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239 A ordem das palavras na sentença latina: pontos de interface no discurso metalinguístico antigo F ÁBIO DA SILvA FORTES Universidade Federal Rural de Pernambuco Brasil RESUMO Marouzeau (1922) introduz a sua obra com a afirmação um tanto categórica, ainda que emblemática, de que a ordem das palavras em latim é livre, mas não indife- rente. Considerando a particularidade do discurso metalinguístico antigo, temos como meta, nesse trabalho, contemplar as afirmações no âmbito da retórica ( QUInTILIAnO, Institutio oratoria 8-9), da filosofia ( SênECA, Epistulae ad Lucilium 100 e 114) e da gra- mática (PRISCIAnO, Institutiones grammaticae 17), que embasem o relato da filologia clássica acerca da ordem das palavras em latim. Nesta investigação, consideramos, também, as interfaces e particularidades do discurso metalinguístico antigo, nesses três âmbitos, acerca do que, posteriormente, adquiriria autonomia epistemológica – a sintaxe da língua latina. P ALAvRAS-CHAvE Latim; ordem das palavras; metalinguagem antiga; filologia; sintaxe. A afirmação de Marouzeau de que “a ordem das palavras em latim é livre, mas não é indiferente” 1 pode ser facilmente comprovada empiri- camente, quando, diante dos textos legados pela tradição latina, obser- vamos que, ao lado da aparente flexibilidade de emprego das palavras na sentença, parecem coexistir particularidades de caráter estilístico e discursivo que, se não determinam, influem no emprego de dada palavra em uma ou outra posição na sentença. Com efeito, diante do texto escrito, sobretudo os de caráter retórico e poético, que constituem a maior parte do corpus de texto latino, a ordem e o emprego das palavras veiculam informações para além da sua sintaxe, são elementos constitutivos da própria natureza do gênero literário a que se filiam, e representam variações de estilo para a produção de diferentes Email: [email protected] Professor Assistente de Língua e Literatura Latina da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Doutorando em Linguística/Letras Clássicas pela UNICAMP. 1 MAROUzEAU, J. L’ordre des mots dans la phrase Latine, I: les groupes nominaux, Paris, Honoré Champion, 1922, p. 1. Classica (Brasil) 21.2, 239-251, 2008

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A ordem das palavras na sentena latina: pontos de interface no discurso metalingustico antigo

FBIO DA SILvA FORTES Universidade Federal Rural de Pernambuco

Brasil

RESUMO . Marouzeau (1922) introduz a sua obra com a afirmao um tanto categrica, ainda que emblemtica, de que a ordem das palavras em latim livre, mas no indife-rente. Considerando a particularidade do discurso metalingustico antigo, temos como meta, nesse trabalho, contemplar as afirmaes no mbito da retrica (QUInTILIAnO, Institutio oratoria 8-9), da filosofia (SnECA, Epistulae ad Lucilium 100 e 114) e da gra-mtica (PRISCIAnO, Institutiones grammaticae 17), que embasem o relato da filologia clssica acerca da ordem das palavras em latim. Nesta investigao, consideramos, tambm, as interfaces e particularidades do discurso metalingustico antigo, nesses trs mbitos, acerca do que, posteriormente, adquiriria autonomia epistemolgica a sintaxe da lngua latina.PALAvRAS-CHAvE . Latim; ordem das palavras; metalinguagem antiga; filologia; sintaxe.

A afirmao de Marouzeau de que a ordem das palavras em latim livre, mas no indiferente1 pode ser facilmente comprovada empiri-camente, quando, diante dos textos legados pela tradio latina, obser-vamos que, ao lado da aparente flexibilidade de emprego das palavras na sentena, parecem coexistir particularidades de carter estilstico e discursivo que, se no determinam, influem no emprego de dada palavra em uma ou outra posio na sentena.

Com efeito, diante do texto escrito, sobretudo os de carter retrico e potico, que constituem a maior parte do corpus de texto latino, a ordem e o emprego das palavras veiculam informaes para alm da sua sintaxe, so elementos constitutivos da prpria natureza do gnero literrio a que se filiam, e representam variaes de estilo para a produo de diferentes

Email: [email protected] Assistente de Lngua e Literatura Latina da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Doutorando em Lingustica/Letras Clssicas pela UNICAMP. 1 MAROUzEAU, J. Lordre des mots dans la phrase Latine, I: les groupes nominaux, Paris, Honor Champion, 1922, p. 1.

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efeitos estticos. Em outras palavras, citando Jakobson, a poeticidade se manifesta no fato de que as palavras e sua sintaxe, sua significao, sua forma externa e interna no so ndices indiferentes da realidade, mas possuem seu prprio peso e seu prprio valor 2.

Os diferentes pesos e valores, por assim dizer, concedidos ordem das palavras nos textos latinos o objeto que interessa a este tra-balho. O intuito buscar na tradio antiga observaes oferecidas por alguns autores acerca da relativa liberdade de ordem na sentena latina, considerando as particularidades da abordagem dessa questo no dom-nio da filosofia, retrica3 e gramtica antigas. No domnio da retrica, apresentaremos passagens dos livros VIII e IX da Institutio oratoria, de Quintiliano. Na filosofia, passaremos por fragmentos de Sneca nas epstulas 100 e 114 de suas Epistulae morales, endereadas a Luclio. No mbito da gramtica antiga, apresentaremos trechos contidos no livro XVII das Institutiones grammaticae, de Prisciano e no livro I do Per syntxos, de Apolnio Dscolo.

No objetivamos a apresentar um relato exaustivo da maneira como o tema comparece na tradio latina, mas o de comentar exemplos dos autores acima assinalados, que possam contribuir para a compreenso da forma como o tpico da ordem das palavras endereado pela filologia clssica moderna, bem como a forma como os antigos se posicionavam diante do assunto. Para isso, o artigo se organiza da seguinte maneira: na primeira seo, apresentaremos as consideraes no mbito da retrica e da filosofia; na segunda revelaremos alguns desdobramentos desta questo nas gramticas de Apolnio Dscolo e Prisciano; finalmente, veremos, no ltimo item, como essas informaes se entrelaam para sustentar o relato da filologia clssica moderna acerca da ordem das palavras em latim.

A ordem das palavras nos discursos filosfico e retrico: Sneca e Quintiliano

Somando um conjunto de 124 composies suprstites, as eps-tolas morais a Luclio (Epitulae morales ad Lucillium) destacam-se na epistolografia latina por representarem mais que um conjunto de cartas

2 jAKOBSOn, R. Huit questions de potique, Seuil, Essais, 1977, p. 22.3 Agradeo ao Professor Dr. Paulo Vasconcellos as indicaes em Sneca e Quintiliano acerca da ordem das palavras, a partir das quais desenvolvi o presente artigo. Essas in-dicaes eram parte de notas de aulas oferecidas no curso de Sintaxe do Perodo Latino oferecido Ps-graduao em Lingustica, cursado em 2008, no Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP.

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endereadas e em resposta a Luclio, que teria sido discpulo de Sneca. Trata-se de peas que parecem perfazer um projeto filosfico mais am-plo, cartas que foram, de fato, endereadas a um interlocutor particular, mas que teriam o fito de tambm beneficiarem possveis leitores exter-nos4. As cartas de Sneca abordam desde temas tradicionalmente recor-rentes na epistolografia greco-romana (consolo ao que perde um ente querido, por exemplo) at temas transcendentais de matizes claramente filosficos (a brevidade da vida, a noo estoica de ratio, a irrelevncia dos bens mundanos, etc.).

Por se prestar ao veculo das ideias estoicas a que o filsofo esposava, seu estilo de escrita ainda que filiado s convenes prprias do gnero epistolar era questo de no menos importncia no conjunto de sua obra. Dessa maneira, vale dizer que o estilo simples, muitas vezes confessado pelo filsofo, tratava-se, na verdade, de um procedimento de escrita que, alm de configurar uma estilstica prpria do autor muitas vezes alvo de crticas dos mestres de retrica seus coetneos, como Quintiliano5 e tambm descrita por Calgula como harena sine calce 6, areia sem cal, dada a economia de recursos coesivos e retricos , era, ao mesmo tempo, a explicao e a concretizao dos preceitos filosficos ali apresentados. Esse o motivo pelo qual o prprio filsofo quem comenta o seu estilo e tambm tece consideraes sobre o modus scribendi de outros, nas quais entram o seu posicionamento, verdade, sobre questes de ordem metalingustica, mas nas quais reside, principalmente, uma procupao de matiz sobretudo moral.

Assim, ao comentar o estilo em que escrevia suas cartas, Sneca advoga para si um estilo fcil ( facilis) e no-trabalhado (inlaboratus), em oposio a uma maneira afetada (putide) de se escrever:

Queixas receber cartas menos cuidadas de mim. Quem, de fato, fala de modo cuidadoso a menos que queira falar afetado? Qual seja a mi-nha linguagem, no trabalhada e fcil, como se estivssemos gozando do cio ou caminhssemos, assim quero tambm as minhas cartas, que nada possuam de falso ou pouco natural.7 (Sn. Ep. mor. 75.1)

4 EDwARDS, C. Epistolography, in HARRISOn, S. (ed.), A companion to Latin Literature, Oxford, Blackwell, 2005, p. 277.5 Inst. or. 10.1.125-31. 6 SUET. Caligula 53.7 Minus tibi accuratas a me epistulas mitti quereris. quis enim accurate loquitur nisi qui uult putide loqui? qualis sermo meus esset si una desideremus aut ambularemus, inlabo-ratus et facilis, tales esse epistulas meas uolo, quae nihil habent accersitum nec fictum.

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Uma ateno particular ao que natural na linguagem o que parece presidir as preocupaes do filsofo na passagem acima. Para isso, Sneca submete a retrica preocupao da linguagem a servio do verdadeiro, minimiza a elocutio latina a favor de uma espcie de antirretrica, desprovida do ornato, de inverses e de procedimentos de organizao do discurso que o afastem do modo trivial e simples. Trata-se, de fato, nas palavras de Herington8, de uma verdadeira revoluo estilstica a favor de uma revoluo intelectual em curso, por intermdio da filoso-fia; da, nada de se espantar, a reao de Quintiliano em socorro ao estilo clssico, anos depois.

Diferente de Quintiliano, para Sneca, as figuras da retrica entre as quais aquelas que interferem diretamente na ordem das palavras re-presentam ornatos que tornariam, em sua concepo, o estilo de escrita menos natural e, portanto, menos claro. A relao , ento, direta entre o carter e a escrita: o estilo e linguagem contrrios ao que natural reflexo e resultado de uma personalidade igualmente extravagante:

Estas palavras, estruturadas de maneira to mproba, lanadas de maneira to negligente, colocadas de maneira to contrria ao cos-tume de todos, demonstram tambm um carter no menos inusitado, depravado e singular.9 (Sn. Ep. mor. 114.7)

No primeiro plano, coloca-se em evidncia a relao entre o viver bem e o bem dizer; em segundo plano, comparece uma preocupao com a construo das palavras. Revela-se, assim, que a maneira como as palavras so estruturadas no discurso tem relevncia para o labor do filsofo. Em outra passagem, o filsofo comenta mais especificamente como a ordem das palavras pode constituir um estilo seguro e despreo-cupado (securus):

Fabiano no era negligente no estilo, mas despreocupado. Assim, nada encontrars ali de baixo: as palavras so escolhidas, no rebus-cadas nem, moda desta gerao, colocadas contra a sua natureza e invertidas.10 (Sn. Ep. mor. 100.5)

8 HERInGTOn, C.J. The younger Seneca, in EASTERLInG, P.E. et al., the Cambridge history of classical literature, Cambridge, Cambridge University Press, 1982, p. 515.9 Haec uerba tam inprobe structa, tam neglegenter abiecta, tam contra consuetudinem omnium posita ostendunt mores quoque non minus nouos et prauos et singulares fuisse. 10 Fabianus non erat neglegens in oratione sed securus. Itaque nihil inuenies sordidum: electa uerba sunt, non captata, nec huius seculi more contra naturam suam posita et inuersa [].

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Est em evidncia, portanto, na passagem acima, que no somente o estilo com que se emprega a linguagem (o uso de certas palavras e no outras, por exemplo, o rebuscamento), mas tambm a prpria sintaxe (a inverso das palavras, como sendo recurso anti-natural) constituem preocupaes dignas de ponderaes pelo filsofo. No se aborda direta-mente a ordem das palavras enquanto fenmeno prprio da imanncia lin-gustica, mas esta se coloca como subproduto da atividade filosfica, visto que a lngua e a linguagem a matria do labor filosfico por excelncia.

Considerado por Marcial (c. 40-104 d.C.), que possivelmente teria sido seu discpulo, como mestre sem igual da juventude inconstante, glria da toga romana11, Quintiliano (c. 30-96 d.C.) foi, certamente, ao lado de Ccero, um dos maiores tericos do saber legado pela retrica antiga. Pre-ocupado com a formao dos futuros oradores, Quintiliano props em sua Institutio oratoria os fundamentos para a composio de um discurso que primasse pelo cuidado e a elegncia, que considerasse o equilbrio e os valores legados pela tradio clssica, especialmente ciceroniana (opondo-se, portanto, ao discurso aparentemente desregrado defendido por Sneca).

Assim, enquanto o filsofo que o precedera em alguns anos privile-giava a linguagem prxima da fala, sem elaboraes e ornamentos, Quin-tiliano, porm, no que tange ao discurso retrico, advogava que sua lin-guagem deveria levar em conta um trplice aspecto: a ordem das palavras, a ligao e o ritmo12. No se trata de uma questo simplesmente tcnica no que diz respeito ao gnero oratrio; trata-se, na verdade, de um posiciona-mento diante da linguagem radicalmente oposto ao de Sneca: a frmula atribuda a Cato e apropriada por Quintiliano, j bem o diz: uir bonus, dicendi peritus 13 (homem bom, hbil no falar). As qualidades morais ex-celentes que caracterizam o orador ideal (bonus) so igualmente represen-tadas no apuro com que se utiliza da linguagem no seu discurso (peritus).

Assim, muito mais que aceito, o cuidado com as palavras acon-selhvel; a postulao daqueles que, tal como Sneca, condenavam in-verses ou advogassem uma ordem mais ou menos fixa para as palavras, mais prxima do que seria natural, era, para Quintiliano, no mnimo um pedantismo excessivo:

11 MARCIAL Ep. 2.90 uagae moderator summe iuuentae, Gloria Romanae togae12 QUInT. Inst. or. 9.4.22: Alm disso, em toda composio, trs gneros so necessrios: ordem, ligao e ritmo. (In omni porro compositione tria sunt genera necessaria, ordo, iunctura, numerus.)13 QUInT. Inst. or. 12.1.1: Que o orador que constitumos para ns seja aquele definido por M. Cato: homem bom, hbil no discursar. (Sit ergo nobis orator quem constituimus is qui a M. Catone finitur vir bonus dicendi peritus.)

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um tanto excessiva a observao de algumas pessoas de que os nomes devem preceder aos verbos; os verbos, aos advrbios; os no-mes, aos apostos e pronomes; pois, com efeito, a ordem inversa e, frequentemente, no desagradvel.14 (QUInT. Inst. or. 9.4.24)

Com efeito, para o mestre de retrica de Calagurris, as inverses que se possam produzir na ordem das palavras no somente produ-zem sequncias aceitveis, como, como se observa no passo seguinte, constitui ela mesma um artifcio retrico virtuoso, conhecido, desde h muito, pelo nome grego de hyperbaton e, em latim, pela palavra transgressio 15:

No injustamente, contamos tambm, entre as virtudes do estilo, o hi-prbato, isto , a transposio (transgressio) da palavra, j que o trato da disposio e a elegncia (decor) o reclamam com frequncia. Com efeito, a orao se torna frequentemente spera, dura, descuidada e desconexa se as palavras so nela arranjadas por fora da ordem.16

(QUInT. Inst. or. 8.6.62)

Por outro lado, porm, a utilizao das inverses requer certo equi-lbrio: para Quintiliano o bom discurso se caracteriza por ser adequada-mente ordenado, as inverses longas podem torn-lo obscuro:

rico, porm, aquele discurso ao qual se aplica uma ordem correta, uma ligao adequada e, com estes, um ritmo bem encadeado. Na verdade, h algumas inverses demasiadamente longas, conforme expusemos nos outros livros, e, ao mesmo tempo, tambm viciosa na composio [].17

(QUInT. Inst. or. 9.4.27).

14 Illa nimia quorumdam fuit obseruatio, ut uocabula uerbis, uerba rursus aduerbiis, nomina appositis et pronominibus essent priora; nam fit contra quoque frequenter non indecore. (QUInT. Inst. or. 9.4.24)15 Em outro manual de retrica, de autoria desconhecida, a Retrica a Hernio (Rhet. ad Herennium 4.44.55), o conceito de transgressio recebe uma especializao: tomado, lato sensu, o hyperbaton da gramtica grega, que em latim era traduzido por transgressio, poderia se dividir em dois fenmenos distintos: a inverso propriamente dita (peruersio) e a disjuno (transiectio/traiectio). 16 Hyperbaton quoque, id est, verbi transgressionem, quoniam frequenter ratio compara-tionis et decor poscit, non immerito inter virtutes habemus: fit enim frequentissime aspera, et dura, et dissoluta, et hians oratio, si ad necessitatem ordinis sui verba redigantur. 17 Felicissimus tamen sermo est, cui et rectus ordo, et apta iunctura, et quum his nume-rus opportune cadens contigit. quaedam vero transgressiones et longae sunt nimis, ut superioribus diximus libris, et interim etiam compositione vitiosae [].

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Assim, em suma, para Quintiliano, a ordem das palavras (assim como o prprio ritmo e a ligao entre os termos) se coloca como re-curso de elaborao retrica. A estrutura sinttica da lngua latina pos-sibilita a utilizao da inverso (hyperbaton/transgressio) para produzir um discurso elegante. Porm, sua utilizao no absolutamente livre: inverses longas demais resultam em composies viciosas (uitiosae). A prpria orao poder ser considerada mal-construda, caso a ordem no seja cuidadosamente pensada, conforme vemos em outra passagem:

Tais palavras, eu julgo, brevemente foram ditas sobre a ordem, a qual, se ruim, ainda que a orao seja bem encadeada e com bom ritmo, ser, entretanto, considerada mal-feita.18

(QUInT. Inst. or. 9.4.32)

Em sntese: Sneca e Quintiliano consideram a ordem das palavras no enunciado latino a partir de dois pontos de vista diferentes. Para o fi-lsofo romano, a apreciao da ordem na sintaxe da orao uma posio filosfica: o artifcio retrico que engendra a inverso das palavras produz rebuscamento e artificialidade, atenta contra uma certa naturalidade da lngua. Assim, para Sneca, o discurso verdadeiramente virtuoso no aquele que possua os ornatos retricos, mas aquele que soe natural e despreocupado. A ordem das palavras na sentena latina abordada, por-tanto, como subproduto e resultado de uma reflexo de carter filosfico.

Para Quintiliano, porm, os recursos expressivos da lngua, entre os quais a alterao da ordem das palavras na sentena (transgressio), revelam-se artifcios legtimos para se produzir um discurso elegante. A sua preocupao no reside em apreciar, portanto, a fala comum, mas em estabelecer as balizas que definem um discurso esteticamente elabo-rado que sirva para propsitos retricos e que destaquem a fala do orador ideal daquela do cidado comum e revele a nobreza de carter daquele. A ordem das palavras torna-se, portanto, uma varivel importante a ser considerada pelos oradores para produzir bons discursos.

importante ainda destacar que, embora, em Quintiliano, estejamos diante de um texto que apresenta os fundamentos da retrica romana, es-tamos tambm, e principalmente, de um texto que se ocupa da formao (institutio) dos antigos oradores. Disso advm, portanto, de modo an-logo a Sneca, uma preocupao com os oradores de carter moral: no

18 Nemo est qui nesciat: haec arbitror, ut in breui, de ordine fuisse dicenda; qui, si uitiosus sit, licet et uincta sit et apte cadens oratio, tamen incomposita dicatur.

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se trata apenas de apreciar os elementos tcnicos da retrica e produzir uma espcie de enciclopdia da oratria romana; trata-se, sobretudo, de identificar o bom discurso romano com o cidado ideal, que , ao mesmo tempo, o orador ideal.

A ordem das palavras na gramtica antiga: Apolnio Dscolo e Prisciano de Cesareia

O objeto-linguagem perpassa um grande nmero de disciplinas, muitas das quais tm a sua origem na Antiguidade greco-romana19. No ltimo item, apresentamos, por exemplo, alguns fragmentos que conside-ram a inverso na ordem das palavras a partir das perspectivas filosfica e retrica; em nenhuma delas, porm, se considerou esse fenmeno em si mesmo, i.e., a anlise metalingustica era resultado de uma reflexo maior em outro domnio (retrico e filosfico).

No discurso gramatical antigo, porm, pode-se, pela primeira vez, afirmar que o estudo sistemtico da lngua comea a requerer a indepen-dncia epistemolgica dos saberes da retrica, filosofia e potica, embora, preciso reconhecer, esse estudo no se dissociasse do repertrio das produes que hoje consideramos literrias. Ao contrrio, a gramtica surgiu como espcie de estudo metalingustico propedutico leitura dos autores, conforme verificamos, abaixo, com a definio seminal de Dionsio Trcio (c. II a.C.), a quem se atribui a primeira gramtica oci-dental, a tchn grammatik: gramtica o conhecimento emprico do que comumente dito pelos poetas e prosadores20.

Contudo, embora o horizonte de anlise no discurso gramatical greco-romano esteja no mbito da prpria lngua (e de seus produtos, os textos), a abordagem da ordem das palavras na sentena se desenvolveu tardiamente; no incio predominam os modelos de artes grammaticae: um esquema tripartite que englobava o estudo das litterae e seus fe-nmenos, o estudo das partes orationis e o estudos das figurae e uitia da linguagem. A considerao de um espao reservado sintaxe das palavras, ao seu arranjo e ordem na sentena, comparece, pela primeira vez, na obra de Apolnio Dscolo, gramtico do sculo II d.C.:

19 DESBORDES, F. Les ides sur le langage avant la constituition des disciplines spcifiques, In: , Ides grecques et romaines sur le langage, Travaux dhistoire et dpistmologie, Paris, ENS, 2007, p. 41.20 .

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Em nossos estudos apresentados anteriormente, tratamos sobre os vocbulos, conforme o assunto demandava, sua tradio foi revis-tada. Agora, porm, o estudo seguinte abordar a sintaxe, que rene as formas que levam congruncia da frase completa; meu projeto expor esse assunto em detalhes, pois muito necessrio explicao dos textos poticos.21 (APOL. 1.1)

O gramtico helenstico anuncia o objeto de sua exposio: o estudo da sintaxe (), que tem como consequncia a produo de uma orao completa ( ), bem como o objetivo desse estudo, a explicao dos textos poticos ( ); alinha-se, portanto, o estudo da ordem das palavras (sua disposio, ordem ou ar-ranjo, que definem o campo da sintaxe) tradio gramatical de Dionsio Trcio, tendo-se em vista um estudo posterior da tradio potica.

Na obra de Prisciano (c. VI d.C.), que declara seguir a autoridade (auctoritas) e os passos (uestigia) de Apolnio (PRISC. Inst. 17.2), a ideia de que o estudo da ordem das palavras tem como fim a construo de uma orao completa (oratio perfecta) tambm est presente:

Nas palavras acima, tratamos, portanto, da realizao das palavras separadamente, conforme requeria o seu sistema; agora, porm, abor-daremos a ordenao delas, a qual costuma se dar para a construo da orao completa.22 (PRISC. Inst. 17.2)

Apolnio Dscolo e Prisciano desenvolvero, portanto, um sistema que tenha como meta a explicao da construo das palavras na sen-tena. Ambos desenvolvem um modelo terico das unidades menores, as letras/sons (litterae), at as maiores, as oraes (orationes), passando pelas palavras (dictiones). O princpio que rege a ordenao de cada um desses segmentos o mesmo, definido pelo gramtico latino como ratio:

Do modo que discernimos o sistema das letras, tanto pela observao da escrita quanto pelo sentido dos ouvidos, assim tambm julgamos o sistema do encadeamento na ordenao das palavras se est correto

21 , , . , , , .22 In supra dictis igitur de singulis vocibus dictionum, ut poscebat earum ratio, trac-tavimus; nunc autem dicemus de ordinatione earum, quae solet fieri ad constructione orationis perfectae.

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ou no. Com efeito, caso esteja incoerente, estando unidos desar-moniosamente os elementos da orao, produzir-se- um solecismo, do mesmo modo que a desarmonia das letras ou das slabas, ou de suas propriedades em cada uma das palavras, produz barbarismo. Portanto, do mesmo modo que o sistema correto da escrita ensina a juno correta das letras, assim tambm o sistema de ordenao revela a composio correta da orao.23 (PRISC. Inst. 17.6)

Em suma, para os gramticos greco-romanos Prisciano de Cesareia e Apolnio Dscolo, a construo das palavras, responsvel pelo estudo de sua ordem, destaca-se como um objeto de estudo em si mesmo. O es-pao particular que concedem, ento, a esse domnio de anlise da lngua estaria presente nos desdobramentos posteriores dos estudos no campo da linguagem, redimensionando o prprio gnero gramatical, deslocando a ateno antes concedida, na terceira parte da antiga ars grammatica, s figuras e vcios de estilo, para aquela que se ocupa em determinar o prin-cpio lgico ou sistemtico (ratio) que preside a construo das palavras e determina, entre outros fatores, a sua ordem na sentena.

A ordem das palavras latinas e a filologia clssica

A partir das consideraes apresentadas dos autores antigos nos itens anteriores, podemos dizer que, no que tange ordem das palavras, as contribuies nos diferentes domnios permitem-nos esboar o se-guinte quadro:

1) A ordem das palavras constitui um recurso de elaborao estils-tica, aconselhvel para certos propsitos (cf. Quintiliano) e desa-conselhvel em outros (cf. Sneca); em todo caso, a liberdade de emprego das palavras na sentena no passa despercebida entre os autores antigos e objeto de polmica em que comparece uma preocupao tico-moral e no apenas estilstica.

2) A fixidez da ordem das palavras considerada zelo excessivo e pedante, mas o exagero das inverses produz enunciados mal-construdos estilisticamente (cf. Quintiliano).

23 quomodo autem literarum rationem vel scripturae inspectione vel aurium sensu diiudi-camos, sic etiam in dictionum ordinatione disceptamus rationem contextus, utrum recta sit an non. Nam, si incongrua sit, soloecismum faciet, quasi elementis orationis inconcinne coeuntibus, quomodo inconcinnitas literarum vel syllabarum vel eis accidentium in sigulis dictionibus facit barbarismum. Sicut igitur recta ratio scripturae docet literarum con-gruam iuncturam, sic etiam rectam orationis compositionem ratio ordinationis ostendit.

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3) A ordem das palavras livre, porm sujeita a sistematizaes (cf. Apolnio Dscolo e Prisciano), bem como o seu emprego in-diferente produz solecismos (cf. Prisciano).

Assim, em outras palavras, importa dizer que, embora a liberdade possvel na ordem dos termos da orao latina seja referendada e reconhe-cida no discurso metalingustico antigo, por outro lado ela no prescinde de uma normatizao, quer seja na esfera do discurso retrico e filosfico, quer seja do gramatical. Por esse motivo, os fillogos clssicos posterio-res, ao se debruarem sobre a ordem das palavras, afirmaro, conforme citamos alhures, que a ordem das palavras em latim livre, mas no indiferente24.

Alm disso, a percepo de que, embora livre, a ordem no fosse indiferente em latim levou fillogos do sculo XIX e XX a produzirem (e ratificarem) a concepo de ordem psicolgica, defendida primei-ramente por Weil segundo a qual as alteraes na ordem natural da sentena grega e latina resultado da importncia dada sucesso das ideias, com nfase nos termos que aparecem nas posies iniciais das sentenas. Trata-se de se eleger a posio inicial dos enunciados como um verdadeiro lugar de honra25 para as categorias mais importantes do ponto de vista discursivo. Em defesa desse ponto de vista, tambm Ma-rouzeau26 elenca e comenta passagens dos textos latinos que corroborem o argumento de que as palavras essenciais ocupam o primeiro lugar27, onde lhes conferido um valor excepcional na sentena. De igual modo, a segunda posio na sentena e a posio final tambm possuem um valor especial, pois, nesta, as palavras podem servir ao intento de produzirem suspense ou surpresa28, ao passo que, naquela, por uma herana do Proto-Indoeuropeu, algumas categorias so preferencialmente emprega-das o verbo esse, as conjunes e os termos subordinantes. A mesma

24 MAROUzEAU, J. Lordre des mots, p. 1.25 wEIL, H, De lordre des mots dans les langues anciennes compares aux langues mo-dernes, Paris, 1844, p. 156.26 MAROUzEAU, J., Lordre des mots dans la phrase Latine. III: les articulations de lnonc. Paris: Les Belles Lettres, 1949.27 Cf. MAROUzEAU (1949, p. 138): na sentena latina (LUC. Ph. 5.357): Mihi bella geram: discedite castram ( para mim que farei a guerra). A posio inicial do pronome dativo pressupe nfase concedida a essa informao, em oposio a uma construo teorica-mente no-enftica com o pronome em segunda posio e o verbo no final: Bella mihi geram28 MAROUzEAU, J., Lordre des mots en Latin: volume complmentaire, Paris, Belles Lettres, 1953, p. 89-90.

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anlise compartilhada por Meillet & Vndryes29, com o adendo de que as observaes sobre os lugares de honra na sentena se estendem, com-parativamente, ao grego clssico, com a ressalva importante, entretanto, de que as observaes acerca da ordem dos termos variam de autor para autor e, sobretudo, de gnero para gnero30.

Finalmente, no que concerne ao emprego particular da ordem das palavras que produz o hiprbato, Marouzeau considera-a um efeito emi-nentemente expressivo, prprio para reforar os efeitos do estilo31, ao mesmo tempo em que analisa, em outro lugar, seus reflexos de natureza pragmtico-discursiva, defendendo que

a intercalao de uma palavra estranha no grupo determinativo obriga o pensamento a interromper a sua marcha normal e a abrigar uma noo nova antes de voltar quela em espera; esse hiato, essa in-terrupo na sucesso das ideias que nos obriga a fixar a ateno no determinante [modificador, adjetivo].32

Consideraes finais

O tema da ordem das palavras latinas comparece nos trabalhos da filologia clssica vinculado sua relao com o estilo da construo da sentena. A liberdade de ordem das palavras no indiferente, pois en-gendra diferentes efeitos retricos ou de nfase na orao. Os fillogos consultados neste trabalho corroboram, assim, a viso dos antigos no que concernia a esse assunto.

O passo seguinte dessa pesquisa ser observar em que medida a noo de ratio empregada ordem das palavras apresentada por Pris-ciano e outros gramticos da antiguidade reelaborada nos discursos metalingusticos contemporneos sobre o assunto.

29 MEILLET, A. & vnDRyES, J, trait de grammaire compare des langues classiques, Paris, Honor Champion, 1953, 578-82.30 Cf. MEILLET (1953, p. 578): a poesia admite maior liberdade que a prosa, e faculta cons-trues pouco comuns em textos de prosa, e a lrica ainda mais que a pica. Do mesmo modo, na prosa, os gneros interferem: a prosa filosfica de Plato, por exemplo, apresenta uma variedade de ordem no encontrvel na historiografia de Herdoto.31 Considerando que boa parte dos textos clssicos filia-se a convenes dos gneros poticos (lrica, pica, drama), bem como mesmo os textos em prosa no estejam isentos de elaborao estilstica (retrica), parece-nos importante no descartar o fato de que a utilizao de sintagmas descontnuos possa, de fato, prestar-se produo de efeitos de sentido potico. 32 Cf. MAROUzEAU, 1922, p. 219.

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TITLE . Word-order in the Latin sentence: interfacing aspects within the ancient metalinguistic discourse.ABSTRACT . Marouzeau (1922) introduces his work with the categorical assertion that the Latin word-order is free, but not indifferent. By considering the particularities of ancient metalinguistic discourse, we aim at addressing the considerations within the ancient rhetoric domain (QUInTILIAn, Institutio oratoria 8-9), philosophy (SEnECA, Epistulae ad Lucilium, 100, 104) and grammar (PRISCIAn, Institutiones grammaticae, 17) which embases the Classical Philology point of view on the Latin word-order. In this investigation we also approach the interfaces and particularities of ancient metalinguistic discourse within these three different domains on what would receive an epistemological autonomy much later the syntax of Latin language.KEywORDS . Latin; Word-order; ancient metalanguage; philology; syntax.