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- A PARANÓiA DO SOBERANO, UMA INCURSÃO NA ALMA DA POLíTICA DE VALTON DE MIRANDA LEITÃO O estudo sobre o enigma do poder e sua relação com subjetividade con- tinua fecundo nos dias atu- ais. E por isso que vem em boa hora a polêmica levan- tada por um psiquiatra e psi- canalista e militante político de Fortaleza. Trata-se do livro de Valton de Miranda Leitão, lançado entre nós quase no Final do ano passado com o sugestivo e provocador nome: A Paranóia do Soberano, Uma Incur- são na Alma da Politica; publicado pela Vozes, de Petrópolis, e lançado aqui e em Porto Alegre. Não se trata de um analista entretido so- mente na emaranhada e, por vezes, tediosa es- cuta no cotidiano da clínica. Trabalho, aliás, árduo e silencioso, onde se escutam o desejo, as misérias e grandezas da condição humana. Valton é, sobretudo, alguém com indigna- ção ética, que passou, como nos informa, 30 anos na atividade clínica "como psiquiatra e terapeuta e como ativista político de esquerda". Foi escu- tando esses dois registros, "nessa dupla condi- ção", como faz questão de enfatizar, que passou a "observar os fenômenos sociais, históricos e políticos na sua interação com o desejo, a paixão e a loucura humana". E revela, com certa ponta de ingenuidade, como todos os que se imiscuem na política, que "durante este período constatei e impressionei-me, algumas vezes atônito, com o nível de irracionalidade que podem alcançar a práxis política e o exercício do poder" Cp. 23). De sua escuta clínica e' envolvido na trama da militância política, o autor desenhou o que viu na "alma" da política. Olhos atentos para o chão onde pisava - a política nacional, a política interna e os mo- vimentos culturais regionais - e embebido das leituras dos clássicos, tentou costurar explica- ções que lhe permitissem compreender essa alma tormentosa do homem, enquanto envolvido na trama do poder. Até onde foi o autor? Terá conseguido, ao longo de seus 30 anos de reflexão, formular uma reflexão fecunda sobre a alma da política? Nenhum discurso é pleno capaz de dizer tudo. Mas Valton resolveu aceitar o desafio e nos brinda com a oportunidade de entrar no debate sobre uma temática tão pouco discutida em Fortaleza. Seu trabalho é ambicioso. Deixa impres- sos nos escritos sua paixão e o ímpeto iluminista, às vezes desejando "salvar" a razão Chegeliana?) e o legado marxista. Os meus comentários não têm a pretensão de abordar a gama de questões suscitadas em suas análises. Questões, aliás, amplas demais, que vão da ciência política, passando pela filosofia e a psicanálise. Não se trata, também, de fazer uma resenha com elogios fáceis, mas tomar as suas reflexões como uma oportunidade de debate, ten- do sempre como referência as suas idéias. A Paranóia do Soberano - Uma Incursão na Alma da Política. Petrópolis: Vozes, 2000. POR BENEDITO JOSÉ DE CARVALHO FILHO Sociólogo, doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará. 146 REVISTA DE CI~NCIAS SOCIAIS v.32 N. 1/2 2001

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Page 1: A PARANÓiA DO SOBERANO, UMA INCURSÃO NA ALMA DA … · nimo de conhecimento dessa vertente teórica é difícil compreender o que o autor quer nos di- ... de tipo messiânica. É

-A PARANÓiA DO SOBERANO, UMA INCURSÃO

NA ALMA DA POLíTICA

DE VALTON DE MIRANDA LEITÃO

Oestudo sobre o enigmado poder e sua relaçãocom subjetividade con-

tinua fecundo nos dias atu-ais. E por isso que vem emboa hora a polêmica levan-tada por um psiquiatra e psi-canalista e militante políticode Fortaleza. Trata-se do livro de Valton deMiranda Leitão, lançado entre nós quase no Finaldo ano passado com o sugestivo e provocadornome: A Paranóia do Soberano, Uma Incur-são na Alma da Politica; publicado pela Vozes,de Petrópolis, e lançado aqui e em Porto Alegre.

Não se trata de um analista entretido so-mente na emaranhada e, por vezes, tediosa es-cuta no cotidiano da clínica. Trabalho, aliás,árduo e silencioso, onde se escutam o desejo,as misérias e grandezas da condição humana.

Valton é, sobretudo, alguém com indigna-ção ética, que passou, como nos informa, 30 anosna atividade clínica "como psiquiatra e terapeutae como ativista político de esquerda". Foi escu-tando esses dois registros, "nessa dupla condi-ção", como faz questão de enfatizar, que passoua "observar os fenômenos sociais, históricos epolíticos na sua interação com o desejo, a paixãoe a loucura humana". E revela, com certa pontade ingenuidade, como todos os que se imiscuemna política, que "durante este período constatei eimpressionei-me, algumas vezes atônito, com onível de irracionalidade que podem alcançar apráxis política e o exercício do poder" Cp. 23).

De sua escuta clínicae' envolvido na trama damilitância política, o autordesenhou o que viu na"alma" da política. Olhosatentos para o chão ondepisava - a política nacional,a política interna e os mo-

vimentos culturais regionais - e embebido dasleituras dos clássicos, tentou costurar explica-ções que lhe permitissem compreender essa almatormentosa do homem, enquanto envolvido natrama do poder.

Até onde foi o autor? Terá conseguido, aolongo de seus 30 anos de reflexão, formular umareflexão fecunda sobre a alma da política?

Nenhum discurso é pleno capaz de dizertudo. Mas Valton resolveu aceitar o desafio enos brinda com a oportunidade de entrar nodebate sobre uma temática tão pouco discutidaem Fortaleza.

Seu trabalho é ambicioso. Deixa impres-sos nos escritos sua paixão e o ímpeto iluminista,às vezes desejando "salvar" a razão Chegeliana?)e o legado marxista.

Os meus comentários não têm a pretensãode abordar a gama de questões suscitadas emsuas análises. Questões, aliás, amplas demais, quevão da ciência política, passando pela filosofia ea psicanálise. Não se trata, também, de fazer umaresenha com elogios fáceis, mas tomar as suasreflexões como uma oportunidade de debate, ten-do sempre como referência as suas idéias.

A Paranóia do Soberano - Uma Incursão na Almada Política. Petrópolis: Vozes, 2000.

POR BENEDITO JOSÉ DE CARVALHO FILHO

Sociólogo, doutorando em Sociologiapela Universidade Federal do Ceará.

146 REVISTA DE CI~NCIAS SOCIAIS v.32 N. 1/2 2001

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A TRAJETÓRIA E AS SUAS MARCAS

Olhar para o soberano e mergulhar na"alma do poder", como sugere o autor, não sefaz sem uma filiação teórica definida. É verdadeque o livro apresenta uma gama de autores quevão da psicanálise à ciência política, história, fi-losofia e literatura. Das 117 obras citadas, cercade 37 são de psicanálise (em sua maioria deorientação kleiniana), 67 de ciência política, so-ciologia e história, e cerca de 14 de filosofia eliteratura. O eixo norteador do livro, no entan-to, como é possível perceber numa leitura maisatenta, é o pensamento kleiniano; Bion e MelanieKlein, especialmente, linha de orientação teóri-ca com que Valton trabalha clinicamente.

A psicanálise em Fortaleza é de formaçãomuito recente. Os primeiros grupos de estudo co-meçam a se formar e estudar a psicanálise muitotimidamente na década de 1970. Somente a partirde 1984-86 é que ela vai ter uma melhor visibilida-de, mas marcada com forte orientação lacaníana.'

Acho importante remontar e relembrar umpouco esse aspecto, pois nos meios (pequenos)lacanianos de Fortaleza é comum a ênfase teóri-ca em uma só direção, como se a "psicanálisepura"se reduzisse só ao lacanismo, às vezes lidocomo se fosse a linha mais correta, impedindodessa forma o diálogo com outras correntes, comoos kleinianos, e os que seguem orientações dife-rentes, muitas vezes ignorados no debate. Isso évisível nos grupos de estudo e nos próprios cur-sos de psicologia, onde pouco se estuda deMelanie Klein e quase se ignora Bion.

Em razão disso, creio que o livro de Valtonparece pouco acessível para muitos. Sem o mí-nimo de conhecimento dessa vertente teórica édifícil compreender o que o autor quer nos di-zer, polemizando-se somente com os autoresmais conhecidos no círculo acadêmico.

Quem são esses dois autores que marcamo pensamento de Valton? É dificil em poucaslinhas expor seus pensamentos.

Melanie Klein (1892-1960) foi discípula deFreud, apesar de não o ter seguido de forma

mais ortodoxa, manteve uma certa reverênciapara com o mestre. Foi uma das pioneiras daanálise de criança, em uma época em que sedizia ser isso impossível. Suas polêmicas comAna Freud foram marcadas por fortes debatesque quase a deixou isolada.

Para ela a brincadeira era equivalente àsfantasias e o ato de brincar dava acesso ao mun-do interno da criança, à sua sexualidade eagressividade. Em torno delas se instaurava umarelação transferencial-contra-transferencial entrecriança e analista.

A pulsão de morte tem forte acento emsua teoria, achado de Freud não tão aceito nomeio psicanalítico da época. Para ela a angústiaé conseqüência direta da ação da pulsão de morteno seio do organismo.

Como base nesses pressupostos, ao invésde utilizar a idéia de "fases", como fez Freudpara descrever o desenvolvimento da criança,usou a idéia de "posição". A "posição esquizo-paranóide", que traduziria os quatro primeirosmeses de existência é caracterizada por umaunião entre pulsões sexuais e as pulsões agres-sivas, por um objeto vivido como parcial eclivado em "bom" (gratíficador) e "mau"(frustrador), Na "posição esquizo-paranóide",como descreve Hanna Segal.? "a angústia domi-nante provém do temor de que o objeto, ou obje-tospersecutórios penetrem no eu, esmagando oobjeto ideal e o self" Dois mecanismos se mani-festam e são dominantes nessa "posição": aintrojeção e a projeção.

Em seguida, viria a posição "depressiva",superada por volta do final do primeiro ano. Oobjeto já não é parcial, podendo ser apreendidopela criança como total, a clivagem "bom" e"mau". A angústia, nessa posição, está ligada aoterror de perder e destruir a mãe. Posteriormen-te, em face de suas angústias, a criança desen-volve vários tipos de defesa e de atividadesreparatórias, que constituem a primeira fonte decriatividade e de sublimação. A posição "esquizo-paranóide" e a posição "depressiva" voltam a sefazer presentes posteriormente na vida, em es-

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pecial no adulto acometido de paranóia, deesquizofrenia ou de estados depressivos.

Não menos importante no pensamento deKlein, o trabalho sobre a inveja, onde ela escre-veu um dos mais brilhantes estudos já produzi-dos sobre o assunto.ê

É de Wilfred Ruprech Bion (1897-1979),esse psicanalista nascido na Índia e trazido paraa Inglaterra, onde concluiu seus estudos na Uni-versidade de Oxford e que depois volta-se paraa psicanálise, sob a influência de Melanie Klein,que Valton vai fundamentar a sua análise daparanóia na política.

Bion, aliás, conheceu a guerra e a para-nóia de perto, pois serviu o Exército como mé-dico psiquiatra. Lá aprendeu com os grupos derecuperação o problema da psicose grupal eescreveu, a partir dessa experiência, o famosolivro chamado Experiência Com Grupos, ondevai trabalhar a psicose tal como se manifestanos indivíduos quando estão em interação. Ali,como diz o próprio Bion, se convenceu "daimportância central dos teorias kleinianas daidentificação projetiua e da ação recíproca exis-tente entre as posições esquizoparanõides edepressiva ".3 O que revela como seus conceitose sua teoria estão indissociavelmente ligada àteoria kleiniana.

Valton toma os conceitos de Bion, em es-pecial os pressupostos básicos, onde vai funda-mentar o núcleo paranóico dos agrupamentos,como a experiência da esquerda nos anos 80,quando chega ao poder municipal e fenômenoscomo o do Padre Cícero e Antônio Conselheiro.

Bion desenvolveu a idéia de uma menta-lidade grupal como uma unidade que se opõepor vezes aos desejos individuais. O grupo, nes-se sentido, não é a soma de consciências indivi-duais, mas possui uma alma, se assimpoderíamos dizer, e essa mentalidade grupalrepresenta um continente para os indivíduos quea compõe. Seus conteúdos são pressupostos debase, imensas emoções fundamentais.

A psicose, para ele, não é um fenômenosomente individual, mas desenvolve-se nas re-

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lações com os outros, através das maciças iden-tificações projetivas.

A idéia é aparentemente simples:Somos seres essencialmente grupais, polí-

ticos, no sentido de que pertencemos a eles.Nenhum indivíduo, ainda que esteja isolado,pode ser considerado marginal em relação a umgrupo.

Quando trabalhava como diretor do setorde reabilitação de um hospital psiquiátrico du-rante a segunda guerra mundial começou a tra-tar a reabilitação como uma tarefa grupal, epassou a desenvolver a hipótese de uma cultu-ra do grupo, ou de uma mentalidade grupal naspessoas quando estão em grupo. Essa idéia deuma mentalidade grupal é um formulação bási-ca para a pesquisa sobre fenômenos grupais.

É a partir desse pressuposto que ele ela-bora a idéia de suposto básico, que é um termoque qualifica de mentalidade grupal e está con-figurada por emoções intensas de origem primi-tiva, consideradas como básicas; por este motivo.

Expressam-se através de fantasias grupais,do tipo onipotente ou mágico, relacionados como modo de obter seus fins ou satisfazer seusdesejos. Esses supostos básicos são três:

O primeiro chamado de suposto básico dedependência, ou seja, o grupo acredita que estáreunido para que alguém proveja a satisfaçãode todas as suas necessidades e de todos os seusdesejos, alguém de que o grupo depende deuma forma absoluta. E a crença numa deidadeprotetora, cuja bondade, poder e sabedoria nãose põem em dúvida. Algo semelhante ao tipo"tradicional" de autoridade, formulada por Webere ressaltada por Valton. Conselheiro desempe-nhou esse papel, assim como Padre Cícero. Nostempos atuais desempenham esses papéis os li-deres das seitas religiosas.

O suposto básico de ataquelfuga, consistena convicção grupal de que existe um inimigo(os judeus, de Hitler; os "traidores", na épocado Stalin; os "diferentes", nos tempos atuais etantos outros mais, reais e imaginários) e que énecessário atacá-lo ou fugir dele. O mau está

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projetado fora de mim e para isso só restam duasalternativas: atacar e destruir o "inimigo", ouevitá-Io (fugir).

O suposto básico do acasalamento é a cren-ça coletiva e inconsciente, de que quaisquer quesejam os problemas e necessidades atuais dogrupo, um fato futuro ou um ser ainda por nas-cer, os resolverá, quer dizer, há uma esperançade tipo messiânica. É a esperança de um salva-dor do grupo, semelhante ao "povo de Israel",com a vinda de um Senhor, ou de um grupopolítico que sonha que apareça um novo Marx,ou um novo Lênin, que conduza as massas nes-ses tempos de heteronomia social.

Como chama atenção um comentado r deBíon, "todos os supostos básicos são estados emo-cionais tendentes a evitarfrustrações inerente aoaprendizado por experiência, aprendizado queimplica esforço, dor e contato com a realidade".

Bion formulou a hipótese de uma parteda personalidade que conviveria com os outros.Vários fatores essenciais distinguiriam a perso-nalidade psicótica: a importância da identifica-ção projetiva, a clivagem e a destruição do eu.O psicótico, incapaz de pensar símbolos, estáimpossibilitado do sonhar.

É dele, também, a idéia da "grade", poucodesenvolvida por Valton em seu livro, que com-preende um eixo vertical composto de colunasde A-H e de um eixo horizontal numerado de 1a 6, mas que pode ser prolongado indefinida-mente. Esse eixo horizontal se refere ao conteú-do, à comunicação entre o analista e seu paciente;o eixo vertical, por sua vez, registra o grau decomplexidade do enunciado.

As teorias e as obras de Bion são ricas enão podem ser resumidas em algumas linhas.Constituem um dos pensamentos na psicanálisemais originais desses últimos 50 anos.

Da sua vivência como militante político ede sua escuta clínica, e com o referencial teóri-co desses autores, Valton percebeu que essesaspectos obscuros da política podem ser expli-cados. E lembra os episódios que ocorreram aolongo dos anos 80, quando Maria Luiza

Fontenelle foi eleita prefeita pelo PTrabalhadores.

A situação que acabo de descrever. e native efetiva participação, apresentou-se a -guma oportunidades de modo inteiramenteparanóico. As defesas utilizadas até então con-tra a ansiedade paranóica falharam e a cisãomostrou-se através de acusações e contra-acu-sações de traição, complô e conjura (p. 45).

Não que considere que o "fracasso da ad-ministração pode ser atribuída prioritariamentea esse conteúdo afetiuo passional'. Mas, não temdúvidas:

E indubitâuel que nessas organizações (está sereferindo às organizações de massa e parti-dos) existem a esperança doa surgimentos doMessias ou Redentor, as cumplicidades e des-confianças de um grupo em relação ao outro,enfim, os ressentimentos e suspeitas de cunhoclaramente paranôide ( p. 58)

Como nos mostrou Bion, há a necessida-de de criar um (ou vários) ínírnígots), os "trai-dores", os "vacilantes", como se costuma dizerno meio das organizações de esquerda, os que"não fizeram a autocrítica". A partir daí erigern-se as defesas e a necessidade de um "líder", deuma "biblia" onde esteja a "verdade". E por isso,como ressalta Valton, "que os grupos são, deprin-cípio, contrários a mudanças, pelo temor quevenham afetar o sistema normatiuo" (p. 59).

Isso vale para os agrupamentos políticos,como vale para os grupos dentro das empresas,escolas, quartéis, universidades e igrejas. Estãopresentes com uma forte destrutivídade, capa-zes de produzir os atos mais estapafúrdios e ir-racionais e rupturas abruptas na subjetividade.É por isso que o campo da política (em todas assuas instâncias) é um território profundamenteambivalente, onde vida e morte, criação e pulsãode morte, lealdades e traições, transparências edissimulações convivem em permanente confli-to. Aliás, olhando desta perspectiva, o campodas relações sociais, seja ele individual ou cole-

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tivo, é o campo fértil para o surgimento de fan-tasma e fantasias, projeções e identificaçõesprojetivas, que podem nos levar a relaçõesobjetais construtivas, como pode nos levar, tam-bém, à morte, quando o grupo, ou as pessoas,não têm um mundo interno suficientemente in-tegrado e capaz de suportar a frustração. A ne-cessidade de messias, de redentores, assim comoa necessidade de criar inimigos, tão próprio nomundo da política, é um sintoma presente des-de o início da civilização. Max Weber achavaque isso mudaria quando o homem se emanci-passe e se desencantasse. Na realidade, comovemos hoje, acabaram por criar novos fantas-mas e parecem mais encantados do que nuncanesse mal- estar que se abate sob a modernidade.

SALVANDO A HISTÓRIA, A DIALÉTlCA E A TOTALIDADE

o núcleo mais valioso do livro, segundoo meu ponto de vista, é o momento em que eleusa os conceitos psicanalíticos para compreen-der os processos políticos, em especial a para-nóia. As vezes me perguntei o que ocorreria seele, ao invés de buscar a "alma da política", pro-curasse compreender a "alma na política", ouseja, o que ocorre na subjetividade das pessoasquando se envolvem na trama cotidiana da po-lítica. Tenho a certeza que material para a suaanálise não faltaria.

Valton deseja mais do que compreenderos tormentos individuais. Como estudioso dosprocessos políticos ambiciona mais. E aqui nãofala somente o psicanalista envolvido no estudoda paranóia, mas o ativista político visivelmenteentrincheirado na concepção marxista. Parecequerer dar conta e salvara idéia de totalidade, arazão dialética, a história vista como um proces-so dotado de sentido e racionalidade. Nestamesma trincheira, Valton busca realizar doisempreendimentos que, na minha opinião, sãograndiosos demais: evidenciar a irracionalidadedas organizações de massa e dos partidos e, aomesmo tempo, resgatar o sentido da história em

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uma sociedade que fala de seu fim. Ou resgata-mos o seu sentido ou caminharemos para abarbárie. E a nova barbárie, segundo Valton, é oneoliberalismo.

Trafega ao longo das 251 páginas de seulivro por clássicos da ciência política, em com-panhia dos marxistas dialéticos e filósofos datotalidade. O seu anátema, mesmo que não su-ficientemente explicitado, parece ser com o pen-samento hoje chamado de pós-moderno.

Valton deixa claro que é herdeiro do pro-jeto moderno, que se define pela busca da fun-damentação e acredita na possibilidade doconhecimento que capta a historicidade do ho-mem no movimento dialético da história. A ci-ência e as teorias cientificas, nesta perspectiva,são vistas como capazes de dar conta da subje-tividade. Freud era um iluminista e também fezparte deste projeto, em crise a partir da segundametade do século XX, momento em que se co-meça a atacar a idéia de centralidade atribuída ànoção de subjetividade empreendida pelas teo-rias racionalistas e empiristas. As criticas de Hegele de Marx, aliás, já apontavam para a insuficiên-cia e o caráter problemático da análisesubjetivista. Hegel mostra que a subjetividade, aconsciência individual, ela própria é resultadode um processo de formação histórico e cultu-ral. Marx faz a mesma coisa. Para ele o que de-termina o conteúdo de nossas representaçõessão as relações de produção.

Valton parece desejar salvaresse legado dopensamento moderno, que partiu da "sabedoriaclássica grega, passa pelas virtudes capitais dotomismo e chega a moderna noção de liberdade"(p. 229). Assim, esbraveja contra essa "situaçãoesdrúxula" que, "esquartejado entre o ideal e oreal se torna ostensivamente presente com odesmantelamento do Estado Social pelo capitalis-mo monopolista. "Lamenta, também, que "alémdisso, o enfraquecimento do doutrina socialista"tenha "deixado um vácuo político no qual se fezacompanhar do individualismo, do narcisismo edo egoísmo tão brutais quanto a perseguição queesse sistema instala contra a maioria da popula-

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ção mundial'(...) Diante desse poder tão grandi-oso - conclui - "o neoliberalismo pretende colo-car uma ética simplesmente argumentativa ereflexiva, ou seja, não articulado a uma condi-ção de classee a um corpo teórico específico,comoé o caso do marxismo.

Aqui nenhuma palavra sobre as razões doenfraquecimento do socialismo, nem a nomea-ção dos pensadores com quem está polernizando.Mas é evidente que está se referindo ao pensa-mento pós-moderno e todos aqueles que se afas-taram do referencial marxista, em especial dosque romperam com a tradição, inaugurando umanova reflexão e uma nova forma de pensar omundo, como é característico das teorias pós-

fordistas, identificadas com o pensamento pós-moderno. A ética de Valton não é somente contraos seguidores de messias e biblias, mas tambémcontra muitos pensadores contemporâneos, comoHeidegger, Wittgenstein, Gilles Deleuze, Lyotard,Richard Rorty, Habermas e outros.

Não foi por menos, por exemplo, que nãopoupa, na sua "máquina interpretativa ",Nietzsche, um dos pilares do pensamento pós-moderno, "cuja radicalidade no combate aos va-lores burgueses e arrogância intelectual levaramao sectarismo pessoal e social de conseqüênciasreconhecidamente destrutivas e ilusórias" (p. 63).

Utilizando as próprias categorias bionianasque ele usou nas suas interpretações, não haveriapor parte de Valton uma certa paranóia e intole-rância com relação ao pensamento pôs-modernoque emerge nesse final do século XX? O embatenão continua sendo do mocinho contra o bandido?

NOTAS

1 Ver o trabalho de Leonardo José Barreira Danziato.Fortaleza da Psicanálise - história da psicanáliseem Fortaleza. UFC. Dissertação de Mestrado, ja-neiro de 1998.

2 Para quem desejar compreender melhor a vida e aobra de Melanie Klein ver o belo trabalho do cana-dense PhillisOrosskurt, chamado OMundo e a Obrade Melainie Klein, Rio de Janeiro: Imago, 1992.

3 SEGAL, Hanna. Introdução à Obra de MelanieKlein. Editora Imago, Rio de Janeiro, 1975.

4 VerKLEIN,Melanie. Inveja e Gratidão, (970) Edito-ra Imago. Também, pela mesma editora Psicanálisede Criança (972); Amor Õdioe Reparação; Narrati-va da Análise da Criança (976), Contribuição à Psi-canálise, EditoraMestrejou; A Educação de Crianças,Ed. Imago, (973); Psicanálise da Criança, Mestre]ou; Sentimento de Solidão, Editora Imago (971). Évasta a bibliografia sobre o pensamento de Klein.

5 BION,W. R.Experiências Com Grupo, Editora Imagoe Editora da Universidade de São Paulo, 1975.

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