e urbanos, bem como de entidades patronais de âmbito nacional”
(inc. IV), “dos conselhos federais, associações e federações nacionais de profissionais
de saúde” (inc. V) e “de outras instituições da sociedade civil a critério da Comissão
Organizadora” (inc. IX). Como observou CARVALHO46, a participação de usuários
43 Cf. op. cit. p. 5144 Cf. op. cit. p. 9845 Cf. WENDHAUSEN, Águeda. Micropoderes no Cotidiano de um Conselho de Saúde. 1999.Resumo de Tese (Doutorado em Enfermagem) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.Disponível em: <http://igspot.ig.com.br/paulo.denis/PesquisaAgueda.doc.> Último acesso em: 24 mai.2003.46 Cf. op. cit. p. 53
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foi bastante significativa, sobretudo de entidades comunitárias e sindicais de
trabalhadores, e a figura do “participante”, prevista regimentalmente, permitiu uma
presença maciça de pessoas e entidades interessadas no debate, não se verificando em
nenhum outro setor um processo tão amplo de discussão.
Sob outro prisma, o comparecimento das maiores autoridades políticas
do país, destacando-se os Ministros da Saúde, Carlos Santanna, e da Previdência,
Raphael de Almeida Magalhães, bem como o então presidente do PMDB e
posteriormente da constituinte, Ulisses Guimarães e o Presidente da República, José
Sarney, reforçou a legitimidade da Conferência. Sarney, em seu discurso, profetizou:
“Aqui definem-se os rumos de uma nova organização do sistema de saúde no Brasil (…). Faço votos de
que esta Conferência (…) há de representar a pré-constituinte da saúde no Brasil.”47 Representou.
O próprio regimento interno da Conferência estabelecia que sua
finalidade seria “obter subsídios visando contribuir para a reformulação do Sistema Nacional de Saúde
e proporcionar elementos para se debater a saúde na futura constituinte”48.
Com efeito, sua importância na constituinte de 1987/88 foi grande.
Nas primeiras reuniões de constituição da Subcomissão de Saúde, Seguridade e Meio
Ambiente, da Comissão da Ordem Social, o então Deputado Federal constituinte,
Eduardo Jorge, médico no Estado de São Paulo e ativo integrante do Movimento de
Reforma Sanitária registrava que “Um fato importante na área da saúde, no Brasil, foi a 8a.
Conferência Nacional da Saúde […] que produziu um documento que tem sido referência de todo
trabalho dos Ministérios da área. […] Como foi uma conferência muito ampla e teve a participação desses
órgãos específicos da área da saúde, da comunidade e do Estado, é uma referência importante, até um pré-
roteiro para discussão nessa área”49. O mesmo constituinte, manifestando-se no encerramento
das audiências públicas em que se fizeram presentes vários representantes do setor da
saúde e da sociedade civil organizada, ressaltou que: “Neste painel (das audiências públicas),
que foi muito bem desenvolvido, com a presença das entidades que se deslocaram até Brasília, acho que
47 apud NASCIMENTO, Álvaro. História da 8a. Conferência Nacional de Saúde. Disponível em<www.fiocruz.br/histoconferencias/oitavas.html>. Acesso em: 12 mai 200348 Ibidem
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ficou claro praticamente uma unanimidade em relação à necessidade de mudar-se o conceito de saúde
para um conceito mais abrangente, caracterizando a sáude como um direito da população e a necessidade
de uma reforma sanitária profunda no Brasil, como foi aqui tratada por várias entidades. Dessa reforma
sanitária profunda destacar-se-íam dois princípios entre vários outros: qual seja a necessidade de
unificação desse sistema e a necessidade de participação da comunidade no controle do mesmo .”50
(grifo ausente no original)
O debate que culminou no relatório final da 8a. CNS foi tão
representativo e profundo que as entidades ligadas à área apresentaram documentos
similares à Subcomissão de Saúde, o que chamou a atenção dos constituintes. Em
resposta a essa preocupação, o então Presidente do Conselho Federal de Medicina, Sr.
Francisco Álvaro Barbosa Costa, uma das autoridades ouvidas nas audiências públicas
promovidas pela subcomissão, assim manifestou-se:
“Parece-me que a sociedade brasileira conseguiu, em fóruns anteriores a este,
buscar uma proposta que atendesse aos interesses do conjunto da sociedade. Não é,
pois, uma coisa combinada, é um produto de um processo democrático de discussão
e de formulação e que não atende a setores que até ficam anacrônicos quando aqui
apresentados, postulações corporativas de setores menores específicos, quando se
pretende discutir os interesses dos setores da sociedade. […]
A VIII Conferência Nacional de Saúde que foi precedida de pré-conferências
regionais – e o autor de uma delas está aqui presente – em todo o país, em seguida
de conferências específicas, constituiu-se, portanto, um fórum representativo e
amplamente democrático, configurando uma verdadeira pré-constituinte da saúde.
Náo é, pois, por acaso que os documentos trazem formulações semelhantes. Ficou
patante a preocupação nessa Conferência dos setores populares, representados por
entidades de moradores de bairros, sindicais e de técnicos, em criticar, analisar, mas
sobretudo em apontar caminhos, soluções para a implementação de uma verdadeira
reforma sanitária.”(Diário da Assembléia Nacional Constituinte, Suplemento, 19 de
julho de 1987, pp. 113-116)
49 Cf. Ata da 2a. Reunião da Subcomissão de Saúde, Seguridade e Meio Ambiente, pp. 120/1. Diário daAssembléia Nacional Constituinte, Suplemento, Brasília, DF, 16 de jul. 1987. Disponível em<www.camara.gov.br>, na seção “Diários”50 Cf. Ata da 11a. Reunião da Subcomissão da Saúde, Seguridade e Meio Ambiente da AssembléiaNacional Constituinte, p. 124. Diário da Assembléia Nacional Constituinte, Suplemento, Brasília, DF,19 jul. 1987. 124. Disponível em <www.camara.gov.br>, na seção “Diários”
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Com efeito, as manifestações levadas à discussão na Assembléia
Nacional Constituinte por várias outras entidades ligadas ao setor da saúde
(notadamente a ABRASCO, a Associação Brasileira de Enfermagem, o CEBES, a
Federação Brasileira de Nutrição) só fizeram coro às palavras do representante do
Conselho Federal de Medicina51.
Em atenção à relevância da 8a. Conferência Nacional de Saúde e, em
especial, atentando à sua legitimidade social e à profundidade com que se discutira o
modelo ideal de saúde para o país, o texto do anteprojeto da Subcomissão da Saúde,
Seguridade e Meio Ambiente incorporou integralmente as idéias constantes no relatório
final da conferência, prevendo, no seu artigo 2° (gênese do que viria a ser o artigo 198
da Constituição, em sua redação final), que:
“As ações e serviços de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e
constituem um Sistema Único, organizado de acordo com o os seguintes princípios:
I – comando administrativo único em cada nível de governo;
II – integralidade e continuidade na prestação das ações de saúde;
III – gestão descentralizada, promovendo e assegurando a autonomia dos Estados e
Municípios;
IV – participação da população através de entidades representativas na formulação
das políticas e controle das ações nos níveis federal, estadual e municipal, em
conselhos de saúde”.
Adotaram-se praticamente os mesmos termos da proposta constante
do Relatório Final da 8a. CNS, que estabelecia, no item 3 do Tema 2 (Reformulação do
Sistema Nacional de Saúde) que:
“O novo sistema Nacional de Saúde deverá reger-se pelos seguintes princípios:
a) referente à organização dos serviços:
- descentralização na gestão dos serviços;
- integralização das ações, superando a dicotomia preventivo-curativo;
- unidade na condução das políticas setoriais;
- regionalização e hierarquização das unidades prestadoras de serviços,
51 Cf. Ata da 11a. Reunião da Subcomissão de Saúde, Seguridade e Meio Ambiente, da AssembléiaNacional Constituinte, op. cit., disponível também nos anexos desta monografia.
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- participação da população, através de suas entidades representativas, na
formulação da política, no planejamento, na gestão, na execução e na avaliação
das ações de saúde;
- fortalecimento do papel do Município;
- introdução de práticas alternativas de assistência à saúde no âmbito dos serviços de
saúde, possibilitando ao usuário o direito democrático de escolher a terapêutica
preferida.” (grifo ausente no original)
No tema 1 (“Saúde como Direito”), do mesmo relatório, foi
identificada dentre as medidas imprescindíveis para assegurar o direito à saúde a toda a
população brasileira o estímulo “à participação da população organizada nos núcleos
decisórios, nos vários níveis, assegurando o controle social sobre as ações do Estado.” (grifo ausente no
original)
A adoção do relatório final da 8a. CNS como base do anteprojeto da
Subcomissão da Saúde, Seguridade e Meio Ambiente, aprovado em 23-05-87, foi
explicitamente reconhecida por seu relator, o Constituinte Carlos Mosconi:
“A abordagem da saúde, no Anteprojeto que ora apresentamos à Comissão Temática
[da Ordem Social] configura absoluta inovação, atendendo reivindicações
manifestas pela sociedade e das entidades representativas dos profissionais da área,
respaldadas nas conclusões da 8a. Conferência Nacional de Saúde”52
Independentemente desse registro, da simples comparação dos dois
textos chegar-se-ia à mesma conclusão.
O texto da subcomissão no que se refere ao inciso em comento foi
pouco modificado nas discussões que resultaram no anteprojeto da Comissão da Ordem
Social, extraindo-se tão-somente a parte final “em conselhos de saúde”, de modo a
tornar o texto mais conciso e permitir várias formas de participação da comunidade que
não apenas em conselhos53. Após o anteprojeto da Comissão da Ordem Social, foram
52 Cf. relatório e anteprojeto nos anexos. Volumes 192 e 194 dos documentos da Assembléia NacionalConstituinte de 1987/88. Disponível em www.camara.gov.br , seção diários.53 Cf. Anteprojeto da Comissão da Ordem Social, nos anexos. Vol. 187 dos documentos da AssembléiaNacional Constituinte. Disponível em www.camara.gov.br , seção diários.
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também poucas as alterações promovidas no plenário, como se constata da leitura do
art. 198 da versão final da Constituição:
“Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e
hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as
seguintes diretrizes:
I – descentralização com direção única em cada esfera de governo;
II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem
prejuízo dos serviços assistenciais;
III – participação da comunidade.”
A diferença de redação no inciso que interessa a este trabalho (III)
deveu-se exclusivamente à necessidade de concisão e não ao abandono da idéia original.
A essa conclusão se chega a partir de três circunstâncias apuradas no desenvolvimento
da Assembléia Nacional Constituinte.
A primeira diz com o processo constituinte. O texto elaborado na
Subcomissão de Saúde, Seguridade e Meio Ambiente, com a pequena alteração já
referida na Comissão de Ordem Social, integrou o primeiro Projeto de Constituição
apresentado pelo relator da Comissão de Sistematização em 29 de junho de 1987. Este
projeto, todavia, contava com 501 artigos e, demasiadamente extenso e detalhado,
acabou merecendo o apelido de “Frankenstein”54. No processo de depuramento do texto
que resultou no primeiro substitutivo do relator o dispositivo foi excluído, o que
motivou duas emendas, apresentadas em 05 de setembro de 1987, ambas de redações
concisas, referindo-se apenas à “participação da comunidade” como diretriz do SUS:
uma (ES 32784-4) do constituinte Joaquim Sucena, cuja justificativa estava assim
redigida “Dita as diretrizes e a forma das ações e serviços de saúde, bem como, suas diretrizes, seu
financiamento e limita os recursos orçamentários no atendimento de entidades com fins lucrativos”;
outra (ES33695-9) do constituinte Raimundo Bezerra (integrante da Subcomissão de
54 Cf. BASTOS, op. cit., p. 93. O autor refere que o aludido projeto contava com 551 artigos. Todavia emartigo disponilizado pela Seção de Documentação Parlamentar da Câmara dos Deputados, consta ainformação de 501 artigos. Cf. OLIVEIRA, Mauro Márcio. Panorama do Funcionamento da AssembléiaNacional Constituinte. In: Fontes de Informações sobre a Assembléia Nacional Constituinte de 1987:Quais são, onde buscá-las e como usá-las . Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas,1993.
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Saúde) e outros, assim justificada: “O dispositivo proposto visa estabelecer as diretrizes básicas
que deverão ser observadas na organização do sistema único de saúde, bem como definir a forma de seu
financiamento. No §2° reproduziu-se norma contida no §4° ao art. 262 do Projeto, por ser matéria
correlata, suprimindo-se, portanto, este último parágrafo.”55 A segunda emenda mereceu este
parecer do relator: “Acolhida no mérito e na redação explícita e clara. Pela aprovação.”56 Foram,
de fato, ambas aprovadas e passaram a integrar o segundo subsitutivo do relator, com a
redação quase definitiva do artigo 198, tendo-se apenas, nas fases posteriores,
aglutinado o conteúdo de dois dos incisos, o que tratava da descentralização e o do
comando único em cada nível de governo, em um só (no I). No que se refere ao inciso
III (“participação da comunidade”) nenhuma nova alteração sobreveio até a redação
definitiva do texto constitucional57. Ora, se o constituinte que encabeçou as subscrições
à emenda aprovada, Raimundo Bezerra, havia integrado a Subcomissão de Saúde,
Seguridade e Meio Ambiente e subscrito seu anteprojeto, resta evidente que nenhuma
objeção se fazia à idéia original da subcomissão; pelo contrário, buscavam seus
integrantes darem eles próprios a redação concisa que se esperava de um texto
constitucional mais enxuto de modo a evitar que o ideário (ditado, como visto, pela 8a.
Conferência Nacional de Saúde) original se perdesse. Ademais, Raimundo Bezerra era
médico, integrante do Movimento de Reforma Sanitária e, na Assembléia Constituinte,
notabilizou-se pela defesa da saúde pública no Brasil.58
55 As duas emendas encontram-se no Anexo VI e foram publicadas no volume 239 dos documentos daAssembléia Nacional Constituinte, que engloba as “Emendas oferecidas em plenário ao sustitutivo dorelator”. Pelas justificativas, vê-se claramente que o seu único intuito era reintroduzir no textoconstitucional as diretrizes do SUS. Não havia, pois, na concisão da expressão “participação dacomunidade” qualquer intuito restritivo dessa diretriz.56 Disponível em <www.senado.gov.br>, no Sistema de Informações do Congresso Nacional (SICON), nabase de dados APE – Anteprojetos, Projetos e Emendas da Assembléia Nacional Constituinte. Disponíveltambém nos anexos. 57 Corrobora a conclusão deste autor resposta recebida pela Seção de Documentação Parlamentar daCâmara dos Deputados a questionamento sobre o assunto: “Conforme o que pudemos levantar, aalteração da redação que saiu da Subcomissão para a que foi finalmente aprovada ocorreu na denominadaFase ‘O’ do processo constituinte. Até ao Projeto de Constituição da Comissão de Sistematização o textoé o mesmo. No projeto seguinte, que é o Primeiro Substitutivo do Relator da Comissão de Sistematização,o dispositivo é excluído e reaparece em seguida no Segundo Substitutivo do Relator da Comissão deSistematização já com o texto alterado e que acabou sendo aprovado. E nesta fase localizamos duasemendas com os textos idênticos ao aprovado. A emenda 33695 do Constituinte Raimundo Bezerra que jáé do seu conhecimento e a emenda 32784 do Constituinte Joaquim Sucena, ambas aprovadas. O quesugere serem as responsáveis pela alteração do texto. Atenciosamente, Manoel Ramos Júnior –SEDOC/CD”. Cumpre esclarecer que a fase “O”, segundo o “Panorama do Funcionamento daAssembléia Nacional Constituinte”, disponibilizado pelo referido setor, corresponde a de emendas aoprimeiro substitutivo do relator.58 É o que registra o site do IDISA (www.idisa.org.br) – Instituto de Direito Sanitário Aplicado, emhomenagem póstuma a Raimundo Bezerra.
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Também o trabalho de acompanhamento das discussões da
Constituinte sobre o tema saúde feito por ELEUTÉRIO RODRIGUES NETO
demonstra que não houve objeção à ampla participação popular nem ao controle social
nessa área, visto que o articulista indica os pontos polêmicos do anteprojeto da
Comissão da Ordem Social sem incluir dentre eles a participação popular como diretriz
do SUS59.
Por fim, tem-se a votação da redação final, publicada no Diário da
Assembléia Nacional Constituinte de 18 de maio de 198860 em que a grande maioria
dos partidos votou favoravelmente, inclusive aqueles que, como o PT, representado na
Subcomissão de Saúde pelo constituinte Eduardo Jorge, defendiam apaixonadamente a
incorporação no texto constitucional das principais conclusões da 8a. CNS, com
destaque para o controle social e a participação da comunidade na gestão do Sistema
Único de Saúde.
Evidencia-se, pois, que a concisão do texto final do art. 198 não
significa sob hipótese alguma o abandono da idéia original aprovada na Subcomissão de
Saúde, Seguridade e Meio Ambiente acerca da participação popular e do controle social,
embasada, como visto, nas conclusões da 8a. Conferência Nacional de Saúde.
Sendo tamanha a importância da 8a. CNS, impende dar o merecido
destaque ao diagnóstico resultante das amplas discussões que nela se travaram acerca
dos problemas da saúde no Brasil. Nessa perspectiva dois tópicos merecem ser
transcritos, constantes do Relatório Final, no que respeita ao Tema 1 (Saúde como
Direito):
59 Op. cit. , pp. 99-101. Identificou o articulista os seguintes pontos polêmicos: proibição de propagandacomercial de medicamentos, papel do setor privado e relação com setor público, vinculação da saúdeocupacional ao Sistema Único de Saúde e a inserção da saúde como uma das áreas da seguridade social,pelo que aquela deixaria de contar com financiamento próprio e específico.60 Diário da Assembléia Nacional Constituinte, Brasília, DF, 18 mai. 1988, p. 10454-58. Contante doAnexo VII
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“8 – A evolução histórica desta sociedade desigual ocorreu quase sempre na
presença de um Estado autoritário, culminando no regime militar, que desenvolveu
uma política social mais voltada para o controle das classes dominadas, impedindo o
estabelecimento de canais eficazes para as demandas sociais e a correção das
distorções geradas pelo modelo econômico.
…
Este quadro decorre basicamente do seguinte:
…
- debilidade da organização da sociedade civil, com escassa participação
popular no processo de formulação e controle das políticas e dos serviços de
saúde;
…
- falta de transparência na aplicação de recursos públicos, o que contribuiu para
o seu uso dispersivo, sem atender às reais necessidades da população” (grifos
ausentes do original)
Buscando apresentar soluções para este problema que os
conferencistas sustentaram a necessidade de “estimular a participação da população organizada
nos núcleos decisórios, nos vários níveis, assegurando o controle social sobre as ações do Estado”
(quinto tópico do item 12 do tema 1, p. 8).
Este diagnóstico deve sempre ser considerado na interpretação do
inciso III do art. 198, na medida que representa seu substrato finalístico, vale dizer,
constitui sua razão de ser.
No que respeita ao tema 2 (“Reformulação do Sistema Nacional de
Saúde”), onde foram estabelecidos os princípios que deveriam reger o novo sistema -
depois repetidos, como visto, no texto constitucional como diretrizes do SUS – fez-se
constar nos tópicos 25 e 26:
“25. Deverão também ser formados Conselhos de Saúde em níveis local, municipal,
regional e estadual, compostos de representantes eleitos pela comunidade (usuários e
prestadores de serviço), que permitam a participação plena da sociedade no
planejamento, execução e fiscalização dos programas de saúde.
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26. É indispensável garantir o acesso da população às informações necessárias ao
controle social dos serviços, assegurando, a partir da constituição de um Sistema
Nacional de Informação a:
- maior transparência às atividades desenvolvidas pelo setor;
- adoção de políticas de saúde que respondam efetivamente à complexidade do perfil
sócio-sanitário da população brasileira”
Ficava evidente que o controle social e a participação da comunidade,
insistemente recomendados pela 8a. CNS, objetivavam, primordialmente, combater a
má aplicação de recursos, seja em razão dos desvios, contra o qual se buscava
transparência viabilizadora de efetivo controle social, seja em razão da inadequação às
necessidades da população, contra o que a efetiva participação desta na formulação das
políticas públicas e no planejamento das ações em saúde era o melhor remédio.
É preciso reconhecer que a sociedade organizada reivindicava, com a
abertura democrática, o incremento de sua participação direta na gestão da coisa
pública, como forma de garantir a adequada condução das políticas governamentais.
Eram novos tempos; construía-se uma nova sociedade e, no particular, a sociedade já
não mais aceitaria um papel coadjuvante.
Todas essas circunstâncias – cabe registrar – não passaram
despercebidas ao relator do anteprojeto da subcomissão que ressaltou:
“Estamos chegando a um ponto da transição democrática em que aparecem expostos
os nervos particularmente sensíveis do tecido social esgarçado; a fragilidade de
acordos políticos inviáveis e a deterioração dramática da situação econômica. […]
Indica, igualmente, a mudança inexorável de procedimentos na mecânica social,
consubstanciada pela exigência objetiva – e não mais pela simples expectativa – de
mudanças que levem à definição de espaços claros e justos para os diversos
segmentos que compõem a nação brasileira. […] Não há como recuar no caminho
das transformações que, se forem novamente escamoteadas por omissão, conivência
ou leviandade, farão incidir sobre nós o peso de termos jogado por terra a última
reserva de esperança da maioria da sociedade espoliada, discriminada e represada,
nos seus anseios de cidadania, há séculos.”
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Diante de tais constatações, registrou que o texto marcava conquistas
históricas para o país, dentre elas a “democratização administrativa, pela participação de
empregadores e empregados na direção do sistema”.
Esse diagnóstico precisa ser considerado na interpretação dos
dispositivos constitucionais pertinentes à saúde, especialmente no que se refere à
participação da comunidade, pois, como visto, em grande parte (e no caso citado temos
um exemplo) eles foram resultado dos debates que se travaram na 8a. Conferência
Nacional de saúde, não podendo os legisladores ordinários trair as diretrizes traçadas
pela Assembléia Nacional Constituinte. Trata-se de interpretação ao mesmo tempo
histórica e finalística ou teleológica. Em relação à primeira, reconhece a doutrina 61 ser
bastante útil para captar a ratio legis das normas, abrangendo tanto a averiguação do
histórico do processo legislativo, desde o projeto de lei, sua justificativa ou exposição
de motivos, emendas, aprovação e promulgação, como também das circunstâncias
fáticas que a precederam e lhe deram origem, as causas ou necessidades que induziram
o órgão a elaborá-la; a segunda, por seu turno, goza de preponderância sobre todas as
outras formas de interpretação62, na medida que o Direito é uma ciência destinada a
regular adequadamente as relações socias.
61 Cf. DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. São Paulo:Saraiva, 1994, p. 154..62 Nesse sentido o mestre maior dos hermeneutas brasileiros, CARLOS MAXIMILIANO, inHermenêutica e Aplicação do Direito, p. 314, justamente no capítulo sobre Direito Constitucional. Omesmo autor, no capítulo referido, também reconhece a destacada importância do elemento histórico naexegese da “Código básico”, registrando que “A história da Constituição e a de cada um de seusdispositivos contribuem para se interpretar o texto respectivo. Estudem-se as origens do Códigofundamental, as fontes de cada artigo, as causas da inserção das diversas providências na lei, os fins quese tiveram em mira ao criar determinado instituto ou vedar certos atos. […] É de rigor o recurso aos Anaise a outros documentos contemporâneos, a fim de apurar qual era, na época da Constituinte, a significaçãoverdadeira e geralmente aceita dos termos técnicos encontrados no texto.” – p. 310. Também LUÍSROBERTO BARROSO, op. cit., pp. 136/7, corrobora a preponderância que se deve dar ao métodoteleológico e assevera que “A Constituição e as leis, portanto, visam a acudir certas necessidades e devemser interpretadas no sentido que melhor atenda à finalidade para a qual foi criada”, deve-se buscar a ratiolegis. O mesmo autor lembra que a importância da interpretação teleológica é tamanha que o legisladorbrasileiro, nas raras exceções em que editou uma lei de cunho interpretativo, a Lei de Introdução aoCódigo Civil, dispôs que “na aplicação da lei o juiz atenderá aos fins sociais a que a ela se dirige e àsexigências do bem comum (art. 5°)”.
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CAPÍTULO III – CONTROLE SOCIAL E PARTICIPAÇÃO POPULAR NA GESTÃO DO SUS.
O PAPEL DOS CONSELHOS E DE SUAS PRESIDÊNCIAS
Estudadas a democracia participativa e as origens da disposição que
garantiu a participação da comunidade como diretriz do SUS, impende agora direcionar
os trabalhos para a concreção dessas orientações, previstas na Lei 8.142/90 e nas que se
lhe seguiram, especialmente no que respeita às atribuições dos conselhos. A
investigação que se faz, na seqüência, sobre as atribuições da presidência objetivam tão-
somente demonstrar a incompatibilidade dos gestores de saúde com essa função,
tratando-se no próximo capítulo da inconstitucionalidade das disposições normativas
que prevêem os gestores como presidentes natos dos conselhos.
III.a – Controle Social e Participação Popular. Conceito e distinção.
Antes de aprofundar o papel dos conselhos de saúde no controle social
e na participação popular, impende explicitar o sentido de ambas as expressões
atribuído neste trabalho, objetivando, também, afastar o risco de confusão entre elas.
Primeiramente, é preciso registrar que aqui não se dá à expressão
“controle social” a acepção tradicional do discurso sociológico, de “conjunto de meios de
intervenção, quer positivos, quer negativos, acionados por cada sociedade ou grupo social a fim de
induzir os próprios membros a se conformarem às normas que a caracterizam”63. Essa idéia,
coincidente com a tradição do pensamento de HOBBES, para quem cabia ao Estado o
papel de conter as forças e tendências individualistas desagregadoras presentes na
sociedade em estado “natural”, não é estranha ao direito sanitário64. Foi segundo seus
63 Cf. verbete in BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário dePolítica, 8a ed., Brasília: Editora da UnB, 1995.64 Cf. WENDHAUSEN, op. cit. A Professora Doutora defende, sob interessante ponto de vista, a idéia deque a excessiva medicalização que grassa na saúde brasileira não deixa de ser uma forma de controlesocial, na acepção referida no texto, construído a partir do saber/poder de várias instâncias, dentre elas, oEstado e a instituição médica. Cita autores como Illich, Foucault, Donzelot, Costa e outros quedemonstram, através de suas obras como a saúde, ao longo dos séc. XVIII e XIX foi sendo incorporada aoEstado capitalista como estratégia de controle sobre as populações, de modo que aspectos da existência
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preceitos que se inauguraram as intervenções estatais no campo da saúde coletiva,
podendo-se citar, como exemplo brasileiro, as campanhas sanitaristas promovidas por
Osvaldo Cruz no Rio de Janeiro, no início do século passado. Controle social é, nessa
acepção, o Estado sobre o indivíduo ou mesmo sobre a sociedade organizada65.
Nesta monografia, ao contrário, dá-se à expressão sentido inverso,
desenvolvido mais recentemente, em que é a sociedade que se impõe sobre o Estado.
Esta é a significação que empresta ao termo CARLOS AYRES BRITTO, hoje Ministro
do Supremo Tribunal Federal, em artigo sobre o tema objeto deste tópico66. Para o
autor, que se vale do sentido vernacular de controle (“verificação”, “investigação”,
“fiscalização”) e ressalta que foi esse o sentido emprestado ao termo pela Constituição
ao dispor sobre controle externo e interno da União na Seção IX (“Da Fiscalização
Contábil, Financeira e Orçamentária”) do Capítulo I (“Do Poder Legislativo”) do Título
IV (“Da Organização dos Poderes”), sobre o controle do Congresso Nacional quanto
aos atos do Poder Executivo (art. 49, X) e sobre o controle externo da atividade policial
(art. 129, VII), o controle social é a “fiscalização que nasce de fora para dentro do Estado,
exercida por particulares ou por instituições da sociedade civil”. Ou seja, diferentemente do
demais casos citados, que se operam dentro da própria máquina estatal, o controle social
tem sua origem fora dela, diretamente na sociedade.
CARVALHO67, após traçar um histórico das relações entre sociedade
e Estado no que respeita ao controle e à participação em saúde, corrobora essa posição,
definindo “controle social” como a “moderna compreensão de relação Estado-sociedade, onde a
esta cabe estabelecer práticas de vigilância e controle sobre aquele”.
Foi essa também a acepção dada à expressão pelo Movimento de
Reforma Sanitária quando, dentre as conclusões da 8a. Conferência Nacional de Saúde
ressaltava a imprescindibilidade de, para assegurar o direito à saúde a toda a população
como a alimentação, a procriação, a convivência etc., foram se tornando cada vez mais normatizados eesse saber ficou restrito a determinadas categorias profissionais, dentre elas a do médico. Não obstante aimportância e o interesse da tese levantada, refoge totalmente ao objeto desta monografia, razão pela qualfoi trazida apenas sucintamente, em nota de rodapé.65 Cf. CARVALHO, op. cit., p. 12.66 Distinção entre “Controle Social do Poder” e “Participação Popular” in Revista de DireitoAdministrativo , Vol. 19. Rio de Janeiro, jul-set 1992, pp. 114-2267 Op. cit., p. 8
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brasileira, “estimular a partipação da população organizada nos núcleos decisórios, nos vários níveis,
assegurando o controle social sobre as ações do Estado” (tópico 12 do tema I – cf. anexo I, p.
08). Cabe notar que o texto faz uma distinção adiante desenvolvida entre “participação
popular” e “controle social”, não raro confundidos.
Nesse sentido, “controle social” é, como bem conclui CARLOS
AYRES DE BRITO, direito subjetivo da cidadania e não expressão do poder político
(como é o caso da participação popular, abordada mais adiante). Como direito público
subjetivo, “implica a assunção de uma conduta privada que se quer respeitada pelo Poder Público … o
que se busca não é exatamente traçar uma conduta futura para o Estado, mas … impor ao Estado a
vontade dele, particular, de penetrar na intimadade das repartições públicas para reconstituir fatos ou
apurar responsabilidades”68. Por óbvio que, no exercício dessa prerrogativa, não pode estar
o cidadão jungido a uma presidência estatal. Esvazia-se, neste caso, o direito à
cidadania, controla-se-o para impedir-lhe plena efetividade.
Outro é o sentido de participação popular. Esta é uma forma de
exercício do poder político, vale dizer, uma forma de influir diretamente na formação da
vontade do Estado. É consagração da soberania popular pela via direta, tal qual
consagra a Constituição Federal de 1988 no parágrafo único do artigo primeiro (“Todo
poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos
termos desta Constituição”).
Esclarece BRITO69 que o “diretamente” do parágrafo único significa
“o povo assumindo-se enquanto instância deliberativa, tanto quanto se assumem como instância
deliberativa os ‘representantes eleitos’ por esse mesmo povo”. Não por coincidência a Lei
8.142/90 é explícita em conferir “caráter deliberativo” aos conselhos de saúde. Há,
ademais, várias passagens do texto constitucional em que o vocábulo “participação”
aparece enlaçado com outros nitidamente denotadores de ingerência decisória da
comunidade. É o que ocorre, por exemplo, nos artigos 7°, XI e 194, VII (com “gestão”)
e no artigo 204, II (com “formulação de políticas”).
68 Op. cit., pp. 116-7
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Também o artigo 198, III, na sua versão original extraída do
anteprojeto aprovado na Subcomissão da Saúde, Seguridade e Meio Ambiente, como
vimos, era explícito:
“Art. 2° - As ações e serviços de saúde integram uma rede regionalizada e
hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com os
seguintes princípios:
…
IV – participação da população através de entidades representativas na formulação
das políticas e controle das ações nos níveis federal, estadual e municipal, em
conselhos de saúde”
A sintetização para “participação da comunidade” na redação
definitiva - efetuada por razões de concisão e não de mérito, como se demonstrou na
segunda seção do capítulo II - não lhe diminuiu o conteúdo ou o alcance. Primeiro
porque, como visto, é inerente ao vocábulo “participação” a idéia de exercício direto do
poder, consagrado no parágrafo único do artigo primeiro, enlaçado terminologicamente
com a idéia de gestão e formulação de políticas. Segundo, no que se refere à supressão
da expressão referente ao “controle das ações”, porque este (o controle social) é um
minus em relação à participação. Quem pode exercer diretamente o poder, participar de
suas escolhas políticas, pode controlar a respectiva execução. É o que ocorre com o
Congresso Nacional que, por titularizar a função de criar as leis, tem a competência de
fiscalizar sua execução (art. 70, CF/88). A lembrança é de BRITO70.
Vê-se, assim, que os conteúdos de “controle social” e “participação da
comunidade” não se confundem, estando àquele mais ligado à idéia de fiscalização e
esta de deliberação. A distinção, contudo, em nada interfere no poder dos conselhos,
que detém ambos, como explicitamente se extrai dos termos do §2° do art. 1° da Lei
8.142/90, onde se lê:
“§2° O Conselho de Saúde, em caráter permanente e deliberativo, órgão
colegiado composto por representantes do governo, prestadores de serviço,
69 Op. cit., p. 11970 Ibidem, p. 120, nota de rodapé n. 3
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profissionais de saúde e usuários, atua na formulação de estratégias
[participação popular no exercício do poder] e no controle da execução da
política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos
econômicos e financeiros [controle social], cujas decisões serão
homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído em cada esfera de
governo” (as explicações entre colchetes foram acrescentadas pelo autor
desta monografia)
Cabe ressaltar a coincidência – indubitavelmente intencional – entre a
redação do dispositivo legal e aquela constante do anteprojeto da subcomissão de saúde
na constituinte. A lei nada mais fez que explicitar o conteúdo normativo latente na
concisa expressão “participação da comunidade”.
A análise do supratranscrito parágrafo segundo é o tema do próximo
tópico.
III.b. O papel dos Conselhos de Saúde na efetivação do controle social eda participação popular. A efetivação da democracia participativa.
Como já consignado no tópico acerca da 8a. Conferência Nacional de
Saúde e sua importância na Constituinte, a participação da comunidade como diretriz do
SUS teve como principal razão garantir a adequada aplicação dos recursos, assim
entendida aquela em que os desvios são reduzidos ao mínimo possível - daí a
importância de transparência e do controle social, e os recursos são aplicados segundo
as reais necessidades da população envolvida - daí a importância da participação
popular na elaboração das políticas públicas e no planejamento estratégico, para
posterior execução do gestor (de regra, os secretários municipais e estaduais de saúde).
São as duas vertentes-chave da democracia participativa da qual os conselhos são
exemplo notável em nossa sociedade.
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Durante as audiências públicas na Subcomissão de Saúde, Seguridade
e Meio Ambiente, realizadas no dia 29 de abril de 198771, as exposições de dois
expoentes do Movimento de Reforma Sanitária, grande responsável pela realização e
pelo sucesso da 8a. Conferência Nacional de Saúde: o Presidente da ABRASCO
(Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva), Eleutério R. Neto, e o
presidente do Conselho Federal de Medicina, Francisco Álvaro Barbosa Costa, deram a
dimensão da importância da participação da comunidade e do controle social no novo
modelo de SUS que se pretendia.
O presidente da ABRASCO, em sua defesa da criação de um Sistema
Único de Saúde que tivesse como características principais a integração (comando
centralizado em cada esfera de governo), a integralidade do atendimento, a
descentralização administrativa e a participação da comunidade, sobre esta última assim
se manifestou:
“Uma quarta diretriz, que me parece a mais fundamental de todas, que acho que
é uma diretriz que deve estar presente na Constituição, não é uma questão particular
da saúde, mas na saúde ela se coloca de uma forma crítica, é a questão da
participação. Entendemos que nada disso, nem a descentralização, nem a
integração podem ter efetividade, podem funcionar se não tiverem um controle
social sobre a sua execução.”72 (grifos ausentes do original)
No mesmo sentido foram as palavras do então Presidente do Conselho
Federal de Medicina73:
“Já a partir da década de 70, grupos profissionais ligados à questão saúde e que se
opunham às políticas dos Governos militares avançavam na produção de
conhecimento e na denúncia da situação sanitária do País, que hoje explode com a
abertura democrática, com toda a clareza e com toda sua rudeza.
Basicamente demonstrou-se que, da parte do Estado, não havia prioridade pelo
social, demonstrou-se a acentuada influência no setor saúde, dos grupos
71 As respectivas atas encontram-se nos anexos.72 Cf. Ata da 11a. Reunião da Subcomissão da Saúde, Seguridade e Meio Ambiente da AssembléiaNacional Constituinte, p. 109. Diário da Assembléia Nacional Constituinte, Suplemento, Brasília, DF,19 jul. 1987. Disponível em <www.camara.gov.br>, na seção “Diários”
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mercantilistas, a não participação popular no processo de formulação e controle das
políticas de saúde, a falta de transparência na aplicação dos recursos e a inadequada
formação de recursos humanos além de baixa remuneração dos profissionais do
setor e do controle do setor de medicamentos e equipamentos pelas multinacionais.
…
A questão fundamental – porque aqui estamos discutindo muito a questão do Poder
Público – é a questão do controle social sobre as ações do Estado. Não estamos
discutindo que queremos este Estado que está aí constituído, para isso estamos
construindo uma Constituição. Queremos que haja controle social sobre as ações do
Estado, sem o que não basta ter participação pública, é preciso que haja controle
social sobre a ação do Estado.”
Foi tendo em conta todas essas preocupações que a Lei 8.142/9074
previu o conselho de saúde como instância colegiada do Sistema Único de Saúde (ao
lado das conferências de saúde), órgão de caráter permanente e deliberativo, composto
por representantes do governo, dos prestadores de serviço e dos usuários (estes últimos
com representação paritária aos demais) com as seguintes funções:
- atuar na formulação de estratégias relativas à política de saúde na
instância correspondente e
- exercer o controle da execução dessa mesma política, inclusive nos
aspectos econômicos e financeiros.
Enquanto a primeira função concretiza a participação popular no
exercício do poder político, objetivando garantir a adequação das políticas públicas às
realidades da comunidade atendida, a segunda assegura o controle social, vale dizer, a
fiscalização da aplicação dos recursos.
É em razão desse largo alcance de funções que LENIR SANTOS e
GUIDO CARVALHO75 proclamam a participação popular na organização do SUS
73 Ibidem, pp. 113-11574 O conteúdo da Lei 8.142/90 constara inicialmente da Lei 8.080/90 que, surpreendentemente, foi vetadano particular. Todavia, a mobilização das mesmas forças sociais responsáveis pela Reforma Sanitáriareverteram o infortúnio e garantiram, três meses depois, aprovação da Lei 8.142/90, com o mesmoconteúdo normativo que fora vetado.75 CARVALHO, Guido e SANTOS, Lenir. Sistema Único de Saúde: Comentários à Leio Orgânica daSaúde (Leis 8080/90 e 8142/90). Campinas: Editora da Unicamp, 2002, p. 291.
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(artigo 198, II, artigo 194, VII, da CF e artigo 77, §3° do ADCT76) como “a expressão
mais viva da participação da sociedade nas decisões tomadas pelo Estado no interesse geral”.
Referindo-se explicitamente à Lei 8142/90, ANTÔNIO MARÉS
reconhece nela a concretização infraconstitucional da democracia participativa prevista
em vários dispositivos constitucionais, mais especificamente nos artigos 1°, caput e
inciso II e parágrafo único e 198, III, ressaltando significativo avanço no caráter
“deliberativo, gestor e controlador” sobre as ações públicas que assumem os conselhos
de saúde, visto que a história brasileira estava permeada de conselhos com funções
exclusivamente consultivas (como era o próprio Conselho Nacional de Saúde antes da
reforma que sucedeu à Constituição de 1988). Lança, ao final de seu trabalho, a grande
questão que paira no ar: “tais mecanismos [previsões infraconstitucionais de participação popular –
dentre os quais a Lei 8142/90] efetivarão uma maior participação ou tornar-se-ão meros mecanismos
burocráticos, sujeitando-se às vontades do Executivo?”
A resposta passa pela análise do grau e da qualidade dessa espécie de
controle exercido pela cidadania sobre os governantes (no caso telado os gestores de
saúde), controle esse que, no dizer do mesmo autor, é o elemento central do regime
democrático moderno, regime que não se manifesta somente nas eleições periódicas.
Essa análise está indissoluvelmente ligada aos modos pelos quais a cidadania participa
do processo de tomada das decisões políticas, participação essa que implica o poder de
tomar certas decisões (identificado com a participação popular no exercício político –
caracterizada, no caso dos conselhos de saúde, pelo seu poder deliberativo na
formulação de estratégias) e a existência de mecanismos para acompanhar a execução
76 Dispositivo que, acrescido pela EC n. 29/00, “constitucionalizou” os conselhos de saúde, na medida emque dispôs: “§3° Os recursos dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, destinados às ações eserviços públicos de saúde e os transferidos pela União para a mesma finalidade serão aplicados por meiode Fundo de Saúde que será acompanhado e fiscalizado por Conselho de Saúde, sem prejuízo do dispostono artigo 74 da Constituição Federal.” Essa constitucionalização, além de evidenciar a importância dosconselhos e consolidar sua presença na fiscalização do SUS, demanda um tratamento infraconstitucionalmais específico em todos os níveis da federação, contemplando, necessariamente, a satisfação dasmínimas necessidades de funcionamento dos conselhos, tais como dotação orçamentária mínima, previsãode uma secretaria executiva vinculada diretamente ao Conselho e de apoio técnico de um contador para oque se poderia destinar um cargo comissionado de livre nomeação e exoneração do presidente e, também,regras para a eleição deste último, dentre os pares.
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daquelas decisões (o controle social, que, no caso dos conselhos, abrange os aspectos
econômico e financeiro da execução das políticas de saúde na instância correspondente).
Como critérios capazes de identificar o caráter democrático dessa
participação, o autor propõe a igualdade e a liberdade de participação. Pelo primeiro, de
interesse direto para o presente trabalho, requer-se que cada um dos membros da
coletividade cidadã possua igual poder de decisão, vale dizer, igualdade de votos,
vinculando-se a esse princípio, como um corolário, o igual direito de concorrer a
cargos eletivos – perigosamente afrontado quando os conselheiros usuários são
impedidos de disputar o cargo de presidente de um conselho que tem seu fundamento
constitucional justamente na participação popular!
Fere pois a igualdade de participação e, por conseqüência
o exercício da cidadania, a impossibilidade dos conselheiros usuários concorrerem ao
cargo de presidente dos conselhos, circunstância que, por si só, fulmina de
inconstitucionalidade as disposições que estabelecem os gestores como presidentes
natos dos conselhos, na medida em que afronta o princípio da igualdade (art. 5°, caput,
CF), tema que será abordado na segunda seção do próximo capítulo. Na seção seguinte,
analisam-se os poderes dos conselhos e de seus presidentes, de modo a demonostrar a
incompatibilidade desta função com a de gestor das verbas da saúde (função
desempanhada, em nível federal, pelo Ministro da Saúde e, nos níveis estaduais e
municipais, pelos secretários de saúde).
III.c - Poderes deliberativos e fiscalizatórios dos Conselhos: necessáriaindependência. Atribuições da Presidência e a incompatibilidade dogestor para a função. A situação do Conselho Nacional de Saúde e dosConselhos no Mato Grosso do Sul
ANTÔNIO IVO DE CARVALHO77 divide as funções dos conselhos
em dois grandes campos de atuação: o (1) do planejamento e controle da execução da
política de saúde e o (2) da articulação com a sociedade. Sem desmerecer a enorme
valia dessa classificação, que põe em relevo a função dos conselhos de “articular os
77 Op. cit., pp. 80 e ss.
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diversos segmentos da sociedade”, decorrente de sua própria composição
(representantes da sociedade civil organizada) e fundada na missão legal de organizar e
definir as normas de funcionamento das conferências de saúde (§5° do art. 1° da Lei
8.142/90), neste trabalho serão aprofundadas apenas as funções agrupadas pelo autor na
primeira classificação, ambas previstas no §2° do art. 1° da referida norma, que merece
nova transcrição:
“§2° O Conselho de Saúde, em caráter permanente e deliberativo, órgão
colegiado composto por representantes do governo, prestadores de serviço,
profissionais de saúde e usuários, atua na formulação de estratégias e no
controle da execução da política de saúde na instância correspondente,
inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões serão
homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído em cada esfera de
governo”
Essas funções, que se dividem em dois grandes grupos: “formulação
de estratégias” (participação na construção das políticas públicas) e “controle da
execução da política de saúde” (controle social, fiscalização), são detalhadas em vários
dispositivos normativos.
As competências do Conselho Nacional de Saúde (CNS),
incialmente previstas no art. 1° do Decreto 99.438, de 7 de agosto de 1990, foram sendo
disciplinadas por decretos subseqüentes, sendo o último o de n. 4.194/200178, que
“Aprova a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e
das Funções Gratificadas do Ministério da Saúde, e dá outras providências”, em cujo
artigo 26 se lê:
“Art. 26. Ao Conselho Nacional de Saúde compete:
I - deliberar sobre:
78 Curiosamente, no site do Conselho Nacional de Saúde (conselho.saude.gov.br), ao arrolarem-se asatribuições, que coincidem exatamente com as acima transcritas, refere-se ao artigo 1° do Decreto99.438/90.
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a) formulação de estratégia e controle da execução da política nacional de saúde em
âmbito federal; e
b) critérios para a definição de padrões e parâmetros assistenciais;
II - manifestar-se sobre a Política Nacional de Saúde;
III - decidir sobre:
a) planos estaduais de saúde, quando solicitado pelos respectivos Conselhos;
b) divergências suscitadas pelos Conselhos Estaduais e Municipais de Saúde, bem
como por órgãos de representação na área de saúde; e
c) credenciamento de instituições de saúde que se candidatem a realizar pesquisa em
seres humanos;
IV - opinar sobre a criação de novos cursos superiores na área da saúde, em
articulação com o Ministério da Educação;
V - estabelecer diretrizes a serem observadas na elaboração dos planos de saúde em
função das características epidemiológicas e da organização dos serviços;
VI - acompanhar a execução do cronograma de transferência de recursos
financeiros, consignados ao SUS, aos Estados, Distrito Federal e Municípios;
VII - aprovar os critérios e valores para a remuneração dos serviços e os parâmetros
de cobertura assistencial;
VIII - acompanhar e controlar as atividades das instituições privadas de saúde,
credenciadas mediante contrato, ajuste ou convênio;
IX - acompanhar o processo de desenvolvimento e incorporação científica e
tecnológica na área de saúde, para a observância de padrões éticos compatíveis com
o desenvolvimento sociocultural do país; e
X - propor a convocação e organizar a Conferência Nacional de Saúde,
ordinariamente a cada quatro anos e, extraordinariamente, nos termos da Lei nº
8.142, de 28 de dezembro de 1990.” (grifo ausente do original)
Essas atribuições coincidem com as previstas no site do Conselho
Nacional de saúde (conselho.saude.gov.br).
O Decreto 99.438/90, todavia, continua em vigor e estabelece, no
inciso I do seu art. 1°, uma competência não prevista acima “I – atuar na formulação da
estratégia e no controle da execução da Política Nacional de Saúde”. (grifo ausente no
original)
Considerando que os decretos, como bem explicita o inc. IV do art. 84
da Constituição da República, têm como função assegurar fiel execução às leis, nunca
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podendo sobreporem-se a elas, nem contrariá-las, independente da vigência do inciso I
do art. 1° do Decreto 99.438/90, a função nele prevista, por encontrar fundamento no
§2° do art. 1° da Lei 8.142/90 (que, inclusive, lhe é posterior), necessariamente inclui-
se dentre as atribuições do Conselho Nacional de Saúde.
O Regimento Interno do CNS, aprovado pela Resolução CNS n.
291/99, confirma esse entendimento e prevê inúmeras outras competências no artigo 3°:
Art. 3° - Compete ao Conselho Nacional de Saúde:
I - Atuar na formulação e no controle da execução da Política Nacional de
Saúde, inclusive nos seus aspectos econômicos e financeiros, e nas estratégias para
sua aplicação aos setores público e privado;
II - Deliberar sobre os modelos de atenção à saúde da população e de gestão do
Sistema Único de Saúde;
III - Estabelecer diretrizes a serem observadas na elaboração de planos de saúde do
Sistema Único de Saúde, no âmbito nacional, em função dos princípios que o regem
e de acordo com as características epidemiológicas e das organizações dos serviços
em cada jurisdição administrativa (Lei 8.080/90);
IV - Participar da regulação e do controle social do setor privado da área de saúde
(Lei 8.080/90);
V - Propor prioridades, métodos e estratégias para a formação e educação
continuada dos recursos humanos do Sistema Único de Saúde (Lei 8.080/90);
VI - Aprovar a proposta setorial da saúde, no Orçamento Geral da União e,
participar da consolidação do Orçamento da Seguridade Social, após análise anual
dos planos de metas, compatibilizando-o com os planos de metas previamente
aprovados;
VII - Criar, coordenar e supervisionar Comissões Intersetoriais e outras que julgar
necessárias, inclusive Grupos de Trabalho, integradas pelos ministérios e órgãos
competentes e por entidades representativas da sociedade civil (Lei 8.080/90) ;
VIII - Deliberar sobre propostas de normas básicas nacionais para operacionalização
do Sistema Único de Saúde;
IX - Estabelecer diretrizes gerais e aprovar parâmetros nacionais quanto a política de
recursos humanos para a saúde;
X - Definir diretrizes e fiscalizar a movimentação e aplicação dos recursos
financeiros do Sistema Único de Saúde, no âmbito Federal (Leis 8.080/90 e
8.142/90);
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XI - Aprovar a organização e as normas de funcionamento das Conferências
Nacionais de Saúde, reunidas ordinariamente, a cada 4 (quatro) anos, e convocá-las,
extraordinariamente, na forma prevista pela Lei 8.142/90;
XII - Aprovar os critérios para o repasse de recursos às unidades federadas e a outras
instituições e respectivo cronograma e acompanhar sua execução;
XIII - Aprovar os critérios e valores para remuneração de serviços e os parâmetros
de cobertura assistencial conforme art. 26 da Lei 8.080/90;
XIV - Incrementar e aperfeiçoar o relacionamento sistemático com os poderes
constituídos, Ministério Público, Congresso Nacional e mídia, bem como com
setores relevantes não representados no Conselho;
XV - Articular-se com outros conselhos setoriais com o propósito de cooperação
mútua e de estabelecimento de estratégias comuns para o fortalecimento do sistema
de participação e controle social;
XVI - Acompanhar o processo de desenvolvimento e incorporação científica e
tecnológica na área de saúde, visando à observação de padrões éticos compatíveis
com o desenvolvimento sociocultural do país;
XVII - Deliberar sobre a necessidade social de novos cursos de nível superior na
área da saúde e cooperar na melhoria da qualidade da formação dos trabalhadores da
saúde;
XVIII - Opinar e decidir sobre impasses ocorridos nos Conselhos Estaduais e
Municipais de Saúde, neste último caso, após ouvida a instância estadual na
condição de instância recursal;
XIX - Desenvolver normas sobre ética em pesquisas envolvendo seres humanos e
outras questões no campo da Bioética e acompanhar sua implementação;
XX - Definir diretrizes gerais para a participação dos diversos provedores no
Sistema Único de Saúde;
XXI - Regulamentar as especializações na forma de treinamento em serviço sob
supervisão (Lei 8.080/90);
XXII - Solicitar ao Ministro da Saúde a substituição do Coordenador Geral da
Secretaria Executiva, diante de situações que a justifiquem, por deliberação da
maioria absoluta do Plenário do CNS;
XXIII - Articular e apoiar, sistematicamente, os Conselhos Estaduais e Municipais
de Saúde visando a formulação e realização de diretrizes básicas comuns e a
conseqüente potencialização do exercício das suas atribuições legais;
XXIV - Divulgar suas ações através dos diversos mecanismos de comunicação
social;
XXV - Manifestar-se sobre todos os assuntos de sua competência.” (grifos ausentes
do original)
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Das atribuições do CNS, a par da interação com os conselhos
estaduais e municipais de saúde e outros conselhos e representantes da sociedade (inciso
III, alíneas a e b do art. 26 do Decreto 4.194/01 e incisos VII, XI, XIV, XV, XVIII e
XXIII do art. 3° do regimento interno) e de importantes missões relacionadas à
formulação de estratégias da política nacional de saúde (I, II, IV, V e VII do mesmo
artigo do decreto e as dos incisos I, primeira parte, II, III, V, VI, VIII, IX, XI, XIII,
XVI, XVII, XIX, XX e XXI do mesmo artigo do regimento interno), ao menos as
previstas no inciso I do art. 1° do Decreto 99.438 (atuar na formulação da estratégia e
no controle da execução da Política Nacional de Saúde) c/c art. 1°, §2° da Lei 8.142/90
(controle da execução da política de saúde, inclusive nos aspectos econômicos e
financeiros), a do inciso VI do art. 26 do Decreto 4.194/01 (acompanhar a execução do
cronograma de transferência de recursos financeiros, consignados ao SUS, aos Estados,
Distrito Federal e Municípios) e a dos incisos I, primeira parte (repete o inciso I do art.
1° do Decreto 99.438), X (definir diretrizes e fiscalizar a movimentação e aplicação dos
recursos financeiros do Sistema Único de Saúde, no âmbito Federal) e XII (repete os
termos do 26, VI, do Decreto 4.194/01) do art. 3° do Regimento Interno dizem com o
poder fiscalizatório (controle social) sob os aspectos econômico e financeiro do
gestor federal de saúde (Ministro), razão pela qual foram negritadas na transcrição.
Para bem exercer essas últimas atividades, vale dizer, exercê-las com
independência e efetividade, há que se garantir uma autonomia aos conselhos,
absolutamente incompatível com a previsão do art. 2° do Decreto 99.439/90 que prevê o
Ministro de Saúde como presidente nato do CNS79, disposição repetida no art. 10 do
Regimento Interno.
Essa condição lhe confere a prerrogativa do voto de qualidade e a de
deliberar em casos de extrema urgência ad referendum do Conselho (art. 13). Além
disso, fica-lhe subordinada a Secretaria Executiva que responde pelo assessoramento do
79 “Art. 2º O Conselho Nacional de Saúde, presidido pelo Ministro de Estado da Saúde, integrado por 32membros, tem a seguinte composição:” (grifo ausente no original)
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C u r s o d e E s p e c i a l i z a ç ã o a D i s t â n c i a e m D i r e i t o S a n i t á r i o p a r a M e m b r o s d o
M i n i s t é r i o P ú b l i c o e d a M a g i s t r a t u r a F e d e r a l
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Conselho (preparando reuniões e remetendo material aos conselheiros) bem como pela
efetiva implementação de suas decisões, dentre outras funções relevantes (art. 27). Em
relação à Secretaria Executiva, o máximo que se concede ao Conselho é a “solicitação”
ao Ministro de substituição de seu Coordenador, inferindo-se do próprio termo utilizado
que não há nenhuma vinculação daquele à vontade do Conselho que pode ser compelido
a contar com uma secretaria executiva que não goze da confiança do plenário.
Resta, assim, evidenciado que a independência do Conselho fica
indubitavelmente comprometida, ficando refém do espírito democrático e transparente
do Ministro da Saúde, bem como de sua boa-vontade para com a participação popular e
o controle social.
Melhor não é a situação do Conselho Estadual do Mato Grosso do
Sul. A Lei n.1.152, de 21 de julho de 1991, responsável pela sua criação, também
estabelece no artigo 2° a figura do presidente-nato ao dispor que:
“Art. 2°. O Conselho Estadual de Saúde de Mato Grosso do Sul será composto pelo
Secretário de Estado de Saúde, que o presidirá, e mais 24 (vinte e quatro) membros
representantes do governo, prestadores de serviços, profissionais de saúde e
usuários”
Neste caso, a situação reveste-se de ainda maior gravidade por ser a
Constituição Estadual inegavelmente avançada na matéria, na medida em que dispõe,
em seu art. 175, III, de modo muito semelhante ao projeto aprovado na Subcomissão de
Saúde, Seguridade e Meio Ambiente da constituinte federal que, como já visto, foi
grandemente influenciada pelas conclusões da 8a. Conferência Nacional de Saúde. Lê-
se no artigo 175 da Carta Estadual:
“Art. 175. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e
hierarquizada e constituem o sistema único de saúde no nível estadual, organizado
de acordo com o seguinte:
…
III – a participação, em nível de decisão, de entidades representativas de usuários e
profissionais da saúde, na formulação, na gestão e no controle das políticas e das
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ações de saúde nos níveis estadual e municipal, através da constituição de conselhos
estaduais e municipais de saúde”
Ou seja, além de explicitar a função de controle das políticas de saúde,
paralelamente à participação, fez expressa referência aos conselhos,
constitucionalizando-os muito antes da Constituição Federal, que só o fez na Emenda n.
29/2000 (art. 77 do ADCT).
No que respeita às competências do conselho, a Lei 1.152/91 não se
afastou muito do regramento existente para o nível federal, mantendo as competências
de fiscalização (controle) e participação que evidenciam a incompatibilidade da função
de presidente do conselho com a de gestor dos recursos. Consta de seu art. 1°:
“Art. 1° Fica criado o Conselho Estadual de Saúde de Mato Grosso do Sul, órgão
colegiado de deliberação coletiva, integrante da estrutura básica da Secretaria
Estadual de Saúde, com a seguinte competência:
“I – atuar na formulação da Política Estadual de Saúde, estabelecendo a estratégia e
o controle de sua execução, conforme diretrizes do governo federal;
II – aprovar o Plano Estadual de Saúde;
III – promover a fiscalização da aplicação dos recursos repassados ao Fundo
Especial de Saúde de Mato Grosso do Sul;
IV – estabelecer as diretrizes a serem observadas na elaboração dos Planos
Municipais de Saúde, em função das características epidemiológicas e de
organização dos serviços do Estado;
V – aprovar o cronograma de transferência de recursos financeiros aos municípios;
VI – avaliar e acompanhar a execução dos Planos Municipais de Saúde;
VII – aprovar, acompanhar e controlar a atuação do setor privado da área de saúde,
quando credenciado mediante contratos ou convênios
VIII – propor a realização da Conferência Estadual de Saúde;
IX – executar outras atribuições correlatas ou que lhe forem delegadas pelo
Conselho Nacional de Saúde.” (grifos ausentes no original)
O Decreto n. 6.345, de 30 de janeiro de 1992, regulamenta essa lei e
repete as atribuições do Conselho nela previstas.
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Por outro lado, objetivando “acelerar e consolidar o controle social do
SUS, por intermédio dos Conselhos Estaduais e Municipais de Saúde” o Conselho
Nacional de Saúde, valendo-se de suas atribuições fixadas no Decreto 99.438/90 e em
seu regimento, e com base na Constituição Federal e nas leis 8.080 e 8.142, ambas de
1990, resolveu aprovar “Recomendações para a Constituição e Estruturação de
Conselhos Estaduais e Municipais de Saúde" consubstanciadas na Resolução n. 33/92,
em cujo item 4 se lê:
4. COMPETÊNCIA DOS CONSELHOS DE SAÚDE
Os Conselhos de Saúde Estaduais, Municipais e do Distrito Federal, que têm
algumas competências já definidas nas leis federais e complementadas pelas
legislações estaduais e municipais, poderão ainda:
a) atuar na formulação e controle da execução da política de saúde, incluídos
seus aspectos econômicos, financeiros e de gerência técnico-administrativa;
b) estabelecer estratégias e mecanismos de coordenação e gestão do SUS,
articulando-se com os demais colegiados em nível nacional, estadual e municipal;
c) traçar diretrizes de elaboração e aprovar os planos de saúde, adequando-os às
diversas realidades epidemiológicas e à capacidade organizacional dos serviços;
d) propor a adoção de critérios que definam qualidade e melhor resolutividade,
verificando o processo de incorporação dos avanços científicos e tecnológicos na
área;
e) propor medidas para o aperfeiçoamento da organização e do funcionamento do
Sistema Único de Saúde - SUS;
f) examinar propostas e denúncias , responder a consultas sobre assuntos
pertinentes a ações e serviços de saúde, bem como apreciar recursos a respeito de
deliberações do Colegiado;
g) fiscalizar e acompanhar o desenvolvimento das ações e serviços de saúde;
propor a convocação e estruturar a comissão organizadora das Conferências
Estaduais e Municipais de Saúde;
h) fiscalizar a movimentação de recursos repassados à Secretaria de Saúde
e/ou ao Fundo de Saúde;
i) estimular a participação comunitária no controle da administração do Sistema
de Saúde;
j) propor critérios para a programação e para as execuções financeira e
orçamentária dos Fundos de Saúde, acompanhando a movimentação e destinação de
recursos;
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k) estabelecer critérios e diretrizes quanto à localização e ao tipo de unidades
prestadoras de serviços de saúde públicos e privados, no âmbito do SUS;
l) elaborar o Regimento Interno do Conselho e suas normas de funcionamento;
m) estimular, apoiar ou promover estudos e pesquisas sobre assuntos e temas na
área de saúde de interesse para o desenvolvimento do Sistema Único de Saúde;
n) outras atribuições estabelecidas pela Lei Orgânica da Saúde e pela IX
conferência Nacional de Saúde”
No mesmo intuito de discriminar as competências previstas nas leis
federal (8.142/90) e estadual (1.152/91) e valendo-se das sugestões da Resolução n.
33/92, elaborada com a mesma preocupação, o Conselho Estadual de Saúde do Mato
Grosso do Sul, por meio da Deliberação n. 021, de 20 de outubro de 1994, aprovou seu
regimento interno, que estabelece no artigo 2° as seguintes competências:
Art. 2° - Compete ao Conselho Estadual de Saúde:
I – Deliberar sobre estratégias e atuar no controle da execução da Política
Estadual de Saúde, inclusive nos seus aspectos econômicos, orçamentários e
financeiros;
II – Deliberar sobre o Plano Estadual de Saúde;
III – Fiscalizar a aplicação dos recursos repassados ao Fundo Especial de Saúde
de Mato Grosso do Sul;
IV – Estabelecer diretrizes a serem observadas na elaboração dos Planos Municipais
de Saúde, em função das características epidemiológicas e de organização de
serviços de cada jurisdição administrativa;
V – Apreciar e pronunciar-se conclusivamente sobre os relatórios de gestão do
Sistema Único de Saúde apresentados pela Secretaria de Estado de Saúde;
VI – Deliberar sobre a proposta apresentada pela Secretaria de Estado de Saúde, do
coronograma de trasnferência de recursos financeiros aos Municípios e a outras
instituições, consignadas aos Sistema Único de Saúde e cuja autonomia de gestão
seja do Estado;
VII – Avaliar e acompanhar a execução dos planos Municipais de Saúde
encaminhados pelos respectivos Conselhos Municipais de Saúde;
VIII – Aprovar, acompanhar e controlar as atividades das instituições privadas de
saúde, credenciadas mediante contrato ou convênio;
IX – Propor a realização da Conferência Estadual de Saúde, ordinariamente a cada
04 (quatro) anos ou, extraordinariamente, quando assim deliberar;
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X – Aprovar o Regimento, a organização e as normas de funcionamento da
Conferência Estadual de Saúde;
XI – Deliberar sobrea a adequação e regularidade da documentação apresentada
pelos Municípios relacionada com o cumprimento das exigências contidas no art. 4°
da Lei Federal n. 8.142 de 26/12/90, e na regulamentação suplementar;
XII – Propor critérios para definição de padrões e parâmetros de atenção à saúde;
XIII – Criar comissões técnicas necessárias para o efetivo cumprimento das
competências do Conselho Estadual de Saúde;
XIV – Promover a articulação interinstitucional e intersetorial para garantir a
atenção à saúde constitucionalmente estabelecida;
XV – Pronunciar-se sobre a criação de novos cursos de ensino superior na área de
saúde na forma do art. 2° do Decreto Federal n. 98377, de 08 de novembro de 1989
e na Portaria Interministerial MEC/MS n. 01 de 12/01/90;
XVI – Pronunciar-se sobre a criação de novos cursos de nível médio na área da
saúde;
XVII – Estabelecer parâmetros estaduais quanto à política de desenvolvimento de
recursos humanos e do Plano de Carreiras, Cargos e Salários a ser seguido no
âmbito do Sistema Único de Saúde;
XVIII – Avaliar e acompanhar o processo de desenvolvimento e incorporação
científica e tecnológica na área de saúde, visando a observação de padrões técnicos
compatíveis com o desenvolvimento sócio-cultural e econômico do Estado,
respeitando-se os princípios éticos universalmente aceitos;
XIX – Executar atribuições correlatas ou outras atribuições que forem delegadas
pelas instâncias superiores do Sistema Único de Saúde.” (grifos ausentes no
original).
Conquanto assista razão a RAQUEL DODGE quando conclui que as
“atribuições dos Consellhos de Saúde devem estar definidas em lei e não em decretos, resoluções ou
qualquer outro tipo de regulamento, para serem válidas perante a Constituição”80, nenhuma
irregularidade há nas atribuições acima explicitadas – salvo raras exceções que se
resolvem com interpretação restritiva – visto que guardam pertinência com aquelas
previstas nas leis (8.080/90, 8.142/90, federais, e na 1.152/91, estadual).
80 DODGE, Raquel Elias Ferreira. A Eqüidade, a Universalidade e a Cidadania em Saúde, vistas sob oprisma da Justiça.In: Conferência Nacional de Saúde On-line, Brasília, Conselho Nacional de Saúde.Disponível em: <www.datasus.gov.br/cns/apoio/equidade.htm>. Acesso em: 04 abr 2003.
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Vê-se, assim, que o CES/MS, a exemplo do que ocorre com o CNS,
possui importantíssimas competências, dentre as quais várias que importam a
fiscalização da gestão do Secretário Estadual de Saúde, destacando-se os incisos I,
segunda parte, e III, do art. 2° do Regimento Interno, que nada mais fazem que
discriminar a forma de “controle da execução da política de saúde nos seus aspectos
econômicos e financeiros” (art. 1°, §2° da Lei 8142/90 e art. 1°, I da Lei Estadual n.
1152/91) ou a “fiscalização da aplicação dos recursos repassados ao Fundo Especial de
Saúde de Mato Grosso do Sul” (art. 1°, III, Lei 1152/91), implementando, assim, as
funções de controle social do Conselho. A despeito de todas essas competências, o
artigo 2° da lei estadual em comento estabelece a famigerada figura do presidente-nato
para o Secretário de Estado, conforme já referido. O Decreto 6.345/92, no particular,
apenas reedita a condição nata do Secretário de Estado (art. 2°) e estabelece que cabe a
este indicar a Secretária Executiva do CES.
Embora o próprio Conselho Estadual de Saúde tenha elaborado
projeto de lei para reformular a Lei 1.152/91, prevendo em seu artigo 4° que “Os
representantes dos segmentos no Conselho Estadual de Saúde elegerão o seu presidente entre
os pares”, em consonância com a diretriz aprovada na 9a. Conferência Nacional de
Saúde, realizada em agosto de 199281, tal projeto, como informou o Conselheiro
Estadual Alcides Ribeiro, coordenador da comissão de legislação do CES/MS, foi
obstado na governadoria em razão de entendimento da respectiva procuradoria que
vislumbra contrariedade do projeto com a constituição estadual82. Em conseqüência, o
81 Sobre o Controle Social do Sistema, assim concluiu-se na 9a. Conferência Nacional de Saúde,conforme a “História da Conferência” registrada no site da FIOCRUZ (www.fiocruz.br): “Reafirmandocomo indispensável a implementação e fortalecimento dos mecanismos de controle social já existentes,foram muitas as propostas aprovadas no evento, entre elas a garantia de efetiva implantação dosConselhos de Saúde nos diversos níveis, assegurada aos mesmos autonomia financeira, constituindo-oscomo unidades orçamentárias em cada esfera de governo. Para efeito da composição de tais Conselhos,foi decidido que os usuários fossem sempre representados por entidades populares, representantes detrabalhadores, entidades da sociedade civil voltadas para a organização de usuários do SUS e outras denatureza similar. A Conferência aprovou a composição paritária nestes conselhos entre usuários e demaissegmentos, assim como o seu caráter deliberativo e fiscalizador, com autonomia inclusive quanto àdotação orçamentária; e gestão colegiada, devendo o presidente ser eleito entre seus membros.” (ogrifo final não consta do original)82 A contrariedade, na verdade, não se refere à possibilidade de eleição do presidente, mas sim à paridadeprevista no projeto de lei, entre usuários e demais setores, em atendimento ao que dispõe o §4° do art. 1°da Lei 8.142/90, e o previsto no art. 179 da Constituição Estadual que se refere à paridade entre governo esociedade (“Art. 179. Junto à direção do sistema único de saúde, no nível estadual, funcionará o Conselho
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projeto não foi sequer encaminhado à Assembléia Legislativa para debate parlamentar
ou apreciação pela Comissão de Constituição e Justiça daquela Casa Legislativa.
De forma ainda mais grave que no Conselho Nacional de Saúde, as
funções do presidente do Conselho Estadual evidenciam a absoluta incompatibilidade
entre esse cargo e a condição de gestor.
O Decreto n. 6.345/92 confere-lhe as seguintes competências:
- dar posse aos demais conselheiros (art. 2°, §3°);
- convocar reunião extraordinária do CES, o que também pode ser
feito pela maioria dos conselheiros (art. 3°, I);
- indicar a secretaria executiva (art. 3°, parágrafo único).
Estadual de Saúde, órgão de deliberação coletiva, composto paritariamente pelo governo e pelasociedade, com as funções de acompanhamento das ações de saúde e de distribuição dos recursos que lhesforem destinados e de assessoramento na elaboração da política de saúde.”). Ainda que não seja idêntica aredação da Constituição Estadual e da Lei 8.142/90, esta em plena conformação com a idéia doConstituinte de 87/88 ao implementar a diretriz da participação da comunidade prevista no art. 198, III,cujo conteúdo é desvendado nos capítulos II.b e IV.a desta monografia, é perfeitamente possível, numprocesso hermenêutico de interpretação conforme a constituição conciliar o texto da ConstituiçãoEstadual – que deve, necessariamente, observar os princípios da Constituição Federal, conforme o art. 25,caput, desta - com o disposto no art. 198, III, no qual se ampara a paridade prevista na Lei 8.142/90. Oraciocínio é o seguinte: Se a Constituição Federal prevê a participação da população como forma dedemocracia participativa, ou seja, de influência direta da cidadania na formulação de políticas públicas, ese a prevê como diretriz do SUS, cria, em conseqüência, um espaço de poder que é reservado diretamenteao povo (I.b), não podendo ser usurpado por seus representantes. Como se concilia esta reserva com arepresentação de outros setores? Assegurando aos usuários nunca menos que a metade das vagas.Qualquer representação menor afrontaria o art. 198, III, CF. Tendo por base esses parâmetros, éplenamente possível interpretar o art. 179 da CE/MS, que prevê a paridade entre governo e sociedade,entendendo que esta está representada no setor dos usuários e que dentro da expressão “governo”incluem-se todos os outros setores, relacionados à prestação dos serviços. Conciliam-se, assim, ambas asConstituições, adotando-se a festejada interpretação conforme a Constituição. Tal interpretação tambémencontra amparo na estruturação do SUS, que confere ao governo, pelos respectivo ministro ousecretários de saúde, a direção única (art. 9°) e confere à iniciativa privada um papel complementar aopúblico na prestação dos serviços. (arts. 8° e 24 da Lei 8.080/90). A paridade pretendida pela ConstituiçãoEstadual, assim, seria entre prestadores de serviços de saúde (públicos e privados, incluídos aí osprofissionais) que, apenas para fins interpretativos de hermenêutica garantidora de harmonia com aConstituição Federal seriam englobados na expressão “governo” e os usuários, estes pela “sociedade”.Numa interpretação constitucional devem prevalecer os princípios instituidores da norma, vale dizer, suafinalidde, sobre a interpretação gramatical ou literal. Ademais, se alguma inconstitucionalidade houvesseno projeto de lei sugerido pelo conselho, o mesmo vício atingiria a Lei 1152/91, que já prevê a paridadeno §1° do art. 2° (“A representação dos usuários será paritária em relação ao conjunto dos demaissegmentos previstos neste artigo, conforme estabelece a legislação federal competente”). Ou seja, muitoprovavelmente, o argumento apontado contra o projeto provavelmente esconde a verdadeira preocupaçãodo governo em manter a condição do secretário de presidente-nato, o que é lamentável. O tema, contudo,refoge ao desta monografia, razão pela qual foi tratado como nota de rodapé muito embora mereçaaprofundamento posterior.
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O artigo 15 do Regimento Interno, por seu turno, atribui-lhe as
seguintes funções:
“Art. 15 - Ao presidente do Conselho Estadual de Saúde compete:
I - Representar o Conselho Estadual de Saúde em suas relações internas e externas;
II - Instalar o Conselho Estadual de Saúde e presidir sua plenária;
III - Apresentar ao Governador de Estado o nome dos conselheiros indicados
conforme o parágrafo 1º do art. 3º deste regimento para integrar o Conselho Estadual
de Saúde;
IV - Empossar os conselheiros e indicar o titular da Secretaria Executiva para
nomeação pelo Governador do Estado;
V - Suscitar pronunciamento do Conselho Estadual de Saúde, quanto a problemas
relativos a promoção, proteção e recuperação da saúde não abrangidos no art. 2º
deste regimento;
VI - Convocar e submeter a ordem do dia a aprovação da plenária do conselho;
VII - Tomar parte nas discussões, quando for o caso, exercer direito do voto de
desempate;
VIII - Baixar atos decorrentes de deliberações do conselho e "ad referendum" deste,
nos casos de manifesto urgência, conforme o art. 9º deste regimento;
IX - Nomear os integrantes das comissões;
X - Solicitar as autoridades competentes providências relativas à efetivação das
medidas deliberadas pelo Conselho Estadual de Saúde;
XI - Manter entendimentos com dirigentes dos demais órgãos do Governo do Estado
e com entidades públicas ou privadas no interesse da promoção, proteção e
recuperação de saúde;
XII - Cumprir e fazer cumprir o presente Regimento Interno, submetendo os caso
omissos à apreciação da plenária.
Assim como ocorre no Conselho Nacional de Saúde, também no
funcionamento do Conselho Estadual a Secretaria Executiva, indicada pelo presidente
do conselho (art. 3°, par. único, do Dec. 6345/92), é estratégica e fundamental para o
bom funcionamento do conselho, competindo-lhe, nos termos do art. 17 do RI, “orientar,
suprevisionar e coordenar a execução das atividades do Conselho Estadual de Saúde”, do artigo 19,
IV “despachar com o presidente do conselho os assuntos pertinentes a este (o conselho)”, e do art. 19,
V, in fine, “promover as medidas necessárias ao cumprimento das decisões do conselho”. Basta a
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Secretaria “boicotar” o funcionamento do mesmo ou omitir informações que suas
funções ficariam seriamente comprometidas.
Poder-se-ía dizer, aqui, que a subordinação ao Secretário de Estado
independe de sua condição de Presidente do Conselho, visto que a Secretaria Executiva
integra a estrutura da secretaria. Esta é uma verdade apenas para aqueles que ainda não
compreenderam o alcance da idéia de Estado Democrático de Direito e, em especial, do
papel desempenhado pelos conselhos de saúde em sua construção.
O Estado não é do governo, mas do povo, titular do poder (art. 1°,
parágrafo único) e não é estranho nem mesmo para nossa democracia incipiente a
situação de o Estado arcar com os custos de órgãos que fiscalizam os próprios chefes.
Assim é com os órgãos de controle externo (tribunais de contas) e de controle interno
(na esfera federal tem-se o excelente exemplo da Secretaria Federal de Controle), estes
últimos insertos nas estruturas do Poder Executivo. O Ministério Público é talvez o
melhor exemplo dessa fiscalização independente. Instituição integrante da estrutura do
Estado, vem se consolidando como fiscal atuante e independente 83 não apenas dos
poderes instituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário, sendo vários os casos de
presidentes, governadores, prefeitos, parlamentares e juízes, de todas as instâncias,
processados pelo Ministério Público por atos de improbidade administrativa), mas de
suas próprias chefias84.
É claro que há casos, e não são poucos, onde essa fiscalização fica
comprometida, em decorrência de ingerências políticas e de perseguições àqueles que
exercem com independência suas funções ou mesmo de restrições orçamentárias e
remuneratórias. Faz parte da evolução de nossa sociedade a superação dessas práticas e
83 O art. 127, §2°, da CF assegura ao Ministério Público autonomia funcional e administrativa.84 Na Justiça Federal do Distrito Federal foi proposta, por membros do Ministério Público Federal, açãopara responsabilização por ato de improbidade administrativa (versando sobre a utilização de avião daForça Aérea Brasileira para fins particulares) tendo como requerido o Procurador-Geral da República,autoridade maior da instituição. A ação, autuada sob o número 1999.34.00.016569-0, tramitava na 17a.Vara Federal do Distrito Federal, distribuída por dependência aos autos 1999.34.00.013067-0, quando foiencaminhada ao Supremo Tribunal Federal em razão de declínio de competência do juízo de primeirograu, em 02/05/2003. Não se tem notícia de providências retaliadoras tomadas contra os cinco
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o desenvolvimento do controle social tem nessa missão um papel destacado. A
“participação da comunidade” como diretriz do SUS, com importantíssimo papel
fiscalizatório, é uma forma de controle externo às estruturas do Estado, mas nem por
isso deve deixar de contar com uma estrutura de apoio custeada por este.
Nesse quadro, não é utópico pensar – ao contrário, devemos caminhar
nessa direção - em uma secretaria executiva custeada pelo Estado, mas subordinada
efetivamente ao Conselho, independente de seu presidente ser o Secretário de Estado. A
própria lei estruturadora dos Conselhos – ou outra específica – deve prever cargos
efetivos e comissionados subordinados ao Conselho, com a nomeação dos cargos
comissionados de livre escolha do presidente deste.
Mas não é só no que se refere à subordinação da Secretaria Executiva
que as funções do gestor se mostram incompatíveis com as de presidente do Conselho.
A própria representação do conselho prevista no inciso I do artigo 15,
uma natural função de todo presidente, compromete a idéia inserta no inciso III do art.
198 da Constituição Federal (participação da comunidade como diretriz do SUS).
Imagine-se uma reunião convocada pelo Conselho Nacional de Saúde com os
presidentes de Conselhos Estaduais de todo país para avaliar a evolução do controle
social no SUS, objetivando traçar um panorama da transparência e probidade com que
são geridos os recursos públicos. Quem compareceria? Os fiscalizados, justamente os
que garantem (ou não) transparência e probidade. Correr-se-ía o risco de, num encontro
de representantes dos conselhos de saúde não haver um só representante da
comunidade! Nessas circunstâncias, ou se convocam vários conselheiros e não apenas o
presidente, com significativo aumento dos custos do evento, ou ficará comprometida
sua finalidade. Se o objetivo é discutir com os secretários de saúde, há um fórum
próprio: o CONASS – Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde, ou o
CONASEMS, no caso municipal. Os secretários já possuem seus canais próprios de
procuradores da República subscritores da ação (Guilerme Schelb, Eliana Torelly, Osório Barbosa,Valquíria Quixadá e Marcus Lima).
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articulação. A sociedade precisa ter assegurado o dela, não por favor, mas por
disposição constitucional!
Também o voto de desempate (inciso VII) confronta a paridade
estabelecida no §4° do art. 1° da Lei 8.142/90 (“A representação dos usuários nos
Conselhos de Saúde e Conferências será paritária em relação ao conjunto dos demais
segmentos”). Se essa paridade sujeitar-se a desempate por um presidente não eleito
entre seus pares, mas, ao contrário, escolhido pelas leis e decretos estaduais ou
municipais, ter-se-á por quebrada. Imagine-se um ponto em que haja confronto direto
entre o interesse dos usuários e dos demais setores representados no conselho (o que
não é difícil) e ver-se-á que os usuários a priori sempre sairão derrotados. Com certeza
não foi esse o intuito do constituinte ao estabelecer a participação da comunidade como
diretriz do SUS.
A prerrogativa de submeter a ordem do dia à aprovação da plenária do
conselho (inciso VI) permite, por seu turno, postergar ou mesmo omitir a inclusão de
assuntos de que tenha o gestor tomado conhecimento em razão de sua condição de
presidente, como pode ser o caso de uma recomendação do Ministério Público com a
qual não concorda.
Já a possibilidade de deliberar ad referendum do Conselho, prevista
no inciso VIII, só não compromete o controle social porque as exceções do artigo 9°
impedem que o Presidente exerça funções de autofiscalização nessa modalidade.
Veja-se, por último, a atribuição do Presidente prevista no inciso X do
mesmo artigo 15 (“solicitar às autoridades competentes providências relativas à
efetivação das medidas deliberadas pelo Conselho Estadual de Saúde”) e imagine-se
como procederia um presidente-secretário se a providência versasse sobre uma
representação ao Ministério Público para investigar desvio de recursos na secretaria.
Não é necessário nenhum esforço para constatar o prejuízo que sofreria a representação.
Poder-se-ía contra-argumentar dizendo que qualquer conselheiro pode fazê-lo. É
verdade, o art. 5°, XXXIV, a, assegura a qualquer cidadão a representação contra
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ilegalidade ou abuso de poder perante órgãos públicos. Todavia, em se tratando de um
órgão colegiado, seria recomendável a representação feita pelo mesmo, por seu
presidente e após deliberação da maioria, de modo a evitar que posições individuais,
muitas vezes orientadas por interesses particulares escusos, movimentassem o
Ministério Público, de regra, sobrecarregado com as inúmeras atribuições que recebeu
do constituinte.
Uma última ressalva à Lei 1.152/91 refere-se ao disposto no §2° do
art. 2°, que mais uma vez subordina a participação popular ao poder do governo, que
deveria ser fiscalizado pelo conselho. O referido parágrafo estabelece que os
conselheiros serão “nomeados por indicação do Secretário de Estado de Saúde, ouvidos,
quando houver, os órgãos de classe correpondentes, para mandato de 2 (dois) anos,
permitida a recondução”, em flagrante atentado contra a autonomia dos representantes
deste setor. Bem se vê a finalidade da lei estadual: manietar a participação popular, em
flagrante inconstitucionalidade.
Em relação aos Conselhos Municipais, a situação não é diferente.
Considerando que o objeto desta seção busca tão-somente abordar as
atribuições dos conselhos e a conseqüente incompabilidade do gestor com a função de
presidente, sem um enfoque casuístico, convém ter presente os modelos de lei e de
regimento sugeridos pelo Conselho Estadual do Mato Grosso do Sul aos municípios que
não possuíssem legislação sobre o assunto ou que as possuíssem em desconformidade
com as normas em vigor, especialmente as leis federais 8.080/90 e 8.142/90, bem como
com a supratranscrita Resolução 33/92 do Conselho Nacional de Saúde. Como será
abordado na próxima seção deste capítulo, muitos municípios sul-matogrossenses
passaram a adotar os referidos modelos, consubstanciados na Deliberação CES n. 50/97,
o que corrobora sua importância nesta análise.
O modelo sugerido de lei prevê as competências dos conselhos
municipais no artigo 1°, discriminando melhor o disposto no §2° do art. 1° da Lei
8.142/90 nestes termos:
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“Art. 1° - O Conselho Municipal de Saúde – CMS é órgão de caráter permanente e
deliberativo, integrante da estrutura da Secretaria Municipal de Saúde e soberano em
suas decisões, com função de deliberar sobre a formulação, a implantação,
acompanhamento, fiscalização e avaliação da Política Municipal de Saúde, inclusive
nos seus aspectos econômicos e financeiros, assuntos relacionados, direta ou
indiretamente, à promoção, proteção e recuperação da saúde no âmbito do Sistema
Único de Saúde – SUS, sobre matérias definidas em seu Regimento Interno e sobre
assuntos a ele submetidos, cujas decisões serão homologadas pelo Poder Municipal”
O modelo de regimento, por seu turno, assim detalha as competências
dos conselhos municipais de saúde:
“Art. 2º - Ao Conselho Municipal de Saúde compete:
I - atuar na formulação de estratégias e no controle da execução da política
municipal de saúde, inclusive nos aspectos financeiros, econômicos,
orçamentário e de gerência técnico-administrativo ;
II - traçar diretrizes para elaboração do Plano Municipal de Saúde, deliberar pela sua
aprovação, adequando-o, sempre que houver necessidade, a realidade
epidemiológica e a capacidade operacional dos serviços de saúde do município;
III - apreciar e pronunciar -se, conclusivamente, sobre os relatórios de gestão do
Sistema Único de Saúde, apresentados pela Secretaria Municipal de Saúde;
IV - estabelecer critérios e diretrizes quanto à localização e tipologia de Unidade de
Saúde, públicas e privadas, no âmbito do SUS;
V - examinar propostas e denúncias, pronunciando-se conclusivamente, sobre ações
e serviços de saúde, bem como apreciar recursos e a respeito de deliberações
anteriores do Conselho Municipal de Saúde;
VI - acompanhar e avaliar os serviços de saúde prestados à população pelos
órgãos e instituições públicas e privadas integrantes do SUS, definindo critérios
mínimos de qualidade para seu funcionamento;
VII - estimular a participação da sociedade civil organizada e o controle popular nas
instâncias colegiadas do SUS, estabelecendo critérios e diretrizes para a
implementação do controle social no município;
VIII - propor critérios e aprovar a criação de comissões técnicas, de caráter
permanente ou temporário, necessárias ao efetivo desempenho das atribuições do
Conselho;
IX - participar da formulação e avaliação das políticas públicas de meio ambiente,
transporte, habitação, alimentação garantindo a intersetorialidade das políticas
públicas com o setor da saúde pública;
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X - manifestar-se sobre todos os projetos de lei de interesse da saúde, em tramitação
na Câmara Municipal;
XI - tomar as medidas necessárias para a permanente orientação dos usuários sobre
os serviços oferecidos pelas unidades de saúde;
XII - participar da elaboração da programação, orçamentária e financeira
estabelecendo critérios e pronunciando-se , conclusivamente, sobre a versão final
encaminhada ao Poder Legislativo;
XIII - pronunciar-se sobre a criação de cursos de nível médio na área, de saúde no
âmbito do município;
XIV - fiscalizar a movimentação e destinação de todos os recursos financeiros
do fundo municipal de saúde;
XV - convocar a conferência municipal de saúde, ordinariamente, a cada 02 (dois)
anos ou extraordinariamente, sempre que o Conselho julgue necessário, estruturando
a comissão organizadora e elaborando seu regimento interno, que será submetido a
Plenária de abertura da conferência, para aprovação;
XVI - comunicar ao Ministério Público todo assunto que o plenário do conselho
julgar de competência do mesmo;
XVII - articular-se com as Secretarias Municipais afins, em especial a de educação
com vistas a definição de programas de educação em saúde, no que concerne a
caracterização das necessidades da população;
XVIII - aprovar, acompanhar e fiscalizar as atividades das instituições públicas e
privadas de saúde, credenciadas pelo SUS;
XIX - elaborar, aprovar ou modificar o presente regimento interno, com suas normas
de organização e funcionamento, adequando-o sempre que houver necessidade, as
deliberações das instâncias superiores do SUS;
XX - apreciar e deliberar sobre quaisquer outras atribuições que lhe sejam delegadas
pela legislação ou pelas instâncias superiores do SUS.” (grifos ausentes do original)
O modelo de lei nada dispõe sobre a presidência do conselho,
deixando a matéria para o regimento interno, que prevê a eleição de qualquer dos
conselheiros efetivos dentre seus pares, para mandato de dois anos (art. 13) e confere
ao presidente as seguintes atribuições:
“Art. 14. Ao presidente do conselho municipal de saúde compete:
I – representar oficialmente o Conselho Municipal de Saúde nas suas relações
internas e externas;
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II – presidir as reuniões plenárias do Conselho Municipal de Saúde, ordinárias e
extraordinárias;
III – convocar reuniões, conforme estabelecido neste regimento interno;
IV – apor sua assinatura em documentos oficiais e acompanhar toda a
movimentação financeira dos recursos destinados ao SUS no âmbito do
município, prestando contas ao Plenário do Conselho de Saúde;
V – cumprir e fazer cumprir o presente regimento, submetendo os casos omissos à
apreciação da plenária.” (grifo ausente no original)
As incompatibilidades antes referidas em relação ao secretário de
saúde não apenas se repetem como se ampliam no âmbito municipal, em razão do
supratranscrito inciso IV. Infelizmente, são ainda poucos os municípios que adotam a
eleição do presidente dentre quaisquer de seus membros e ainda em menor número
aqueles cujo secretário de saúde não ocupa a presidência do conselho.
As críticas que aqui fazemos não são isoladas cabendo referir dois
trabalhos em que foram abordados os inconvenientes de ser a presidência dos conselhos
ocupada pelos respectivos secretários de saúde.
ANA CRISTINA DE SOUZA VIEIRA, em seu artigo sobre “Controle
Social na Política de Saúde”85 identifica como uma das características que podem
colocar em questão o caráter democrático que devem ter os conselhos, a obrigatoriedade
de ser o secretário de saúde, representante do Executivo local, obrigatoriamente o seu
presidente.
ÁGUEDA WENDHAUSEN, em sua tese de doutoramento intitulada
“Micropoderes no Cotidiano de um Conselho de Saúde”, apresentada em 1999, na
UFSC86, traz inúmeros relatos de suas experiências como conselheira de saúde
municipal de Itajaí (SC). O seguinte trecho é emblemático exemplo dos inconvenientes
encontrados na coincidência entre secretário e presidente do conselho de saúde:
85 VIEIRA, Ana Cristina de Souza. Controle Social na Política de Saúde. In: Estudos – Revista daUniversidade Católica de Goiás, Goiânia, v. 23, n. 3/4, p. 335-350, jul/dez 1996, p. 343.86 O pesquisador não teve acesso à íntegra da tese, mas ao resumo cuja indicação bibliográfica consta aofinal.
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4) Isto [refere-se a autora a uma tomada de consciência do conselho em relação a seu
papel] se expressa mais claramente na 37a reunião (2a gestão), quando o Presidente
[que é também o secretário de saúde] diz que tem a planilha de custos dos
prestadores em mãos, mas que não a colocará à disposição dos conselheiros por
‘questões éticas’. Alguém se manifesta que não concorda com a colocação, dizendo
que ‘o Conselho é ético e seu papel é fiscalizar’. Nessa mesma reunião, um grupo
de conselheiros que haviam sido nomeados pelo Conselho para auditorar as contas
do Fundo Municipal de Saúde, relatam algumas irregularidades encontradas. O
Presidente tenta se justificar dizendo, finalmente, que ele mesmo “se auto-
auditora”.
Há questionamentos em relação às justificativas apresentadas pelo Presidente e, por
fim, ele reclama que o Conselho o está “encostando na parede” e que espera que o
“Conselho seja ético e que as coisas não vazem”. Alguém da Plenária diz que “o
Conselho é ético e que não abriria...”.
[…]
Na reunião seguinte, 38a, o presidente não está na reunião e o vice-presidente
assume. O clima continua tenso, como na reunião anterior. Neste momento, há uma
série de questionamentos e uma reflexão do grupo de conselheiros sobre sua
atuação. Isso se instala após um momento em que o Conselho, pela primeira vez
resolve averiguar as contas apresentadas, encontrando ali as irregularidades, já
mencionadas. Primeiro, o vice-presidente diz que o Conselho não tem feito nada e
que a aprovação dos balancetes tem sido feita na base do ‘voto de confiança’.
A fala de um representante dos profissionais de saúde expressa o conflito
estabelecido entre governo e Conselho. Mostra-se indignado com o descaso da
secretaria em relação ao Conselho e diz que há muito tempo uma ‘reunião de
verdade’ não acontecia, pois o secretário estaria sempre cercado de assessores que
intimidavam os conselheiros. Por fim, acrescenta que o Conselho deve se tornar
mais ativo como no ‘tempo do conselheiro... 87’ - que todos podemos ‘ser um pouco
este conselheiro..’ - e que não aprova determinados gastos do fundo municipal de
saúde.
Estas queixas denotam que os conselheiros não conseguem expressar-se como
desejariam, no Conselho.
Finalmente, a denúncia de um dos conselheiros presentes de que o “Conselho só
existe pró-forma” como que sintetiza, de certa forma, as falas desta reunião e os
87 Explicou a doutoranda, em nota de rodapé, que o referido conselheiro, C11, representava os usuários doSUS e possui presença ativa no conselho, sendo seu nome o mais citado nas atas, caracterizava-se por“questionar e argumentar em favor do que considera correto.”
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inúmeros não-ditos, de tantas outras reuniões, que se expressaram na maior parte das
entrevistas. Entretanto, a reflexão do conselheiro propõe uma saída, que é a de que o
Conselho seja ‘um pouco o conselheiro..’, ou seja, que se torne novamente ativo,
questionador como o tal conselheiro e como acontecia no momento em que atuava
no Conselho (1a gestão).” (grifos ausentes no original)
Embora o relato refira-se ao Conselho Municipal de Itajaí (Santa
Catarina), bem poderia poderia descrever inúmeros outros conselhos deste Estado ou do
país.
A mesma autora, citando outros estudos88, assim resumiu os entraves
para que a participação popular se efetive:
- a ambigüidade do Estado, que institui a participação popular e, ao
mesmo tempo perpetua e incentiva a continuidade de práticas
autoritárias como o clientelismo, o fisiologismo, etc, solapando
qualquer possibilidade de efetivação deste mesmo controle;
- sonegação de informações;
- manipulação política na indicação de conselheiros,
principalmente aqueles advindos dos usuários; e
- a falta de instrumentos que possibilitem um olhar avaliativo sobre
as ações de saúde.
Ademais, como bem lembra a autora, “a relação dissimétrica entre os
conselheiros usuários e os demais representantes (tanto na 1a, como na 2a gestão), é um dos aspectos que
mais denuncia o uso de uma estratégia de silenciamento, através de discursos considerados ‘verdadeiros’
ou ‘autorizados’, utilizada, principalmente pelo segmento governamental, que reforça seu poder.”
88 Os estudos referidos são: GERSCHMAN, Sílvia. A democracia Inconclusa: um estudo da ReformaSanitária Brasileira, Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 1995; DALLARI, Sueli Gandolfi et al. O Direito à saúdena visão de um Conselho Municipal de Saúde. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 12, n. 4, p.531-540, out-dez 1996; RAMOS, Célia Leitão. Conselhos de Saúde e Controle Social. In: Política deSaúde: o Público e o Privado. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1996; ABRASCO. Incentivo à ParticipaçãoPopular e Controle Social em Saúde. Relatório Final. Rio de Janeiro: ABRASCO, Série: Movimento eSaúde, n. 1, 1993. e CORTES, Soraya Maria Vargas. Participação na área da saúde: o conceito, suasorigens e seu papel em diferentes projetos de reforma do Estado. Saúde. Porto Alegre/RS, v. 1, p. 51-69,1996
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Tanto o clientelismo e o fisiologismo como a sonegação de
informações são, em grande parte, conseqüências da condição do secretário como
presidente dos conselhos. Para a superação dessas dificuldades e construção de uma
efetiva participação popular na gestão do SUS, sustenta a Doutora Águeda a
necessidade de se construir um conselho “ético e politicamente autônomo e reflexivo”.
Essas ingerências são absolutamente incompatíveis com o tempo que
vivemos e com os princípios traçados pelo constituinte originário de 1988.
O Conselho não é mais órgão consultivo como fora antes de 1990;
pelo contrário, é exemplo maior da democracia direta prevista na Constituição da
República tendo merecido, inclusive, referência explícita no texto constitucional após
a Emenda n. 29/2001, responsável pelo artigo 77 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias que estabelece em seu parágrafo terceiro que: “Os recursos
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios destinados às ações e serviços públicos de saúde e os
transferidos pela União para a mesam finalidade serão aplicados por meio de fundo de saúde que será
acompanhado e fiscalizado por Conselho de Saúde, sem prejuízo do disposto no art. 74 da
Constituição Federal.”
Melhor discriminadas as atribuições dos Conselhos de Saúde,
impende reafirmar que, não obstante sua amplitude, se ajustam plenamente à sua função
constitucional e legal, descabendo cogitar de invasão indevida nas atribuições do Poder
Executivo, no caso representado pelos gestores do SUS (secretários ou ministro de
saúde), mandatários do governante eleito. Não há invasão no pleno exercício do
controle social pois toda a gestão pública é passível de fiscalização, sem que daí se
possa extrair qualquer usurpação de atribuição do fiscalizado.
Bem assim na participação da comunidade na formulação das políticas
públicas. Ainda que, neste caso, a atividade dos conselhos adentre em atividade
tradicionalmente exercida de forma discricionária pelo Poder Executivo, legitimado a
tanto pelo mandato popular recebido nas urnas, não há invasão. Primeiro, porque essa
prerrogativa tem base constitucional e está prevista na Lei 8.142/90 que, refletindo as
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preocupações da 8a. Conferência Nacional de Saúde com a inadequação das políticas de
saúde às necessidades da população destinatária dos recursos, viu na participação da
comunidade a melhor forma de evitar essa distorção. Ademais porque, como já
registrado no início deste trabalho, emanando o poder do povo é ele que o repassa a seus
governantes e não o contrário. Se, em determinadas áreas o poder constituinte - cujo
titular é o mesmo povo - entende por reservar a este parcelas de poder político para,
nessas hipóteses, exercê-lo diretamente (caso da participação da comunidade como
diretriz do SUS – art. 2°, parágrafo único c/c art. 198, III, ambos da CF) a conseqüência
é que, nesses casos, o poder do governante é menor, ou melhor, o mandato que recebe
do povo é menos extenso.
Ocorrerá invasão, sim, na hipótese inversa, ou seja, quando o
governante adentrar na esfera de poder reservada à cidadania, como ocorre com as
disposições normativas que conferem a presidência dos conselhos aos secretários ou
ministro de saúde, inviabilizando processo eleitoral entre os conselheiros e alijando da
função os usuários, que, por lei, têm direito à metade das vagas.
No intuito de melhor apresentar a realidade que hoje se apresenta no
Mato Grosso do Sul sobre o assunto, sem qualquer pretensão de esgotar o ponto, mas
objetivando apenas fornecer ao leitor mais dados para uma adequada reflexão, o
presente trabalho expõe, na seqüência, um breve relato sobre a atual situação dos
conselhos municipais deste Estado, com enfoque direcionado aos quatro maiores
municípios, escolhidos também por serem sede de varas federais e, portanto, com
atuação mais presente do Ministério Público Federal.
Em atenção ao fato de se encontrarem esses conselhos, por razões a
seguir comentadas, em um estágio de construção democrática mais avançado que o de
seus congêneres federal e estadual no que respeita ao ponto central deste capítulo
(eleição do presidente do conselho dentre seus integrantes, sem a definição prévia do
secretário para a função), suas realidades são tratadas em tópico próprio.
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III.d – Os Conselhos Municipais em MS. Uma esperança.
Ainda que desde outubro de 1988 a participação da comunidade
constasse como diretriz do Sistema Único de Saúde, somente com a edição da Lei 8.080
(Lei Orgânica da Saúde), de 19 de setembro de 1990, e, três meses mais tarde, da Lei
8.142 (que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do SUS), de 28 de
dezembro, é que os conselhos estaduais e municipais começaram a ser efetivamente
instituídos no Brasil, contando com o fundamental apoio do já reformulado Conselho
Nacional de Saúde, que ganhara maior efetividade e representatividade com o Decreto
99.438, de agosto do mesmo ano.
No Mato Grosso do Sul, como de resto na maioria dos demais Estados
da Federação, foram os municípios que largaram à frente na criação dos conselhos de
saúde, embalados pela perspectiva descentralizadora do SUS e premidos pela Norma
Operacional Básica n. 01/91 do Ministério da Saúde, que exigia o rigoroso
cumprimento das seis exigências insertas no art. 4° da Lei 8.142/90 (dentre as quais a
criação dos conselhos municipais) para o repasse das verbas federais previsto no art. 3°
da mesma lei. Em Campo Grande, com a Lei n. 2.811, de 07 de junho de 1991, criava-
se o Conselho de Saúde da Capital que, todavia, não fora o primeiro, visto que Coxim,
por exemplo, importante cidade do norte do Mato Grosso do Sul, instituíra em 23 de
maio do mesmo ano o seu conselho pela Lei n. 652/91. O Estado criaria o seu em 21 de
julho do mesmo ano, através da já analisada Lei n. 1.152. Somente em 1993 todos os
Estados brasileiros (premidos, da mesma maneira que os Municípios, pela NOB 01/93)
e suas capitais possuiriam conselhos de saúde, sendo que, entre 1992 e 1993, foram 15
os Estados e 6 as capitais a atenderem essa exigência legal89.
Muitas dessas leis estabeleceram os secretários de saúde como
presidentes dos conselhos, a exemplo do “modelo” federal (Decreto 99.438/90) e o
estadual (art. 2° da Lei 1152/91).
89 Cf. CARVALHO, op. cit., p. 69
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O mesmo conteúdo constava do art. 6° do Decreto Municipal n.
6.340/91, regulamentador da Lei n. 2.784 de Campo Grande, de dezembro de 1990,
instituidora do respectivo Conselho:
“Art. 6° A presidência do Conselho Municipal de Saúde será exercida pelo
Secretário Municipal de Higiene e Saúde Pública, que nas suas faltas ou
impedimentos será substituído pelo Diretor Executivo da Secretaria Municipal
de Higiene e Saúde Pública.”
Hoje a situação não é mais a mesma. Por meio do Decreto n. 8.099, de
31 de outubro de 2000, o dispositivo teve alterada sua redação para:
“Art. 6° A Presidência do Conselho Municipal de Saúde será exercida por
qualquer membro efetivo do Conselho eleito por seus pares em reunião
plenária convocada especificamente para este fim, para mandato de 02 (dois)
anos, podendo ser reconduzido, sendo substituído em suas faltas ou
impedimentos pelo Conselheiro mais idoso presente.”
Esse inegável e valiosíssimo avanço não ocorreu de forma isolada,
nem foi inovador. Resultou de um amplo movimento social que vinha buscando desde
1992 assegurar a possibilidade de qualquer conselheiro concorrer ao cargo de
presidente.
Em agosto do referido ano, na 9a. Conferência Nacional de Saúde ,
se aprovou proposta indicando que o presidente deveria ser eleito entre seus
membros90, ou seja, afastando a condição de presidente nato do secretário de saúde. Em
atendimento à orientação da Conferência, o Conselho Nacional de Saúde editou a
Resolução n. 033/92 que assim dispôs no tópico n. 2, da “Composição dos Conselhos”:
“A participação comunitária é enfatizada na legislação, tornando os
Conselhos uma instância privilegiada na discussão da política de saúde. A
legislação também estabelece a composição paritária dos usuários, em
relação aos outros segmentos representados. Desta forma, um Conselho
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de Saúde deverá ser composto por representantes do Governo, de
profissionais de saúde, de prestadores de serviços de saúde e usuários,
sendo o seu presidente eleito entre os membros do Conselho, em
reunião plenária.” (grifo ausente no original)
O movimento social organizado da saúde procurava, desse modo,
garantir importante conquista para a efetivação da democracia interna nos conselhos.
Curiosamente, não obstante tenha partido de uma Conferência Nacional (a nona) e se
consubstanciado em uma Resolução do Conselho Nacional de Saúde (n. 33/92), foi nos
conselhos municipais que a “revolução democratizante” surtiu algum efeito, sendo
incapaz de alterar o Decreto 99.438/90 ou a legislação estadual: até a data de conclusão
deste trabalho (julho de 2003), tanto o Conselho Nacional como o Estadual
continuavam sendo presididos pelo Ministro e Secretário de Saúde, respectivamente,
por disposições normativas expressas, até hoje inalteradas.
Cinco anos após as deliberações referidas no parágrafo anterior, a
questão repercutiu neste Estado, tendo o respectivo Conselho de Saúde aprovado, em
1997, a Deliberação n. 46, dispondo sobre “as orientações para organização e
funcionamento dos Conselhos de Saúde no Estado de Mato Grosso do Sul” e
estabelecendo, em seu item X, que: “A presidência do Conselho deve ser eleita dentre seus
membros”. Na seqüência, o mesmo Conselho deliberou pela elaboração de modelos de
leis e regimentos internos para os Conselhos Municipais, aprovados na Deliberação
CES n. 50, de 14 de julho de 1997. Segundo esses modelos, abordados mais
detidamente na seção anterior e constantes dos anexos, as leis municipais não tratam do
assunto, ficando a matéria para o regimento interno, cujo modelo prevê em seu artigo 13
que:
“Art. 13 – A presidência, órgão diretor do Conselho Municipal de Saúde, será
exercida por qualquer membro efetivo do conselho, eleito entre seus pares,
em reunião plenária, convocada especialmente para esse fim, para mandato
de 02 (dois) anos.”
90 v. Nota de rodapé n. 81.
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Teria sido melhor, para garantir maior estabilidade à disposição, que
ela constasse do modelo de lei; todavia, o interesse maior de ver os municípios adotando
o modelo previsto na íntegra e as dificuldades que seriam encontradas no particular
devem ter justificado a opção. Ademais, no mínimo, garantir-se-ía a revogação das
disposições legais anteriores que estabeleciam os secretários de saúde como presidente
do conselho.
Avançava-se significativamente, sem dúvida, especialmente se
considerado que a deliberação desencadeou efetivas mudanças nas legislações
municipais, algumas delas incorporando no próprio texto da Lei a eleição do presidente
dentre todos os conselheiros.
Foi o caso, por exemplo, de Três Lagoas, a quarta maior cidade do
Estado, com cerca de setenta mil habitantes. No mês seguinte à deliberação do CES, foi
promulgada a Lei n. 1.369, de 02 de setembro de 1997, que assim dispôs em seu artigo
4°:
“Art. 4° A nomeação dos conselheiros de saúde deverá ocorrer em ato do
Poder Executivo Municipal, empossados no prazo máximo de 30 (trinta) dias
pela Secretaria Municpal de Saúde, em sua primeira gestão, e, nas próximas,
pelo próprio Conselho Municipal de Saúde.
…
II – o Secretário de Saúde é membro nato do Conselho Municipal de Saúde;
III – A Presidência do Conselho Municipal de Saúde será eleita dentre seus
membros.
Corumbá, a terceira maior cidade do Estado (aproximadamente cem
mil habitantes) e a mais antiga, que desde 1993 possuía em sua legislação a previsão de
escolha do presidente dentre quaisquer dos componentes do Conselho (art. 4°, §2°),
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adotou tanto o modelo da Deliberação n. 50/97 na Lei 1.580/98 como em seu regimento
interno, mantendo, assim, a eleição do presidente dentre os conselheiros91.
Em Dourados, a segunda maior cidade do Estado (com pouco mais de
duzentos mil habitantes), a Lei n. 2.212, de 23 de novembro de 1998, adotou
parcialmente o modelo da Deliberação CES 50/97, fazendo pequenas alterações, dentre
as quais a prevista no §3° do art. 6°, redigida nestes termos:
§3° A presidência será exercida por membro titular do Conselho, escolhido
dentre seus pares, em assembléia e/ou plenária, nos termos da legislação
vigente.
Atualmente, a grande maioria dos municípios sul-matogrossenses já
adotou os modelos constantes da Deliberação n. 050/97, com pequenas alterações. Não
obstante, apesar da ausência de obrigatoriedade legal, dos 77 Conselhos Municipais de
Saúde no Mato Grosso do Sul ainda em 41 o secretário ocupa a presidência. Dentre os
36 restantes, destacam-se as três grandes cidades antes referidas (Dourados, Corumbá e
Três Lagoas).
Na Capital, embora já não haja a obrigatoriedade desde dezembro de
2000, a Secretária de Saúde ainda ocupa a presidência do conselho. Como se vê, a
mudança na legilslação da Capital nada teve de inovador, pelo contrário, foi a última
dentre as maiores cidades e ainda não resultou em efetiva alternância.
O tardar da capital e, especialmente, a manutenção da previsão
criticada nas esferas estadual e federal, tendo partido justamente do Conselho Nacional
a orientação pela mudança podem parecer estranhos, mas têm explicação facilmente
alcançável.
Não é sem razão que o incremento da democracia – e especialmente
da participativa – está diretamente relacionado à idéia de descentralização. BOBBIO
91 O Conselho Municipal de Corumbá foi, provavelmente, o primeiro a ter um presidente escolhido dentreos pares que não era o secretário de saúde, atualmente sendo presidido atualmente, como na gestão
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reconhece essa “estreita conexão entre os conceitos de descentralização (entendida
como luta pelas autonomias locais) e de democracia” dizendo-a generalizada na
doutrina92. Quanto mais perto do povo está o governante, mais sensível ele é à
ampliação da participação deste. Quanto mais alta for esfera de poder, tanto maior será
este e mais refratário a reparti-lo será o governante. E, novamente trazendo o
pensamento de BOBBIO, convém ter presente que “a democracia dos modernos é o Estado no
qual a luta contra o abuso do poder é travada paralelamente em duas frentes – contra o poder que parte do
alto em nome do poder que vem de baixo, e contra o poder concentrado em nome do poder
distribuído”93. Sem dúvida, o poder de cima para baixo e centralizado é bastante mais
infenso à participação popular.
Não por outra razão, justamente a normatização de Campo Grande
tardou em relações às demais cidades do Estado. Não por outra razão a Lei Estadual n.
1.152/91 até hoje permanece inalterada não havendo sequer projeto de lei em trâmite na
Assembléia Legislativa94, cabendo ressaltar que o governo do Estado é do Partido dos
Trabalhadores, o mesmo que teve papel importante na consagração das diretrizes da 8a.
Conferência Nacional de Saúde no texto constitucional, com destacada participação do
Deputado Federal Eduardo Jorge, de São Paulo. Não por outra razão o dispostivo
pertinente inserto no Decreto 99.438/90, que dispõe sobre a organização e atribuições
do Conselho Nacional de Saúde, art. 2°, caput, continua prevendo como presidente o
Ministro da Saúde que, nos termos do art. 4°, §3°, do mesmo decreto, ainda possui
direito a voto de qualidade (desempate) além da prerrogativa de deliberar ad referendum
do Plenário.
É preciso levar a “revolução democrática” já operada nas instâncias
menores para as esferas estaduais e federal. Esse é o principal objetivo deste trabalho.
anterior, por uma representante do setor dos usuários.92 Cf. verbete “Descentralização e Centralização”, tópico IV, “Descentralização, Democratismo ePluralistmo” in BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário dePolítica. 8a. ed, Brasília: Editora da UnB, 1995.93 BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia: uma defesa das regras do jogo. 8a.ed, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 7394 É o que informou o então Deputado Estadual Geraldo Resende, em ofício de 10 de maio de 2002,respondendo questionamento deste autor. Situação que, segundo informado recentemente pela Comissãode Legislação do Conselho Estadual de Saúde, permanece inalterada.
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CAPÍTULO IV – A INCONSTITUCIONALIDADE DAS PREVISÕES LEGAIS QUE
ESTABELECEM OS GESTORES COMO PRESIDENTES DOS CONSELHOS
Embora certamente existam várias leis municipais que ainda confiram
a condição de presidente do conselho de saúde ao respectivo secretário, seja pelas
razões trazidas à colação na seção anterior, que demonstram maior possibilidade de
reversão do quadro local pelos meios políticos, seja pela competência para julgamento
de ações de inconstitucionalidades a serem eventualmente propostas, atribuída aos
Tribunais de Justiça, perante o qual somente o Ministério Público Estadual pode propô-
las, seja, ainda, porque o raciocínio aplicável é o mesmo (sendo de se esperar que uma
decisão judicial de inconstitucionalidade contra a norma federal ou estadual reverbere
na esfera municipal), este capítulo tomará como objeto a ser confrontado com a
Constituição da República os dispositivos referentes ao Conselho Nacional e Estadual
de Saúde, respectivamente os artigos 2° do Decreto 99.438/90 e da Lei Estadual n.
1.152/91, redigidos nestes termos:
“Art. 2º. O Conselho Nacional de Saúde, presidido pelo Ministro de Estado da
Saúde, integrado por 32 membros, tem a seguinte composição: (Redação dada pelo
Decreto nº 1.448, de 6.4.1995)
“Art. 2°. O Conselho Estadual de Saúde de Mato Grosso do Sul será composto pelo
Secretário de Estado de Saúde, que o presidirá, e mais vinte e quatro membros
representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários”
(grifo ausente no original)
Os dispositivos em destaque são inconstitucionais por afronta aos
artigos 1°, II e parágrafo único c/c art. 198, III (democracia participativa e participação
da comunidade como diretriz do SUS), 5°, caput (princípio da igualdade) interpretado à
luz do princípio da proporcionalidade e 37, caput (princípio da moralidade
administrativa) c/c art. 77 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
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IV.a - Inconstitucionalidade por contrariedade aos art. 1°°, II, e parágrafoúnico (cidadania e democracia participativa) e ao artigo 198, III(participação da comunidade como diretriz do SUS)
Muito do trabalho até aqui desenvolvido – especialmente o constante
do Capítulo II – procura colacionar elementos capazes de demonstrar a
inconstituicionalidade abordada neste tópico. Seria irrazoável repiti-los agora, cabendo,
todavia, dar-lhes organicidade e conformação constitucional em sucintas palavras.
As disposições normativas que prevêem os gestores de saúde
(secretários e ministro) como presidentes dos respectivos conselhos afrontam a
cidadania e a democracia participativa na medida em que há invasão, sob a forma de
ingerência, dos governos sobre espaço reservado pelo constituinte originário (vale dizer,
pelo próprio povo, seu titular) ao exercício direto do poder pela cidadania organizada.
Prevê a Constituição que o Brasil se constitui em um Estado
Democrático de Direito que tem dentre seus fundamentos a cidadania. Igualmente prevê
a Carta que o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes ou
diretamente, nos termo da Constituição (art. 1°, parágrafo único). No caso, está-se
diante de uma hipótese de exercício direto nela previsto: a participação da comunidade
como uma das diretrizes do SUS. O “diretamente” como ensina BRITO significa o
próprio povo assumindo-se como instância deliberativa95
Esclarece o mesmo autor96 que o “diretamente” do parágrafo único
significa “o povo assumindo-se enquanto instância deliberativa, tanto quanto se assumem como
instância deliberativa os ‘representantes eleitos’ por esse mesmo povo”. Se há duas instância
deliberativas: o povo, no conselho de saúde, e o seu representante, na gestão, uma não
deve se confundir com a outra, impondo-se mútuo respeito e independência de
instâncias. Não pode, por isso, o governo eleito (representante, mandatário do povo)
exercer ingerência no espaço de exercício direito do poder, sob pena de esvaziar (se não
95 Op. cit., p. 119 (v. Seção III.a)96 Idem
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anular) a participação popular prevista constitucionalmente. Tanto mais se, na
constituição desse conselho, os usuários são paritários a todos os outros grupos nele
representados (governo, prestadores de serviço e trabalhadores na área de saúde),
conforme previsto no art. 2°, §3°, Lei 8.142/90.
Se o poder emana do povo, nos casos em que a Constituição prevê o
exercício direto restringe-se o “mandato” dos representantes. São esferas diferentes com
atribuições diferentes.
O conselho de saúde é um espaço da cidadania – possivelmente o mais
amplo de nosso ordenamento jurídico – e esta é a expressão da soberania popular, que,
como o próprio nome diz, é soberana como fonte de poder.
Por outro lado, analisando o controle social exercido pelo mesmo
órgão de partipação popular, o conselho de saúde, vimos que ele é um direito subjetivo
da cidadania97 e, como tal, impositor de uma vontade do cidadão ao Estado que resta
esvaziado quando o representante do governo preside o conselho, comprometendo
sobremaneira o exercício da cidadania.
Cumpre também lembrar que a participação pressupõe igualdade de
voto e, portanto, do direito de concorrer a cargos eletivos, como é o caso do presidente,
que deve ser aberto a todos os conselheiros.
A afronta aos dispositivos 194, VII e 198, III, além do que já se disse
da combinação proposta com os artigos 1°, II, e parágrafo único, também se revela
buscando a origem das disposições na constituinte (interpretação histórica), para dela
extrair sua finalidade, vale dizer, a ratio legis, e, assim, assegurar a mais festejada das
interpretações, a teleológica.
Este tema já foi bem explorado no Capítulo II, segunda seção, onde
ficou evidenciado que a origem de ambas as disposições, especialmente do art. 198, III,
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converge para as conclusões da 8a. Conferência Nacional de Saúde, em cujo relatório se
registrou que uma das principais preocupações dos conferencistas era com a eficiência,
a transparência e a probidade no sistema único de saúde que se pretendia ver criado,
para o que se tornava imprescindível a participação popular na fiscalização da aplicação
dos recursos públicos. Permitir com que o fiscalizado presida o órgão fiscalizador
afronta diretamente essa finalidade, razão pela qual devem ser tida por inconstitucionais
tais disposições.
IV.b – Inconstitucionalidade por violação ao princípio da Igualdade e aoda Proporcionalidade ou Razoabilidade
As normas disciplinadoras dos Conselhos de Saúde ao imporem o
Ministro ou os secretários de saúde como presidentes necessários afrontam o princípio
da igualdade na medida em que criam uma discriminação em relação aos demais
conselheiros, impossibilitados sequer de disputar o cargo, sem que o discrímen encontre
justificativa no direito ou nas características inerentes aos gestores, pelo contrário, o
critério utilizado afronta o ideário constitucional.
Inserto no art. 5°, caput, da Constituição Federal de 1988, que
inaugura o título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais” anunciando que “todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, o princípio não se restringe a
nivelar os cidadãos perante a norma legal posta, ou seja, não se volta apenas ao
aplicador da lei, mas também – e principalmente – ao legislador. É o ensinamento de
CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO em sua concisa mas preciosa monografia
sobre o tema, Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, onde pontifica, referindo a
unanimidade que o acompanha, que “não só perante a norma posta se nivelam os indivíduos, mas
a própria edição dela assujeita-se ao dever de dispensar tratamento eqüânime entre as pessoas … A Lei
não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento regulador da vida social que necessita
tratar eqüitativamente todos os cidadãos”98, ao mesmo tempo que cita FRANCISCO CAMPOS
97 Cf. Seção III.a desta monografia98 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. Malheiros:São Paulo, 2000, 3a. Ed., pp. 9-10.
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com elogiosas palavras a seu pensamento assim consignado: “por mais discricionários que
possam ser os critérios de política legislativa, encontra no princípio da igualdade a primeira e mais
fundamental de suas limitações.”99
Ocorre que a igualdade material pressupõe o tratamento igual dos
iguais e desigual dos desiguais, na medida dessa desiguldade, cabendo à lei – grande
regulador social no Estado de Direito – estabelecer essa distinção, para cujo mister deve
sujeitar-se a critérios fora dos quais as discriminações são juridicamente intoleráveis. É
sobre o estabelecimento desses critérios que se debruça o célebre doutrinador na obra
referida.
Depois de afastar o mito de que certos fatores (tais como sexo, raça ou
convicção religiosa) não podem, sob hipótese alguma, serem eleitos como matriz do
discrímen, citando como exemplos a exigência de que somente mulheres concorram a
cargos de “polícia feminina”, destinada especificamente a determinados atos de polícia
relacionados a mulheres (revista pessoal, por exemplo) ou a limitação a determinada
raça na contratação temporária para combate a uma doença contra a qual aquela raça
seja comprovadamente mais resistente, o autor conclui que “qualquer elemento residente nas
coisas, pessoas ou situações pode ser escolhido pela lei como fator discriminatório”.
Firmada essa posição, aponta o caminho para a análise da
compatibilidade das discriminações de lei com o princípio constitucional da igualdade:
“Tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério
discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é,
fundamento lógico para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o específico
tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada. Finalmente,
impende analisar se a correlação ou fundamento racional abstratamente existente é,
in concreto, afinado com os valores prestigiados no sistema normativo
constitucional. A dizer: se guarda ou não harmonia com eles”100
99 CAMPOS, Francisco. Direito Constitucional . Ed. Freitas Bastos, 1956, v. II, p. 30 apud MELLO op.cit., p. 9100 BANDEIRA DE MELLO, op. cit. pp. 21/22.
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Sob essa perspectiva, é possível resumir assim os três critérios
identificados pelo autor:
1) a lei não pode adotar como fator de desigualação um critério tão
específico que singularize no presente e definitivamente, de modo
absoluto, um sujeito a ser colhido pelo regime peculiar e deve, por
outro lado, identificar um traço que resida, necessariamente, na
pessoa, coisa ou situação, nela mesma, como refere o autor;
2) deve haver uma correlação lógica entre o fator do discrímen e a
desequiparação procedida, equivale dizer, “impende que exista uma
adequação racional entre o tratamento diferenciado construído e a razão
diferencial que lhe serviu de supedâneo”101; e
3) a diferenciação de tratamento jurídico seja fundada em razão
valiosa – à luz do texto constitucional – para o bem público, ou,
em outras palavras, também do doutrinador, “não é qualquer diferença,
conquanto real e logicamente explicável, que possui suficiência para
discriminações legais […] as vantages hão de ser conferidas prestigiando
situações conotadas positivamente ou, quando menos, compatíveis com os
interesses acolhidos no sitema constitucional”102.
Em relação ao primeiro critério, não há críticas que podem ser
opostas às leis que prevêem os responsáveis pelas pastas de saúde, nas três esferas,
como presidentes natos dos conselhos. Não há a individualização em uma só pessoa,
mas em um cargo, independente de quem venha a ocupá-lo no futuro; por outro lado, o
critério utilizado – ser secretário ou ministro – é inerente a seu ocupante.
Quanto ao segundo critério, impende, por primeiro, responder uma
questão, sem o que não se poderá aferir a relação lógica do discrímen: quais as
características do gestor e qual seu papel no conselho? A essa resposta deverão
somarem-se as funções da presidência já esmiuçadas no penúltimo tópico do capítulo
anterior. Só então poder-se-á analisar a validade da correlação lógica entre o fator de
101 Ibidem, p. 39102 Ibidem, pp. 41/2
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discrímen: condição de gestor, e a desequiparação procedida: exclusividade na condição
de presidente do conselho, em prejuízo de todos os demais conselheiros que, diante da
disposição legal, não podem assumir a presidência do conselho.
O secretário de saúde, como gestor dos recursos do fundo de saúde
(quando se tratar de ente público com gestão plena, condição alcançada pela maioria dos
secretários de saúde, ao menos no que respeita à atenção básica), autoriza muitos, senão
todos, os pagamentos do SUS na área de sua responsabilidade, pelo que conhece bem os
gastos com o setor; de regra é um profissional da área (médico, na maior parte das
vezes); conhece bem a estrutura da secretaria. É, sempre, pessoa de confiança do Chefe
do Executivo. No Conselho, ocupa uma das vagas destinadas aos prestadores de serviço,
visto que o poder público encontra-se sempre nessa condição, cabendo lembrar que, ao
menos nos termos do art. 24 da LOS, a iniciativa privada desempenha um papel
complementar no SUS. É, sem dúvida, profundo conhecedor da área; demais, para o
caso.
Reside justamente na razão de ser do profundo conhecimento do
gestor uma grave contradição interna nesta aparente lógica justificadora da sua
condição de presidente nato do conselho: conhece muito bem porque é o responsável
pela gestão, vale dizer, por toda (ou quase) aplicação das verbas do SUS de sua área de
abrangência. Ocorre que é justamente essa gestão o objeto de fiscalização do
conselho que preside! Essa contradição afasta qualquer correlação lógica justificadora
do discrímen. Justificaria, ao revés, discriminação ao contrário, ou seja, que a lei
proibisse o gestor de assumir a presidência do conselho que o fiscaliza, visto ser
princípio básico de qualquer sistema de fiscalização que esta seja externa ou, no
mínimo, independente. Com efeito, é de todo incompatível que o gestor, como
presidente, possa manipular as pautas de reunião dos conselhos, sonegar documentos
que lhe são encaminhados em razão da condição de presidente (tais como ofícios do
Ministério Público requisitando informações sobre possíveis irregularidades na gestão)
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e responder pelo acompanhamento direto da movimentação financeira que ele próprio
gere, recebendo os extratos das contas que o banco deve fornecer ao Conselho 103.
Vê-se que, por isso, compatível com o princípio da igualdade (por
absoluta correlação lógica com o fator escolhido para discrímen) seria uma norma que
proibisse essa ocorrência. Todavia, em não existindo, não cabe ao Poder Judiciário,
exercendo controle de constitucionalidade, criar essa vedação, pois nosso sistema é tão-
somente negativo, vale dizer, apenas permite expurgar do sistema dispositivos
inconstitucionais e não o contrário104. Deve-se, no caso, confiar no amadurecimento da
democracia participativa e do controle social para que os próprios conselheiros –
especialmente os usuários que detém, por lei, a metade das vagas no conselho (art. 1°,
§4°, Lei 8.142/90) – tomem essa consciência e evitem eleger como presidente o
secretário que, por sua vez, deve entender que tal situação não afeta sua legitimidade
como gestor nem lhe diminui os poderes que lhe são próprios, pelo contrário, garante
maior transparência e propicia uma participação mais efetiva da sociedade, na medida
em que esta se sente mais valorizada em seu papel, o que tende a contribuir
sobremaneira para a eficiência das políticas de saúde implantadas pela pasta.
Normalmente referido pela doutrina e pela jurisprudência na análise
do princípio da igualdade, também o princípio da proporcionalidade ou da
razoabilidade não recomenda, ao contrário condena a discriminação contestada. O
princípio, que é decorrência natural do Estado Democrático de Direito e do princípio do
devido processo legal, possui ínsita parceria com o princípio da igualdade e é aceito e
estudado em nossa doutrina105, sendo também de aplicabilidade reconhecida e cada vez
mais consagrada pelo Supremo Tribunal Federal106.
103 Justamente para assegurar esse direito básico dos conselhos, o Ministério Público Federal propôs açãocivil pública objetivando obrigar o Banco do Brasil a fornecer esses extratos, tendo havido sentençafavorável do Juiz Federal Odilon de Oliveira, da 3a. Vara Federal de Campo Grande.104 Ver, nesse sentido, o julgamento do Rec. Extraordinário n. 196590/AL, Relator o Ministro MoreiraAlves, ocorrido em 16/04/1996 e publicado no DJ de 14/11/1996, p. 44492.105 LUIZ ROBERTO BARROSO, em sua obra “Interpretação e Aplicação da Constituição”, Ed. Saraiva,3a. Ed, dedica ao princípio um tópico específico no Capítulo II, que trata dos “Princípios de InterpretaçãoEspecificamente Constitucional”, pp. 209-234.106 Na ADIn 2019-MS, julgada em 02/08/2001, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional aLei Estadual n. 1.949/99, do Mato Grosso do Sul, por violação ao princípio em comento, por falta denecessidade da medida, que criava benefício assistencial à criança gerada a partir de estupro,
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Como ensina LUIZ ROBERTO BARROSO:
“O princípio da razoabilidade faz uma imperativa parceria com o princípio da
isonomia. À vista da constatação de que legislar, em última análise, consiste em
discriminar situações e pessoas por variados critérios, a razoabilidade é o parâmetro
pelo qual se vai aferir se o fundamento da diferenciação é aceitável e se fim por ela
visado é legítimo.” 107
O mesmo autor assim resume o conteúdo do princípio:
“O Princípio da Razoabilidade é um mecanismo de controle da discricionariedade
legislativa e administrativa. Ele permite ao Judiciário invalidar atos legislativos ou
atos administrativos quando: (a) não haja relação de adequação entre o fim visado e
o meio empregado; (b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio
alternativo para chegar ao mesmo resultado com menor ônus a um direito individual;
(c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a
medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha.”108
As normas que impõem o gestor como presidente do conselho
afrontam o princípio da razoabilidade tanto pela inadequação entre o meio (considerar
como presidente nato o gestor) e o fim (assegurar ao conselho maior efetividade e
melhor funcionamento109), visto que há, ao contrário, uma contradição interna na
medida em que, ao menos no que respeita à função fiscalizatória, a disposição é
contrária ao fim, quanto pela falta de necessidade , visto que há outras formas de se
assegurar efetividade ao funcionamento do conselho sem o prejuízo identificado, tais
como garantia de secretaria executiva independente e apoio técnico especializado.
Voltando à violação do princípio da igualdade e à doutrina de
BANDEIRA DE MELLO, ainda que restasse superado o segundo critério (necessária
independente da necessidade do beneficiário. LUIZ ROBERTO BARROSO, op. cit., p. 229/30, citainúmeros outros julgados em que o Supremo Tribunal Federal aplicou o princípio: ADIn 526/DF (Min.Sepúlveda Pertence), RE 174.548-7/AC (Min. Carlos Velloso), ADIn 855-2/PR (Min. SepúlvedaPertence), ADIn 1.158-8/AM (Min. Celso de Mello).107 Op. cit., p. 234108 Idem.109 Sequer cabe cogitar dentre as finalidades da norma assegurar uma ingerência, qualquer que seja, dogoverno sobre o conselho, pois tal finalidade afrontaria diretamente o preceito constitucional do art. 198,III.
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correlação lógica entre o fator do discrímen e a desequiparação procedida), o mesmo
não ocorreria com o terceiro (exigência de que a diferenciação de tratamento jurídico
seja fundada em razão valiosa, à luz do texto constitucional, para o bem público). Como
pontifica o autor:
“não é qualquer diferença, conquanto real e logicamente explicável, que possui
suficiência para discriminações legais […] as vantagens calçadas em alguma
peculiaridade distintiva hão de ser conferidas prestigiando situações conotadas
positivamente ou, quando menos, compatíveis com os interesses acolhidos no
sistema […] não podem ser colocadas em desvantagem pela lei situações a que o
sistema constitucional empresta conotação positiva […] a lei não pode atribuir
efeitos valorativos ou depreciativos, a critério do especificador, em desconformidade
ou contradição com os valores transfundidos no sistema constitucional”110
Como visto em vários trechos anteriores deste trabalho, a Constituição
de 1988, fruto maior do processo de abertura democrática vivido após o regime militar,
preocupou-se em assegurar efetiva partipação popular na gestão da coisa pública, vale
dizer, no exercício direto do poder, a ponto de ter sido apelidada de “Constituição
Cidadã”. No que se refere especificamente à saúde, previu a participação da
comunidade dentre as diretrizes do SUS em decorrência de amplo debate público sobre
o modelo de saúde pretendido traduzido na 8a. Conferência Nacional de Saúde, na qual
ficou explicitado que era necessário garantir ampla participação da sociedade não
apenas para democratizar as discussões sobre a condução de uma política pública de
tamanha grandeza, mas também –e especialmente – como forma de garantir uma
adequada fiscalização capaz de reduzir a malversação das verbas aplicadas na saúde.
Admitir, então, que os governantes, na sua natural resistência em
repartir com o povo o poder, garantam subterfúgios para manter conselhos populares
sob seu controle, como é o caso das normas que estabelecem os secretários como
presidentes dos conselhos, é afrontar os fins maiores do ordenamento constitucional.
Fazer isso criando situações de desigualdade entre os conselheiros, afronta diretamente
o princípio constitucional da igualdade. Isso porque, no caso telado, a distinção
instituída em lei (autorizando somente o secretário a ocupar o posto de presidente) não
110 Op. cit., pp. 41/2
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apenas não encontra fundamento em razão valiosa à luz do texto constitucional, para
utilizar as palavras do doutrinador, como confronta seus valores maiores, dentre os
quais a cidadania e a moralidade administrativa.
Vê-se, pois, sob vários aspectos, que o impedimento aos demais
conselheiros para disputar a presidência, afronta diretamente o princípio constitucional
da iguadade.
Ademais, sob um enfoque semelhante, relacionando o princípio da
igualdade ao princípio democrático, cumpre trazer o ensinamento de ANTÔNIO
MAUÉS111, para quem um dos importantes critérios segundo o qual se identifica o
caráter democrático da participação no processo de tomada de decisões políticas é o da
igualdade da participação, que prevê o igual direito de concorrer a cargos eletivos. Em
conseqüência, as regras em comento ferem, a um só tempo, o princípio da participação
democrática e o princípio da igualdade.
Como se não bastassem tantas inconstitucionalidades, com as
disposições combatidas afronta-se também o princípio da moralidade, objeto do
próximo tópico.
IV.c - Inconstitucionalidade por contrariedade ao princípio da moralidade(art. 37, caput)
Lê-se no caput do art. 37 da Constituição Federal:
“Art. 37. A Administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios
de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e também ao
seguinte:”
111 Cf. MAUÉS, Antônio Moreira. Ordem Social: Fundamentos da Democracia Participativa. In:SCAFF, Fernando Facury (coord.). Ordem Econômica e Social: Estudos em Homenagem a AryBrandão de Oliveira. São Paulo: LTr, p. 34.
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Não é a única vez que a defesa da moralidade é explicitamente
defendida no texto constitucional. O art. 5°, LXXIII, legitima qualquer cidadão a
propor ação popular contrar ato lesivo à moralidade administrativa. Sem se referir ao
termo, mas dentro do mesmo ideário, o art. 85, V, considera crime de responsabilidade
do Presidente da República os atos que atentem contra a probidade na administração.
Não obstante o relevo que há décadas a doutrina brasileira, amparada
no pensamento clássico de Maurice Hauriou112, dispensava ao princípio da moralidade,
reconhecendo-o como princípio implícito de nosso ordenamento jurídico, foi a
Constituição Federal de 1988 a primeira a referi-lo expressamente. Tal circunstância
garantiu-lhe autonomia em relação ao princípio da legalidade, ao qual era
freqüentemente associado sob a perspectiva do atendimento à finalidade pública do ato
administrativo (a imoralidade administrativa, então, era uma das hipóteses de desvio de
poder) e ensejou amplo debate voltado a dar-lhe contornos conceituais próprios. Nesses
contornos, manteve-se e ampliou-se a relação entre o Direito e a ética113 e extrapolou-se
a idéia de desvio de poder, dispensando-se a análise da finalidade.
Nesse sentido, MARIA SYLVIA DI PIETRO que, em sua obra
Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988 (São Paulo, ATLAS, 1991,
p. 111), esteve dentre aqueles que primeiro ressaltaram a desnecessidade de se “penetrar
na intenção do agente, porque do próprio objeto resulta a imoralidade”, o que ocorre “quando o
conteúdo de determinado ato contrariar o senso comum de honestidade, retidão, equilíbrio, justiça,
respeito à dignidade do ser humano, à boa fé, ao trabalho, à ética das instituições.”
112 O autor francês é apontado por Hely Lopes Meirelles como o sistematizador do conceito demoralidade administrativa em sua obra Précis Élémentaires de Droit Administratif, Paris, 1926, ondeconferiu à expressão um sentido próprio, distinto da moral comum, segundo o qual o o agente público nãopoderia desprezar o elemento ético de sua conduta, atentando a um conjunto de regras tiradas dadisciplina interior da administração apud MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro.18a. Ed., 1993, p. 83113 Cf. BANDEIRA DE MELLO, Curso de Direito Administrativo . São Paulo: Malheiros, 6a. ed,1995, p. 59 : “De acordo com ele (princípio da moralidade administrativa) a Administração e seus agentestem de atuar na conformidade de princípios éticos”; FREITAS, Juarez. O Controle dos AtosAdministrativos e os Princípios Fundamentais. São Paulo, Malheiros, 1999, p. 68 e DI PIETRO, MariaSílvia. Discricionariedade Administrativa na Constituição, São Paulo: Atlas, 1991.
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MÁRCIA NOLL BARBOZA, em sua monografia sobre o tema 114,
distingue os princípios da legalidade e da moralidade, utilizando como critério
justamente a observância de princípios éticos:
“[…] Ainda, o princípio da moralidade, exigindo comportamento ético da
Administração, cria um canal de abertura do direito à moral, remanescendo aberto e
sempre em formação o significado do standard moralidade.
[…] Ademais, o princípio da legalidade, enquanto exigência de juridicidade ou
legalidade substancial, não contém nem abarca o da moralidade. Note-se como são
diversos os seus mandados: o primeiro determina à Administração Pública a
observância do direito; o segundo lhe ordena a observância de parâmetros éticos”
Esse entendimento vem sendo consagrado pelo SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL que reconhece como corolário do princípio constitucional da
moralidade a necessária observância de parâmetros ético-jurídicos na atividade estatal,
qualquer que seja o domínio institucional de sua incidência, admitindo, dessa forma, o
controle de constitucionalidade das leis que afrontam o referido princípio. Nesse
sentido, o lapidar voto do Ministro CELSO DE MELLO, proferido no julgamento da
ADIn n. 2.662-MA, assim redigido:
“O PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA - ENQUANTO VALOR
CONSTITUCIONAL REVESTIDO DE CARÁTER ÉTICO-JURÍDICO -
CONDICIONA A LEGITIMIDADE E A VALIDADE DOS ATOS ESTATAIS.
A atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional de sua incidência, está
necessariamente subordinada à observância de parâmetros ético-jurídicos que se
refletem na consagração constitucional do princípio da moralidade administrativa.
Esse postulado fundamental, que rege a atuação do Poder Público, confere
substância e dá expressão a uma pauta de valores éticos sobre os quais se funda a
ordem positiva do Estado.
É por essa razão que o princípio constitucional da moralidade administrativa, ao
impor limitações ao exercício do poder estatal, legitima o controle jurisdicional de
todos os atos do Poder Público que transgridam os valores éticos que devem pautar o
comportamento dos agentes e órgãos governamentais.
114 BARBOZA, Márcia Noll. O Princípio da Moralidade Administrativa. Porto Alegre: Livraria doAdvogado Editora, 2002, p. 122.
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Na realidade e especialmente a partir da Constituição promulgada em 1988, a estrita
observância do postulado da moralidade administrativa passou a qualificar-se como
pressuposto de validade dos atos que, fundados ou não em competência
discricionária, tenham emanado de autoridades ou órgãos do Poder Público,
consoante proclama autorizado magistério doutrinário (cita)”
Na referida ADIn, o Supremo Tribunal Federal decidiu, à
unanimidade, suspender, com eficácia ex tunc (retroativa), a Lei do Estado do Maranhão
n. 7.493/99, onde se autorizava o Governo do Estado a incluir no edital de venda do
Banco Estadual as disponibilidades de caixa do tesouro estadual, ou seja, autorizando o
depósito dos recursos públicos em bancos não oficiais. Na decisão, foi citado o
precedente da ADIn n. 2600-ES, relatora a Ministra ELLEN GRACIE, onde se decidira
da mesma forma em caso onde a mesma disposição se fizera constar de emenda
constitucional estadual (EC n. 37/2002, que dera nova redação ao art. 148 da
Constituição do Estado do Espírito Santo). Em ambos os julgados considerou-se
também a afronta ao mandamento do art. 164, §3°, do texto constitucional (“As
disponibilidades de caixa da União serão depoisitadas no Banco Central; as dos Estados,
do Distrito Federal, dos Municípios e dos órgãos ou entidades do Poder Público e das
empresas por ele controlodas, em instituições financeiras oficiais, ressalvados os casos
previstos em lei”), sempre relacionando-o com o art. 37, caput, na medida em a norma
daquele artigo possui inequívoca preocupação com a moralidade administrativa.
CELSO DE MELLO chegou mesmo a observar que igualmente a norma federal referida
no §3° do art. 164 deverá atentar o critério da moralidade administrativa, sob pena de
incorrer no mesmo vício das normas estatduais.
Interessante notar, a partir dos julgados referidos, que nem mesmo
emenda constitucional estadual está dispensada da observância do princípio da
moralidade. Afasta-se, assim, qualquer alegação de que o princípio só se destina ao
controle dos atos administrativos do Estado. Não. Como declarou o Ministro CELSO
DE MELLO, toda a atividade estatal – nela compreendida a legislativa – sujeita-se ao
referido princípio. O atentado ao princípio da moralidade retira a validade do ato: se de
natureza administrativa, cabe a declaração de sua nulidade; se de natureza legislativa,
cabe a declaração de inconstitucionalidade, que possui o mesmo efeito. Tem-se, pois,
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que o princípio da moralidade impõe a observância de princípios éticos não apenas no
que refere aos atos administrativos, mas também às leis e emendas constitucionais.
Ora, à toda evidência, ofende à ética jurídica – e por conseqüência o
princípio da moralidade - o fiscalizado presidir o órgão que o fiscaliza. É princípio
básico de uma fiscalização independente a isenção de seus integrantes, razão pela qual
nosso direito é farto em exemplos de proibições nesse sentido115.
Não por outra razão o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL julgou
improcedente a ADIn n. 1.723-6/RS, proposta pela Confederação Nacional dos
Transportes contra dispositivos da Lei n. 10.848/96 do Estado do Rio Grande do Sul,
que dispôs sobre autorização e concessão dos serviços públicos de inspeção e segurança
veicular vedando, em seu artigo 7°, a participação de empresas do ramo automobilístico
(dentre as quais as transportadoras) e outras direta ou indiretamente a ela relacionadas
nos processos licitatórios a serem realizados para a concessão dos serviços previstos na
lei.
A Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, nas informações que
prestou ao Relator, Ministro Carlos Velloso, ressaltou que
“d) a iniciativa de definir as empresas impedidas de participar do processo licitatório
teve a finalidade de impossibilitar a participação dos que têm interesse próprio muito
forte na área, preferindo-se assegurar a igualdade de condições a todos os
interessados.”
Com a mesma preocupação, ressaltou o Governador do Estado que “
115 Exemplificando: a lei 9.427/96, que criou a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), cujafinalidade é “fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica”, emseu artigo 6° impede de exercer cargo de direção na agência a pessoa que for acionista ou sócio, membrode conselho de administração ou empregado das empresas sob regulamentação ou fiscalização daANEEL. No mesmo sentido, a Lei 9.782/99, que criou a ANVISA (Agência Nacional de VigilânciaSanitária) que veda aos dirigentes da agência, em seu artigo 13, §1°, terem interesse direto ou indireto emempresa relacionada à área de atuação da Vigilância Sanitária. Na área dos tribunais de contas destaca-seo Código de Ética dos membros do Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul, instituído pela Resolução557/2000, que em seu art. 7°, VI, proíbe seu membro de “aceitar participar de conselhos ou comissões deórgãos ou entidades jurisdicionadas pelo Tribunal de Contas”. Como esses exemplos existem váriosoutros, todos com uma preocupação em comum: garantir isenção daquele que fiscaliza.
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b) tratando-se de serviços de inspeção veicular, é fácil de concluir que o
transportador, como hipotético prestador daqueles serviços, não teria isenção, nem
imparcialidade, para vistoriar seus próprios veículos;”
O Ministro CARLOS VELLOSO, após referir os fundamentos
trazidos pela Assembléia e pelo Governo do Estado, acima transcritos, sustentou seu
entendimento de que a restrição se adequava aos parâmetros constitucionais:
“Ora, se a licitação tem por finalidade a escolha de concessionária dos serviços
públicos de inspeção de segurança de frota de veículos do Estado, parece-me
adequada a exclusão da licitação de empresas do ramo automobilístico e das
transportadoras, dado que estas comumente são proprietárias de muitos veículos. A
elas seria possível vistoriar seus próprios veículos e os veículos de empresas
transportadoras concorrentes? Com tal providência, não me parece ocorrer ofensa
ao princípio da igualdade, mesmo porque está-se tratando desiguais desigualmente
(C.F., art. 5°, caput) e é exatamente assim que se realiza o princípio isonômico” (o
negrito não consta do original)
Como já registramos no tópico anterior, admitir-se-ía, inclusive, lei
que proibisse o gestor de presidir o Conselho. Todavia, inexiste tal lei e não cabe ao
Poder Judiciário criá-la, visto que nosso sistema de controle de constitucionalidade é
negativo, somente cabendo expurgar as normas inconstitucionais, como é o caso das
que prevêem o gestor como presidente.
O Ministro CARLOS VELLOSO, em seu voto, igualmente fez
referência ao princípio da moralidade , antes de concluir pela improcedência da ADIn:
“Ademais, no caso, a licitação tem por finalidade a escolha de concessionária para a
prestação de serviço público, prestação essa que deve observar o princípio da
moralidade administrativa (CF, art. 37).”
No mesmo julgamento, o Ministro NELSON JOBIM, ao acompanhar
o voto do relator, assim se manifestou:
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“ […] No caso das transportadoras, estar-se-ía atribuindo à própria transportadora
inspecionar seus próprios veículos para viabilizá-los, produzindo um laudo dizendo
se podem ou não continuar circulando. […] Imagine-se o que poderia daí ocorrer.”
Na hipótese estudada nesta monografia, as leis contestadas atribuem
ao fiscalizado a presidência do órgão que aprova ou não suas contas, inclusive para fins
de recebimento de mais recursos. Imagine-se o que daí ocorre!
Depois de tantas critícas uma ressalva se impõe. Toda a oposição que
neste estudo se faz a respeito da moralidade refere-se à “presidência nata”, não à
simples participação do gestor como conselheiro. Não há inconveniente nela ou, se há, a
ponderação própria do princípio da razoabilidade (referido no tópico anterior) lhe
assegura a subsistência.
Primeiro, porque os conselhos de saúde não possuem tão-só funções
fiscalizatórias (relacionadas ao controle social), fonte das incompatibilidades, mas
também funções deliberativas na formulação de estratégias das políticas de saúde
(participação). Para estas últimas é extremamente conveniente a participação do gestor
no órgão colegiado. Seja em razão de seus conhecimentos na área, seja em razão de sua
legitimidade advinda do Chefe do Executivo (eleito pelo voto popular), seja em razão de
sua função executiva (é ao gestor que caberá a implementação das políticas
estabelecidas no Conselho), o gestor tem muito a contribuir para essas deliberações,
inclusive para assegurar-lhes a maior efetividade possível, sempre em benefício da
comunidade envolvida.
Ademais, o conselho é órgão colegiado, sendo assegurada a paridade
dos usuários em relação aos demais segmentos. Nesse contexto, é perfeitamente
possível garantir a independência e efetividade do controle social se o presidente não for
o gestor, mesmo que participe do Conselho.
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ALGUMAS PROPOSTAS PARA A CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
COMO DIRETRIZ DO SUS E O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Desde meados da década de 80, o Brasil vêm-se transformando em um
Estado Democrático por meio de um projeto que se legitimou e juridicizou na
constituinte de 1987/88, responsável pela promulgação de uma Constituição merecedora
do título de “Cidadã”, tamanha sua preocupação com a cidadania e a participação
popular, institutos propositadamente consagrados já no primeiro artigo do Texto. Tal
localização anunciava de forma inequívoca o destacado valor que a democracia
participativa deveria assumir na construção de uma sociedade justa e solidária, bem
como na promoção do bem de todos, objetivos da República Federativa do Brasil (art.
3°), para o que a efetiva implementação dos preceitos consagrados no Título da Ordem
Social se faz imprescindível.
Nesse contexto, a trajetória da elaboração do modelo de atenção à
saúde, através de um sistema único com diretrizes previstas no texto constitucional, está
dentre as mais democráticas e legítimas mobilizações cidadãs da história brasileira pós-
ditadura militar, com reflexos nas relações sociais e políticas de nossa nação ainda não
inteiramente assimilados. O Movimento de Reforma Sanitária e seu ponto culminante, a
8a. Conferência Nacional de Saúde, com seus quase cinco mil participantes reunindo
lado a lado profissionais da área e representantes da sociedade civil organizada,
realizada em 1986, alvorecer da abertura democrática, asseguraram na Constituição
Federal de 1988 conquistas que ainda hoje não foram inteiramente efetivadas,
fundamentais na edificação de um verdadeiro Estado Democrático de Direito. A
participação da comunidade como diretriz do SUS é uma dessas conquistas, cumprindo
àqueles que acreditam na nova maneira de conceber o Estado Brasileiro idealizado em
1988 empenhar todos os esforços possíveis para que ela se consolide em toda sua
plenitude.
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Essa mesma Constituição que estabeleceu tais diretrizes fez do
Ministério Público uma instituição a um só tempo comprometida com a defesa do
regime democrático (art. 127, CF) e incumbida de zelar pelo efetivo respeito dos
poderes públicos e dos serviços de saúde (públicos ou privados) aos direitos
assegurados na Constituição, dentre os quais o da participação da comunidade como
diretriz do SUS (artigos 129, II, c/c 197 e 198, III, todos da Constituição da República).
Por tais razões tem a Instituição uma missão destacada no implemento dos princípios
norteadores do SUS e, em especial, no que se refere a sua democratização. Deve buscar,
com os instrumentos de que dispõe, contribuir para a efetivação do controle social e da
participação popular na formulação de políticas públicas da saúde, equivale dizer,
contribuir para a implementação da participação da comunidade como diretriz do SUS
nos termos da Lei 8.142/90. Nunca se alcançará esse objetivo sem conselhos de saúde
atuantes, estruturados (com capacidade efetiva de funcionamento, tanto no que respeita
a recursos econômicos e humanos) e independentes.
Em vários lugares de nosso país – e o Mato Grosso do Sul é um deles
– combativos e exemplares cidadãos dão inúmeras provas de amadurecimento
democrático e consciência do fundamental papel que desempenham na construção do
Sistema Único de Saúde consagrado na Carta de 1988. Sentem-se, todavia, cerceados
nessa missão por uma mentalidade estatal anacrônica que lhes restringe os meios
necessários ao seu pleno funcionamento e lhes proíbe (!) de disputar, no voto, a
presidência dos conselhos.
A restrição dos meios necessários deve ser combatida em várias
frentes. A falta de informações sobre a estrutura do Sistema e os direitos por ele
assegurados demanda constantes capacitações dos conselheiros, difusoras de
conhecimentos que tendem a se espalhar pelas respectivas comunidades assegurando
conscientização cidadã e viabilizando efetiva fiscalização dos serviços prestados, sendo
de todo recomendável que o Ministério Público interaja com os conselheiros nesse
processo. Contra o cerceamento de informações contábeis sobre a aplicação dos
recursos públicos, são plenamente cabíveis ações civis públicas como a ajuizada pelo
Ministério Público Federal no Mato Grosso do Sul para obrigar o Banco do Brasil a
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fornecer ao Conselho de Saúde mensalmente os extratos bancários das contas
vinculadas ao Sistema Único em Saúde116, não se descartando ações de prestação de
contas ou mesmo de obrigações de fazer (ou não fazer) objetivando livre acesso dos
conselheiros a dados contábeis, assegurando-se assim a necessária transparência. Se o
entrave referir-se à falta de dotações orçamentárias ou destinação de pessoal mínimo de
apoio ao conselho (e não a seu fiscalizado, o secretário de saúde) impende buscar a
edição de leis ou a destinação de recursos que assegurem esse mínimo fundamental, seja
por legítima pressão política dos conselheiros com amparo na sociedade eleitora dos
representantes do povo, tanto no Executivo como no Legislativo, seja em um processo
de negociação com esses mesmos representantes. Ações judiciais com tal finalidade,
embora não sejam descartadas na medida que se trata de interesse coletivo de relevância
social – efetivo funcionamento de conselhos criados por lei, lesado em razão da falta de
condições mínimas – não são, a princípio, a forma mais adequada de solucionar a
questão, visto que nosso Poder Judiciário ainda não firmou posição pela possibilidade
de se discutir em juízo a destinação de verbas orçamentárias. Todas essas providências
não apenas contribuirão sobremaneira para o aprimoramento de nossa democracia,
como tendem a assegurar transparência e probidade no trato da coisa pública o que,
espera-se, seja um compromisso de todo governante.
Por sua vez, a proibição de qualquer conselheiro disputar a
presidência do órgão colegiado, prevista em dispositivos normativos que estabelecem a
condição de presidente nato do ministro ou secretário de saúde, pode e deve ser objeto
de ações diretas de inconstitucionalidade, para as quais são legitimados o Procurador-
Geral da República (Ministério Público Federal) perante o Supremo Tribunal Federal
contra leis estaduais em confronto com a Constituição Federal ou contra leis ou decretos
federais na mesma hipótese, e os Procuradores-Gerais de Justiça (Ministério Público
Estadual), quando o confronto for de lei estadual ou municipal perante a Constituição
Estadual. Essa atuação pode ser provocada por qualquer membro da Instituição que
identifique tais situações nas localidades em que atue.
116 A ação foi ajuizada pela Procuradora da República Maria Cristina Manella Cordeiro, em 1999, perantea 3ª Vara Federal de Campo Grande, autuada sob o número 1999.60.07541-9 e julgada procedente peloJuiz Federal Odilon de Oliveira, confirmando a antecipação de tutela antes concedida.
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O presente estudo objetivou subsidiar tais providências e fornecer
elementos de discussão que não descartem a possibilidade de que os próprios
parlamentos revejam as normas respectivas. Por isso foi aprofundadamente
demonstrado que a presidência nata atribuída ao ministro ou aos secretários de saúde
(justamente os fiscalizados pelos conselhos) afronta os dispositivos constitucionais que
asseguram a cidadania e a participação direta do povo no exercício do poder,
especialmente no que se refere à participação da comunidade como diretriz do SUS.
Demonstrou-se, outrossim, que tal situação contraria também os princípios da
igualdade, da proporcionalidade e da moralidade.
Nessa missão não se deve esperar nem temer o conflito, tampouco
pressupor que os conselhos não funcionarão ou não serão respeitados sem que o
secretário ou ministro os presidam ou que estes não comparecerão às reuniões ou não
valorizarão o papel dos conselhos se participarem apenas como conselheiros. Tais
preocupações menosprezam o estágio da democracia brasileira e a capacidade dos
conselheiros de, sempre que necessário e cabível, garantirem com os gestores uma
relação de respeito e cooperação. Por outro lado, não se pode esquecer que as leis – e
agora a própria Constituição Federal (art. 77, §3°, do ADCT) – conferem tantos e tão
importantes poderes aos conselhos, muitos deles imprescindíveis ao repasse de verbas
(tão necessárias aos gestores), que também ao gestor é fundamental manter um bom e
cooperativo relacionamento com os Conselhos. Ou seja, não se trata de contar com a
boa vontade dos gestores, mas de verdadeira negociação democrática, onde os
conselhos só terão a ganhar, inclusive no que respeita à conquista de uma estrutura
adequada.
A construção de um efetivo Estado Democrático de Direito onde seja
ouvida a voz da participação cidadã supõe evolução e aprendizado constantes em nossa
ainda incipiente democracia. Cumpre à toda sociedade contribuir com este processo,
possuindo o Ministério Público destacada missão, seja participando de capacitações de
conselheiros e, assim, difundindo informações, seja emprestando seu instrumental
jurídico para viabilizar o efetivo e independente funcionamento dos conselhos.
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ANEXOS
I – Relatório Final da 8a. Conferência Nacional de Saúde
II – Atas da 2a, 11° e da 12° reuniões da Subscomissão de Saúde, Seguridade e Meio
Ambiente da Comissão da Ordem Social na Constituinte de 1988, com a audiência de
importantes entidades ligadas ao Movimento de Reforma Sanitária.
III – Anteprojeto aprovado da Subcomissão de Saúde, Seguridade e Meio Ambiente da
Comissão, acompanhado da apresentação pelo relator, constituinte Carlos Mosconi
IV – Anteprojeto aprovado na Comissão da Ordem Social, acompanhado da
apresentação pelo relator, constituinte Almir Gabriel
V – Emenda popular n. 050, apresentada na Constituinte pelo Conselho Federal de
Medicina, pela Federação Brasileira de Nutrição e pelo Sindicato dos Enfermeiros do
Distrito Federal, propondo a redação dos artigos pertinentes à saúde
VI – Emendas apresentadas e aprovadas no Plenário da Constituinte conferindo a
redação final do art. 198 da Constituição da República.
VII – Votação da redação final do art. 198 na Constituinte de 1988
VIII - Lei 8.142/90
IX – Lei Estadual n. 1.152/91, que cria o Conselho Estadual de Saúde do Mato Grosso
do Sul, ainda em vigor
X – Decreto Estadual n. 6.345/92, que regulamenta a Lei Estadual n. 1152/91, que cria
o CES/MS
XI – Resolução CNS 033/92
XII – Deliberação CES/MS n. 46/97
XIII – Deliberação CES/MS n. 50/97
XIV – Lei Municipal e regulamentação relativas ao Conselho de Saúde de Campo
Grande
XV – Lei Municipal e regulamentação relativas ao Conselho de Saúde de Corumbá
XVI – Lei Municipal e regulamentação relativas ao Conselho de Saúde de Dourados
XVII – Lei Municipal e regulamentação relativas ao Conselho de Saúde de Três Lagoas