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BH/UFC R E 5 E N H A OBRA COMO ERRÂNCIA DOS LIMITES E PERPETUAÇÃO DA MEMÓRIA (A PROPÓSITO DO LIVRO DE ANA MARIA ROLAND: FRONTEIRAS DA PALAVRA, FRONTEIRAS DA HISTÓRIA1) H á livros que são li- dos por dever de ofício e se impõem por necessidade ou como instrumento de trabalho. Há outros que constituem ob- jeto de fruição do espírito, de exercício prazeroso, pela grandeza estética de sua concepção e pela riqueza de suas reflexões, tomando-se compa- nheiros de caminhada, como ocorre com um Machado de Assis ou um Shakespeare. Esta obra de Ana Maria Roland, que tenho a alegria de comentar, por sua natureza de ensaio bem elaborado, situa-se a meio caminho entre es- ses extremos, com o mérito adicional de fun- dir arte e ciência, literatura e história crítica da cultura, num texto que se lê com emoção e entusiasmo pelas surpresas do percurso ex- plorado e pela beleza da sua expressão. Como, porém, o sedutor fantasma de Max Weber paira sobre esta obra, iluminando a construção de seu discurso interpretativo, gos- taria de começar a sua apresentação invocan- do uma palavra crucial desse pensador em sua célebre conferência A Ciência como Vo- cação. Com efeito, esse imenso pesquisador da racionalidade ocidental moderna, ao ca- racterizar a vocação científica como um im- pulso obsedante e que não se efetua sem a certeza que - citando Carlyle - "milhares de anos deviam escoar-se antes que tenhas visto a luz e outros milhares de anos esperam em silêncio para saber o que terás feito de tua vida", a isso ele acrescenta esta reflexão: -Nada que ele não possa jazer com paixão DE ANA MARIA ROLAND Fronteiras da Palavra, Fronteiras da História Srasília: Editora da UNS, 1997. tem valor, para o homem como tal.»2Pois bem, este livro é fruto maduro dessa paixão que anima todo de- safio cognitivo e não teme a necessária fusão entre o artístico e o científico. ão busque, pois, o leitor deste livro o modelo indigente que re- veste boa parte das nossas teses doutorais: delimitação do problema, análise da literatu- ra, marco teórico-metodológico, análise dos dados, e conclusões. Nada disso encontrará aqui. Nada desse insidioso modelo burocráti- co de pesquisa. Seu registro se dá numa pau- ta que não possui vizinhança nem sequer longínqua com essa mesmice que já nasce perempta. O leitor está diante de um livro. E de uma autora que se preparou longamente para exercitar o seu ofício com competência, com sensibilidade estética e nervo poético. Aqui tudo flui e se articula como no andamento de um concerto barroco, com seu tema principal - anunciado desde o título em forma de tese ou argumento sintético -, com suas bordaduras à margem ou intercaladas, e com seu contraponto de partes e instrumentos semióticos. Com que finura e com que argú- cia, a autora vai desvelando ao leitor a tessitura do argumento geral ao mesmo tempo que dis- simula habilmente no seu intertexto bem es- crito os andaimes com que o construiu! Posto seja um texto que nos cativa e nos provoca por sua requintada reflexão, ad- virto no entanto que este livro não é para POR EDUARDO DIATAHY 8. DE MENEZES Professor Titular do Doutorado e Mestrado em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. 180 REVISTA DE CII:NCIAS SOCIAIS v. 29 N. 1/2 1998

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Page 1: A OBRA COMO ERRÂNCIA DOS LIMITES E PERPETUAÇÃO … · virto de imediato que, como os oxímoros e os paradoxos da estilística euc1ydiana - recursos com que o escritor tenta dar

BH/UFC

R E 5 E N H

A OBRA COMO ERRÂNCIA DOS LIMITES E PERPETUAÇÃODA MEMÓRIA (A PROPÓSITO DO LIVRO DE ANA MARIA ROLAND:

FRONTEIRAS DA PALAVRA, FRONTEIRAS DA HISTÓRIA1)

Há livros que são li-dos por dever deofício e se impõem

por necessidade ou comoinstrumento de trabalho. Háoutros que constituem ob-jeto de fruição do espírito,de exercício prazeroso,pela grandeza estética de sua concepção e pelariqueza de suas reflexões, tomando-se compa-nheiros de caminhada, como ocorre com umMachado de Assis ou um Shakespeare. Estaobra de Ana Maria Roland, que tenho a alegriade comentar, por sua natureza de ensaio bemelaborado, situa-se a meio caminho entre es-ses extremos, com o mérito adicional de fun-dir arte e ciência, literatura e história crítica dacultura, num texto que se lê com emoção eentusiasmo pelas surpresas do percurso ex-plorado e pela beleza da sua expressão.

Como, porém, o sedutor fantasma de MaxWeber paira sobre esta obra, iluminando aconstrução de seu discurso interpretativo, gos-taria de começar a sua apresentação invocan-do uma palavra crucial desse pensador emsua célebre conferência A Ciência como Vo-cação. Com efeito, esse imenso pesquisadorda racionalidade ocidental moderna, ao ca-racterizar a vocação científica como um im-pulso obsedante e que não se efetua sem acerteza que - citando Carlyle - "milhares deanos deviam escoar-se antes que tenhas vistoa luz e outros milhares de anos esperam emsilêncio para saber o que terás feito de tuavida", a isso ele acrescenta esta reflexão:-Nada que ele não possa jazer com paixão

DE ANA MARIA ROLAND

Fronteiras da Palavra, Fronteiras da HistóriaSrasília: Editora da UNS, 1997.

tem valor, para o homemcomo tal.»2Pois bem, estelivro é fruto maduro dessapaixão que anima todo de-safio cognitivo e não temea necessária fusão entre oartístico e o científico.

ão busque, pois, oleitor deste livro o modelo indigente que re-veste boa parte das nossas teses doutorais:delimitação do problema, análise da literatu-ra, marco teórico-metodológico, análise dosdados, e conclusões. Nada disso encontraráaqui. Nada desse insidioso modelo burocráti-co de pesquisa. Seu registro se dá numa pau-ta que não possui vizinhança nem sequerlongínqua com essa mesmice que já nasceperempta.

O leitor está diante de um livro. E deuma autora que se preparou longamente paraexercitar o seu ofício com competência, comsensibilidade estética e nervo poético. Aquitudo flui e se articula como no andamento deum concerto barroco, com seu tema principal- anunciado desde o título em forma de teseou argumento sintético -, com suas bordadurasà margem ou intercaladas, e com seucontraponto de partes e instrumentossemióticos. Com que finura e com que argú-cia, a autora vai desvelando ao leitor a tessiturado argumento geral ao mesmo tempo que dis-simula habilmente no seu intertexto bem es-crito os andaimes com que o construiu!

Posto seja um texto que nos cativa enos provoca por sua requintada reflexão, ad-virto no entanto que este livro não é para

POR EDUARDO DIATAHY 8. DE MENEZES

Professor Titular do Doutorado e Mestrado emSociologia da Universidade Federal do Ceará.

180 REVISTA DE CII:NCIAS SOCIAIS v. 29 N. 1/2 1998

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principiantes. Como o Brasil, esta obra temuma elaboração densa e cumulativa que exi-ge um leitor medianamente familiarizado coma tradição letrada brasileira e hispânica, pelomenos do período que vai dos anos 70 doséculo passado até perto de nossos dias. Se-não, deixará de usufruir da riqueza referenciale alusiva que vem do extenso material de suacomposição literária e conceptual.

Não obstante, abro desde logo um pa-rêntese para assinalar uma nota destoante noproduto material deste esforço. Contudo, ad-virto de imediato que, como os oxímoros e osparadoxos da estilística euc1ydiana - recursoscom que o escritor tenta dar conta de umarealidade ambígua, cambiante e mesmo con-traditória -, aqui também este resultado nega-tivo pode servir para sublinhar e exaltar olabor da autora. Refiro-me ao fato injustificávelde a editora da Universidade de Brasília terproduzido um objeto destratado, uma roupa-gem não condizente com um corpo tão exce-lente. De fato, do ponto de vista gráfico, olivro depõe contra o editor, pois o nível destaobra exigiria um produto editorial à sua altura.Isso, contudo, ocorreu também para desespe-ro de Euc1ydes da Cunha, um perfeccíonistadas formas, com a primeira edição de Os Ser-tões. Fecho o parêntese e volto à minha re-flexão sobre o conteúdo desta obra.

Nenhum percurso criativo no campo doconhecimento está dado previamente. Ele ésempre um projeto arquitetõnico que se fazno ato, no mesmo sentido radical do verso deAntonio Machado: -Carninante, son tus huellasel carnino, y nada más ...u Eis o que fez AnaMaria neste livro maravilhosamente concebi-do, como se ela se dissesse: "a universidadejá me deu régua e compasso; meu caminhoneste livro eu mesma traço ..."

Por outro lado, todo percurso que seconstrói é uma via limitada, é uma escolhaem meio a inúmeras outras possíveis. Assim,dependendo da orientação ou do rumo que a

autora se impôs ou recebeu ao longo de suaelaboração, outros trajetos poderiam ter sidoexplorados, hipoteticamente, virtualmente,enriquecedores. Como quer que seja, a auto-ra desenvolve uma perspectiva de análise tãomais fecunda e aberta a múltiplas direções,que é de lamentar apenas que não tenha ex-plorado ainda mais a sua fertilidade eopulência.

Demais, vale assinalar certos aspectoscuriosos de seu empenho. Às vezes, a autoraentusiasma-se com seus guias espirituais -como o faz, por exemplo, com Descartes ouHegel - e não se recusa a tomar desviosprazerosos por trilhas que desbordam a viaprincipal que baliza o seu argumento. Assim,a sisudez do percurso dominante ou único saifecundada por esses trajetos de flâneur dodenso território da cultura. Ela se deixa, pois,levar por digressões esc1arecedoras, sem per-der o rumo da meta ulterior, que a conduzcomo Beatriz a Dante, no Paraíso.

Mesmo para um velho caminhante dessascomplicadas malhas que entretecem o territóriode nossa aporia ôntica como povo e como na-ção, há muito o que apreender e aprender nes-te livro de Ana Maria Roland. E confesso comalegria que muito ganhei em sabedoria percor-rendo seus múltiplos desdobramentos: além dariqueza do fio que estrutura o conjunto de seuargumento, há preciosas e inesperadas refle-xões interpretativas que configuram belíssimatapeçaria cultural, como o cotejo que realizadas figuras seminais de Euc1ydes da Cunha (OsSertões) e Octavio Paz (El laberinto de Iasoledad). Ou ainda, veja-se, por exemplo, suasbelas páginas de interpretação do textoeuc1ydiano ou do de Guimarães Rosa, no quar-to capítulo, as quais se tomam ainda mais ricaspelo esteio que busca em Antonio Candido, esseMidas brasileiro da crítica que transforma emouro fino a tudo quanto examina.

Tudo isso mostra sua ousadia de espíri-to e a densidade da instrumentação com que

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se armou para enfrentar esse desafio de monta.Posso imaginar que não lhe foi menos ásperodesbravar essa "selva selvagem", tanto quan-to o próprio Euclydes na construção de seutrágico épico, que exigiu dele o refazerintelectualmente e até fisicamente todos oscaminhos de nossa formação, desde o desco-brimento, e mesmo antes, na sua gênese cós-mica. Portanto, Ana Maria não hesitou emcondensar, num amplo mosaico interpretativo,história e literatura, lógica e poesia, estética elingüística, psicanálise e sociologia, a fim depropiciar o intento de dar conta em claro-escuro desse objeto ambíguo e escorregadioque é o ethos e a singularidade de uma cul-tura nacional mediante a análise de seus li-vros fundadores.

Eis aí a origem e o sentido dessa belametáfora do título: as fronteiras da Palavra sãoa condição e o modo de existência das fron-teiras da História. Essa metáfora das frontei-ras, que percorre todo o livro e vaiestruturan do seus espaços interpretativos,possui também seu quê de mistério e de fan-tástico que evoca, mutatis mutandis, aquelacerca inusitada e insólita que sai envolvendotudo no romance Redoble por Rancas, do es-critor peruano, Manuel Scorza.

Por outro lado, a autora vai buscar nanoção de paidéia da cultura grega> a chaveinterpretativa que baliza o rumo inteiro desua tese, e que se reporta a essa "tradiçãoafortunada", garante da continuidade na in-venção do Brasil ou do México por meio desua literatura ficcional, poética e sobretudoensaística. Pessoalmente, interpreto essa ver-tente dominante de nossa inteligência comoo efeito da operação mitopoética dessa des-mesurada construção mosaica de um mono-texto que se cria e se recria incessantemente,num como destino de Sísifo, e que apontapara a nossa dialética de permanência etransformação - que Ana Maria chama de,numa bem escolhida expressão, odisséia

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inacabada, fundindo a um só tempo epo-péia e sinfonia.

Importa assinalar que não se trata aí me-ramente de um feliz e belo rótulo. Se fosseapenas isso, poderia ser estético, porém ex-terno, epidérmico, superficial. É bem mais doque isso. É algo essencial a todo o fio de seuargumento. Com efeito, Ana Maria vai buscarna narrativa épica do Homero da Odisséia ametonímia ou, antes, o modelo analógico paraentender, mediante o retorno de Ulisses àssuas raizes, no seu não reconhecimento ime-diato, etc., esse outro regresso às fontes denossa formação histórica que está na chavedo Labirinto da Solidão, de Octavio Paz, emais ainda na construção agonística de Os Ser-tões e no próprio Euclydes da Cunha. Alémde constituírem empreendimentos que se re-compõem a cada nova obra de outros espíri-tos-fontes, eles configuram a nossa paidéia,a saber, aquilo que conduz os nossos povosna senda de seu autoconhecimento, de suamemória compartilhada, de sua filiação àquiloque os singulariza. E, como construção sim-bólica da nacionalidade, é processo que sedá na errância de limites semióticos, que as-seguram no entanto a tênue perpetuação damemória coletiva.

Em suma, a urgente elaboração de umaestética cognitiva, que reivindico insisten-temente para os que labutam nos domíniosdas Ciências Humanas, a fim de escapar aocarcan da esquizofrênica herança positivistaque empobrece o trabalho dessas disciplinas,foi esse o rumo convergente que Ana Mariarealizou com beleza e destemor neste seulivro que amplia o horizonte dos possíveisanalíticos dos produtos do espírito. Ou, con-forme diz a própria autora ao se referir à obraeuclydiana: "sua ciência está a serviço da arte"(p. 178).

Mas é hora de concluir esse passeio bre-ve que já vai longo. Sumariamente, o livroconstitui-se de um contraponto entre os dois

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espíritos-fontes, escolhidos como marcos fun-damentais dessa elaboração de nossos per-cursos históricos mediante a força criativa dapalavra e da escrita poética, mas à volta dosquais examina ampla galeria de autores re-presentativos. Uma grande rapsódia compos-ta de sete ensaios menores que configuram oque chamei de "o mosaico cultura]" de nossasnações. É este o andamento típico dessa obraoriginal e ao mesmo tempo inserida na longatradição que tenta decifrar. Não tenho dúvidaque ela constituirá doravante um dos andai-mes da construção de nosso monotextofundante.

E se alguma mensagem fosse precisoextrair desse esforço, eu recorreria ao seubelo capítulo conclusivo, quando examina emvários escritores o ensaísmo como gênero evocação. A própria autora diz aí desses textosfundadores:

São obras clássicas, condição pela qual desem-penham uma função "carismática" [no senti-do weberiano do termo): suas relações comoutras esferas rotinizadas são análogas aopapel da indústria e da produção em série comrespeito ã invenção; do casamento em relaçãoao amor; da burocracia diante dos princípiosda organização; da rotina do trabalho diante

da vocação; do ritual religiosodiante da con-versão. Em todos eles ocorre essa dicotomia,uma oposição entre "aventura" e "rotina". (. ..)Há poucos lugares da cultura nos quais oinstituído conserva a substância original,carismática: eis aí uma constatação tão evi-dente, mas que pode ser ela própria a infor-mar sobre a fantástica desproporção existenteentre os estudos das "organizações" e aquelesque contemplam o curso das "trajetórias ex-cêntricas", do qual falou Kant. A "grandezaindefinível dos começos", com que Claude Lévi-Strauss assentou sua visão da cultura, tende-riapara a opacidade, para as regiõessombrias,como um ritual feito de gestos e passos preci-sos, mas incompreensíveis. (pp. 248-249).

NOTAS

Cf.: Fronteiras da Palavra, Fronteiras da Histó-ria eContribuição à crítica do ensalisrno latino-ame-ricano através da leitura de Euclides da Cunha eOctavio Paz). Brasília: Editora da UNB, 1997.Cf.: WEBER,Max: Le Savant et le Politique. Paris:Plon, 1959, p. 71. [Grifado por WeberJ.Cf. JAEGER, Werner: Paideia. los ideales de lacultura griega. México: Fondo de CulturaEconômica, 1957.

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