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Entre a esfinge e o sonho: Édipo em La machine infernale de Jean Cocteau

Autor(es): Fialho, Maria do Céu

Publicado por: Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras

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MÁ T H E S I S 2 1993 91-107

ENTRE A ESFINGE E O SONHO: ÉDIPO EM LA MACHINE INFERNALE

DE JEAN COCTEAU

MARIA DO CÉU FIALHO

«Les dieux existent: c'est le diable». É este o pórtico escolhido por Cocteau para La Machine Inferna/e, a definir o espírito dessa marcha inexorável de acontecimentos que, etapa por etapa, vão empur­rando o homem para a meta final de uma cruel destruição 1.

Tão implacável e eficaz é todo o processo de aniquilamento, que nele se poderia ver uma perfeita e fatal engrenagem, accionada pelo misterioso poder do sobrenatural- «le mystere a ses mysteres», con­fessa Anúbis no início do acto II - e destinada a esmagar exemplar­mente uma vida humana.

Essa ameaça constante do invisível, da morte, que perseguem a vida e a ela aderem, tecendo laços a que homem algum pode escapar, parece, a Cocteau, conhecer uma denúncia latente no drama grego, naquela que os séculos haviam de converter na tragédia por excelência - Rei Édipo, de Sófocles.

A perfeição estrutural e a extraordinária condensação da peça impõem-se 2. Por elas os vários momentos de um passado oculto,

1 A edição que utilizámos da peça é a publicada na coI. Le Livre de Poche, ed. Bernard Grasset, 1934.

2 Já tivémos ocasião de referir até que ponto essa mesma perfeição e conden­sação dramática tomaram difícil a futura composição de tragédias sobre o mito de Édipo (<<Rei Édipo: tragédia e paradigma. Algumas etapas na história da sua recepção»: Actas do Colóquio As Línguas Clássicas. Investigação e Ensino, Coimbra, Fac. de Letras, 1993, 67-82).

Sobre este problema não podemos deixar de referir a oportuna reflexão de K. Hamburger, Von Sophokles zu Sartre, Stuttgart, 1968,4.3 ed., 175 sqq.: a peça de Sófocles não deixa grande espaço a reinterpretações criadoras, na medida em que possui a característica sui generis de concentrar, num tempo dramático que representa um momento de actividade, fundamentalmente a descoberta do passado.

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esquecido ou descurado afloram ao presente e convergem, primeiro em ritmo mais distendido, depois com a rapidez de uma catástrofe, a ajustarem-se, com inexorável exactidão, para revelar em Édipo o parri­cida e o incestuoso em que se tornou, justamente ao tentar evitar tais actos.

Esta forma de encadeamento dramático sensibilizou particular­mente o escritor francês, a ponto de a tematizar - e a converter em metáfora da sua mundividência - como um ~ecanismo perfeito e infalível que envolve o homem e se destina a esmagá-lo: a máquina divina ou máquina infernal, já que nos abismos do infinito, com os seus segredos, habi~a a crueldade. «Une des plus parfaites machines construites par les dieux infernaux pour l' anéantissement mathématique d'un mortel»; assim a descreve o dramaturgo através da Voz, anónima, impessoal, que inaugura a peça 3.

E a verdadeira definição de uma acção trágica inspira-se na pre­ferência aristotélica da queda na adversidade, sofrida por um homem situado em elevado grau de fama e prosperidade e pertencente a uma casa de renome (Poética, 1453 a, 10-12). Mas, à boa maneira de Cocteau, a definição constrói-se sobre a perversão do modelo normativo. «Pour que les dieux s'amusent beaucoup, il importe que leur victime tombe de haut» - preconiza a Voz.

Mas a referência a Sófocles e mesmo ao mito de Édipo não repre­senta um interesse recente de Cocteau pela tragédia clássica, nem talvez a pura vontade de contrapor a Oedipe, de Gide, escrito dois anos antes de La Machine Infernale, e francamente marcado de nostalgia pela grandeza do arquétipo helénico, uma nova forma de tratar os clássicos, a reanimar a velha polémica entre os dois dramaturgos 4.

Uma das primeiras apresentações públicas de criação literária de· Cocteau havia já constituído, sob a forma de poema, uma home­nagem ao dramaturgo ateniense - La danse de Sophocle (1912)­publicada no Mercure de France. Com ela pretendia o jovem poeta obter - mas em vão - a crítica favorável de Gide, nome então já consagrado nas letras francesas. E o fasCÍnio da Grécia, bem como da dramaturgia sofocliana, nas grandes figuras que esta constrói e destaca

3 A noção da vida humana abandonada a um destino que, infalivelmente, envolve o homem e o conduz ao seu fim encontra já expressão na imagem da máquina que a morte também conduz, como um combóio «que a todos nos transporta, apesar da diferença de classes» em Le Grand Écart, escrito em 1923.

4 Para este assunto veja-se o nosso trabalho «A Antígona de Jean Cocteau», Biblos, 67, 1991, 125-152.

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e perenemente se impõem à literatura ocidental- como uma AntÍ­gona - partilhou-o Cocteau com a polémica personalidade de Maurice Barres, que visita nos primeiros anos da guerra de 1914-1918 5. Sin­tomaticamente, são do autor de Voyage à Sparte as palavras com que faz anteceder a sua edição de Antigone d' apres Sophocle.

As grandes tragédias da Antiguidade parecem constituir, para Cocteau - na sua incessante busca de novas formas e rejeição do pré-estabelecido, em função de uma estética do drama concebido como pura mostração em acção. métaphore agie 6, em que o supérfluo é eliminado (por vezes até chegar a uma simbologia quase hermética) - uma eterna referência de beleza imorredoira a equacionar os mis­térios da vida humana e a presença e o labor da morte na existência do homem. O que Cocteau encenará através do mito de Orfeu. drama­tizando em Orphée, por assim dizer, a sua autobiografia poética 7.

Importa, por conseguinte, segundo a perspectiva de Cocteau entre os anos do fim da Primeira Guerra e até à morte do seu jovem amigo Raymond Radiguet (1923), redescobrir as obras-primas do teatro antigo, fazendo-as reviver através de uma actualização que. segundo a convicção do dramaturgo, lhes restituiria a possibilidade de provocar a experiência do novo, sempre inerente à experiência estética, e evitar a contemplação desatenta, condicionada pelo conheci­mento prévio, pelo peso dos séculos, pela rotina, pelo culto academista 8.

Tal processo de revitalização consistia fundamentalmente, segundo o dramaturgo francês, numa espécie de tradução depurada que ele entende como condensação do texto poético. Por essa via reduz o

5 Em 1921 publica Cocteau Visites à Maurice Barres e faz anteceder a obra de um significativo texto de dedicatória ao seu amigo Radiguet.

6 Diz P. Dubourg, Dramaturgie de Jean Cocteau, Paris, 1954,48 a propósito de La Machine lnfernale: «Cocteau trouve à chaque instant la métaphore agie qui frappe et c10ue le spectateur sur place. La beauté de I'oeuvre est dans cette suite d'inventions ... »

7 O mesmo Dubourg, op. cit., pp. 39-40, comenta, a propósito de Orphée, que toda a peça encena o drama da poesia e de quem a possui: o poeta está só frente à sua obra.

S O dramaturgo justifica o seu trabalho de condensação do texto de Antigona do seguinte modo «Peut-être mon expérience est-elle un moyen de faire vivre les vieux chefs-d'oeuvre. A force d'y habiter nous les contemplons distraitement, mais parce que je survole un texte célebre, chacun croit I'entendre pour la premiere fois.» (Antigone d'apres Sophocle, Paris, Gallimard, 1948, 9).

Veja-se o nosso trabalho já citado «A Antigona de Jean Cocteau», sobretudo pp. 127 sqq.

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texto ao seu cerne dramático, desprovido das imagens ou de outras componentes específicas da obra original, como referências culturais ou a amplitude poética e reflexiva das odes corais 9.

Esta atitude, que coincide com o ideal definido em Le Potomak como «estética do mínimo», determina a forma de contracção, para utilizar o termo do próprio Cocteau, de Antigone d'apres Sophocle e Oedipe-Roi, peças a que o autor dedica as suas férias do Verão de 1922. Determinara também a condensação extrema dada à versão francesa de Shakespeare: Roméo et Juliette, poucos anos antes 10.

Não vamos reavivar aqui, por dela nos teImos já ocupado, a polémica suscitada por esta noção de actualização dos clássicos, adap­tados, no dizer de Cocteau, ao ritmo do nosso tempo, sacudida a pátina que os cobre e que, para André Gide, em contrapartida, cons­tituia precisamente a recompensa das verdadeiras obras-primas 11.

Esta reverência pelos clássicos - por um processo assaz polé­mico, é certo - é sublinhada ainda pela relação estreita e interacção criadora com o seu inseparável amigo Radiguet, jovem escritor de inegável talento e promissora carreira, em cujo estilo conciso e elegante transparece um ideal estético de pureza clássica 12.

O fim súbito, inesperado, do seu jovem companheiro agudiza drasticamente, em Jean Cocteau, a experiência da morte omnipresente na vida humana, quase personalizada, a laborar o nosso destino. Ela é como a elegante executora de uma função - veja-se a Morte em traje de baile, que vem visitar Eurídice - ou como um mensageiro

9 Lembramos de novo as palavras que antecedem a sua tradução-síntese de Antigone d'apres Sophoc/e, p. 9: «C'est tentant de photographier la Grece en aéro­plane. On lui découvre un aspect tout neuf. Ainsi j'ai voulu traduire Antigone. A vol d'oiseau de grandes beautés disparaissent, d'autres surgissent.»

Esta atitude estética coincide com a definida em Le Potomak como estética do mínimo. Cf. em Rappel à l'Ordre (apud H. R. Kautz, Dichtung und Kunst in der Theorie Jean Cocteaus, disso Heidelberg, 1970, 18): «Je suprime toute image et toute finesse de langue. II ne reste que de la poésie.»

10 Em 1918, embora a peça venha a ser representada bastante mais tarde. 11 Remetemos de novo para o nosso trabalho «A Antlgona de Jean Cocteau»,

149-151. 12 Sobre a obra e a figura de Radiguet leia-se K. Goesch, Raimond Radiguet,

Paris, 1955. J. J. Kihm, Cocteau, Paris, 1960, 66 refere deste modo a influência estético­

-literária de Radiguet sobre Cocteau: «à partir de 1921, ii obligea Jean Cocteau à marcher dans les voies d'un classicisme d'avant-garde ou le poete s'était déjà, par avance, à moitié engagé.»

Veja-se também, no mesmo livro pp. 70-73, «Radiguet, maitre et disciple».

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do outro lado desse universo que se situa para além da face dos espelhos e se chama Morte, Infinito, Mistério dos deuses.

Heurtebise, o anjo de Orphée, é o emissário da morte. E convive com o quotidiano do poeta, insuspeitado, até deixar trair a solenidade do seu estatuto. Simultaneamente, representa a integração na peça e a amplificação dessa constante, que já referimos, do universo poético de Cocteau, visível também no poema L'Ange Heurtebise 13. Esta figura não pode deixar de estar marcada pelas ressonâncias do anjo rilkeano, sobretudo das Elegias de Duíno, ou pelo belíssimo quadro poético de Orfeu, Hermes e Eurídice 14.

Composto o drama Orphée dois anos após a morte de Radiguet e durante a convalescença do longo alheamento em que Jean Cocteau se havia refugiado através do ópio, ele poderá representar, como sugere Jean Jacques Kihm, «une tentative pour crever la mince cloison qui le sépare de l'ami mort» 15. Mas, posta à margem esta observação biogra­fista, o que a peça representa, decerto, é a novidade da relação com o mito antigo - seja ela determinada pela experiência da morte do amigo.

A tragédia e o mito grego mostram-se agora não apenas dignos e aptos para uma «mostração pura», através da depuração de elementos formais, como o meio expressivo propício a converter-se na grande metáfora dramática do universo poético de Cocteau, determinada pelo insidioso convívio com a presença da morte e do esmagador poder de um misterioso reino do divino-infernal que cerca e destrói o homem. Subitamente, desprevenidamente, como uma armadilha­palavra-chave de La Machine lnfernale 16.

13 Publicado no ano de composição da peça. 14 Composto por Rilke em 1904. Sobre a admiração de Rilke por Cocteau veja-se F. Steegmuller, Cocteau,

Boston, 1969. Este autor nota também a influência dos Cinco Sonetos a Orfeu, de Rilke, na escolha do tema mitológico da peça de Cocteau.

Sobre o valor simbólico-representativo do anjo em Cocteau, veja-se Kautz, op. cito p, 147 sqq.

15 Op. cit., p. 73. 16 Sobre o prólogo da peça opina C. Astier, Le Mythe d'Oedipe, Paris, 1974,98:

« ... si infernale puisse-t-elle être, mais soudain dépouillée du concours de I'homme, ne s'avérait insuffisante. II n'est guere de héros tragique, en effet, qui ne collabore à son destin, qui ne le veuille. Et I'on ne peut faire que cette idée d'un piege, qui, de lui-même, se refermerait sur sa victime, ne soit une singuliere réduction del'ordrt tragique ... »

Pensamos que a autora está dentro da razão, mas a redução a que alude enqua­dra-se no tratamento dado aos clássicos por Cocteau e naquilo que o escritor entende caber como papel à actualização dos clássicos na sua obra.

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Esta nova fase de apropriação da poesia e mitologia antiga, bas­tante mais criadora que a primeira, havia sido inaugurada, conforme já referimos, com Orphée e, quase de seguida (1926), ela dá origem à transposição para uma linguagem hierática, própria da esfera do sagrado, dos momentos fundamentais de Rei Édipo de Sófocles a fim de, uma vez traduzido o texto francês para latim 17, servir de libretto à ópera­-oratório de Stravinsky.

La Machine Inferna/e, peça em quatro actos, conhece uma curiosa e irregular estrutura temporal. Os dois primeiros actos representam acções simultâneas, desenroladas em lugares diversos, mas muito próximos, sob um céu comum. Enquanto o terceiro se situa na noite do dia seguinte e o quarto acto dezassete anos mais tarde,

Cada acto é preparado pela Voz que, antes que o espectador possa presenciar a acção, a integra no contexto de uma sequência passada, anuncia-a e denuncia nela o fim último para que progride, bem como o papel de objectos comuns que em cena aparecem, con­ferindo-lhes um valor quase ominoso.

A acção, assim desvendada à partida, ocorre sem segredos, como um inevitável ritual em que o par Édipo-Jocasta participa, inconsciente mas determinado por uma força que a ambos invade e cerca para ambos serem, por fim, aniquilados nessa armadilha inevitável e antecipada­mente proclamada 18.

A peça aparenta querer tornar-se numa didáctica demonstração (talvez não alheia à influência do teatro épico brechtiano). E Cocteau soube explorar o próprio horizonte de expectativa, criado pelo conhe­cimento do mito, convertendo-o na certeza dramática de que as per­sonagens irão desempenhar os seus papéis, os papéis que os deuses desde sempre lhes atribuiram no jogo da sua própria destruição 19.

Simultaneidade ou distância temporal entre as acções: a diferença é nula quando se trata de momentos tocados pela eternidade. Diz Anúbis no acto II 20.

17 A tradução para latim é feita pelo futuro cardeal J. Daniélou, ao tempo ainda um jovem seminarista.

18 Cada acto, diz P. Dubourg, op. cito p. 48, representa uma etapa decisiva no destino de Édipo. A Voz é a ligação entre elas e os intervalos a pausa da funesta máquina.

19 Jean Anouilh irá posteriormente jogar de forma admirável com o hori­zonte de expectativa do espectador na sua Antigone. As personagens estão aí cons­cientemente vinculadas aos seus milenários papéis como a um inevitável destino.

20 P. 72.

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«Le temps des hommes est l'éternité pliée. Poul' nous, iI n'existe pas. De sa naissance à sa mort la vie d'Oedipe s'étale, sous mes yeux, plate, avec sa suite d'épisodes.»

Se a morte toca os nossos gestos, não há hoje nem amanhã, mas apenas faces várias de um mesmo mistério. E sempre a mesma atmos­fera sufocante a envolver as personagens. Como a noite de trovoada que pesa sobre a vigília dos cidadãos tebanos.

A angústia asfixiante que domina o primeiro acto chama-se Esfinge e constitui a incerteza de cada existência, a consciência aguda de que, a qualquer momento, ela pode atacar, em segredo, na intimidade, com a arma fatal da sedução - o irresistível enigma.

A Esfinge enlouquece a espera de uma morte adiada - como o diálogo entre os dois soldados deixa perceber -, dá lugar a que, em seu nome, se cometam arbitrariedades e desmandos 21 e afasta os tebanos do repouso do sono. Talvez por o sono constituir o momento mais frágil e ominoso de vizinhança com o reino da Esfinge - a letal verdade que a todos cerca. Assim se verá, no acto III, quando, no quarto nupcial, o sonho de Édipo se consubstancia e ganha forma cénica, possuidor de uma força e vitalidade que prepondera e parece esmagar, por momentos, o par inerte, adormecido.

Também Jocasta evita o sono, para fugir ao monstro informe que a procura e envolve (acto I) 22;

~(Je ne dors plus et c'est mieux, car, si je m'endors une minute, je fais un rêve, un seul et je reste malade toute la journée.»

É a fatalidade onírica do incesto, cuja outra face vive à claridade, no impudor da atracção da rainha pelo jovem soldado das muralhas de Tebas 23.

A Esfinge e a morte de Laio arrasam Jocasta. Mas, em boa verdade, a presença da Esfinge representa a necessidade dramática

21 Veja-se o discurso da Matrona no acto II (p. 54). 22 P. 27. 23 Acto I, p. 33. Embora seja irrefutável a presença da componente freudiana na peça, visível,

sobretudo, no acto III, no diálogo entre Édipo e Tirésias, e em momentos deter­minados na linguagem de Édipo na parte final do mesmo acto, Cocteau não pretendeu, de modo algum, converter La Machine Infernale numa encenação de teorias de Freud. Se há atracção predeterminada é a de Jocasta por jovens que lhe recordam o filho.

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de ninguém at~nder à morte de Laio - para que a máquina infernal prossiga o seu infernal movimento. O diálogo entre Jocasta e Tirésias, na visita à muralha (acto I) 24, demonstra-o:

JOCASTE - A-t-on fait tout ce qu'on a pu pour découvrir les assas­sins de Laius?

TIRÉSIAS - Madame sait bien que le Sphinx rendait les recherches impossibles.

Também se torna evidente que as palavras de Tirésias são nítido eco das de Creonte, no prólogo de Rei Édipo de Sófocles, quando o soberano lhe pergunta qual o motivo da falta de averiguações, após a morte de Laio, para identificar o regicica (OT, 130-131):

CREONTE - A Esfinge de cantos insidiosos, que nos forçava a concentrar os sentidos no caminho que pisávamos, ignorando o que não fosse imediato.

Aí colheu Jean Cocteau o motivo da Esfinge como impedimento das investigações, e a partir dele construiu o suporte do primeiro acto.

O dramaturgo extirpou, no entanto, deliberadamente, toda a solenidade a motivos ou cenas típicas da tragédia. As muralhas como lugar nobre de observação, já desde Homero 25, são aqui o espaço­-limite da cidade como o lugar incómodo, de espera, de inacção, o lugar fétido e evitado, vizinho dos esgotos. A vulgaridade marca o diálogo dos soldados e prepara, pela boca destes, a primeira caracte­rização de Jocasta e de Tirésias, bem como o aparecimento, sem gran­deza nem seriedade dramática, do espectro de Laio.

Justamente, uma cena de solene tradição na tragédia - com um primeiro exemplo documentado em Os Persas, de Ésquilo -, é a do aparecimento de figuras espectrais cujo discurso, para além de reve­lador, pode formular um imperativo de vingança. Como é o caso em Hamlet. Mas o aparecimento de Laio, radicado nesta tradição 26,

opõe-se-Ihe pela insignificância que sobre ele pesa. A comiseração e familiaridade com que os soldados o aguardam e tratam converte-o apenas num pobre fantasma estampado nas muralhas, que o espectador vê, tal como os vigias, mas que não toma, de facto, a sério, no jogo dramático.

24 P. 26. 25 Referimo-nos, naturalmente, à famosa teichoscopia do Canto III da Ilíada. 26 Vide C. Astier, op. cit., p. 103.

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Laio não revela nem exige. Luta apenas pela sua aparição, quase como o pobre pela sua sobrevivência medíocre, sem lograr formular uma mensagem, um aviso digno de crédito e deixando, tal como um mendigo, um pedido instante, humilde, balbuciado, imperceptível.

A Jocasta e Tirésias, pela lógica interna do mecanismo infernal, Laio não consegue, sequer, tornar-se visível 27. Que pálido fantasma poderia opor à marcha do infinito a resistência da sua sombra? ..

Em tempo simultâneo, sob o mesmo céu mas para além das mura­lhas de Tebas, os deuses libertam, para um Édipo já manchado pelo parricídio, sem o saber, o caminho do incesto. Mas fazem-no sem que Édipo se converta no herói vitorioso sobre o monstro. Ao con­trário do protagonista de Sófocles, o decifrador do enigma que se vai revelar incapaz de perceber a sua identidade, o libertador do flagelo que, com a sua presença, polui a cidade e lhe acarreta novo flagelo, o Édipo de Cocteau deixa-se envolver, à partida, numa ilusão mais cega, mais absoluta, e que, por isso, lhe confere, desde o primeiro momento, proporções deliberadamente bem mais limitadas que as do modelo clássico.

É que os próprios deuses podem estar cansados do papel que representam para matar continuamente, num interminável rito cruel e entediante. Ser um flagelo - para atrair quem suponha poder afastar o flagelo e ganhar o trono de Tebas: eis a momentânea prisão das forças divinas que sob a forma de Anúbis e de Esfinge-donzela se ocultam.

A Esfinge espera Édipo para poder libertar-se do seu papel. E assim se lhe rende, na atracção quase amorosa, como num beijo fatal que une o carrasco à vítima, sem que esta se aperceba da teia que a envolve. Não há enigmas a decifrar. O grande enigma - que é o da supre­macia dos deuses a motivar ou paralisar os gestos humanos, conforme a demonstração da Esfinge sobre Édipo - não é entendido pelo jovem ambicioso. É no equívoco da magnífica encenação de derrocada­cujo efeito cénico o dramaturgo concebeu esplendorosamente 28 - que

27 Vide P. Dubourg, op. cito pp. 49 sqq. que observa que a presença do fan­tasma que Jocasta e Tirésias não vêem realça a cegueira destes. Embora a observação seja oportuna, note-se que o motivo do espectro foi submetido a um nítido processo de banalização - associado em parte à banalização, também, das figuras de Jocasta e Tirésias.

28 Dubourg fala da encenação de La Machine Infernale, levada a cabo por Bérard, como um dos mais notáveis espectáculos do período entre as duas guerras. E nota ainda o referido autor que a peça constitui, como metáfora dramática, um

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Édipo constrói a ilusão da vitória. Como diz a Esfinge, «ii est bon qu'un héros se rende un peu ridicule» 29.

Por esse ritual de rendição se comprazem os deuses no caminho que deixam aberto e pelo qual conduzem o homem: até ao extremo de um amor promíscuo, inocente e monstruoso como a donzela-Esfinge, determinado desde há muito pelos oráculos da milenar tradição do mito de Édipo, que toma voz na Voz, mas determinado também por uma doentia semente da natureza dos amantes 30.

A Édipo atrai-o previamente Jocasta como porta de acesso ao poder. Jocasta é impudicamente atraída pelo vigor ainda a desa­brochar da juventude masculina.

E nada mais justifica a presença dos deuses nos caminhos de Tebas - a não ser povoar os espaços mais recônditos da alma humana para tomar corpo nos sonhos. C,<>mo aquele que apavora Jocasta, ou como o regresso, no sonho de Édipo, de Anúbis e da Esfinge, nq acto III.

Enquanto Anúbis e a Esfinge se comprazem na antevi são dos acontecimentos, Jocasta, na ida às muralhas, sente a agressão - ante­cipada, sem que o saiba - da sua longa écharpe: a mesma que lhe servirá de laço da forca. Comenta a rainha (acto I):

de suis entourée d'objects qui me détestent! Tout le jour cette écharpe m'étrangle.»

espectáculo total em que cada ideia é absolutamente visualizada aos olhos do espectador.

29 Acto II, p. 67. 30 O motivo do amor promíscuo, incestuoso, aparece também em Les Parents

Terrib/es. Embora ele represente um elemento temático com tratamento repetido em Cocteau, e possuidor de uma simbologia determinada, como nota J. Guichar­naud, Modern French Theatre Irom Giraudoux to Genet, New Haven, 1969,2.8 ed., 44-64, não podemos concordar com a posição deste autor que vê na união inces­tuosa um momento particularmente forte da simbiose entre os dois sexos, apontando para um ideal de hermafroditismo. Pelo contrário: tal tipo de união representa a fronteira com a morte; representa o extremo da degradação e destruição a que a crueldade dos deuses pode levar o homem. O que está patente no modo como a Esfinge saboreia antecipadamente o caminho que fica aberto a ÉdifO - como uma requintada armadilha mortifera (acto II, p. 73): '

ANUBIS - II aura deux fils qui s'entr'égorgeront, deux filles dont une se pendra ... LE SPHINX - Halte! Que pourrais-je espérer de plus? Songe, Anubis: les

noces d'Oedipe et de Jocaste! Les noces du fils et de la mere ... Et le saura-t-il vite? ANUBIS - Assez vite. LE SPHINX - Quelle minute! D'avance, avec délices je la savoure. Hélas!

Je voudrais être là.

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A armadilha que cerca o homem compreende até, sem que este o suspeite, os objectos do quotidiano 31. E manifesta-se, não como o concebe a tragédia clássica, através do ominoso, do presságio (entendido ou não) contextua1izado dentro da solenidade do trágico, mas através do ridículo. Tal como a dimensão de ridículo que Anúbis aponta no herói modelo.

É Tirésias quem, inadvertidamente, pisa a écharpe de Jocasta, quase a sufocando - um Tirésias destituído da grandeza da cegueira profética. Em lugar desta, cabe-lhe a visão difícil e o gesto mal medido de uma miopia extrema, tornada finalmente cegueira no último acto.

Tirésias goza das prorrogativas de um profeta oficial, ao mesmo tempo que a sua capacidade profética é, à partida, posta em dúvida. O seu estatuto, a crer nos soldados, decorre da excentricidade e fragi­lidade de Jocasta (acto I) 32:

«on dit qu'elle est excentrique et qu'elle a un accent étranger, et qu'elle est sous l'influence de Tirésias. Ce Tirésias conseille à la reine tout ce qui peut lui causer du tort. Faites ci ... faites ça ... Elle lui raconte ses rêves, elle lui demande s'il faut se lever du pied droit ou du pied gauche; et iI la mêne par le bout du nez.»

É bem provável que Cocteau tivesse aproveitado o quadro da doentia relação e preponderância de Rasputine sobre a última impe­ratriz da Rús!lia, Alexandra Feodorovna, para sublinhar a vacuidade do conhecimento profético.

Tirésias evoca a sua tradicional visão interior como compensação da ausência de visão física (acto I): «mes yeux de chair s'éteignent au bénéfice d'un oei! intérieur ... »

Mas, em boa verdade, a figura do profeta cego esvazia-se de con­teúdo até ao limite do grotesco - o velho sacerdote, que não é cego

31 «Même /es objects familiers ont un air suspect» diz Cocteau na descrição do cenário para Orphée.

A simbologia conferida a objectos do quotidiano, ou a inusitada importância que estes assumem, constitui uma característistica do universo poético de Cocteau. Assim acontece, para além da écharpe e do alfinete de Jocasta, com os espelhos, nomeadamente o de Orphée ou mesmo o da alcova em La Machine Inferna/e, com o vaso de flores em Les Chevaliers, o telefone em La Voix Humaine. Sobre este assunto veja-se J. Guicharnaud, op. cit., p. 49-50.

32 P. 24.

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mas «quase cego» (acto I, p. 25), é incapaz de sentir a preseIl,Ça do fantasma de Laio, incapaz de interpretar o sonho de Jocasta, incapaz de sentir, na écharpe que pisa, o incesto e o suicídio.

A longa écharpe, inspirada talvez na de Isadora Duncan 33, toma-se, para além disso, importante elemento cénico na caracterização de Jocasta. A atenção obsessiva que dá ao seu adereço trai, ao mesmo tempo, a frivolidade e uma intuição que acaba por se perder à super­fície das coisas.

A Jocasta de Cocteau - e aqui o poeta deve ter aproveitado e laborado alguns aspectos da correspondente sofocIiana - parece fugir daquilo que intui. E parece, além disso, refugiar-se na linguagem e comportamento de uma personagem de frivolidade exuberante e até ridícula 34. Nem a intuição de Jocasta a poderia fazer transpor o cerco dos factos que a esperam e a unirão ao filho repudiado.

Rubro é o quarto das núpcias 35 - como o sangue que une o par nupcial.

Entre aquela noite do encontro da Esfinge e de Édipo e a noite nupcial, o dramaturgo não interpõe outra acção visível. Entre uma e outra o nexo é a Voz que se faz ouvir antes do acto III, a resumir e comentar a acção. Como se o império de uma força oculta tivesse urgência em consumar o incesto.

A alcova como espaço do amor promíscuo, da união proibida e fatal, pode constituir nova reminiscência do Hamlet: da alcova de Gertrude. Mas, de facto, o quarto de dormir é um espaço privilegiado e marcado por uma simbologia própria na dramaturgia de Cocteau.

33 A famosa bailarina havia morrido, acidentalmente estrangulada pela sua longa écharpe, em 1927.

34 A banalização da figura, integrada dentro de um tratamento específico de dessacralização de motivos da dramaturgia clássica, é notada por C. Astier, op. cito pp. 109 sqq. Para uma outra dimensão da rainha, no seu amor ambíguo de amante e de mãe, veja-se a excelente caracterização de J. Lasso de la Vega, Los temas griegos en el teatro francés contemporâneo, Univ. Múrcia, 1981,70-71.

Quanto ao sotaque estrangeiro de Jocasta nota Guicharnaud (op. cito pp. 50 sqq.) que ele representa não só um caso típico de recurso à descontextualização de objectos e personagens dentro de um determinado espaço ou meio, como serve para tornar verosímil a representação de Jocasta pela actriz romena Elvira Popesco.

35 Na descrição do cenário para o terceiro acto da peça dis Cocteau: «['estrade représente la chambre de Jocaste, rouge comme une petite boucherie ... »

Sobre a simbologia e frequência do espaço fechado da alcova no teatro de Cocteau veja-se, entre outros, o já citado livro de Guicharnaud, pp. 48-49.

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Sobretudo quando está associado ao motivo do amor promíscuo - como em Les Parents Terribles. Este constitui a situação exemplar do elo que une amor e morte e o quarto onde se concretiza é o cenário fechado do nascimento, do amor, da morte. E é também o espaço do seno, parente milenar da morte. Dele é o torpor que visita os homens, a antecipar quotidianamente a letargia final. E é igualmente o espaço dos espelhos, onde quotidianamente se observa a morte a deixar as marcas do seu trabalho de escultura no rosto humano. Heurtebise, o anjo de Orphée, revela a Orfeu o mistério dos espelhos (cena VIn:

HEURTEBISE - Je vous livre le secret des secrets. Les miroirs sont les portes par lesquelles Ia Mort va et vient. Ne le dites à per­sonne. Du reste, regardez vous toute votre vie dans une glace et vous verrez la Mort travailler comme des abeilles dans une urche de verre.

Édipo reconhece na câmara nupcial uma prisão e no berço vazio que Jocasta aí conserva um ponto fulcral do seu destino - «le berceau de ma chance» 36.

Mas esse ponto de referência da sua infância perdida leva-o a construir a imagem do futuro - do primeiro filho nascido - para, mais tarde, vencido pelo sono irresistível que domina o par, sucumbir, adormecido, com a cabeça apoiada contra o berço. O quadro assume notável simbologia, visualizada cenicamente, e representa um momento em que as personagens parecem render-se ao seu papel natural.

O tálamo e o berço e a sua justaposição no cenário representam a convergência incestuosa de duas vidas humanas. A noite nupcial e o ritual das núpcias estão representados pelo sono que a todos ameaça e de que Édipo promete acordar. Um sono que pode ser a versão moderna da clássica cegueira trágica (acto III) 37:

« .. .il faut toi et moi nous étendre côte à côte et dormir un peu. Ensuite, nous serions sortis de cette glu et de cette lutte contre le sommeil qui abíme tout. Le premier réveillé réveillera l'autre.»

E no estado mais profundo desse sono as duas personagens justa­postas e profundamente sós deixam escapar os seus fantasmas, os

36 Acto III, p. 85.

37 P. 100.

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seus terrores e as verdades que ocultam, mentindo a si próprias em vigília.

Jocasta sonha mais uma vez a monstruosidade que se apodera do seu corpo - depreende-se das frases soltas que profere. Mas o sonho de Édipo é mais forte - ganha corpo e representação física no espaço estreito da alcova. Porque o sonho de Édipo é a troça divina, sob a forma de Anúbis, a saborear a perfeita operação da máquina infernal.

O despertar dos sonhos conhece uma linguagem que, momenta­neamente, trai com nitidez a relação mãe-filho. Se antes Édipo con­fessara a Tirésias 38 <<:i'ai toujours rêvé d'un amour de ce genre, d'un amour presque maternel», os gestos convertem-se agora, como as pala­vras, numa encenação que retoma traços da relação natural perdida.

Jocasta limpa o suor de Édipo, despertado do pesadelo, e tira-lhe a roupa, para o secar, com as seguintes palavras:

«AIlons! quel gros bébé! iI est impossible de te laisser dans toute cette eau. Ne te fais pas lourd, aide-moi ... »

A resposta de Édipo ocorre na mesma atmosfera: «Oui, ma petite mere chérie ... »

E neste ritual Jocasta descobre as cicatrizes nos pés de Bdipo, que a confrontam com acontecimentos esquecidos e a fazem desen­volver um mecanismo típico de auto-ilusão 39. É então que a rainha apoia com doçura a cabeça de Édipo no berço e o embala suavemente - para vir depois em busca da sua face - em vão - num espelho vazio. No espelho onde a morte labora e onde lhe não devolve a imagem porque ainda não é tempo de morrer.

Num outro espelho se contemplara Édipo, para ficar momenta­neamente cego com a sua imagem. Necessariamente cego, porque, a enxergara imagem nítida, completa, do seu futuro dele se desviaria.

38 Pp. 89-90. Na fala seguinte (p. 90) diz Édipo a Tirésias: «De toute éter­nité nous appartenions l'un à l'autre. Son ventre cache les plis et replis d'un manteau de pourpre beaucoup plus royal que celui qu'elIe agrafe sur ses épauIes.»

39 O motivo do reconhecimento pela cicatriz - que Édipo pensa ser um vestígio de um antigo acidente na caça ao javali - é, sem dúvida, reminiscência do episódio do reconhecimento de Ulisses, na Odisseia, feito pela aia através da cicatriz que o herói apresenta no pé e que decorrera de um ferimento antigo feito na caça ao javali (Od. 19.286 sqq.).

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o espelho de Édipo, o espelho da cegueira são as pupilas do quase cego Tirésias, no encontro entre o jovem rei e o sacerdote, nos aposentos nupciais.

A cena constitui a subversão do confronto sofocliano Édipo­-Tirésias, onde se contrapõe o soberano com visão, mas de espírito mergulhado na cegueira, ao representante da verdade, privado de vista física mas nobremente investido de visão profética.

Ambas as figuras, em Jean Cocteau, são marcadas por uma quase­-cegueira. Édipo vê mas, quando está prestes a enxergar o seu futuro espelhado nos olhos do sacerdote, cega momentaneamente (anteci­pando, sem o saber, a cegueira definitiva que o espera). Tirésias quase não vê fisicamente, e aquilo que os seus olhos reflectem e deixam ler é algo que ele pressente ser funesto, mas que não consegue apreender ainda. O seu pressentimento é vago - tal como é vago o terror do par nupcial 40.

É no final da peça, no acto IV, o mais breve de todos, que Tirésias assume a plenitude do seu estatuto, reencontrado o papel que a tradição lhe consagrou.

Jean Cocteau reserva para o último acto - o do reconhecimento, ocorrido 17 anos mais tarde - o encadeamento vertiginoso de motivos e cenas da peça de Sófocles, nos momentos que antecedem a anagnórise do protagonista.

É a peste que deflagra, o Mensageiro de Corinto que anuncia a morte do suposto pai de Édipo e denuncia a falsidade de tal filiação, Jocasta que não consegue iludir-se por mais tempo nem suporta ver Édipo à beira de se reconhecer, e por isso se retira para o suicídio. E é Édipo que se deixa inebriar pela hipótese de um nascimento divino, ao mesmo tempo que suspeita de sedição entre Tirésias e Creonte para, por fim, perante o velho servo da casa de Laio, reconhecer, num interrogatório próximo do do texto sofocliano, o parricídio e as mons­truosas núpcias.

É Antígona - não um Mensageiro do Palácio - quem vem tornar pública a cegueira auto-infligida.

Entre o suicídio de Jocasta e o reconhecimento de Édipo, Tirésias ganha uma nova energia, como se, de súbito, a adquirisse, do fundo

40 Acto III p. 104: OEDIPE - La fatigue, la somnolence nous mettent dans cet état de vague

terreur.

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dos séculos, a iluminar a acção presente - não como arte de prever os acontecimentos, mas de compreender aquilo que presencia 41 :

«Un oracle arrive du fond des siecles. La foudre vise cet homme et je vous demande, Créon, de laisser la foudre suivre ses caprices, d'attendre immobile, de ne vous mêler de rien.»

A écharpe de Jocasta cumprira o seu papel. Falta aguardar que o alfinete de pérolas cumpra o seu, após o reconhecimento de Édipo 42:

TIRÉSIAS - Restez ... le prêtre vous ordonne. C'est inhumain, je le sais, mais le cercle se ferme; nous devons nous taire et restez là.

Que há então a contemplar em silêncio nesse círculo que se fecha - ou para lá dele? Esmagado pelos deuses, consciente agora da trama que o envolveu, cego, tal como Tirésias o é agora, Édipo ganha os contornos de uma cegueira lúcida, tal como Sófocles a sugere no êxodo de Rei Édipo 43. Mas sem que se rememore, com isso, qualquer cegueira profética de Tirésias. Em Cocteau as duas figuras ganham profundidade juntas, em simultâneo. E o dramaturgo assinala-o cenicamente através da transmissão do bastão do profeta para Édipo.

Que ficou, afinal, do homem que a divindade exemplarmente envolveu no seu mecanismo infernal: nada? mais um corpo exangue entre os mistérios da Esfinge e a voracidade de Anúbis? ..

Cabe agora a vez a Tirésias de guiar o espectador pelos caminhos do futuro - transgredidas as proibições mais profundas da natureza humana, frequentados os abismos que mais seduzem e apavoram o homem, Édipo converteu-se num ser alheio a qualquer classificação, qualquer enquadramento. Transpôs uma fronteira que o situa para além do quotidiano, num espaço aberto entre a vida e essa outra dimen­são que é o divino, o excepcional, a morte 44. O espaço, afinal, que é privilégio dos poetas, dos corações puros, como diz Tirésias 45.

Édipo estava certo quando dissera, em plena ignorância: «II faut se déclasser, Tirésias, sortir du rang. C'est le signe des chefs-d'oeuvres et des héros.»

41 P. 120. 42 P. 120. 43 Nota-o também Lasso de la Vega, op. cito p. 59. 44 Com essa dimensão faz Clément Borgal, Cocteau, poete de l'au delà. Paris,

1977, coincidir o espaço misterioso e superior da poesia para Cocteau. 45 Acto IV, p. 126.

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E a partida do cego é uma antevi são da chegada ao bosque de Colono. Édipo encontra agora, unificados, o repouso no seio matemo de Jocasta, presente só para ele, e o desvelo filial de Antígona. Em gesto simultâneo. Em palavra uníssona.

Quem recolherá os caminhantes: a glória, como diz Tirésias? Se assim é, o poeta e a poesia preponderam 45. E contra a poesia nada pode o mecanismo infernal dos deuses.

46 Referência à autobiografia criadora de Cocteau? Kautz, op. cito pp. 234-235 observa com pertinência que o mito de Édipo

encena em Cocteau - e em particular nesta peça - a tensão determinismo / Iivre­-arbítrio que preside à própria criação da obra poética.

CarIo Bo observa no seu trabalho «Edipo nella letteratura francese», II Teatro Greco e la Cultura Europea. Atti dei Convegno Internazionale. Urbino 15-19 novem­bre 1982, Roma, 1986, 319: «iI mito di Edipo e iI tema capitale e centrale di Cocteau: non ha fatto che ritomarci sopra, modificando, correggendo, allargandolo e inse­rendolo in altri miti e in altre storie apparentemente diverse.» O que C. Bo justifica através de experiências determinantes da infância de Cocteau, como a morte vio­lenta do pai. Pela mesma época teria Cocteau assistido, na Comédie Française a uma récita de Mounet-Sully de Rei Édipo (op. cito p. 320). A mesma obsessão a aponta Bo na evolução artística de Gide.