a ocupação dandara, vista por cyro almeida

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Resumo Tendo como foco o ensaio fotográfico que Cyro Almeida dedicou à Ocupacão Dandara, em Belo Horizonte, este trabalho revisita as diferentes modalidades de representação do outro na história da fotografia documental e caracteriza a relação que se estabelece entre o fotógrafo, a câmera e o sujeito fotografado no ato fotográfico, apoiado nas formulações de Anna Karina Castanheira Bartolomeu. Considerando as características constitutivas do ato fotográfico, buscaremos mostrar como Cyro Almeida constrói uma nova visibilidade para essa ocupação urbana e seus moradores ao fazer determinadas escolhas relativas ao espaço enquadrado e à presença dos sujeitos fotografados.

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  • 1

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

    Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas

    Departamento de Comunicao Social

    Dbora Pereira Lopes Vieira

    A Ocupao Dandara, vista por Cyro Almeida

    Belo Horizonte

    2015

  • 2

    Dbora Pereira Lopes Vieira

    A Ocupao Dandara, vista por Cyro Almeida

    Monografia apresentada ao Curso de Graduao em

    Comunicao Social da Faculdade de Filosofia e

    Cincias Humanas da Universidade Federal de Minas

    Gerais como requisito parcial para obteno do ttulo de

    Bacharel em Publicidade e Propaganda.

    Orientador: Csar Guimares

    Belo Horizonte

    2015

  • 3

    Agradecimentos

    Agradeo a minha famlia pelo apoio, a Deus, as minhas amigas e amigos por estarem

    sempre comigo e ao meu orientador Csar Guimares pela pacincia, compreenso e auxlio.

  • 4

    Resumo

    Tendo como foco o ensaio fotogrfico que Cyro Almeida dedicou Ocupaco

    Dandara, em Belo Horizonte, este trabalho revisita as diferentes modalidades de representao

    do outro na histria da fotografia documental e caracteriza a relao que se estabelece entre o

    fotgrafo, a cmera e o sujeito fotografado no ato fotogrfico, apoiado nas formulaes de

    Anna Karina Castanheira Bartolomeu. Considerando as caractersticas constitutivas do ato

    fotogrfico, buscaremos mostrar como Cyro Almeida constri uma nova visibilidade para

    essa ocupao urbana e seus moradores ao fazer determinadas escolhas relativas ao espao

    enquadrado e presena dos sujeitos fotografados.

  • 5

    Sumrio

    Introduo ................................................................................................................... 6

    1. Modalidades de Representao do Outro .............................................................. 8

    2. A Dimenso indicial da fotografia ....................................................................... 17

    3. O Golpe do corte no espao-tempo fotogrfico ................................................... 20

    3.1. O corte temporal ....................................................................................... 21

    3.2. O corte espacial ........................................................................................ 22

    3.2.1. Relao do recorte com o fora-de-quadro ................................ 23

    3.2.1.1. Signos de movimento e deslocamento .............................. 24

    3.2.1.2. Jogos de olhar dos retratados ............................................ 24

    3.2.1.3. Presena direta do fotgrafo no campo.............................. 25

    3.2.1.4. Signos do cenrio que fazem um recorte no recorte ......... 25

    3.2.1.4.1. Fora-de-campo por efeito de (re)centramento ......... 25

    3.2.1.4.2. Fora-de-campo por fuga ........................................... 26

    3.2.1.4.3. Fora-de-campo por obliterao ................................. 26

    3.2.1.4.4. Fora-de-campo por incrustao ................................. 27

    3.2.2. Relao do recorte com o enquadramento a composio ........ 27

    3.2.3. Relao do recorte com o espao topolgico ............................ 28

    4. O fotgrafo, a cmera e o fotografado .................................................................... 29

    5. Procedimentos Metodolgicos ................................................................................ 31

    6. Anlise das fotografias ............................................................................................ 33

    6.1. A narrativa ..................................................................................................... 36

    6.1.1. Viso geral da ocupao .......................................................... 36

    6.1.2. Usos do espao ......................................................................... 37

    6.1.3. Espao planejado e em construo ........................................... 39

    6.1.4. Signos do cotidiano dos moradores .......................................... 41

    6.1.5. Dandara: espao de resistncia ................................................. 43

    6.2. Espaos externos ........................................................................................... 46

    6.3. Espaos internos ............................................................................................ 54

    6.4. Retratos dos moradores ................................................................................. 60

    Consideraes Finais ...................................................................................................... 66

    Referncias Bibliogrficas ............................................................................................. 68

  • 6

    Introduo

    Em abril de 2009, cerca de 150 famlias ocuparam um terreno de 40 hectares na regio

    norte de Belo Horizonte. A insero das famlias no espao se deu por meio da luta

    organizada pelos Movimento dos Sem Terra, Brigadas Populares e Frum de Moradia do

    Barreiro. A ocupao organizada e planejada, se denominou Dandara, em homenagem

    guerreira que lutou contra a escravido no sculo XVII, ao lado de Zumbi dos Palmares. A

    posse do terreno reivindicada pela construtora Modelo, que nunca construiu no local e

    acumula uma dvida de mais de 2,5 milhes de IPTU no pagos Prefeitura de Belo

    Horizonte.

    Os moradores da ocupao e movimentos apoiadores lutam pelo direito moradia e

    pela dignidade dessas pessoas que no possuem outra alternativa em funo dos altos preos

    dos alugueis e da especulao imobiliria. Pesquisa divulgada pela Fundao Joo Pinheiro

    em 2013 aponta que o dficit habitacional em Minas Gerais de 557.331 moradias, e s na

    regio metropolitana de Belo Horizonte faltam 167.000 casas1. Esses dados tocam na grave

    questo da reforma urbana, essencial para que todas essas famlias sejam assentadas e tenham

    seus direitos sociais bsicos garantidos.

    A Ocupao Dandara surge nesse contexto de necessidade de moradia e em meio

    luta judicial. Hoje a comunidade j conta com mais de mil famlias, e o conflito ainda no foi

    resolvido. Alm da falta de informao de muitos cidados a respeito da reforma urbana e

    sobre as ocupaes, a forma com que ela retratada nos veculos miditicos de massa

    contribui para reforar uma viso negativa sobre a ocupao, comumente chamada de

    invaso. Em funo da situao irregular e do conflito judicial, as famlias que moram nas

    ocupaes viveram sob um risco de despejo h pouco tempo.

    Em maio de 2010 os moradores da ocupao organizaram um acampamento na Praa

    Sete, em uma tentativa de dilogo com a Prefeitura de Belo Horizonte. Foi nessa ocasio que

    aconteceu o primeiro contato do fotgrafo Cyro Almeida com a comunidade e sua luta. Cyro

    passou a visitar a ocupao e, entre os anos de 2010 e 2012, realizou vrias fotos em Dandara

    que foram selecionadas e publicadas em 2014 em um livro. Elas tambm foram expostas no

    Palcio das Artes entre 22 de maro e 4 de maio desse mesmo ano.

    Essa monografia busca analisar o trabalho do fotgrafo no contexto da fotografia

    documental, em particular, quando esta procura retratar os sujeitos das classes pobres e

    1 Pesquisa disponvel em http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/docman/cei/deficit-habitacional/216-deficit-

    habitacional-municipal-no-brasil-2010/file. Acesso dia 30/06/2015.

    http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/docman/cei/deficit-habitacional/216-deficit-habitacional-municipal-no-brasil-2010/filehttp://www.fjp.mg.gov.br/index.php/docman/cei/deficit-habitacional/216-deficit-habitacional-municipal-no-brasil-2010/file
  • 7

    desfavorecidas. Nas diferentes abordagens da fotografia contempornea documental existem

    fotgrafos que se interessam em conhecer o mundo do outro, em dar visibilidade a esses

    sujeitos, em conceder a eles uma nova representao, diferente da que apresentada pela

    mdia. Nesse sentido, torna-se pertinente a reflexo sobre o trabalho fotogrfico de Cyro

    Almeida: quais foram suas estratgias de abordagem e aproximao com o outro? Como

    escolheu retratar o espao de Dandara e seus moradores? Qual representao ele constri e

    que tipo de visibilidade gera para a comunidade com as suas fotografias?

    Inicialmente faremos um breve panorama histrico e terico sobre as diferentes

    modalidades de representao do outro na histria da fotografia documental, baseados no

    trabalho de Anna Karina Castanheira Bartolomeu. Em seguida abordaremos o ato fotogrfico

    como ndice e golpe de corte no espao e no tempo, de acordo com as formulaes de

    Philippe Dubois. Aps esse levantamento sobre as caractersticas do signo e da imagem

    fotogrfica, falaremos sobre as relaes entre fotgrafo, dispositivo e o outro fotografado que

    se do na cena, no ato fotogrfico. Passada essa primeira etapa de consideraes reflexivas a

    respeito da imagem, realizamos uma primeira descrio da organizao do livro, identificando

    algumas das escolhas do fotgrafo na edio e quais sentidos ela sugere. Em seguida

    analisamos as fotografias, divididas em trs grandes grupos: espaos externos, espaos

    internos e retratos dos moradores.

  • 8

    1) Modalidades de representao do outro: brevssimo histrico

    Como observou Anna Karina Castanheira Bartolomeu, desde sua inveno, na

    primeira metade do sculo XIX, a fotografia esteve envolvida na representao do outro de

    classe ou de outra cultura.2 Seja no exotismo despertado pelo Oriente, seja no contexto da

    colonizao conduzida pelos pases europeus, o outro, fotografado, era apanhado em

    dispositivos de conhecimento, controle e documentao que o categorizavam, estereotipavam,

    o colocavam como diferente. Alguns fotgrafos tambm mostraram interesse pelo mundo do

    outro, no por este pertencer a uma cultura extica, mas por fazer parte de uma classe social e

    econmica diferente da sua. Esses fotgrafos estavam em busca da alteridade no mundo do

    outro, este que possua um modo de vida diferente do seu, com o objetivo de dar visibilidade

    situao vivida por ele e, assim, contribuir para que ela fosse alterada. Com isso, eles

    acreditavam que poderiam promover mudanas.

    Alguns fotgrafos se preocuparam em registrar situaes de precariedade social, como

    Jacob Riis, que fotografou imigrantes que viviam em bairros pobres de Nova York em

    pssimas condies de moradia na ltima dcada do sculo XIX. O objetivo de Riis era

    denunciar a situao em que viviam essas pessoas e contribuir, de algum modo, para que ela

    fosse alterada. Porm, certas vezes a forma de aproximao escolhida no era nada respeitosa:

    no meio da madrugada ele invadia as casas com a ajuda de um policial e disparava o flash

    para capturar a real situao em que se encontravam aquelas pessoas. Conforme escreve

    Price:

    As "meras palavras" deveriam ser substitudas, na opinio de Riis, pela veracidade

    irrefutvel da cmera, e ele via sua contribuio como a de produzir evidncia para

    provar o que de outra forma seria problemtico. Mas ele no teria considerado sua

    viso pessoal como importante: os fatos falariam por si mesmos e os habitantes da

    favela haviam sido convertidos, atravs da mirada documental, em "fatos".3

    Com esse mtodo de trabalho, o fotgrafo no dava espao para o outro se situar,

    negociar a sua representao na imagem fotogrfica; os imigrantes eram pegos de surpresa,

    no havia uma conversa prvia, um acordo entre fotgrafo e fotografado. Riis acreditava na

    objetividade da cmera, na sua imparcialidade e capacidade de dar conta dos fatos. Ele

    trabalhou como reprter policial para o Tribune e depois para o Evening Sun e acreditava que

    2 BARTOLOMEU, Anna Karina Castanheira. De dentro da favela: o fotgrafo, a mquina e o outro na cena.

    Tese (Doutorado em Comunicao Social). Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2008. 3 PRICE, Derrick, Surveyors and surveyed: Photography out and about, In: WELLS, Liz (org) Photography: a

    critical introduction. Londres, Routledge, 1997 (Traduo de Rui Cezar dos Santos), p.7.

  • 9

    as fotografias seriam capazes de mostrar s pessoas a realidade e de convenc-las da pobreza

    e misria existente em Nova York, o que apenas seus textos no conseguiam. Em funo da

    objetividade pretendida e das condies em que Riis realizou as suas fotografias, elas no

    possuam uma preocupao esttica e formal. Nas palavras de Price: "Talvez inevitavelmente,

    suas fotografias nos provm detalhes etnogrficos da vida material e das condies sociais ao

    invs de leituras subjetivas mais complexas da natureza da pobreza e da destituio."4.

    Esse efeito de realidade atribudo prtica fotogrfica de Riis estava em consonncia

    com as primeiras formulaes tericas sobre a fotografia que surgiram no sculo XIX. Estas

    consideravam a cmera como uma mquina objetiva em funo da semelhana entre o objeto

    fotografado e a imagem formada pelo aparelho. A fotografia era entendida como um espelho

    da realidade, mimtica, a perfeita imitao do real. O dispositivo fotogrfico, por ser um

    aparelho mecnico que obedece s leis da fsica e da qumica teria uma preciso capaz de

    mostrar a realidade tal como . Como aponta Philippe Dubois, essa concepo mimtica da

    fotografia pode ser associada categoria dos cones, tal como formulada por Charles Sanders

    Peirce: signos que esto ligados ao objeto que representam por uma relao de semelhana.

    No sculo XIX tornaram-se populares as revistas ilustradas, publicaes que se

    utilizavam de imagens para contar uma histria. Inicialmente essas revistas utilizavam

    ilustraes de gravura em madeira. Com a inveno da fotografia isso iria mudar, mas no

    imediatamente, devido s dificuldades tcnicas dos meios de reproduo. Porm, enquanto as

    fotografias no conseguiam ser impressas, artistas se baseavam em fotografias para fazer as

    ilustraes desses peridicos. O aprimoramento das tcnicas de impresso, heliogravura e

    offset, no comeo do sculo XX possibilitou a difuso das fotografias em publicaes em

    massa. A reproduo de fotografias pelas revistas ilustradas foi fundamental para a prtica do

    fotodocumentarismo moderno. Elas permitiram aos fotgrafos publicar suas fotos de

    investigao social em formato de grandes reportagens. Esse movimento de revitalizao do

    jornalismo, marcado pela preocupao poltica, surgiu na Alemanha na dcada de 1920. Com

    a ascenso de Hitler ao poder, muitos dos editores e fotgrafos das Ilustradas alems

    exilaram-se na Frana, Reino Unido e Estados Unidos, e levaram para esses pases essa nova

    prtica do fotojornalismo.

    Na dcada de 1930 surge o projeto arquetpico do fotodocumentrio, marcado pela

    preocupao em denunciar situaes sociais de desigualdade, injustia, pobreza e com uma

    4 PRICE, Derrick, 1997, p.7.

  • 10

    forte pretenso de mudana e reforma social. De acordo com Derrick Price, a fotografia dos

    anos 1930 foi influenciada por vrios fatores:

    Tecnicamente, o desenvolvimento das novas e leves cmeras 35mm tornou possvel

    novos ngulos de cmera. Houve crescimento no nmero de revistas ilustradas e,

    dentro dessas, uma abordagem crescentemente sofisticada do papel dos editores de

    fotografia e a construo de fotoensaios. No menos, havia um pblico novo e vasto

    com fome de ver imagens derivadas da vida real. O movimento documental era,

    claro, amplamente discutido em relao ao cinema e no h dvida de que John

    Grierson era uma figura importante na determinao da natureza de seu projeto

    esttico e poltico.5

    Grierson cunhou o termo documentrio em 1926 para definir um cinema oposto ao

    entretenimento e fbrica de sonhos de Hollywood. Ele acreditava que o cineasta poderia, por

    meio da sua criatividade, fazer filmes que tivessem um compromisso maior em retratar o real

    e em produzir conhecimentos sobre o mundo que seriam teis sociedade. A fotografia foi

    influenciada por essa concepo de documentrio, e nesse perodo, entre as dcadas de 1920 e

    1930, comea a ser gerada uma mudana na prtica dos fotgrafos documentais. Como aponta

    Olivier Lugon:

    Na acepo de fotodocumentrio que passou a ser ento gestada, a criao humana

    no era mais percebida como um elemento perturbador da capacidade reveladora

    supostamente inerente ao automatismo e mecanicidade do equipamento

    fotogrfico. Ao contrrio, a liberdade criativa do fotgrafo se firmou como um modo

    exceder

    a mera reproduo da realidade para, dessa maneira, signific-la.6

    Nesse panorama de fotgrafos documentais que j tinham uma preocupao com os

    recursos expressivos que poderiam utilizar para interpretar o mundo sua volta e retrat-lo

    sob o seu ponto de vista, situam-se alguns fotgrafos da Farm Security Administration (FSA),

    organizao criada pelo governo americano de Rossevelt em 1935 na tentativa de reconstruir

    a economia americana abalada pela grande depresso. Foi criado um departamento de

    fotografia na FSA, dirigido por Roy Stryker. Os fotgrafos contratados deveriam produzir

    imagens que fossem capazes de sensibilizar a populao norte-americana acerca da situao

    dos agricultores do oeste e do sul e convenc-la que os programas assistenciais do governo

    eram necessrios para recuperar essas economias. O projeto fotogrfico tinha um objetivo

    definido: as fotos deveriam mostrar a pobreza dos pequenos agricultores, as muitas

    dificuldades que enfrentavam. Os fotografados deveriam ser retratados como trabalhadores

    5 PRICE, Derrick, 1997, p.10.

    6 LUGON, 2010, apud SANTOS, Ana Carolina, Da Inter-relao entre fotodocumentrio e fotomontagem: a

    experincia de Pedro Meyer em Truths & Fictions. Tese (Doutorado em Comunicao Social). Belo Horizonte:

    Universidade Federal de Minas Gerais, 2014, p. 66-67.

  • 11

    dignos de receber a ajuda do Governo. Todas as fotografias passavam pela aprovao de Roy

    Stryker, que verificava se elas estavam condizentes com esses propsitos.

    Um dos grandes fotgrafos que trabalhou na FSA foi Walker Evans. Por no

    concordar com os mtodos de Stryker, desligou-se do projeto em 1938. Em 1941, juntamente

    com James Agee, publicou o livro Elogiemos os Homens Ilustres, com fotos que realizou no

    perodo. Evans no concordava com o drama sentimentalizado que Stryker exigia que os

    fotgrafos da FSA expressassem nas fotos. Submetidos inteno do projeto de despertar o

    sentimento e a compaixo da classe-mdia norte americana, frequentemente os agricultores

    eram retratados como pessoas destitudas, passivas, assujeitadas a uma situao social

    desfavorecida, como sublinha Price:

    Os fotgrafos da FSA usaram uma variedade de meios tcnicos para dotar seus

    sujeitos com qualidades particulares. [...] Essas fotografias documentais, ento,

    como todas as outras, so trabalhos densamente construdos que empregam certas

    tcnicas e formas para produzir uma resposta desejada no espectador. Elas

    certamente contm 'fatos' em um sentido simples: uma mulher veste um vestido feito

    de um saco de farinha, uma famlia vive debaixo de uma tenda improvisada de

    estacas e lona. H, em outras palavras, muita evidncia de pobreza indicada por

    marcas tradicionais de ausncia de prosperidade material. Mas, em suas verses

    mais complexas, elas so fotografias dos (literalmente) destitudos, cuidadosamente

    construdas para produzir um significado que transcende o que mostrado.7

    No contato que se estabelece entre fotgrafo e fotografado est presente uma relao

    de poder, pois a cmera no um aparelho que simplesmente reproduz a realidade; o ato

    fotogrfico feito de escolhas, o fotgrafo recorta uma cena, escolhe o que vai mostrar e

    como mostrar, efeitos e sentidos so produzidos. Com isso, alguns fotgrafos comeam a

    refletir sobre como o outro representado na fotografia documental. Guiado por uma severa

    crtica dessas representaes que desconstroem o mundo do outro em sua diferena, James

    Agee escreveu no prefcio de Elogiemos os Homens Ilustres:

    Parece-me curioso, para no dizer obsceno e totalmente aterrorizador, que possa

    ocorrer a uma associao de seres humanos reunidos em uma

    companhia, por necessidade e sorte, e por lucro, um rgo de jornalismo, espiar

    intimamente as vidas de um grupo de seres humanos indefesos e

    consternadoramente injuriados, uma famlia rural ignorante e indefesa, para o

    propsito de exibir a nudez, desvantagem e humilhao dessas vidas diante de outro

    grupo de seres humanos em nome da cincia do "jornalismo honesto" (o que quer

    que seja que esse paradoxo signifique), da humanidade, de bravura social, por

    dinheiro e por uma reputao de fazer uma cruzada e por falta de preconceito que,

    quando bem competentemente qualificado, cambivel em qualquer banco por

    dinheiro... e que essas pessoas possam ser capazes de meditar esse prospecto sem a

    menor dvida sobre suas qualificaes para produzir uma pea de trabalho 'honesta',

    7 PRICE, Derrick, 1997, p.12.

  • 12

    e com uma conscincia melhor do que clara, e na certeza virtual de aprovao

    pblica quase unnime.8

    Os fotgrafos documentais da dcada de 30 e 40 foram bastante influenciados pelos

    preceitos da fotografia moderna e, em especial, pela straight photography ou fotografia direta.

    Os seus representantes, como Paul Strand, Edward Weston e Ansel Adams defendiam a boa

    forma e o rigor da composio, alm de uma grande nitidez na imagem, capaz de

    proporcionar grande preciso de detalhes, gradao de tons e explorao da textura. Os

    modernistas reivindicavam uma fotografia pura, em oposio ao pictorialismo popular no

    final do sculo XIX e comeo do sculo XX. Pensavam na fotografia como arte, mas por

    meio da utilizao de recursos prprios do meio fotogrfico, recursos prprios da cmera.

    Para eles, escolhas deveriam ser feitas no momento anterior realizao da imagem, pois

    eram contrrios a manipulaes no negativo e na cpia.

    As revistas ilustradas continuaram sendo o principal meio de divulgao dos

    fotgrafos documentais at as dcadas de 1960 e 1970. Elas exerceram um papel fundamental

    no consumo de fotografias pela sociedade; com suas reportagens que privilegiavam o uso de

    vrias fotografias aliadas a pequenos textos, elas entraram na rotina de leitura de diversos

    pases. As fotografias destinadas a esses espaos tinham um outro tempo de realizao, no

    seguiam a lgica do jornalismo dirio em que as fotos eram mais ilustrativas e deveriam ser

    realizadas rapidamente. Os fotoensaios das revistas ilustradas permitiam que os fotgrafos

    pesquisassem antes de ir a campo e que se prolongassem mais na realizao das imagens, por

    meio de uma imerso no tema que seria retratado. Isso proporcionou aos fotgrafos mais

    liberdade para compor suas imagens e entrar em contato com o outro que iriam retratar.

    Esse estilo de fotorreportagem comeou a ser praticado no Brasil em 1943, com a

    contratao do fotgrafo francs Jean Manzon pela revista O Cruzeiro. Ele foi convidado por

    Assis Chateaubriand para implantar esse novo jornalismo no Brasil. O peridico foi

    responsvel pela divulgao do trabalho de importantes fotodocumentaristas brasileiros, como

    Jos Medeiros e Flvio Damm. Apesar da diversidade presente nas fotos, tanto em funo do

    tema (serto, manifestaes das culturas negras e indgenas, "tipos brasileiros", movimentos

    sociais, etc), quanto pelo estilo e pelo mtodo de trabalho, elas possuem alguns traos em

    comum, prprios da fotografia moderna: a tomada frontal, nitidez, luminosidade e a

    legibilidade das imagens.9

    8 AGEE, James e EVANS, Walker, Elogiemos os homens ilustres, 1939, p.7.

    9 LUGON, 2001, apud BARBALHO, Marcelo (2010, p.56) considera caractersticas marcantes do estilo

    moderno a tomada frontal, a luminosidade, a nitidez e a legibilidade da imagem. Esse conjunto constitui uma

    plasticidade que confere simplicidade formal s imagens documentais modernas, num contraponto patente s

  • 13

    Percebe-se na obra de fotgrafos documentais modernistas como Walker Evans e

    Sebastio Salgado ressaltadas as enormes diferenas (estilsticas e histricas) uma

    preocupao no apenas com o tema social que abordado, mas tambm com a tcnica e a

    composio, ao contrrio dos primeiros fotgrafos documentais, como Jacob Riis por

    exemplo, que pelas prprias condies de realizao da imagem no tinham esse apuro

    formal. Reconhecia-se, portanto, que apesar de manter uma relao com o mundo real e

    represent-lo, a fotografia documental no era resultado apenas de processos mecnicos, no

    era produto de uma mera transcrio do mundo. Ao contrrio, o fotgrafo interferia nesse

    mundo ao fotografar, ao interagir com o outro representado; por meio de escolhas tcnicas de

    composio ele codificava a mensagem fotogrfica e, assim, atribua significados ao que ele

    representava. Conforme escreve Soulages:

    O fotodocumentrio remete ao mundo, estabelecendo relaes com ele, e tambm

    dele se separa na medida em que sempre o reconfigura em formas virtuais que no

    so mais as dele. A fotografia passou a ser percebida, pois, como resultado de um

    processo de transformao e atualizao que se d a partir do modo como o

    fotgrafo traduz na imagem, na organizao dos seus elementos constituintes, uma

    maneira de recriar o mundo. A fotografia no opera na reproduo ou restituio do

    referente, mas na sua reapropriao fotogrfica.10

    O discurso da mimese, da fotografia como espelho da realidade perde espao por volta

    dos anos 1970 com o surgimento da abordagem estruturalista e os tericos comeam a pensar

    na fotografia como um processo de transformao, codificao do real. O fotgrafo, ao

    realizar uma foto tem intenes, mostra o seu ponto do vista sobre a cena, escolhe o que vai

    dar a ver do retratado e de seu contexto. A fotografia ento uma mensagem codificada

    tecnicamente, culturalmente, sociologicamente e esteticamente, como aponta Philippe Dubois:

    Logo se manifestou uma reao contra esse ilusionismo do espelho fotogrfico. O

    princpio de realidade foi ento designado como pura "impresso", um simples

    "efeito". Com esforo tentou-se demonstrar que a imagem fotogrfica no um

    espelho neutro, mas um instrumento de transposio, de anlise, de interpretao e

    at de transformao do real, como a lngua, por exemplo, e assim, tambm,

    culturalmente codificada.11

    Ganha fora o discurso da fotografia como um smbolo, sua capacidade de significar

    no apenas como evidncia de algo, como um fato, mas como construo de sentidos. O

    fotgrafo passa a ser visto como capaz de evocar significados, de expressar o seu ponto de

    vista do mundo por meio da fotografia, que ser decodificada pelo espectador na utilizao de

    cpias escurecidas e com efeitos crepusculares de pictorialistas como Robert Demachy e Edward Steichen

    (especificamente no incio de sua carreira nos primeiros anos do sculo XX). 10

    SOULAGES, 2010, apud SANTOS, Ana Carolina, 2014, p.68 11

    DUBOIS, Philippe, O Ato fotogrfico, 1984, p.26.

  • 14

    referncias culturais comuns. De acordo com Bartolomeu: "Ao valor de evidncia da

    fotografia, vem se acrescentar o valor simblico, bem como seu valor esttico."12

    .

    Em funo de uma maior preocupao dos fotgrafos com os recursos expressivos

    para conseguir trazer novos significados cena retratada e a exposio de suas fotografias em

    museus tem incio o reconhecimento do autor na fotografia documental. Em 1938 o Museu de

    Arte Moderna de Nova York (MoMA) realizou uma exposio com setenta imagens da FSA.

    Com isso, a fotografia documental ganhou um novo espao de circulao, no mais restrita s

    revistas ilustradas; alcana esse espao da arte que antes era dedicado apenas as fotografias

    com pretenses artsticas.13

    Alm do espao conquistado nos museus, vrios fotgrafos

    publicam livros com suas obras, tanto com um carter retrospectivo, reunindo fotografias de

    diferentes temticas, quanto livros de carter ensastico. Como exemplo do primeiro temos o

    livro Images la Sauvette (O momento decisivo), lanado em 1952 por Henri Cartier-

    Cartier-Bresson, e como exemplos do segundo caso temos as obras American Photographs

    publicado em 1938 por Walker Evans e Les Americains (Os americanos) de Robert Frank em

    1958, do qual falaremos mais adiante.

    A partir dos anos 1950 o discurso do reformismo social da fotografia documental

    perde fora e os fotgrafos lanam o seu olhar para outros temas, mais ligados ao cotidiano,

    representao da vida social e no necessariamente questes de classe. Os fotgrafos

    documentais passam a gozar de uma maior liberdade, segundo Bartolomeu: "Os temas

    tacitamente autorizados a serem tratados pelo documentrio fotogrfico se ampliam e passam

    a incluir qualquer coisa que seja capaz de mobilizar a ateno do fotgrafo."14

    . Este o caso

    do trabalho de Robert Frank, Les Amricains, publicado em 1958 em Paris, e no ano seguinte

    nos Estados Unidos como The Americans. As imagens foram feitas em viagem realizada por

    Frank pelos EUA entre 1955 e 1956, com o auxlio da bolsa Guggenheim. As fotos retratam

    os Estados Unidos por um outro ngulo: a viso do estrangeiro que lana um olhar irnico

    sobre os acontecimentos da vida cotidiana dos americanos. Nessa obra de Frank percebe-se

    uma maior experimentao na esttica documental ao romper com certos preceitos da

    fotografia modernista que tem reflexos na fotografia contempornea. Por meio da

    utilizao de borres, desfoques e novos enquadramentos Frank atinge uma maior

    subjetividade e expressividade.15

    12

    BARTOLOMEU, Anna Karina Castanheira, 2008, p.57. 13

    ROSENBLUM, 1997, apud Anna Karina, 2008, p.58. 14

    BARTOLOMEU, Anna Karina Castanheira, 2008, p.61. 15

    Os termos subjetividade e expressividade muitas vezes utilizados aqui se referem aos usos de recursos

    estilsticos, visuais, compositivos e tcnicos de que os fotgrafos se utilizam para transcender os fatos

  • 15

    Aps The Americans, a fotografia documental entrou na fase contempornea de sua

    evoluo. Muitos fotgrafos se voltaram para dentro de si mesmos ao mesmo tempo

    em que se afastaram do tumulto das aes e da vida pblica das agitaes. A

    preocupao deles passou a ser o reconhecimento e os problemas viscerais do

    homem. Comunicar a realidade psicolgica se torna mais importante do que

    expressar a realidade visual ou social. A emoo do fotgrafo, ou sua experincia,

    passa a ser to central para a imagem quanto sua viso de mundo. Esse mapa da

    psique fotografia complexa, muitas vezes traioeira, pois leva a imagens que

    primeira vista podem parecer borres-rejeitados, estranhamente enquadrados, vazias

    como as obras de arte de sucesso. A fotografia exige uma interpretao atenta. O

    observador deve pensar sobre as imagens para alcanar a mensagem fotogrfica. 16

    Essa maior possibilidade de experimentao na esttica documental tambm teve

    reflexos em obras produzidas no Brasil, como o trabalho de Cludia Andujar com os ndios

    Yanomami na dcada de 70. Em suas fotografias sobre os rituais xamnicos e o cotidiano na

    aldeia, Andujar utiliza-se de elementos como borres, arrastamentos, utilizao de luz de

    lampies de querosene no interior de ocas para conseguir retratar nas fotografias a atmosfera

    dos rituais indgenas, seu aspecto de transe e representar a relao dos Yanomami com a

    floresta. Essa viso mais subjetiva e dotada de liberdade expressiva rompe com a esttica do

    modernismo documental, mas suas fotos tambm apresentam influncia desse perodo, tanto

    pelo seu engajamento social pelo reconhecimento dos direitos indgenas quanto pelos retratos

    realizados em sua obra Marcados. De acordo com Brando e Machado: "a plasticidade

    existente em alguns momentos na obra da fotgrafa antecipou, 'de modo visionrio', conceitos

    e estticas notados de forma mais recorrente na fotografia contempornea brasileira apenas a

    partir da dcada de 90."17

    .

    A fotografia documental contempornea marcada por uma variedade de temas

    abordados e estilos, englobando fotgrafos com trabalhos bastante distintos. Mas todos eles

    tem em comum a ruptura com o modelo de documentrio de reforma social que acreditava

    que, por meio de fotografias seria possvel mudar a sociedade. De acordo com Price,

    "certamente os fotgrafos documentaristas no esto mais atados ao projeto poltico que foi

    esposado pelo movimento documentarista dos anos 1930. Nem so necessariamente

    empregados os cdigos que pareciam autenticar as fotografias documentais."18

    . O que temos

    visto na fotografia documental contempornea uma maior liberdade de experimentao e

    expresso. Em alguns fotgrafos documentais brasileiros pode-se perceber uma exacerbao

    do uso de elementos estilsticos, como Tiago Santana, que utiliza, por exemplo, imagens

    apresentados pela fotografia documental, e assim, atribuir sentidos a foto, que contm o ponto de vista do

    fotgrafo sobre determinada realidade. 16

    DOCUMENTARY photography. Nova Iorque: Time-Life Books, 1972. apud BARBALHO, Marcelo, 2010,

    p.70. 17

    BRANDO e MACHADO, 2005, apud BARBALHO, Marcelo, 2010, p.73. 18

    PRICE, Derrick, 1997, p.19.

  • 16

    borradas, desenquadramentos e a presena de reflexos em superfcies espelhadas. Outra

    vertente o documentrio imaginrio19

    , tendncia que se utiliza de recursos ficcionais para

    afirmar ideias, posies, criar novas possibilidades de significados em obras documentais.

    Como exemplo temos a obra Paisagem Submersa, dos mineiros Joo Castilho, Pedro David e

    Pedro Motta, exposta em galerias e publicada em livro em 2008. O recurso fico e

    montagem em fotografias documentais tem usos atuais, mas reflete discusses anteriores

    sobre a capacidade da fotografia em representar a realidade, como j apontava Walter

    Benjamin em seu ensaio Pequena histria da fotografia, em 1932, ao destacar o papel da

    construo e da montagem.

    Mas, se a verdadeira face dessa "criatividade" fotogrfica o reclame ou a

    associao, sua contrapartida legtima o desmascaramento ou a construo. Com

    efeito, diz Brecht, a situao "se complica pelo fato de que menos do que nunca a

    simples reproduo da realidade consegue dizer algo sobre a realidade. Uma

    fotografia das fbricas Krupp ou da AEG no diz quase nada sobre essas

    instituies. A verdadeira realidade transformou-se na realidade funcional. As

    relaes humanas, reificadas numa fbrica, por exemplo , no mais se

    manifestam. preciso, pois, construir alguma coisa, algo de artificial, de fabricado."

    O mrito dos surrealistas o de ter preparado o caminho para essa construo

    fotogrfica.20

    Nessa diversidade de discursos documentais da atualidade a representao do outro

    no saiu de cena, mas ganhou novas modalidades, guiadas por novos procedimentos. Alm de

    utilizar outros recursos expressivos (o que no uma regra), como no caso de Paisagem

    Submersa, em que a fico se faz presente, o documentrio contemporneo que se volta para o

    outro (de outra classe, cultura ou grupo social) no tem mais a pretenso de promover uma

    reforma social e conseguir realizar mudanas por meio da fotografia. O objetivo maior dar a

    ver o outro e o seu mundo, suas particularidades. As imagens reivindicam para esse outro uma

    nova representao, diferente da que costumeiramente produzida nas grandes mdias. O

    processo em que se da a realizao das fotos tambm diferente: por meio da experincia do

    fotgrafo no mundo do outro, da vivncia e da convivncia com o outro, h uma negociao

    entre fotgrafo e fotografado, as relaes de poder so problematizadas e o fotgrafo pretende

    19

    "No Documentrio Imaginrio, os fotodocumentaristas procuram colocar para fora seus sonhos, suas

    subjetividades de maneira mais explcita, o que no significa que muitos j no o faziam. Apenas agora isso

    acontece de forma aberta, escancarada, sem restries. No h mais a busca de uma relao analgica com o

    referente na mesma intensidade que havia na forma clssica da fotografia documental, e as imagens fluem menos

    apegadas idia de objetividade, embora as caractersticas fundamentais da fotografia documental sejam

    mantidas (pesquisa prvia sobre o tema, projetos de longa durao, conjunto de imagens que formam uma

    narrativa etc.)." LOMBARDI, Ktia. Documentrio Imaginrio: Novas potencialidades na fotografia documental

    contempornea. Dissertao (Mestrado em Comunicao Social). Belo Horizonte: Universidade Federal de

    Minas Gerais, 2007, p.75. 20

    BENJAMIN, Walter, Pequena histria da fotografia, 1932, p.106.

  • 17

    que essa proximidade com o outro possa ser refletida em uma representao construda no

    encontro entre fotgrafo e fotografado, como Bartolomeu afirma:

    Assim, a valorizao de uma experincia comum num projeto de fotografia

    configura uma aposta na formao ou na existncia prvia de quadros de sentidos

    compartilhados que favoream uma melhor compreenso da vida do outro. Muito

    frequente tambm o argumento dos fotgrafos de que, com a convivncia

    prolongada, podem ser como que absorvidos pelo grupo em dado momento,

    podendo assim penetrar em zonas de outro modo inacessveis. Enfim, o que se

    espera que essa experincia de partilhamento possa impregnar as imagens e a

    narrativa que ser tecida a partir delas.21

    nesse novo contexto que foi realizada a experincia fotogrfica do fotgrafo Cyro

    Almeida na Ocupao Dandara, entre 2011 e 2012. Em 2014 ele publicou um livro por meio

    de Lei de Incentivo Cultura e realizou uma exposio no Palcio das Artes em maro desse

    mesmo ano. Na obra do fotgrafo, na qual nos deteremos mais adiante, percebemos esse

    desejo de dar visibilidade ao outro e construir novas representaes possveis, diferente da

    forma com que as ocupaes urbanas so representadas pela grande imprensa. Antes de

    abordarmos a obra de Cyro Almeida, porm, recordaremos alguns tpicos da teoria da

    fotografia que nos sero teis na anlise das imagens.

    2) A Dimenso indicial da fotografia

    Segundo Philippe Dubois, por volta da dcada de 1970 destaca-se um novo discurso

    sobre as teorias da fotografia. Retoma-se as consideraes de Charles Sanders Peirce sobre a

    relao do signo com o seu objeto, para caracterizar a fotografia como um signo

    primeiramente indicial, em sua gnese. Essas consideraes surgem em oposio ao discurso

    da fotografia como processo de codificao e transformao do real, dotada de uma dimenso

    primeiramente simblica. As pesquisas ps-estruturalistas, lanando mo da semitica de

    Peirce e de consideraes anteriores de outros autores como Andr Bazin, Walter Benjamin e

    Roland Barthes, definem o carter referencial da fotografia, sua contiguidade fsica com o

    objeto representado, o princpio de formao da imagem fotogrfica por meio de uma

    impresso luminosa como a essncia da fotografia. Esta pensada ento como um trao do

    real, um signo capaz de atestar a existncia do seu referente, que esteve ali no momento de

    realizao da imagem fotogrfica, como afirma Dubois:

    A fotografia, antes de qualquer outra considerao representativa, antes mesmo de

    ser uma imagem que reproduz as aparncias de um objeto, de uma pessoa ou de um

    21

    BARTOLOMEU, ANNA Karina, 2008, p.69.

  • 18

    espetculo do mundo, em primeiro lugar, essencialmente, da ordem da impresso,

    do trao, da marca e do registro (marca registrada, diria Denis Roche). Nesse sentido

    a fotografia pertence a uma categoria de "signos" (sensu lato) chamados pelo

    filsofo e semitico americano Charles Sanders Peirce de "ndice" por oposio a

    "cone" e a "smbolo". Para me adiantar (muito), direi apenas que os ndices so

    signos que mantm ou mantiveram num determinado momento do tempo uma

    relao de conexo real, de contiguidade fsica, de co-presena imediata com seu

    referente (sua causa), enquanto os cones se definem antes por uma simples relao

    de semelhana atemporal, e os smbolos por uma relao de conveno geral.22

    Sem a luz que o objeto reflete e sensibiliza o material flmico no haveria a formao

    da imagem fotogrfica. A dimenso indicial est relacionada com o ato mesmo de fazer a

    imagem, aquela frao de segundo em que o obturador disparado e ento no h

    interferncia do homem, quando opera-se a transferncia luminosa. somente nesse tempo

    situado entre o antes e o depois da realizao da imagem que a fotografia pode ser

    considerada, segundo Barthes, uma mensagem sem cdigo, pura denotao. A relao do

    signo indicial com seu referente se d por meio de uma conexo fsica, o que implica que os

    ndices, como o caso da fotografia, mantm uma relao de singularidade, atestao e

    designao com o seu objeto, como explicaremos mais adiante. Outro ponto importante que

    Dubois destaca que os signos no se restringem apenas a cones, ndices e smbolos, "um

    mesmo signo pode depender das trs categorias semiticas ao mesmo tempo"23

    , o que

    fundamental para entender o signo fotogrfico.

    Antes da tomada da foto, na frao de segundo em que a luz imprime-se no papel

    sensvel, existem vrias escolhas, gestos e processos culturais de codificao. O fotgrafo

    escolhe o que vai ser fotografado e como ele vai retratar essa cena, faz um recorte, escolhe um

    ngulo, um ponto de vista, ajusta os controles de exposio da cmera (diafragma e

    obturador), ajusta o foco e aps essa espera realiza o disparo. Depois de realizada a foto, no

    momento de revelao e cpia ou no processo digital de tratamento da imagem em programas

    de edio, tambm so realizadas escolhas que dizem de cdigos culturais, que influenciam o

    sentido da foto e a interpretao do espectador, como ressalta Dubois:

    Mas afora isso, afora o prprio ato da exposio, a foto imediatamente (re-)

    tomada, (re-)inscrita nos cdigos. Em todos os tipos de cdigos que nunca mais a

    abandonaro, que sero tanto mais poderosos, que nela colocaro tanto mais ardor

    quanto durante um instante o prprio instante de sua constituio , ela lhes

    escapou.24

    Como a imagem fotogrfica formada por meio da impresso de raios de luz que

    emanam de seu referente, ela mantm com ele uma marca identitria nica, singular, que se

    22

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.61. 23

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.64. 24

    DUBOIS, Pihilippe, 1984, p.86.

  • 19

    refere quele momento que aconteceu uma nica vez e no vai se repetir mais

    existencialmente. Com isso, "o trao (fotogrfico) s pode ser, em seu fundo, singular, to

    singular quanto seu prprio referente"25

    . Alm disso, devido a relao de contiguidade que

    tem com o referente, o ndice fotogrfico tambm atesta a existncia do objeto que est

    presente na imagem; a fotografia testemunha que ele esteve ali no momento da tomada

    fotogrfica. Est a o "isso-foi", que Barthes definiu como o noema da fotografia:

    Ao contrrio dessas imitaes, na Fotografia jamais posso negar que a coisa esteve

    l. H dupla posio conjunta: de realidade e de passado. E j que essa coero s

    existe para ela, devemos t-la, por reduo, como a prpria essncia, o noema da

    fotografia. (...) O noema da Fotografia ser ento 'Isso-foi'.26

    O trao indicirio/fotogrfico tambm aponta para algo, designa, chama a ateno do

    espectador. Para finalizar a explicao terica do discurso da fotografia como um trao do real

    importante destacar que o ndice apenas atesta a existncia do objeto retratado, ele no

    capaz de afirmar um sentido: "O ndice para com o 'isso-foi'. No o preenche com um 'isso

    quer dizer'. A fora referencial no se confunde com qualquer poder de verdade."27

    .

    Alm disso, preciso estar atento aos limites do discurso da referncia, para no

    absolutizar a relao da fotografia com o real. O signo fotogrfico no coincide com o seu

    referente, h uma distncia temporal e espacial entre eles. Apesar da luz que vm do referente

    incidir no suporte sensvel da mquina fotogrfica, h uma distncia fsica entre o referente e

    o local onde ser formada sua imagem: "toda foto implica portanto que haja, bem distintos um

    do outro, o aqui do signo e o ali do referente."28

    . H tambm uma distncia temporal entre o

    referente e a imagem fotogrfica, que sempre se refere a algo exterior e anterior ao momento

    de fruio da imagem. Ao vermos a imagem gerada, o instante ao qual ela faz referncia j

    passou, no existe mais.

    Como se v, o princpio de uma separao simultnea no tempo e no espao, de uma

    falha irredutvel entre signo e referente realmente fundamental. Vem sublinhar

    radicalmente que a fotografia, como ndice, por mais vinculada fisicamente que seja,

    por mais prxima que esteja do objeto que ela representa e do qual ela emana, ainda

    assim, permanece absolutamente separada dele.29

    25

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.72 26

    BARTHES, Roland, A Cmara Clara, 1979, p.115 27

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.85. 28

    DUBOIS, Philippe, 1984, p. 88. 29

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.93.

  • 20

    Ao teorizar os sentidos presentes na imagem fotogrfica, Barthes (1990)30

    distingue

    trs nveis de sentido. O primeiro, chamado informativo, o nvel da comunicao, aquele

    que o espectador consegue decodificar por meio do contexto da imagem. O segundo nvel est

    no campo do simblico, da significao, possvel identificar a inteno do fotgrafo, que se

    utiliza de signos que remetem a uma conveno, a um lxico geral, uma imagem com um

    sentido mais evidente, que se apresenta a ns. o que Barthes chamou de sentido bvio. O

    terceiro nvel de sentido aquele que o autor chama de teimoso, que impe uma leitura que

    desperta mais questes; ele no est dado, um significante que no nos deixa claro o seu

    sentido "por um lado, esse significante no se pode confundir com o simples estar l da cena,

    extrapola a cpia do motivo referencial, [...], e, por outro lado, tampouco se confunde com o

    sentido dramtico..."31

    . Esse terceiro sentido o que Barthes chamou de obtuso, aquele que

    est velado, no tem um sentido claro, o nvel da significncia (remete ao campo do

    significante, e no da significao): "O sentido obtuso um significante sem significado; da a

    dificuldade para nome-lo: minha leitura fica suspensa entre a imagem e sua descrio, entre a

    definio e a aproximao."32

    .

    3) O golpe do corte no espao-tempo fotogrfico

    Em O Ato Fotogrfico, Dubois tambm apresenta outro princpio formador da imagem

    fotogrfica, o corte. Alm da impresso luminosa, o recorte do espao e do tempo realizado

    pelo fotgrafo no ato da tomada da imagem o que constitui o ato fotogrfico, um s golpe

    que recorta ao mesmo tempo a dimenso espacial (contnuo da extenso) e temporal (fio da

    durao). A foto ento uma fatia nica e singular do espao tempo. Ao mesmo tempo que

    corta, isola, separa uma poro do espao, ela tambm recorta um instante no tempo,

    interrompe a sua durao e o fixa na imagem fotogrfica: "Marca tomada de emprstimo,

    subtrada de uma continuidade dupla. Pequeno bloco de estando l, pequena comoo de aqui-

    agora, furtada de um duplo infinito."33

    .

    Dubois compara a realizao de uma fotografia com uma jogada (golpe). Segundo ele

    qualquer ato de tomada ou de olhar para a imagem uma tentativa de jogada, pois o fotgrafo

    tem um objetivo, baseado neste ele parte para a ao, para o ato, em seguida ele vai avaliar o

    30

    BARTHES, Roland, O bvio e o obtuso, Ensaios Crticos III, 1990, Ed. Nova Fronteira, Trad. La Novaes,

    p.54. 31

    BARTHES, Roland, 1990, p.46. 32

    BARTHES, Roland, 1990, p.54. 33

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.161.

  • 21

    resultado, tal qual em um jogo: "Nesse sentido, a fotografia uma partida sempre em

    andamento, onde cada um dos parceiros (o fotgrafo, o observador, o referente) vem arriscar-

    se tentando fazer a jogada certa."34

    . Segundo o autor o golpe de corte acontece em duas

    dimenses: temporal e espacial, que sero explicadas a seguir.

    3.1 O corte temporal

    O obturador corta, guilhotina a durao, e com isso instala um de fora-de-tempo.

    Dubois afirma que o instante fotogrfico eminentemente paradoxal, pois ao mesmo tempo

    que fixa um tempo que se dava na continuidade, ao mesmo tempo que imobiliza, "no exclui

    nem uma certa relao com a durao, nem a existncia de uma grande mobilidade interior."35

    O golpe temporal acontece de uma s vez, o tempo de exposio escolhido pelo

    fotgrafo, que ajusta o obturador, permite a entrada da luz que atinge o filme (ou sensor

    digital) por inteiro a uma s vez, "so atingidos simultaneamente e sobretudo ao mesmo

    tempo, so cortados de sua fonte luminosa."36

    . Alm disso, ao mesmo tempo em que a

    fotografia recorta este instante no tempo, que reduz o contnuo, ela tambm eterniza; a foto

    tona-se um instante perptuo: "uma frao de segundo, decerto, mas 'eternizada', captada de

    uma vez por todas, destinada (tambm) a durar, mas no prprio estado em que ela foi captada

    e cortada."37

    . O tempo da foto no , portanto, o tempo do Tempo, no se trata do tempo

    cronolgico, contnuo. O fragmento de tempo isolado pelo gesto fotogrfico passa de uma s

    vez para o "outro mundo", entra em uma nova temporalidade, simblica, da foto:

    "temporalidade que tambm dura, to infinita (em princpio) quanto a primeira, mas infinita

    na imobilidade total, congelada na interminvel durao das esttuas."38

    . O ato fotogrfico

    implica, portanto, no s um corte na continuidade do real, mas tambm uma passagem para o

    outro lado da fatia, de um tempo evolutivo a um tempo paralisado, do instante perpetuao e

    do movimento imobilidade.

    O corte temporal que o ato fotogrfico implica no , portanto, somente reduo de

    uma temporalidade decorrida num simples ponto (o instantneo), tambm

    passagem (at superao) desse ponto rumo a uma nova inscrio na durao: tempo

    de parada, decerto, mas tambm, e por a mesmo, tempo de perpetuao (no outro

    mundo) do que s aconteceu uma vez.39

    34

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.162. 35

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.166. 36

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.167. 37

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.168. 38

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.168. 39

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.174.

  • 22

    No instante captado e fixado pelo dispositivo fotogrfico tambm se instala uma greta,

    uma fenda, devido distncia espacial e temporal que o dispositivo fotogrfico mantm com

    o seu referente. Essa no correspondncia do signo com o referente, a vacilao que tal

    separao implica coloca o sujeito em movimento, "suscita um movimento interno, uma

    corrida que no cessa de fazer o 'sujeito' fotogrfico correr."40

    . O vazio imvel do corte,

    paradoxalmente, atravessado de intensos vaivens no interior do ato fotogrfico. O abismo

    provocado pelo corte e pela distncia abala a certeza representativa da imagem, o que gera o

    movimento do sujeito imagem e da imagem ao referente.

    Confrontado com dois universos que no aderem um ao outro, o sujeito, a princpio

    surpreso, intrigado e depois inquieto, angustiado, finalmente transformado, cada vez

    mais aprisionado numa espiral vertiginosa, comea a ir e vir incessantemente a

    princpio na imagem, depois entre as imagens, depois da imagem ao objeto, do

    objeto imagem no dispositivo, como se corresse atrs de uma adequao

    impossvel, como se tratasse de recuperar um atraso por princpio irrecupervel.41

    3.2 O corte espacial

    Ao contrrio do espao da pintura, que construdo sucessivamente pelo pintor, que

    encher o quadro, preencher a superfcie determinada com vrios signos, o espao

    fotogrfico um recorte que o fotgrafo faz de um espao j existente, de um espao

    referencial presente no mundo, " um espao que deve ser capturado (ou deixado de lado), um

    levantamento no mundo, uma subtrao que opera em bloco."42

    . O fotgrafo no preenche um

    quadro aos poucos; ao contrrio, recorta, com um golpe arranca tudo de uma vez de um

    espao contnuo. Sua ao consiste em subtrair um espao j "pleno".

    Em outras palavras, bem aqum de qualquer inteno ou de qualquer efeito de

    composio, em primeiro lugar o fotgrafo recorta, separa, inicia o visvel. Cada

    objetivo, cada tomada inelutavelmente uma machadada (golpe de machado) que

    retm um plano real e exclui, rejeita, renega a ambincia (o fora-de-quadro, o fora de

    campo, de que voltaremos a falar daqui a pouco). Sem sombra de dvida, toda

    violncia (e a predao) do ato fotogrfico procede essencialmente desse gesto do

    cut.43

    Dubois desenvolve trs consequncias tericas derivadas do corte como gesto que

    funda um espao propriamente fotogrfico: a relao do recorte com o fora-de-quadro, com o

    quadro propriamente dito (a composio), e por ltimo, sua relao com o espao topolgico

    do sujeito que v. Ao fazer isso, o autor utiliza quatro grandes categorias que sero explicadas

    40

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.174. 41

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.175. 42

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.178. 43

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.178.

  • 23

    logo adiante: espao referencial, espao representado, espao de representao e espao

    topolgico.

    3.2.1 Relao do recorte com o fora-de-quadro

    Em funo da constituio do ato fotogrfico, que se da por meio de um golpe, um

    recorte do espao referencial, uma extrao, o espao fotogrfico sempre parcial em relao

    ao seu referente, situado em um espao infinito, contnuo. Isso implica, portanto, uma sobra,

    um resto, os elementos do espao referencial que ficam de fora: o fora-de-campo ou espao

    "off". a relao desse espao excludo com o espao retido, o campo da foto que ser

    abordada nessa seo. Segundo Cavell: "Quando uma fotografia recortada, o resto do

    mundo afastado. A presena virtual do resto do mundo e sua evico explcita so to

    essenciais para a experincia de uma fotografia quanto o que ela apresenta explicitamente."44

    .

    O espao off, apesar de ausente do campo da representao, est sempre em relao de

    contiguidade com o espao inscrito no quadro; uma presena virtual. Ao vermos o que o

    fotgrafo recortou sabemos que algo ficou de fora, notamos que havia mais espao no

    momento da tomada do que o que nos foi apresentado; esse ausente est ento presente, mas

    fora-de-campo: "Qualquer fotografia, pela viso parcial que nos apresenta, duplica-se assim

    necessariamente de uma presena invisvel, de uma exterioridade de princpio, significada

    pelo prprio gesto de recorte que o ato fotogrfico implica."45

    .

    O autor chama ateno para o fato de que no se deve confundir o fora-de-campo

    cinematogrfico com o fora-de-campo fotogrfico, pois ambos possuem naturezas distintas e

    funes diferentes. O fora-de-campo no cinema opera na diegese do filme, se inscreve no

    movimento e opera por continuidade, articulado narrativa. J o fora-de-campo da foto

    "sempre se d na parada, num corte temporal estrito, qualquer continuidade apartada, numa

    convulso instantnea."46

    .

    Na fotografia o fora-de-campo literal, o que se encontra excludo, fora do quadro

    delimitado pelo espao de representao. J o fora-de-campo no cinema metafrico, tem

    valor de dinamizao (narrativo, psicolgico, etc.). Porm, apesar de serem fundamentalmente

    diferentes, "alguns signos que asseguram a ancoragem do fora-de-campo no espao

    representado podem ser da mesma ordem nos dois meios, embora no funcionem exatamente

    44

    CAVELL, 1971, apud DUBOIS, Philippe, 1984, p.179. 45

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.180. 46

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.180.

  • 24

    da mesma maneira."47

    . Com isso, o autor define quatro tipos usuais de signos que marcam no

    campo a presena de uma exterioridade virtual, indcios de fora-de-campo. So os indicadores

    de movimento/deslocamento, jogos de olhares dos fotografados, interveno direta do

    fotgrafo no quadro e elementos ligados ao cenrio que promovem um recorte no recorte.

    3.2.1.1 Signos de movimento e deslocamento

    Dubois oferece como exemplo dois casos extremos: o primeiro se refere s primeiras

    fotos realizadas quando da inveno da fotografia, quando era preciso um longo tempo de

    exposio para que a imagem pudesse ser fixada na superfcie sensvel. Isso, por vezes,

    deixava alguns rastros de movimento, halos, uma aura singular na imagem. O segundo diz do

    instantneo fotogrfico: os avanos tecnolgicos e aperfeioamentos da pelcula permitiram o

    congelamento da cena, a fotografia pde deter o movimento de uma s vez. Nesse caso, o

    movimento tambm apresentado a ns de um modo diferente da maneira como o

    experimentamos e como o vemos na sua continuidade. Em ambos os casos podemos dizer que

    os signos de movimento, deslocamento presentes no quadro remetem a um fora-de-campo,

    nesse caso coloca fora-de-campo o prprio tempo, sua durao.

    3.2.1.2 Jogos de olhar dos retratados

    Nas fotografias, frequentemente, os retratados olham para a cmera, no s em retratos

    individuais, mas tambm em fotos vernaculares e documentais. O sujeito retratado devolve o

    seu olhar para aquele que opera a cmera e tambm para o sujeito espectador que v a

    imagem. Esse jogo de olhar entre o fotgrafo e o fotografado indica um fora-de-campo na

    profundidade da imagem, que avana pela frente, "pelo que est de fato na origem do corte"48

    .

    Um fora de campo que indica a presena do operador, o fotgrafo, parceiro invisvel do

    fotografado, fora-de-campo que designa o lugar do fotgrafo, "que o prprio lugar do olhar

    constitutivo da cena e do prprio campo."49

    . , portanto, um fora-de-campo aberto, que marca

    a presena do sujeito da enunciao.

    47

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.181. 48

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.183. 49

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.183.

  • 25

    3.2.1.3 Presena direta do fotgrafo no campo

    Alguns fotgrafos, comenta Dubois, como Franois Hers, consideravam que apenas o

    olhar do sujeito fotografado no era suficiente para mostrar a presena invisvel do olhar do

    fotgrafo. Com isso, interviam diretamente no campo. No caso de Hers, ele colocava o seu

    brao no quadro, interagindo com a modelo fotografada, evidenciando a presena do

    fotgrafo no fora-de-campo e a relao de poder que se d no ato fotogrfico.

    3.2.1.4 Signos do cenrio que fazem um recorte no recorte

    Nessa categoria de signos embreantes de fora-de-campo encontram-se elementos de

    cenrio como portas, janelas, fundos, espelhos, que produzem um novo recorte na foto:

    Em suma tudo o que pode indicar ou introduzir dentro do espao homogneo e

    fechado do campo fragmentos de outros espaos, em princpio contguos e mais ou

    menos exteriores ao espao principal. Tais fora-de-campo, produzidos por

    dispositivos de (re)enquadramentos internos, podem assinalar ou relacionar com o

    interior do quadro espaos situados indiferentemente na lateralidade ou no avano

    frontal, mas tambm espaos, ainda situados no eixo da profundidade, porm atrs e

    no mais frente "da imagem", que surgem, por assim dizer, s suas costas, perante

    elas.50

    um conjunto extenso de espaos off que fazem esse recorte no recorte, que

    delimitam um quadro no quadro, e que revelam espaos suplementares mais ou menos

    mostrados no campo fotogrfico. O autor apresenta alguns exemplos que esto organizados

    em quatro sries: fora-de-campo por efeito de (re)centramento, fora-de-campo por fuga, fora-

    de-campo por obliterao e fora-de-campo por incrustao. Porm, esses novos cortes no

    podem fazer esquecer o seu prprio campo geral, que tem o recorte como seu princpio

    constitutivo, o corte operado no momento de tomada da imagem, "pois ele a condio de

    possibilidade da prpria representao. Fingir encen-la no quadro apenas, evidentemente,

    recuar em um nvel no verdadeiro recorte."51

    .

    3.2.1.4.1 Fora-de-campo por efeito de (re)centramento

    Trata-se da insero de um quadro no espao da representao, quadro vazio, sem

    suporte interno, que no apresenta contedo novo, exerce apenas uma funo enquadrante,

    50

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.187. 51

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.188.

  • 26

    localiza uma parte do espao representado, focalizando-a, dando a esse novo recorte um maior

    destaque e esfumando o quadro do recorte principal.

    3.2.1.4.2 Fora-de-campo por fuga

    constitudo pelo jogo de recortes naturais no espao referencial, portas e janelas

    entreabertas, fundos duplos, frestas na imagem que fazem parte do espao representado e que

    sugerem um outro espao, um fora-de-campo que no mostrado na imagem, apenas a sua

    extenso virtual, "diversas aberturas que do para um novo campo, inesperado ou no, situado

    'atrs' do campo fechado da representao [...] O campo (a caixa cnica) e o fora-de-campo

    (que as aberturas deixam entrever) constituem um espao contnuo e homogneo no plano

    referencial"52

    , anota Dubois. No so realizadas manipulaes, o fotgrafo deve apenas

    escolher um ponto de vista, um ngulo de viso capaz de mostrar todos esses encaixes e

    buracos presentes no espao referencial. S existe nessas imagens um nico cut que constitui

    de uma s vez o espao fotogrfico, campo e fora-de-campo. O fora-de-campo, sua

    exterioridade virtual, se coloca nesse caso dentro do prprio quadro, em sua fuga, em seus

    prolongamentos, "na contiguidade espao-temporal do representado fotogrfico, na

    profundidade diegtica do enunciado."53

    .

    3.2.1.4.3 Fora-de-campo por obliterao

    Esse fora de campo remete ao prprio espao da enunciao: trata-se de intervenes

    realizadas no campo da imagem e que neutralizam, mascaram, apagam, eliminam

    parcialmente certas pores do campo. So modificaes realizadas no espao da

    representao que fazem surgir superfcies cheias, opacas, mas sem contedo representativo.

    Essas subtraes, esses apagamentos, essas ausncias remetem a "tudo o que constitui a foto

    sua condio material de objeto, bem como sua instncia de enunciao. O fora-de-campo

    designado por essas manipulaes relativas ao prprio clich s pode ser o sujeito da

    representao."54

    .

    52

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.192. 53

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.194. 54

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.196.

  • 27

    3.2.1.4.4 Fora-de-campo por incrustao

    Trata-se das fotos com espelhos ou superfcies refletoras que do a ver no campo

    imagens de elementos que podem estar fora do quadro fotogrfico, ou ento mostram objetos

    e sujeitos que j fazem parte do quadro, mas sob novos ngulos. So inseridos, pelo jogo do

    reflexo, espaos virtuais contguos ao primeiro quadro, o campo enquadrado pela cmera. Em

    ambos os casos, trata-se de uma multiplicao de olhares, vises diferentes sobre um mesmo

    objeto/sujeito, o que marca a heterogeneidade do espao fotogrfico.

    3.2.2 Relao do recorte com o enquadramento a composio

    Para finalizar a discusso sobre o espao fotogrfico, Dubois faz uma reflexo sobre a

    srie de fotos de nuvens, denominada Equivalncias, realizadas por Stieglitz entre 1923 e

    1932. At o momento, o autor s havia abordado o fora-de-campo por meio dos seus

    elementos que esto indicados no campo, ao falar das Equivalncias vai destacar o fora-de-

    campo que no est assinalado no campo, que por definio exterior ao quadro. Nas fotos

    das nuvens isso pode ser percebido com mais clareza, pois as fotos apresentam apenas

    nuvens, sem outros elementos referenciais como linha do horizonte, rvores que poderiam

    ajudar o espectador a se situar no espao, a fazer uma correspondncia entre o espao

    fotogrfico e o espao topolgico.

    Nessa srie de fotos, Dubois afirma que a composio como um efeito do recorte fica

    ainda mais evidente: " porque o cu essencialmente no composto que o papel de

    organizao do recorte particularmente realado pelas Equivalncias."55

    . Todo efeito de

    composio no espao representado uma consequncia do prprio ato formador da imagem

    fotogrfica, o recorte espacial.

    Qualquer quadro, institui necessariamente um sistema de posicionamento dos

    elementos presentes em seu espao com relao aos limites que o circunscrevem.

    Em outras palavras, qualquer recorte fotogrfico situa uma articulao entre um

    espao representado (o interior da imagem, o espao de seu contedo, que o plano

    de espao referencial transferido para a foto) e um espao de representao (a

    imagem como suporte de inscrio, o espao que construdo arbitrariamente pelos

    bordos do quadro). essa articulao entre espao representado e espao de

    representao que define o espao fotogrfico propriamente dito.56

    55

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.209. 56

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.209.

  • 28

    O espao de representao sempre levado em considerao na escolha de elementos

    que comporo o espao representado. O sistema de eixos ortogonais de enquadramento so

    utilizados pelo fotgrafo para determinar as posies direita, esquerda, alto, baixo e centro,

    so um parmetro para as suas escolhas de como colocar o sujeito no quadro, quais elementos

    mostrar, sob qual ngulo vai mostrar o assunto retratado, ou seja, a composio, cujos valores

    plsticos so codificados culturalmente. As diferentes escolhas de composio de que o

    fotgrafo dispe provocam efeitos e sentidos diferentes que sero percebidos e interpretados

    pelo espectador ao ver a foto. Uma das regras da composio fazer coincidir as linhas

    ortogonais do espao representado com as do espao da representao, isso que faz com que

    a linha do horizonte esteja em uma posio horizontal na foto.

    O que se deve captar de fato a esse respeito que o espao de representao

    fotogrfica (o quadro da imagem) se define, em quase todos os casos (existem

    algumas excees, raras e marginalizadas), por uma estruturao ortogonal estrita

    (retangular ou quadrada dependendo do caso e de formato varivel, mas sempre feita

    de um circuito de horizontais e verticais). Todos sabem que essa 'quadrificao' do

    espao de inscrio (quadro e quadrado procedem etimologicamente do mesmo

    termo: quadrum) nada tem de um dado natural, mas que , ao contrrio, totalmente

    arbitrria, predeterminada, construda e modelada por inteiro a partir de um esquema

    espacial to velho quanto o mundo.57

    A imagem formada pela lente da cmera no retangular ou quadrada, circular, mas

    dentro do prprio dispositivo essa imagem reenquadrada, sofre um corte para que tenha o

    mesmo formato visualizado pelo fotgrafo no visor. Esse novo corte realizado por um

    aparato mecnico denominado janela. " ela que o verdadeiro embreante da relao entre

    espao representado e espao de representao. Ela um operador central que define, por sua

    circunscrio quadrangular, uma estruturao espacial absolutamente fundamental."58

    .

    3.2.3 Relao do recorte com o espao topolgico

    Dubois utiliza o termo "topologia" para designar aquilo que define espacialmente a

    nossa presena no mundo. O espao topolgico o espao referencial do sujeito que olha a

    foto e a relao que mantm com o espao que nela recortado e construdo. a conscincia

    que temos da presena do nosso corpo no mundo, seres eretos, posicionados na vertical; a

    maneira como entendemos o mundo visualmente e nos relacionamos com o espao

    fotogrfico. "Esse tipo de definio espacial de nossa existncia terrestre entra em jogo a cada

    vez que olhamos uma imagem, pois ela coloca em correspondncia a ortogonalidade do 57

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.211. 58

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.211.

  • 29

    espao fotogrfico e a ortogonalidade de nossa inscrio topolgica."59

    . Muitas vezes, ao

    buscar uma harmonia interna na composio fotogrfica, os fotgrafos se valem de uma

    homologia entre as quatro categorias de espao: referencial, representado, de representao e

    topolgico, uma congruncia na organizao interna desses espaos.

    4) O fotgrafo, a cmera e o fotografado

    Como foi apontado anteriormente, o contato entre o fotgrafo documental e

    fotografado sempre pressupe uma relao de poder. De um lado, o sujeito que opera a

    cmera, recorta a cena, escolhe como retratar aquilo que se apresenta a ele; de outro o sujeito

    que ser retratado, que vai se posicionar, mas que no detm o controle da representao que

    ser feita sobre ele. De acordo com Sontag: "Fotografar apropriar-se da coisa fotografada.

    Significa por a si mesmo em determinada relao com o mundo, semelhante ao conhecimento

    e, portanto, ao poder."60

    . A foto, pelo carter indicial que a constitui, apresenta traos,

    vestgios dessa interao entre fotgrafo e fotografado na tomada da cena, e que indicam mais

    ou menos as negociaes que se deram entre os dois sujeitos, e as estratgias adotadas pelo

    fotgrafo para atribuir sentidos fotografia e que sero interpretados pelo espectador. Porm,

    esses sentidos no so totalizantes e fechados em si mesmos; o espectador, no momento de

    fruio da imagem, preenche as lacunas por meio de seus conhecimentos laterais, identifica as

    intenes do fotgrafo, atribui sentidos fotografia de acordo com a sua experincia,

    recepo e relaes que estabelece com as imagens. De acordo com Bartolomeu:

    "Observando o tipo de jogo esttico e semntico proposto pelas fotografias e pela forma como

    esto justapostas a outras imagens e elementos, situadas num determinado contexto

    comunicacional, encontraremos algo da experincia do espectador que pode emergir da."61

    . A

    recepo no determinada apenas pelo que expresso pelo fotgrafo no ato fotogrfico, mas

    tambm pelo contexto em que se d a contemplao das imagens e pelas referncias culturais

    e conhecimentos laterais que o espectador tem sobre o tema retratado nas fotografias. Sontag

    aborda essa relao do contexto em que as fotos so vistas com o sentido que o espectador vai

    dar a elas:

    Mesmo aquelas imagens supremas cuja seriedade, cuja fora emocional parece

    estabelecida de uma vez por todas, as fotos de campos de concentrao tiradas em

    1945, tm um peso diferente quando vistas num museu fotogrfico [...]; numa

    59

    DUBOIS, Philippe, 1984, p.212. 60

    SONTAG, Susan, Sobre a fotografia, 2004, p.14. 61

    BARTOLOMEU, Anna Karina, 2008, p.109-110.

  • 30

    galeria de arte contempornea; num catlogo de museu; na tev; nas pginas de The

    New York Times; nas pginas da Rolling Stone; num livro.62

    Alm de retratar o sujeito fotografado, o fotgrafo documental, ao se posicionar com a

    cmera, tambm promove uma representao do espao habitado por esse outro e as relaes

    que nele ocorrem.

    A cmera, dispositivo que faz a mediao entre fotgrafo e fotografado, tambm

    ocupa um papel significativo na constituio da cena. Pelo carter indicial da imagem que o

    aparelho fotogrfico capaz de produzir, por atestar que o objeto representado realmente

    esteve ali, a imagem fotogrfica documental exerce uma funo testemunhal. Alm dessa

    funo, a cmera tambm influencia as relaes que se estabelecem entre observadores e

    observados. De acordo com Bartolomeu, a cmera cria uma situao, a sesso de fotos, e no

    desenrolar desse acontecimento, fotgrafo e fotografado vo interagir, circunstncia criada

    pela utilizao da cmera. Com isso, a fotografia capaz de fazer emergir uma situao que

    no seria possvel sem a sua presena. A cmera no vai apenas registrar algo do real que j

    estava dado, vai capturar a prpria interao e atos gerados pelo ato fotogrfico.

    A subjetividade dos agentes constituda na relao com o outro e, tambm, em

    relao atividade organizante em andamento, neste caso, a realizao da sesso de

    fotos. Os corpos envolvidos nessa interao carregam uma histria e uma formao

    social prprias, mas as performances do fotgrafo e do fotografado sero

    mutuamente modeladas pela presena e pela relao com o outro e com a cmera.63

    A autora compara o fotgrafo com o mostrador, conceito utilizado no cinema de fico

    por Andr Gauldreaut. A mostrao est ligada as atividades de filmagem, no caso da

    fotografia documental estaria relacionada com o momento da tomada da foto. A mostrao se

    divide em dois campos de interveno possvel: o proflmico, que concerne ao que se coloca

    ou colocado diante da cmera e o filmogrfico, que diz respeito aos efeitos gerados pelo

    aparelho cinematogrfico utilizado para enquadrar e atribuir sentidos ao campo proflmico. O

    fotgrafo documental age como mostrador na medida em que compe a cena, recorta,

    seleciona a abertura do diafragma, a velocidade do obturador, ajusta o foco, tudo isso com a

    inteno de criar um percurso de leitura para o espectador. O fotgrafo documental tem,

    portanto, mais controle sobre o campo filmogrfico. Quanto ao proflmico o controle apenas

    parcial: "Embora nada o impea de dirigir seus personagens, a maneira como o fotgrafo

    constri uma imagem, bem como a sua performance, ser fatalmente afetada pelo modo como

    62

    SONTAG, Susan, Diante da Dor dos Outros, 2003, p.99-100. 63

    BARTOLOMEU, Anna Karina Castanheira, 2008, p.112.

  • 31

    as pessoas fotografadas reagem cmera e sua presena."64

    . Sendo assim, o fotgrafo no

    constri a mise-en scne sozinho, pois esta tambm determinada pela auto-mise en scne do

    sujeito fotografado. Segundo Comolli, esta influenciada por dois fatores, pelo habitus do

    fotografado, seu conjunto de prticas e atividades ligadas ao campo (famlia, escola, trabalho,

    etc) no qual est envolvido, agindo no inconsciente. O segundo tem a ver com a prpria

    situao de filmagem, fazendo um paralelo com a fotografia documental, a prpria realizao

    do ato fotogrfico, como afirma Bartolomeu: "Quando o sujeito fotografado sabe que est

    exposto ao outro, 'um saber inconsciente, mas certeiro', torna-se legtimo pensar na presena

    de um terceiro que constitui a cena e ao mesmo tempo est fora dela."65

    . A auto-mise en scne

    do fotografado tambm se dirige, portanto, a um terceiro, aquele a quem a foto se destina, ao

    espectador.

    Outra caracterstica da relao desigual entre fotgrafo documental e pessoas

    retratadas se deve ao fato de que, alm do fotgrafo deter o dispositivo por meio do qual as

    fotos sero realizadas, usualmente ele tambm ocupa uma posio social e econmica

    hegemnica em relao ao outro que ele fotografa. Essas relaes de poder e alteridade

    influenciaro a auto-mise en scne dos sujeitos fotografados.

    Na atualidade, alguns fotgrafos documentais tem se preocupado em problematizar

    essas relaes e usar estratgias de aproximao com o mundo do outro para reduzir esse

    desequilbrio e criar mais mobilidades das posies dos sujeitos, como destaca Bartolomeu:

    "Na busca anunciada de produzir outras representaes, adotam-se estratgias diferenciadas

    visando redefinir papis e, assim, procurar um outro equilbrio de foras neste mapa de

    superfcie movedia que cada projeto ir atualizar."66

    .

    5) Procedimentos Metodolgicos

    Com base nas caracterizaes tericas apresentadas e nos conceitos que Stephen Shore

    utilizou em A natureza das fotografias, abordados logo adiante, faremos a anlise das fotos do

    livro Dandara, de Cyro Almeida. Primeiramente contaremos como se deu o contato do

    fotgrafo com a ocupao, como foi feita essa aproximao. Em seguida abordaremos as

    escolhas feitas por Cyro na edio do livro, a narrativa construda e o percurso de leitura que

    ele sugere para o espectador. Depois analisaremos trs grandes grupos em que as fotos podem

    64

    BARTOLOMEU, Anna Karina, 2008, p.113. 65

    BARTOLOMEU, Anna Karina, 2008, p.114. 66

    BARTOLOMEU, Anna Karina, 2008, p.117.

  • 32

    ser distribudas: espaos interiores, espaos externos e retratos dos moradores. Na anlise

    voltaremos nossa ateno para as escolhas do fotgrafo, como ele representa esse outro e o

    espao que ele habita, as relaes que so construdas na ocupao, como ele recorta o espao

    referencial, o que ele d a ver e que sentidos so suscitados com isso. Enfim, trata-se de

    compreender como o fotgrafo mostra o mundo do outro, como constri uma nova

    representao para a ocupao. As escolhas do fotgrafo e sua relao com os moradores

    sero fundamentais na constituio de uma outra visibilidade para a comunidade.

    Cyro Almeida conheceu algumas pessoas da Ocupao Dandara e sua histria em

    maio de 2010, quando os moradores acamparam na Praa Sete na tentativa de dilogo com a

    prefeitura de Belo Horizonte. Em conversa com o fotgrafo ele nos informou que esse contato

    se deu por acaso. Foi nesse acampamento que ele tomou conhecimento da situao dos

    moradores de Dandara e da questo reforma urbana. Nesse dia, Cyro realizou algumas fotos

    em preto e branco dos ocupantes e retornou ao acampamento (que durou uma semana)

    algumas vezes para conversar mais com as pessoas de Dandara e realizar mais fotos, mas

    estas no entraram no livro. Cyro Almeida formado em psicologia pela UFMG e seu contato

    com a fotografia ainda era bastante recente quando realizou essas primeiras fotos dos

    moradores no acampamento. A partir desse contato, o fotgrafo passou a visitar a

    comunidade. As fotos que deram origem ao livro foram realizadas entre 2010 e 2012, e a

    maior parte foi realizada em 2011 quando Cyro viveu por dois meses na ocupao. Em 2011

    foi publicada uma matria no Jornal O Tempo com um texto muito depreciativo para a

    imagem dos ocupantes. Algumas semanas depois Cyro foi para a Ocupao, com o intuito de

    ficar alguns meses hospedado na casa dos moradores para realizar um documentrio

    fotogrfico. Ele diz que no tinha uma linha de trabalho muito bem definida, fotografava de

    tudo na comunidade, principalmente onde havia a presena dos moradores, com um certo

    repertrio imagtico que tinha na poca e que segundo Cyro, no era muito vasto. As suas

    principais referncias eram as fotos de Sebastio Salgado, Paula Sampaio, Cludia Andujar,

    Joo Ripper e Andr Cypriano (do qual ele se sente mais prximo do mtodo de trabalho).

    Ao final de 2010, o fotgrafo viajou para Belm, onde conheceu a obra de Luiz Braga

    em uma exposio. Cyro considera que este foi um divisor de guas na maneira como ele

    fotografa. At o final de 2010 Cyro s havia fotografo em preto e branco, e sonhava em fazer

    um trabalho parecido com o de Sebastio Salgado e Andr Cypriano. Nesse contato com a

    obra de Braga ele trouxe para a sua prtica fotogrfica duas influncias: o uso da fotografia

    em cores e uma nova maneira de retratar o sujeito fotografado. Ele afasta-se ento da

    dimenso pica muito utilizada por Andr Cypriano e Sebastio Salgado e aproxima-se mais

  • 33

    do retrato das pessoas em seu cotidiano. Os sujeitos so apresentados de forma mais simples,

    com posturas e gestos despojados. Tambm permitido ao sujeito fazer uma entrega de si

    mesmo na foto.

    Ao final da primeira semana do perodo no qual viveu na comunidade, Cyro Almeida

    acreditava que no havia realizado nada de significativo, mas hoje, quatro anos depois, ele

    percebe que no foi bem isso que ocorreu, j que 16 das 48 fotos publicadas no livro foram

    realizadas nessa primeira semana de trabalho. Em 2012, ao realizar o processo de edio do

    livro o fotgrafo percebe algumas lacunas: no havia muitas fotos das construes sem os

    moradores, ento ele volta na comunidade para fazer mais imagens. Cyro diz que o livro

    apresenta uma narrativa, mas no possui uma linha imagtica muito bem definida, ele no

    trabalha com tipologias, definidas e fixas.

    Em seu mtodo de trabalho Cyro pde se aproximar bastante dos moradores, viveu na

    casa de alguns deles, passava o dia na comunidade. Com isso, pde conviver de perto com as

    pessoas, conhecer o cotidiano delas e a situao de despejo iminente que enfrentavam (esse

    foi inclusive o motivo que levou Cyro a realizar esse documentrio). O fotgrafo diz que

    realiza a maioria de suas fotos com o auxlio de um trip, mesmo que as condies de

    luminosidade sejam boas e que seja possvel fazer as fotos com a cmera nas mos. Ele

    acredita que o trip cria um clima de maior aproximao com o fotografado, alm de

    proporcionar um outro tempo para a realizao da foto, mais demorado, mais paciente. Cyro

    Almeida fez as fotos com uma cmera reflex digital e utilizou duas lentes, uma zoom grande

    angular 10-20mm, mas sempre a utilizava em 20 mm e uma 50 mm. Em suas fotos Cyro

    trabalhou em cores, a grande maioria, e tambm em preto e branco. Segundo ele, isso j

    pensado ao fotografar, e a escolha se d em funo de qual dessas estticas ele considera que

    vai conseguir expressar melhor aquilo que buscou na imagem.

    6) Anlise das fotografias

    As fotos realizadas pelo fotgrafo surgem da urgncia de dar outra visibilidade a

    Dandara (distinta daquela correntemente produzida pela mdia), de construir uma nova

    representao para a ocupao e para os moradores, por meio de uma justa distncia,

    respeitosa, em que o fotgrafo tenta equilibrar as relaes de poder por meio da aproximao

    e do contato dirio com os retratados.

    De acordo com Didi-Huberman os povos esto expostos a desaparecer, esto

    ameaados em sua representao poltica, esttica; suas memrias, tradies e sua existncia

  • 34

    encontram-se em risco. Isso acontece porque ora so subexpostos, suas causas so ignoradas

    pela grande mdia, no so representados em suas singularidades, diferenas, peculiaridades.

    A visibilidade que lhes concedida surge na sombra de uma censura, que apaga a voz desses

    povos. Em outros momentos eles so superexpostos, mas de maneira igualmente prejudicial,

    de forma espetacularizante. Em nenhuma dessas formas de exposio os sujeitos so

    representados em sua alteridade, no lhes concedida formas de negociar a sua representao,

    e seus problemas so apresentados de maneira superficial e esquemtica. Didi-Huberman

    tambm aborda a capacidade da arte em aceder dimenso de humanitas, tal como

    apresentada por Hannah Arendt. A imagem, a fotografia, pode ser utilizada para tentar

    resgatar e conferir a esses povos uma parcela de humanidade, representando-os em sua

    multiplicidade: "Trata-se, ento, de fazer de maneira que aparea, apesar de tudo, uma forma

    singular, uma 'parcela de humanidade', por mais humilde que seja, no meio das runas da

    opresso"67

    .

    O documentrio fotogrfico realizado por Cyro Almeida ajuda a conquistar essa

    "parcela de humanidade", a expor os sem nome, a dar uma nova visibilidade para Ocupao

    Dandara. A sua obra insere-se no contexto dos fotgrafos documentaristas contemporneos,

    pela aproximao com o outro e seu mundo. Graas ao contato mais prolongado com esse

    outro cotidiano o fotgrafo almeja construir novas representaes possveis dos moradores e

    do espao habitado por eles.

    Ao observar as fotos de Dandara presentes no livro percebe-se que o fotgrafo buscou

    retratar o cotidiano dos moradores, o espao em construo, os moradores em suas casas e as

    relaes que so construdas no espao habitado. Por ter vivido com os moradores, o

    fotgrafo estabelece algum tipo de lao afetivo e intimidade com aqueles que observa. Alm

    disso, dispe de um tempo maior para a realizao das fotos. A sua experincia no local

    fundamental para que uma outra visibilidade, diferente da apresentada na grande mdia, seja

    alcanada. Nas fotos podemos ver o espao em construo, as marcas da ocupao, as casas

    ainda por terminar, os postes improvisados, eletrodomsticos no quintal, tijolos, caixas d'gua,

    roupas no varal, crianas brincando, moradores, as fachadas das casas. Todos esses traos,

    esses ndices, dizem de um lugar ocupado, habitado por pessoas, pelos moradores da

    ocupao. Dandara no apenas uma ocupao irregular, ela a casa de todas aquelas

    pessoas retratadas em seu cotidiano. Alm disso, as fotos mostram que Dandara uma

    ocupao que teve planejamento urbano, contou com a ajuda de arquitetos voluntrios para

    67

    Didi-Huberman, Georges. Coisa pblica, Coisa do povos,