a paisagem do medo - unifacs

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43 Ano X Nº 17 Janeiro de 2008 Salvador, BA RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Resumo O espaço urbano reflete a organi- zação e a dinâmica de cada socieda- de. No Brasil as suas áreas urbanas são marcadas por grandes desigual- dades de renda, que acarretam dispa- ridades sócio-espaciais. A cidade fragmenta-se em inúmeros territóri- os com características próprias e excludentes reconfigurando a paisa- gem urbana e a sua estrutura sócio- cultural. Em um meio de superabun- dância para alguns e escassez da mai- oria, manifestam-se os conflitos e a violência, inclusive como modo de inserção social. O aumento da violên- cia leva a maiores gastos públicos e privados com segurança, perda de investimentos no comércio e indús- tria, mudança de hábitos de consu- mo, além de mudanças na configu- ração urbana. Os condomínios e ruas fechadas, as residências com altos muros e cercas eletrificadas se expan- dem,constituindo um novo padrão de segregação espacial. É neste con- texto que se estuda a área da Pituba, uma localidade que concentra uma população de média e alta renda, na qual se intensifica o processo de for- mação de “condomínios fechados”, que além de desarticular o tecido ur- bano e a malha viária, cerceia o direi- to de ir e vir dos cidadãos redefinindo a morfologia do tecido urbano e con- figurando a paisagem como a paisa- gem do medo. Palavras-chave: Segregação urbana; violência; “condomínios”; paisagem. Résumé L’espace urbain reflète l’orga- nisation et la dynamique de chaque société. Au Brésil leurs territoires urbains sont marqués par des gran- des inégalités de revenu, qui causent des disparités sócio-espaciais. . La ville se fragmente dans innombrables territoires avec des caractéristiques propres reconfigurant le paysage urbain et leurs structure sócio-cultu- ral des villes. Avec la richesse pours quelques-uns et la pénurie de la majorité, se manifestent les conflits et la violence, comme forme d’insertion sociale. L’augmentation de la violen- ce est responsable pour une grande part des dépenses publiques et privée avec sécurité, en detriment des investissements dans le commerce et l’industrie. On remarque des change- ment d’habitudes de consommation et dans la configuration urbaine. Les condominiums et les rues fermées, les résidences avec de hautes parois et les murs électrifiées se développent, constituant une nouvelle forme de ségrégation spatiale. C’est dans ce contexte qui s’étudie le quartier du Pituba, une localité qui concentre une population de moyenne et haut reve- nu, sur lequel s’intensifie le processus de formation de “condominiums fer- més”. Ils désarticulent le tissu urbain et la maille routière, raccourcit le droit d’aller et de venir des citoyens, redéfinissent la morphologie du tissu urbain et configurent le paysage comme le paysage de la peur. Mots-clef: Ségrégation urbana; violence; “condominiums”; paysage. JEL: R52 A urbanização no brasil O processo de urbanização no Brasil se intensificou ao longo do século XX, com o crescimento demo- gráfico das capitais brasileiras, a par- tir da segunda guerra mundial. A inovação tecnológica no campo e o processo de industrialização foram responsáveis por grande fluxo mi- gratório para o centro das cidades. Além da atração urbana pela oferta de atividades econômicas, ser- viços e infra-estrutura, o crescimen- to acelerado dos aglomerados se deve ao aumento das taxas de cres- cimento natural, tanto urbano quan- to rural e a migração rural-urbana, fruto da decomposição das estrutu- ras rurais. A população urbana, prin- cipalmente a migrante, não é absor- vida pelos empregos industriais, se integrando parcialmente no sistema social urbano. Esse crescimento gera uma “hiperurbanização” com sérios problemas sociais. O Estado, o responsável pela pro- visão de serviços públicos também tem o papel de indutor do cresci- mento econômico, absorvendo altos custos para a administração públi- ca. Devido à incapacidade de inves- timentos e gestão do poder público de suprir as necessidades básicas da totalidade da população urbana, prioriza os territórios de maior inte- resse do capital produtivo e /ou imobiliário em detrimento daqueles ocupadas pela população de menor poder aquisitivo. 1 Urbanista (UNEB) - End.: Alameda Florença, 30, Aptº. 2104 - CEP.: 41.830.460 - Salvador – BA - E-mail: [email protected]. 2 Professora Doutora em Urbanismo (Paris III) das Universidades UNEB e UNIFACS – End.: Rua Manoel Gomes Mendonça, 229 – ap.301 – Pituba - CEP: 41810-820 – Salvador – BA – E-mail: [email protected]. A PAISAGEM DO MEDO UM ESTUDO DO BAIRRO DA PITUBA - SALVADOR – BA Carla Pereira Rocha 1 Liliane Ferreira Mariano da Silva 2

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43Ano X � Nº 17 � Janeiro de 2008 � Salvador, BARDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

ResumoO espaço urbano reflete a organi-

zação e a dinâmica de cada socieda-de. No Brasil as suas áreas urbanassão marcadas por grandes desigual-dades de renda, que acarretam dispa-ridades sócio-espaciais. A cidadefragmenta-se em inúmeros territóri-os com características próprias eexcludentes reconfigurando a paisa-gem urbana e a sua estrutura sócio-cultural. Em um meio de superabun-dância para alguns e escassez da mai-oria, manifestam-se os conflitos e aviolência, inclusive como modo deinserção social. O aumento da violên-cia leva a maiores gastos públicos eprivados com segurança, perda deinvestimentos no comércio e indús-tria, mudança de hábitos de consu-mo, além de mudanças na configu-ração urbana. Os condomínios e ruasfechadas, as residências com altosmuros e cercas eletrificadas se expan-dem,constituindo um novo padrãode segregação espacial. É neste con-texto que se estuda a área da Pituba,uma localidade que concentra umapopulação de média e alta renda, naqual se intensifica o processo de for-mação de “condomínios fechados”,que além de desarticular o tecido ur-bano e a malha viária, cerceia o direi-to de ir e vir dos cidadãos redefinindoa morfologia do tecido urbano e con-figurando a paisagem como a paisa-gem do medo.

Palavras-chave: Segregação urbana;violência; “condomínios”; paisagem.

RésuméL’espace urbain reflète l’orga-

nisation et la dynamique de chaquesociété. Au Brésil leurs territoires

urbains sont marqués par des gran-des inégalités de revenu, qui causentdes disparités sócio-espaciais. . Laville se fragmente dans innombrablesterritoires avec des caractéristiquespropres reconfigurant le paysageurbain et leurs structure sócio-cultu-ral des villes. Avec la richesse poursquelques-uns et la pénurie de lamajorité, se manifestent les conflits etla violence, comme forme d’insertionsociale. L’augmentation de la violen-ce est responsable pour une grandepart des dépenses publiques et privéeavec sécurité, en detriment desinvestissements dans le commerce etl’industrie. On remarque des change-ment d’habitudes de consommationet dans la configuration urbaine. Lescondominiums et les rues fermées, lesrésidences avec de hautes parois et lesmurs électrifiées se développent,constituant une nouvelle forme deségrégation spatiale. C’est dans cecontexte qui s’étudie le quartier duPituba, une localité qui concentre unepopulation de moyenne et haut reve-nu, sur lequel s’intensifie le processusde formation de “condominiums fer-més”. Ils désarticulent le tissu urbainet la maille routière, raccourcit le droitd’aller et de venir des citoyens,redéfinissent la morphologie du tissuurbain et configurent le paysagecomme le paysage de la peur.

Mots-clef: Ségrégation urbana;violence; “condominiums”; paysage.JEL: R52

A urbanização no brasilO processo de urbanização no

Brasil se intensificou ao longo doséculo XX, com o crescimento demo-gráfico das capitais brasileiras, a par-tir da segunda guerra mundial. Ainovação tecnológica no campo e oprocesso de industrialização foramresponsáveis por grande fluxo mi-gratório para o centro das cidades.

Além da atração urbana pelaoferta de atividades econômicas, ser-viços e infra-estrutura, o crescimen-to acelerado dos aglomerados sedeve ao aumento das taxas de cres-cimento natural, tanto urbano quan-to rural e a migração rural-urbana,fruto da decomposição das estrutu-ras rurais. A população urbana, prin-cipalmente a migrante, não é absor-vida pelos empregos industriais, seintegrando parcialmente no sistemasocial urbano. Esse crescimento gerauma “hiperurbanização” com sériosproblemas sociais.

O Estado, o responsável pela pro-visão de serviços públicos tambémtem o papel de indutor do cresci-mento econômico, absorvendo altoscustos para a administração públi-ca. Devido à incapacidade de inves-timentos e gestão do poder públicode suprir as necessidades básicas datotalidade da população urbana,prioriza os territórios de maior inte-resse do capital produtivo e /ouimobiliário em detrimento daquelesocupadas pela população de menorpoder aquisitivo.

1 Urbanista (UNEB) - End.: Alameda Florença, 30, Aptº. 2104 - CEP.: 41.830.460 - Salvador – BA - E-mail:

[email protected].

2 Professora Doutora em Urbanismo (Paris III) das Universidades UNEB e UNIFACS – End.: Rua Manoel

Gomes Mendonça, 229 – ap.301 – Pituba - CEP: 41810-820 – Salvador – BA – E-mail: [email protected].

A PAISAGEM DO MEDOUM ESTUDO DO BAIRRO DA PITUBA - SALVADOR – BA

Carla Pereira Rocha1

Liliane Ferreira Mariano da Silva2

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A desigualdade da distribuição derenda, inicialmente, reflete-se no es-paço urbano, com áreas infra-estrutu-radas e outras desordenadas e caren-tes. Os grupos que concentram ren-da se estabelecem na “cidade plane-jada”, “infra-estruturada”, com aces-so aos serviços de saneamento, trans-portes, saúde e amplo e diversifica-do comércio, enquanto a populaçãoque não tem acesso a oferta do mer-cado imobiliário capitalista fica mar-ginalizada na periferia social da cida-de. Com a “impossibilidade do ofe-recimento de serviços urbanos navelocidade requerida pelo crescimen-to urbano e a multiplicação da margi-nalidade nas grandes cidades” (RI-BEIRO, 1997, p. 27) geram-se estímu-los ao incremento de estratégias desobrevivência ilegais.

Nas duas últimas décadas, as ci-dades brasileiras sofreram um au-mento significativo nos índices deviolência. Em menos de 10 anos onúmero de homicídio nas áreas ur-banas, divulgado pela Organizaçãodos Estados Ibero-Americanos (OEI)através do Observatório de Violên-cia da Universidade Salvador em2007, foi de 32.603 em 1994 e 51.043em 2006. A heterogeneidade e desi-gualdades entre os espaços, comuma sociedade da superabundânciae, ao mesmo tempo, da exclusão,leva à violência como recurso parainserir-se socialmente. O aumento daviolência provoca cada vez mais in-segurança e maior segregação dosterritórios, compondo a “paisagemdo medo”.

A violência provoca, hoje, umaobsessão pela segurança física econsequentemente “pelo controlearquitetônico das fronteiras sociais”,com a observação da implacável“militarização da vida na cidade”(DAVIS, 1990, p. 205). Hoje, tem lu-gar na cidade uma nova forma desegregação. Uma distinção dentrodas próprias porções segregadaspela renda, com a “fortificação” decondomínios para evitar o “outro”(BAUMAN, 2003) que não pertenceao seu meio, para a proteção contraa violência que permeia toda a cida-de. No desenho urbano se proliferamos condomínios fechados como a

busca da “defesa do lugar” (BAU-MAN, 2003, p. 102), constituindo“guetos voluntários”.

A exacerbação da auto-segrega-ção e de interações espaciais seleti-vas se manifesta nos condomíniosexclusivos, shopping centers, favelascontroladas e nas áreas “neutras”(SOUZA, 2000), ou seja, na arquite-tura da cidade, que tem efeitos so-bre o que se faz e como se interageno espaço.

A configuração urbana sofremudanças. Os espaços públicos es-tão se tornando privados, com ruase praças fechadas, que intimidam apopulação, bloqueios visíveis e invi-síveis que a excluem cada vez maisdo que já lhe é privado. A definiçãoentre público e privado se confun-de, ou melhor, se perde nas privati-zações das funções públicas como ada segurança. Fronteiras parecemser erguidas em cada nova esquinade bairro decadente do mundo.

Violência urbana e a formaçãodos “condomínios”

As desigualdades sócio-econô-micas fragmentam o espaço urbanoem inúmeros territórios com carac-terísticas próprias e excludentes, quepassam pela violência/ criminalida-de e pelo enfraquecimento da cida-dania. Assim a segregação enquan-to processo pelo qual um grupopopulacional é forçado, involunta-riamente, a se aglomerar em umaárea espacial definida, em um gueto,juntamente com a carência e a hu-milhação acarretam ou exacerbam aviolência e a criminalidade, além deimpactar significativamente as pos-sibilidades de avanço social.

De acordo com Souza (2000), aviolência urbana apresenta uma co-nexão bastante forte com a espaciali-dade urbana e/ou com problemas eestratégias de sobrevivência. Dianteda violência crescente, “as pessoasque acreditam que não há nada a fa-zer para suavizar o tom, e menos ain-da para exorcizar o espectro da in-segurança, se ocupam em compraralarmes contra ladrões e arame far-pado” (BAUMAN, 2003, p. 103),mais que isso, procuram o “ambien-te seguro” sem ladrões e à prova de

intrusos. O cenário é, hoje, pontua-do por condomínios, ruas e bairrosfechados, residências com altos mu-ros e cercas eletrificadas. A expan-são de empreendimentos fechadosfaz parte de estratégias imobiliáriase de marketing (figura 1) que utilizama questão da segurança como apeloprincipal (MÔNACO, 2007).

Segundo Caldeira (2000), os con-domínios fechados constituem-se emum novo padrão de segregação espa-cial e desigualdade social na cidade.Um novo modelo de segregação quesubstitui, aos poucos, a dicotomiacentro-rico x periferia-pobre. A im-plantação dessas novas formas espa-ciais “deriva de um padrão de assen-tamento urbano destinado a algunsprivilegiados, acentuando as dispari-dades sociais e ressaltando um pro-cesso de negação da esfera pública ede sua diversidade” (MÔNACO,2007, p. 8). Assim a segregação é umatendência da estruturação do espaçoligada à concentração de pessoas porcamadas sociais.

O Bairro da PitubaO desenho da cidade do Salva-

dor, fundada em 1549 sobre a colinada Sé, estava associado à sua topo-grafia acidentada e a estrutura sócio–econômica da época. A cidade se

Figura 1 – Peça de publicidade deum condomínio vertical localizadoem rua fechadaFonte: Revista STAND DE VENDAS, maio/junho 2007.

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desenvolveu sobre as cumeadas con-centrando na área central as edifica-ções militares, religiosas, edificaçõescivis com as casas de comércio notérreo e as famílias mais abastadasnos andares superiores. No períodoImperial, Salvador, segundo Vascon-celos (2002) deixa de ser a capitalcolonial, porém os investimentos eminfra-estrutura continuaram e a par-tir de 1950 os investimentos emtransporte urbano permitiram a ex-pansão espacial do tecido urbano.

Até a primeira metade do séculoXX, a cidade era voltada para a Bahiade Todos os Santos, e mantinha odiálogo com o recôncavo, celeiroagrícola, e as terras cacaueiras, maisdistantes, através do seu porto situ-ado na área central, no comércio, dacidade baixa. A crise na economiarural, nos anos 40 leva a cidade a re-ceber importantes fluxos migratóri-os e sua população cresce , seu perí-metro é ampliado e novas ocupaçõesocorrem em áreas periféricas.

A partir dos anos 50, de acordocom Mariano da Silva (1985) os in-vestimentos no setor industrial fo-ram intensos levando o governo ainvestir em infra-estrutura viária eportuária, redirecionando o cresci-mento de Salvador para o norte,onde foram implantados, nos muni-cípios vizinhos centros industriais. Acidade de Salvador sofreu ao longodo tempo uma ampliação da segre-gação sócio-espacial resultando naformação de quatro subespaços dis-tintos (VASCONCELOS, 2002):– o primeiro, caracterizado pelo

núcleo histórico, voltado para aBaía de Todos os Santos, segun-do padrões urbanísticos da arqui-tetura colonial portuguesa, adap-tado às condições climáticas e so-ciais;

– o segundo, pelo setor sul da ‘pe-nínsula’, voltado para a orla atlân-tica, com loteamento e constru-ções dotadas de infra-estrutura eequipamentos urbanos de altoluxo, segundo padrões urbanísti-cos modernos, e ocupados pelapopulação de alta renda, onde selocaliza o bairro da Pituba;

– o terceiro formado pela parte nor-te do centro histórico, prolonga-

da pelos Subúrbios Ferroviáriosna orla da Baía de Todos os San-tos, onde vive a maior parte dapopulação da cidade, habitandoem alojamentos precários, malservidos de infra-estrutura e equi-pamentos urbanos;

– e finalmente, o quarto, aparece apartir da iniciativa do Estado, du-rante os anos 70 e 80, quando fo-ram investidos maciçamente re-cursos em infra-estrutura viária ena construção de conjuntos habi-tacionais, com edificações de trêsandares, na região do ‘MIOLO’ nosentido de apoiar o desenvolvi-mento dos setores modernos daeconomia que tinha como carrochefe a indústria petroquímica.Assim, a década de 1940 foi mar-

cada pelo início de uma grande ex-pansão da sua ocupação física a par-tir da implantação das vias de valeque ocasionaram uma desconcen-tração comercial e habitacional nacidade, e de um acelerado aumentopopulacional. Os agentes imobiliá-rios pressionaram o governo a for-necer infra-estrutura básica para oslocais apropriados pelos extratos demaior renda, tornando visualmenteperceptível a fragmentação e segre-gação dos espaços de Salvador.

Em um primeiro momento, háuma fragmentação decorrente doaspecto estrutural, com uma divisãoterritorial caracterizada pela renda e

pelo processo de urbanização, resul-tando em “cidades segregadas” den-tro da própria cidade (Quadro 1).

Em um segundo momento, comoconseqüência do processo contínuode concentração de renda e com vi-síveis desigualdades econômicas esociais, e crescente violência urbana,mais uma vez, assiste-se a uma “no-vamente fragmentação” da cidadeem subespaços urbanos, através daformação de “condomínios” geridaspelas Associações de Moradores, for-mando verdadeiras células urbanas“protegidas”. O preço a pagar pelasegurança é alto, restringindo-se àscamadas de alta renda, que se rodei-am de alarmes, muros e câmeras devigilância. A formação de “condomí-nios fechados” se intensifica na ci-dade de Salvador, inclusive na loca-lidade da Pituba, onde se concentraa população de média e alta rendada cidade.

A área da Pituba, resultado deplanejamento urbano, estruturou-seem grandes parcelamentos e lotea-mentos, com um traçado regular,inicialmente caracterizado pela bai-xa densidade, ocupada por casas deveraneio, e em um momento poste-rior alta densidade com o processode verticalização. Sobre os principaiseixos viários, que articulam o bairroforam estabelecidos grandes empre-endimentos comerciais. As célulasresidenciais se diferenciaram no en-

Quadro 1 – Espaços “segregados” de Salvador ao final do século XX

Fonte: própria com base em Vasconcelos (2002).

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torno da área comercial, conectando-se com esta através de vias coletorase de acesso local.

Caracterização da área da PitubaA área da Pituba, que está locali-

zada a sudeste de Salvador (figura 2),na Região Administrativa (RA) VIII– Pituba, próxima ao subcentroIguatemi, segundo os dados daPDDU 2006 é ocupado por uma po-pulação de 76.148 habitantes, equiva-lente a 3,11% da população de Salva-dor e 22.298 domicílios. Além de bemservida de infra-estrutura urbana eequipamentos públicos, possui ame-nidades físicas, como a proximidadeda Orla Atlântica e a existência daárea verde do Parque da Cidade.

A Pituba é uma área de estratosocial de renda média e alta, comgrande parte da população com ren-da familiar superior a 20 saláriosmínimos bem como intenso uso deempregados domésticos. Há predo-mínio do número de mulheres (57%)sobre o número de homens (43%) eo nível de escolaridade é elevado,com mais de 70% da população ten-

do cursado mais de 11 anos de estu-do (PDDU 2006). “O contraste claroentre o processo de concentração es-pacial de renda, em torno da RAPituba, e a permanência de situaçõesde pobreza nas regiões de Valéria,São Caetano, entre outras, tende apotencializar conflitos sociais na ci-dade” (Estudo de Distribuição deRenda – PDDU, 2000, p. 116), mos-trando assim, mais uma vez, com aconstatação dos estudos feitos pelaPrefeitura de Salvador a ruptura dapaisagem social e física da cidade.

A formação de “condomíniosfechados”

Inicialmente, a área da Pituba foiparcelada a partir da implantação deloteamentos, com um traçado regu-lar e baixa densidade demográfica,em seguida esses loteamentos foramsubdivididos em espaços menoreschamados de “condomínios” e ad-ministrados por Associações de Mo-radores, que têm atuação decisiva naconformação do espaço interno daárea estudada.

A “busca por segurança” crescea cada dia, com grades, muros e cer-cas elétricas, evidenciando o aumen-to da exclusão e segregação urbanae também da violência. Mas, a inten-sa preocupação por segurança carac-teriza-se mais recentemente pelosque moram há menos de 10 anos nos“condomínios” / local, coincidindocom o aumento da violência na ci-dade e na área da Pituba. Os mora-dores mais antigos escolheram resi-dir nessa área por outras motivaçõescomo a tranqüilidade ou oportuni-dade financeira. Por outro lado os“condomínios fechados” refletem aheterogeneidade mesmo dentro dasgrandes áreas divididas por renda,com a existência de “ilhas sócio-eco-nômicas” nas zonas nobres.

A “sensação” de segurança ven-dida por esses condomínios dá aosmoradores a impressão de que estãoa salvo das desigualdades externas,mas acaba por gerar mais inseguran-ça, já que os moradores dos condo-mínios se sentem cada vez mais in-seguros quando estão longe do al-cance das câmeras de vigilância doque os não moradores desses espa-ços, na Pituba.

Há 10 anos, intensifica-se nestalocalidade o processo de formaçãode “condomínios fechados”, atravésdo fechamento de logradouros pú-blicos em diferentes graus, com apresença de cones com correntes,guaritas e “réguas”, além dos lotea-mentos que pelo próprio desenho jásão concebidos para serem fechados(figuras 1 e 2), caracterizando a atu-al exigência do mercado imobiliário.

Nos levantamentos feitos paraeste estudo foram identificados 18“condomínios fechados” na Pituba: ofechamento dos espaços urbanos em“condomínios” desarticula o tecidourbano e a malha viária, pois a exis-tência de ruas fechadas e sem saídacria barreiras que desconectam os es-paços, formando “ilhas” e interrom-pendo a permeabilidade e fluidezintra-urbana, seja no deslocamentode veículos seja de pessoas. Além dis-so, cerceia o direito de ir e vir dos ci-dadãos, constituindo-se em uma açãoilegal de acordo com as leis deOrdenamento do Uso e da Ocupação

Figura 2 –Localização Salvador – PitubaFonte: Elaborado por Carla Rocha (2007), com base nas imagens do Google Earth (versão 4.1.7076.4458 beta, 2007).

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do Solo, LOUOS (Lei nº 3.377/84) edo Parcelamento (Lei nº 6.766/79).

Entretanto, o próprio desenhodos loteamentos aprovados pela Su-perintendência de Controle e Orde-namento do Uso do Solo do Municí-pio (SUCOM) da Prefeitura Munici-pal de Salvador facilita a condiçãode fechamento desses locais. A apro-vação de loteamentos avalia o aten-dimento de critérios relativos ao ta-manho de lotes, recuos, número depavimentos, tamanho das vias, etc.,enquanto que o traçado ou desenhodas ruas, a articulação com o entor-no, dentre outros aspectos, não inter-ferem na aprovação dos loteamentos,o que demonstra uma preocupaçãodo poder público apenas com a en-genharia das vias, sem analisar apermeabilidade e articulação, neces-sárias à boa qualidade da cidade.

A falta de atenção dada à neces-sidade de garantir a mobilidade ur-bana repercute em todos os ele-mentos que compõem o cotidianoda cidade. Locais segmentados ge-ram dificuldades de locomoção,congestionamentos, alterações noshorários de deslocamentos, polui-ção atmosférica, atrasos, estresse,ausência de sociabilidade, privaçãode direitos, de modo geral, proble-mas para a “saúde urbana”. Ape-sar de ilegal, percebe-se que o nú-mero de ruas e “condomínios fe-chados” está aumentando sob osolhares observadores da populaçãoe dos responsáveis pela fiscaliza-ção, a SUCOM, que parece fazer“vistas grossas” a essas irregulari-dades, ressaltando-se o fato de setratar de um local de população demédia e alta renda.

Considerações finaisA violência urbana gera a forma-

ção de ‘guetos voluntários’, refleti-dos num primeiro momento noscondomínios formados a partir dofechamento de ruas e mais recente-mente nos projetos arquitetônico –urbanísticos isolando o território,criando subespaços fechados. Talfenômeno traz reflexos negativossobre o espaço físico e social urba-no, pois além de garantir uma falsaidéia de segurança, os “condomíni-os fechados” criam barreiras sociais,segregando os espaços e rompendocom a idéia de convivência, sociabi-lidade e conexão a que a cidade re-mete.

Partindo do exposto, é necessá-rio refletir que a LOUOS de Salva-dor carece incorporar variáveis e di-retrizes que permitam a análise dosprojetos arquitetônico e urbanísticoe o seu compromisso com a qualida-de paisagística, urbanística e funci-onal, etc., do tecido urbano; comoconseqüência da omissão da Lei osespaços vêm se tornando descontí-nuos comprometendo a mobilidade.

A integração e permeabilidadeda cidade estão comprometidas emrazão das exigências do mercadoimobiliário, ratificado pela LOUOS,que visa atender às classes média ealta. Cabe, então, ao Estado intervir,através dos instrumentos que pos-sui, evitando a fragmentação dosespaços urbanos para a implantaçãode condomínios fechados e/ou aber-tos, visto que funcionam como ele-mentos de segregação sócio-espacial.

Deve-se refletir que as ações deplanejamento necessitam ser inte-gradas com as especificidades de

cada local, atendendo aos interessesde toda a população e garantindo oacesso à cidade a todos.

É preciso a cobrança por parte dasociedade, inclusive moradores dolocal, para a efetiva fiscalização eautuação dessas irregularidades pe-los órgãos responsáveis, fazendo-secumprir as leis já existentes; além deuma revisão das leis, no sentido dedeixar explícito os aspectos qualita-tivos, e não apenas os quantitativos,que influenciam diretamente na boamanutenção da cidade.

Este estudo tem a finalidade deexemplificar o efeito causado pelaimplantação de “condomínios fecha-dos” na cidade, e não apenas na áreaestudada, demonstrando a necessi-dade de avaliação, por parte dos ór-gãos municipais, acerca das concep-ções, implantação e impactos dessessobre a paisagem urbana.

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Figura 3 – Alameda SiameasFonte: fotografada por Carla Rocha (2007).

Figura 4 – Pituba VilleFonte: fotografada por Carla Rocha (2007).

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