a naturalizacao do homem e a acao politica em hannah arendt

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE CULTURA E ARTE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA ANTÔNIO BATISTA FERNANDES A NATURALIZAÇÃO DO HOMEM E A AÇÃO POLÍTICA EM HANNAH ARENDT FORTALEZA 2013

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ótima reflexão sobre política

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR INSTITUTO DE CULTURA E ARTE

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    ANTNIO BATISTA FERNANDES

    A NATURALIZAO DO HOMEM E A AO POLTICA EM HANNAH ARENDT

    FORTALEZA 2013

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    ANTNIO BATISTA FERNANDES

    A NATURALIZAO DO HOMEM E A AO POLTICA EM HANNAH ARENDT

    Dissertao apresentada Banca Examinadora do

    Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade Federal do Cear (UFC), como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Filosofia,

    sob a orientao do Prof. Dr. Odlio Alves Aguiar.

    FORTALEZA 2013

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    ANTNIO BATISTA FERNANDES

    A NATURALIZAO DO HOMEM E A AO POLTICA EM HANNAH ARENDT

    Dissertao apresentada Banca Examinadora do

    Programa de Ps-Graduao em Filosofia da

    Universidade Federal do Cear (UFC), como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Filosofia.

    Aprovada em: ____/_____/______

    BANCA EXAMINADORA

    _________________________________________

    Prof. Dra. Maria Cristina Mller UEL (1 Examinadora)

    ____________________________________________

    Prof. Dr. Adriano Correia UFG (2 Examinador)

    ____________________________________________

    Prof. Dr. Odlio Alves Aguiar UFC (Orientador)

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    Dedico essa dissertao aos meus pais Leda e Adalberto, por acreditarem que seria possvel; A minha esposa Cleidiane, pela pacincia e compreenso e a meu filho Tales, esperana da novidade no mundo.

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    AGRADECIMENTOS

    Ao professor Odlio Alves Aguiar, pela orientao, pela dedicao e disponibilidade em ajudar, pelas valiosas consideraes ao texto, pela amizade e por ter acreditado em minha pesquisa.

    Aos Professores Ursula Anne Mathias e Evanildo Costeski, pela leitura e consideraes feitas durante o exame de pr-defesa.

    Aos professores do curso de Ps-graduao da Universidade Federal do Cear e em especial aqueles com quem tive a oportunidade de estudar, pelo valioso conhecimento transmitido durante as aulas.

    Aos meus colegas do curso de Ps-graduao, pelos momentos de discusso filosfica e aprendizado coletivo e em especial aos colegas Lucas Barreto e Samuel Dias, por dividirem comigo o desejo de se aprofundar cada vez mais no pensamento arendtiano.

    Aos colegas e participantes dos Encontros Hannah Arendt, pelo compartilhamento de pesquisas e os ensinamentos sobre o pensamento Arendt; e, em especial, ao colega Rodrigo Moreira, pelo compartilhamento de informaes e textos sobre o pensamento arendtiano.

    Aos participantes do Grupo de Estudos Hannah Arendt, pelos debates e aprofundamentos em torno dos textos de Arendt.

    colega Alexandra, secretria da Ps-graduao, pela acolhida e pela enorme disponibilidade em ajudar.

    Aos meus pais, por todo amor e apoio. minha esposa Cleidiane, pelo amor, pela compreenso, pela leitura do texto e pela

    presena em minha vida. minha irm Socorro Fernandes, pelo carinho, pela pacincia e pelas leituras feitas ao

    texto.

    minha irm Rosaly Fernandes, pelo carinho e pelo apoio em todos os momentos. Ao amigo Gusmo Freitas, pela ajudar nos momentos de dificuldades e pela sincera

    amizade. Aos colegas professores Sidclei Gondim, Ricelly Jader e Jos de Freitas pelas

    contribuies e correes feitas ao texto final. CAPES pelo apoio financeiro. Deus, por iluminar meus caminhos.

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    Um novo comeo surge para o mundo, um novo mundo em potencialidade passa a existir.

    Hannah Arendt

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    RESUMO

    O objetivo dessa dissertao examinar a moderna naturalizao do homem e a teoria da ao poltica em Hannah Arendt. Para tanto, iniciaremos com a anlise da terceira parte da obra Origens do Totalitarismo. Nessa obra, a autora apresenta os campos de concentrao como sendo o ncleo dos regimes totalitrios e os primeiros a reduzirem o homem a sua condio natural, eliminado a liberdade e aniquilando a pessoa jurdica e moral dos indivduos. Na sequncia, refletiremos sobre a crescente naturalizao do homem ocorrida na modernidade, tendo como base os escritos posteriores a Origens do Totalitarismo. Neste sentido, analisaremos os textos: A condio humana e Sobre a Revoluo, onde Arendt reflete sobre o declnio do espao pblico e a moderna ascenso do social, caracterizada pela reduo da liberdade ao campo das necessidades biolgicas. Por fim, apresentaremos a teoria da ao poltica como alternativa moderna naturalizao do homem. A ao em Arendt tem sempre uma relao poltica e est fundada na capacidade que os homens tm desde seu nascimento de dar incio a novos comeos, de fundar novos corpos polticos. Assim, somente atravs da redeno da ao que poderemos vislumbrar uma retomada da dignidade da poltica nos tempos atuais, principal hiptese de nossa pesquisa.

    Palavras-chave: Hannah Arendt. Totalitarismo. Naturalizao. Ao poltica.

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    ABSTRACT

    This dissertation aims at examining modern naturalization of mankind and Hanna Arendts theory of political action. Therefore it starts with an analysis of the third part of the book The origins of totalitarianism in which the author presents the concentration camps as the core of totalitarian regimes, and the first element to reduce mankind to its natural condition, eliminating freedom and annihilating persons moral and legal entity. Thence forth, it is also discussed about the growing naturalization of man which has occurred in modernity in this work, and for such it is used as basis the following works The Human Condition, Between past and future, and On Revolution in which Arendt reflects on the decay of public space and the modern rising of the social which is characterized by the reduction of freedom into the field of biological needs.Finally, it is discussed the theory of political action as an alternative to modern man's naturalization.According to Arendt action has always a political background and it is originated on mans capacity since birth to engender new beginnings and of founding new political bodies. Thereby, in order to conclude this work it is showed that it is only through redemption of action that it would be possible to achieve political dignity nowadays.

    Keywords: Hannah Arendt. Totalitarianism. Naturalization. Political action.

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    SUMRIO

    INTRODUO ............................................................................................................... 10 1. A CATEGORIA TOTALITARISMO .................................................................... 15 1.1. Sobre o totalitarismo .................................................................................... 16 1.2. Estgios do totalitarismo ............................................................................... 20 1.3. Ideologia e terror ........................................................................................... 25

    1.4. Os campos de extermnio ............................................................................... 32 1.5. O risco protototalitrio................................................................................ 37

    2. MODERNIDADE E NATURALIZAO DO HOMEM .................................... 45

    2.1. Crtica modernidade ......................................................................................... 47

    2.2. A Ascenso do privado e a dissoluo do pblico .............................................. 55

    2.3. O problema do social ........................................................................................... 62

    2.4. Necessidade e violncia ...................................................................................... 69

    2.5. Filosofia da Histria e naturalizao do homem ................................................. 73

    3. A AO POLTICA ............................................................................................... 80

    3.1. A ao enquanto revelao................................................................................... 81

    3.2. Fundao e Autoridade ........................................................................................ 89

    3.3. Liberdade e poltica ............................................................................................. 96

    3.4. Poltica e revoluo ............................................................................................. 101

    3.5. Os sistemas de conselho e a experincia da ao poltica ................................... 106

    CONSIDERAES FINAIS ......................................................................................... 112 REFERNCIAS .............................................................................................................. 116

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    INTRODUO

    O objeto central que compe as pginas dessa pesquisa divide-se em duas hipteses bsicas, que pretendemos confirmar em torno do pensamento arendtiano no decorrer desta dissertao. Primeiro, defenderemos que a modernidade marcada por um forte processo de naturalizao dos homens, que se faz presente nos campos de concentrao e extermnio do nazismo e pode ainda permanecer vigente em nossas sociedades atravs do risco protototalitrio e da existncia de campos de concentrao deslocantes. Por outro lado, defendemos tambm que a moderna reduo do homem a sua condio natural sustenta-se na promoo do trabalho feita por Karl Marx, que deu a esta atividade o posto mais alto das atividades da vita activa, tornando a poltica apenas uma questo econmica e reduzindo a liberdade ao campo das necessidades biolgicas.

    A segunda hiptese proposta por nossa pesquisa baseia-se no fato de que Hannah Arendt aponta seu pensamento para possveis caminhos de resgate da dignidade da poltica frente s condies de naturalizao modernas. Esses caminhos no representam necessariamente um retorno poltica clssica, como alguns autores supem, mas indicam que a ao poltica enquanto fruto da capacidade que os homens tem de fundao, de dar incio a novos comeos, surge como sendo a nica alternativa vivel para resgatar o homem da pura condio natural de ser vivo. Nesse sentido, Arendt v na experincia da Revoluo Hngara e nos sistemas de conselhos populares os modelos concretos de efetivao da ao poltica, pois foram esses espaos que possibilitaram a liberdade pblica e o agir conjunto dos homens. Contudo, no primeiro captulo dessa dissertao nos deteremos apenas na anlise da obra Origens do totalitarismo, texto que deu notoriedade internacional a Arendt. Nessa obra, a autora se prope a compreender o anti-semitismo e o imperialismo como sendo elementos cristalizadores do totalitarismo, tema que a autora aborda somente na terceira parte do livro. Todavia, nos interessa na referida obra apenas a parte sobre o totalitarismo, pois compreendemos que nesse texto onde se encontram os elementos que serviram de suporte para o processo de naturalizao do homem na modernidade. Desse modo, propomos analisar no incio do primeiro captulo os trs estgios que antecederam o regime totalitrio, so eles: 1) o poder enquanto pr-estgio, caracterizado pelo movimento totalitrio; 2) a consolidao

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    e o exerccio do poder estatal, onde o nazismo passa a utilizar-se da administrao do Estado com objetivo de domnio total da populao da terra; e 3) a dominao total, ltimo estgio do totalitarismo, fortemente marcado pela juno entre ideologia e terror e pela existncia de campos de concentrao e extermnio. Como veremos, para Arendt, no terceiro estgio que encontramos o ncleo central dos regimes totalitrios, isto , os campos de concentrao e extermnio1, principais responsveis pelo domnio da natureza humana em todas as dimenses, tornando o homem um animal pervertido de todos os atributos que lhe garantiam humanidade. Os campos, principais laboratrios do totalitarismo, usaram de alguns artifcios para alcanarem o domnio total. Num primeiro momento, mataram a personalidade jurdica dos indivduos; depois, foi a vez de matarem a personalidade moral, e por fim, mataram a prpria individualidade, conforme apresentaremos nessa pesquisa. Nos campos de concentrao a experincia do domnio total era vivenciada nos mnimos detalhes. Os homens eram completamente privados do mundo dos vivos em geral, estando condenados no s ao mais completo isolamento, mas tambm ao puro esquecimento. Assim, seremos conduzidos a compreender que os campos romperam com a esfera do tudo permitido e passaram a atuar na esfera do tudo possvel, que desde ento passou a fazer parte da nossa experincia poltica, servindo como justificativa utilizao da violncia, da ideologia e do terror nas questes polticas. (Cf. ARENDT, p. 491). Ainda no primeiro captulo, analisaremos o artigo Ideologia e Terror, ltimo captulo da obra Origens do totalitarismo. No entanto, nessa dissertao abordaremos esse texto anterior anlise dos campos de concentrao, por compreendermos ser a ideologia a base que tornou possvel o terror totalitrio, isto , o terceiro estgio do totalitarismo. Desse modo, poderemos afirmar que para Arendt, uma das principais caractersticas do governo totalitrio sua tentativa de representar um novo tipo de sistema poltico, que tem sua essncia no terror e que coloca a ideologia no lugar do princpio de ao, sendo portador de uma qualidade excepcionalmente destrutiva. Logo, a principal novidade da ideologia totalitria que ela constitui uma forma de terror capaz de dominar os seres humanos a partir de dentro. Todavia, para a autora, a principal consequncia de todas essas transformaes ocorridas na poltica, que essa nova forma de governo pode permanecer conosco de agora em diante, como permaneceram outras formas de governos presentes na tradio de nosso pensamento poltico. Dessa forma, com vista a aprofundar essa possibilidade, tentaremos 1 De acordo com Arendt, os campos so a verdadeira instituio central do poder organizacional totalitrio

    (2007d, p. 489).

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    fazer na ltima seo desse captulo uma ligao entre a teoria de Hannah Arendt e o conceito de biopoltica proposto por Michel Foucault. Para tanto, nos apropriaremos dos estudos desenvolvidos por Giorgio Agamben no primeiro livro de seu projeto filosfico Homo sacer I, intitulado: o poder soberano e a vida nua2, onde Agamben alerta sobre os riscos a que a humanidade est exposta atualmente. Em nosso segundo captulo, tentaremos mostrar a crtica de Arendt modernidade. Nossa autora enftica ao criticar o privilgio moderno e contemporneo dado atividade do trabalho, promovendo essa atividade mais alta dimenso da vida humana. Nesse sentido, Marx tornou-se o principal alvo da crtica arendtiana3, pois foi ele o primeiro a atribuir grande importncia atividade do trabalho. Assim, Arendt afirma que Karl Marx era incapaz de se sustentar (2010, p. 97), isto , que a teoria de Marx ao elevar o trabalho dimenso mais alta da vita activa torna-se insustentvel. A principal crtica de Arendt a Marx baseia-se no fato dele ter um ponto de vista puramente social do trabalho, igualando todas as demais atividades do trabalho. A consequncia de toda essa elevao do trabalho que a vida ganhou centralidade na poltica e o homem foi reduzido ao puro metabolismo com a natureza, perdendo sua capacidade de atuao poltica presente na ao e no discurso e tornando-se refm as necessidades da vida biolgica. Com o aparecimento da questo social e a promoo da vida condio de bem supremo, a esfera da vida privada ganhou uma dimenso pblica jamais vista antes. Assim, a era moderna caracteriza-se pela ascenso do privado e a dissoluo do pblico, reduzindo ambas as esferas dimenso do social. Contudo, importante deixar claro que em nosso texto no defenderemos a ideia de que Arendt de alguma maneira contra a esfera do social, apenas frisaremos que Arendt critica o fato de que a esfera do social impede o homem de atuar politicamente, isto porque esta esfera reduz a poltica apenas gesto econmica da vida. Logo, o teor da crtica de Arendt a questo social justifica-se pela ausncia de espao destinado a atuao poltica e a predominncia das questes referentes ao campo das necessidades no espao pblico. Nas entrelinhas de todo esse contexto de crtica ascenso do social na modernidade, abordaremos tambm a anlise de Arendt sobre o carter trgico das revolues e, em especial, da Revoluo Francesa. De acordo com nossa autora, as revolues de nosso sculo

    2 O livro Homo sacer I: o poder soberano e a vida nua o primeiro volume do projeto filosfico de Giorgio

    Agamben, onde o filsofo italiano aborda o conceito de biopoder e biopoltica a partir dos estudos de Michel Foucault. 3 No entanto, Arendt afirma, tendo por base uma citao de Rousseau, que no pretende se juntar aos detratores

    de um homem, no caso, Marx. (Cf. 2010, p. 97).

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    perderam de vista seu alvo principal, isto , o objetivo que movia o esprito revolucionrio, que se pautava pela valorizao da poltica e a fundao da liberdade. Contudo, dentre as revolues modernas, Arendt esfora-se por salvar a Revoluo Americana, que segundo a autora permaneceu fiel ao esprito revolucionrio, apresentando como seu principal objetivo a instaurao da liberdade pblica e a fundao de um novo corpo poltico, atravs do estabelecimento de uma Constituio e da fundao da Repblica. Outra questo que se apresenta e que tentaremos aprofundar no decorrer deste captulo repousa no fato de que a entrada da necessidade no campo da poltica fez com que os homens passassem a fazer uso da violncia na poltica com o suposto objetivo de sanar essas necessidades biolgicas. Todavia, sempre que a violncia entra no campo da poltica cria-se o risco de estabelecimento de formas de governos totalitrias, posto que toda violncia sempre uma condio pr-poltica. Assim, no momento que a violncia adentra ao campo da poltica, significa dizer que a revoluo perdeu seu carter poltico e est condenada ao fracasso.

    Assim sendo, o objetivo que move nosso segundo captulo mostrar que na modernidade existe um crescente processo de naturalizao do homem e de suas relaes polticas, processo esse que teve incio com as revolues no final do sculo XVIII e se desenvolveu atravs dos regimes totalitrios do nazismo e bolchevismo com seu forte aparato de violncia; e, mais ainda,que esse processo continua ainda presente em nossas modernas sociedades industriais, fortemente influenciadas pelas ideias de progresso e consumo. Portanto, na modernidade a vida atinge um grau de importncia jamais visto na filosofia, de modo que a garantia da vida particular torna-se o principal objetivo da poltica. No terceiro captulo pretendemos confirmar a segunda hiptese proposta por essa pesquisa. Isto , almejamos confirmar a hiptese de que a teoria da ao poltica de Hannah Arendt aparece como uma alternativa a naturalizao do homem ocorrida na modernidade. Assim, segundo Correia, a ao em Arendt surge como a redeno da futilidade do mero estar vivo promovida pela ao poltica, cujo impulso brota do desejo de estar na companhia dos outros, do amor ao mundo e da paixo pela liberdade (2010a, p. XXXI). Assim sendo, abordaremos o tema da ao dentro de uma perspectiva poltica a partir das obras A condio humana, Sobre a Revoluo, Entre o passado e o futuro, O que poltica e um artigo escrito por Arendt intitulado: Reflexes sobre a Revoluo Hngara. A ao poltica uma categoria central no pensamento arendtiano. Para a autora a ao est sempre fundada na capacidade de agir que cada homem tem desde seu nascimento, possibilitando o milagre de iniciar algo. Desse modo, somente atravs da ao que podemos

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    vislumbrar uma retomada da dignidade poltica nos dias atuais, por meio da fundao de novas formas de organizao poltica. Para Arendt, as experincias das revolues nos ltimos sculos serviram como modelo concreto da capacidade que os homens tm de constituir novos corpos polticos. Contudo, preciso encontrar uma forma de institucionalizao da ao poltica que garanta permanncia e durabilidade ao agir coletivo. Segundo Arendt, o exemplo mais prximo que temos de um agir coletivo encontra-se nos sistemas de conselhos populares surgidos a partir da experincia da Revoluo Hngara. A Revoluo Hngara para o pensamento arendtiano um exemplo efetivo da ao poltica e da liberdade pblica. Hannah Arendt afirma que os sistemas de conselhos lhes mostrava uma forma de governo inteiramente nova, com um espao pblico para a liberdade que se constitua e se organizava durante a revoluo (2011, p. 314). Os sistemas de conselhos surgidos durante as revolues representam para essa autora a forma de institucionalizao da ao poltica, possibilitando as pessoas participar ativamente das decises do governo. No encontraremos em nossa histria poltica nenhuma instituio que possibilite uma participao direta das pessoas no governo como os sistemas de conselhos populares. Contudo, segundo Arendt, a grande novidade da experincia dos conselhos, surgida a partir da Revoluo Hngara, reside no fato de que eles nasceram do desejo do povo de atuar conjuntamente, dando incio a um modelo concreto de efetivao da ao poltica.

    Portanto, nossa hiptese final fundamenta-se no fato de que somente a partir da experincia dos sistemas de conselhos que poderemos encontrar uma forma de institucionalizao da ao poltica proposta por Arendt. Ao mesmo tempo, desse modo, podemos vislumbrar a possibilidade de resgate da dignidade da ao poltica frente as condies de naturalizao do homem impostas pela modernidade.

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    CAPTULO 1: A CATEGORIA TOTALITARISMO

    A obra Origens do Totalitarismo (1951), de Hannah Arendt, acima de tudo uma tentativa da autora de compreender o terror que foram os sistemas totalitrios do sculo XX e de fazer um alerta sobre os riscos que a humanidade est exposta em nosso tempo4. Arendt busca atravs da narrao dos fatos (storyteller), no s analisar em termos histricos os acontecimentos que levaram ao totalitarismo, mas entender como essa forma inteiramente nova de governo foi possvel (AGUIAR, 2009, p. 200). A grande questo do totalitarismo e o cerne da anlise arendtiana baseiam-se no fato de que a natureza humana est em risco (CANOVAN, 1992, p. 23), o que reduz os homens a condio de simples membros da espcie, vida nua. Nestadireo,testaremos a hiptese defendida por Giorgio Agamben de que os regimes totalitrios e, principalmente os campos de concentrao desses regimes, foram os primeiros a reduzirem o homem a sua condio infra-humana, promovendo uma profunda animalizao da espcie humana. Arendt aborda como sendo central nesse processo de naturalizao: a superfluidade das massas, a eliminao da liberdade humana atravs de uma ideologia sem fundamento e a inutilidade da vida, que institucionalizada atravs dos Campos de Concentrao (Cf. CANOVAN, 1992, p. 61) que aniquilaram a pessoa jurdica e moral dos homens. Sendo tudo isso profundamente necessrio para que as pessoas ficassem desamparadas e sem lugar no mundo. A autora descreve os campos de concentrao como sendo laboratrios em que a crena fundamental do totalitarismo de que tudo possvel foi verificada. Embora os campos de concentrao no sejam uma criao do totalitarismo, eles tornaram-se o ncleo dos regimes totalitrios, de modo que no existe totalitarismo sem campos de concentrao e extermnio; os campos criam um espao de animalizao do homem sem precedentes na histria, privando-os de toda espontaneidade, destruindo sua capacidade poltica e reduzindo o homem a sua natureza humana. Assim, nos regimes totalitrios tudo o que mais caracterstico dos seres humanos deve ser destrudo (CANOVAN, 1992, p. 25). 4De acordo com Arendt, [...] Este livro uma tentativa de compreender os fatos que, primeira vista, pareciam apenas ultrajantes. [...] compreender no significa negar o ultrajante, subtrair o inaudito do que tem precedentes, ou explicar fenmenos por meio de analogias e generalidades tais que se deixa de sentir o impacto da realidade e o choque da experincia. Significa antes examinar e suportar conscientemente o fardo que os acontecimentos colocaram sobre ns sem negar sua existncia nem vergar humildemente a seu peso, como se tudo o que de fato aconteceu no pudesse ter acontecido de outra forma. Compreender significa, em suma, encarar a realidade, espontnea e atentamente, e resistir a ela qualquer que seja, venha a ser ou possa ter sido. (2007d, p. 21).

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    A pretenso de domnio total, baseada na crena de que tudo possvel, criou uma das mais terrveis formas de governos de todos os tempos, que no pode ser comparada com nenhum tipo de monarquia, tirania, aristocracia ou democracia. Essa nova forma de governo se sustenta em uma propaganda, oriunda de uma ideologia, que utiliza a mentira para manipular e conseguir o apoio total das massas. O risco a que estamos expostos em nosso tempo de que essa forma de governo permanea conosco de agora em diante, como permaneceram outras formas de governo surgidas em diferentes momentos histricos (ARENDT, 2007d, p. 531).

    Para Giorgio Agamben, como ser mostrado adiante neste texto, dos campos no existe retorno em direo poltica clssica (AGAMBEN, 2007, p. 193); isto , Arendt estava certa ao refletir que o totalitarismo permanecer conosco de agora em diante. Nessa perspectiva, abordaremos neste primeiro captulo, com base principalmente na terceira parte da obra Origens do Totalitarismo, na qual a autora versa sobre os regimes totalitrios, o modo como as experincias totalitrias do nazismo e bolchevismo reduziram o homem condio de simples membro da espcie animal; para tanto, partiremos de uma anlise do contexto geral do surgimento do totalitarismo aprofundando os seus principais estgios, o terror e a ideologia totalitria, os campos de concentrao e extermnio enquanto espaos de fabricao e naturalizao dos homens e, por fim, a perspectiva biopoltica presente em Arendt, bem com o risco protototalitrios de nossas sociedades hodiernas.

    1.1. Sobre Origens do Totalitarismo

    Em Origens do Totalitarismo, livro que deu notoriedade internacional a Hannah Arendt, a autora apresenta atravs de uma abordagem bastante diferente, alguns relatos histricos de elementos que levaram ao totalitarismo, sendo que no necessariamente esses elementos so causas de explicao do evento totalitrio (DUARTE, 2000, p. 34). A princpio, Arendt queria em sua obra analisar o regime nazista como uma espcie de sucessor do imperialismo; s mais tarde, aps ter escrito as duas primeiras partes do livro que a autora chega compreenso da categoria totalitarismo5, passando ento a tratar o nazismo 5Cabe abrir um parntese nesse ponto para observar, segundo Calvet de Magalhes, que o termo totalitarismo foi usado na Itlia, por Benito Mussolini, como todos sabem, no sculo passado, no incio da dcada de 20, para descrever o novo Estado fascista por ocasio do Estado liberal. Foi usado por intelectuais que fugiram do nazismo [...], mas tambm por marxistas anti-stalinistas, j no final da dcada de 30, para designar um regime onde tudo se apresenta como poltico (2001, p. 50). De acordo com Calvet, H. Arendt reconhece que o termo totalitarismo usado em seu sentido original bem recente, visto que at o final da 2 Guerra Mundial o termo usado para denominar esse tipo de governo era mal poltico, assim, somente nos anos 50 o totalitarismo passou

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    como totalitarismo e incrementando o bolchevismo6 e a Unio Sovitica como objeto de estudo paralelo (Cf. TSAO, 2002, pp. 581 e 588), afastando-se assim de seu projeto inicial.

    Todavia, Arendt no abandona suas pretenses inicias por inteiro, somente passa a ver as duas primeiras partes do livro como os elementos cristalizadores dessa forma de governo totalmente nova. A autora reconhece que sua obra no traz de fato as origens do totalitarismo e que existe uma falta de explicao de como as duas partes iniciais devem se relacionar com a ltima parte (Cf. TSAO, 2002, p. 588). nessa perspectiva que as partes iniciais traam a histria dos elementos que se cristalizaram no totalitarismo entre o final do sculo XVIII at o sculo XIX, dentre eles: a decadncia do Estado-nao, o racismo, a expanso pela expanso e a aliana entre o capital e as massas. Segundo Canovan, Arendt no considerava o anti-semitismo como o mais fundamental elemento cristalizador do totalitarismo, embora tivesse um papel importante (CANOVAN, 1992, p. 28).

    Para Arendt, o anti-semitismo colaborou indiretamente para o surgimento do totalitarismo, atravs de seu forte vnculo com o fortalecimento do Estado, o que de certa forma angariou para si as irritaes da sociedade civil (Cf. LAFER, 2003, p. 25). Por outro lado, eles [os judeus] tinhamsecularizados, por exemplo, sua compreenso de si mesmos como o povo escolhido, e, desse modo, contriburam para a elaborao da teoria racista (CANOVAN, 1992, p. 44). J o imperialismo, fruto da emancipao da burguesia que passa a assumir a gesto do Estado na Europa, era totalmente diferente do nacionalismo,pois seu racismo, expansionismo e burocracia influenciaram fortemente a mentalidade dos movimentos totalitrios do ps-guerra (Cf. LAFER, 2003, pp. 25-26).

    Assim sendo, os sculos anteriores foram decisivos para que o terror totalitrio do sculo XX pudesse se tornar possvel, de modo que na opinio de Arendt o totalitarismo como um herdeiro direto do imperialismo (Cf. LAFER, 2003, p. 58). No entanto, mesmo tendo todos os elementos mencionados anteriormente cristalizados e sendo herdeiro direto do imperialismo, o totalitarismo promoveu uma profunda ruptura na tradio do pensamento poltico ocidental que comeou desde Plato e Aristteles. Essa ruptura significa que no existe mais aquela tradio que serve de suporte que seleciona e nomeia, que transmite e preserva, que indica os rumos a serem seguidos (SCHIO, 2006, p.31), tradio essa que era bem presente no imperialismo.

    a ser usado para denominar um tipo de poder baseado na vontade de dominar, no terror e em uma estrutura estatal monoltica. (Cf. 2001, P. 50). 6 Arendt prefere o termo bolchevismo e evita a expresso stalinismo, que no faz referncia ao regime, mas ao

    homem Stlin. Dessa forma, Arendt busca explicar que o movimento no chega ao fim com a morte de Stlin, mas permanece vivo de agora em diante.

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    Arendt frisa que o fim da tradio, ao que parece, comea com o colapso da autoridade, e no com o questionamento do seu contedo substancial ( ARENDT, 2008a, p. 120). Nesse sentido, Arendt aponta Kierkegaard, Marx e Nietzsche, como aqueles que na modernidade promoveram a adoo do marco da tradio e uma profunda rejeio de sua autoridade. Logo, com o fim da tradio, perde-se tambm a referncia a uma autoridade em que se basear, pois com a perda da tradio perdemos o fio que nos guiou com segurana pelos vastos domnios do passado (ARENDT, 2007a, p. 130). Portanto, sem essa autoridade passamos a correr o risco de que toda a dimenso constituinte do passado caia no esquecimento.

    Podemos dizer que o nazismo comea justamente pela violao de todas as tradies do passado ocidental, no tendo suas origens em nenhum resqucio da tradio alem, sendo portador de uma novidade radical e de uma descontinuidade que contraposta por Arendt tese historiogrfica de continuidade (Cf. ORTEGA, 2001, p. 74). De tal modo que, o grande perigo do totalitarismo e em especial do nazismo, est justamente no fato de que ele comea sem nenhuma base na tradio, e seria melhor perceber o perigo dessa negao radical de qualquer tradio, que foi desde o comeo o trao principal do nazismo (ARENDT, 2008b, p. 137), visto que a total negao da tradio pe fim a qualquer noo de responsabilidade, permitindo assim a criao dos campos de concentrao e extermnio.

    Embora os elementos que cristalizaram o totalitarismo sejam fundamentais para a compreenso dessa nova forma de governo, motivo pelo qual Arendt dedicou s duas primeiras partes de Origens do totalitarismo a abordagem desses elementos, nos interessa por enquanto somente a ltima parte dessa obra, em que a autora analisa o totalitarismo a partir dos regimes nazista e bolchevista, dedicando maior ateno ao regime nazista do qual ela dispunha de mais informaes e documentaes; porm, isso no inviabiliza o fato de que possamos retornar as abordagens feitas nos captulos do antissemitismo e principalmente no ltimo captulo da segunda parte, intitulado:o declnio do Estado-nao e o fim dos direitos do homem, que uma adaptao de um artigo que Arendt tinha publicado separadamente entre 1942 e 1943 (Cf. TSAO, 2002, p. 583), no qual ela analisa e repensa a condio de universalidade dos Direitos Humanos. Assim, como j mencionamos, Hannah Arendt apresenta o totalitarismo como sendo o portador de uma novidade radical e de uma profunda descontinuidade, o que dificulta o seu entendimento, no permitindo compar-lo com nenhuma outra categoria presente na histria (Cf. BIGNOTTO, 2001, p. 112), sejam elas: tirania, despotismo ou democracia.

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    A primeira diferena fundamental entre o totalitarismo e as demais categorias presentes na histria est no fato de que o terror totalitrio se volta no s contra os seus inimigos, mas tambm contra os seus amigos e defensores (ARENDT, 2008c, p.132); uma segunda diferena seria sua radicalidade, que o torna capaz de eliminar no somente a liberdade de ao dos indivduos como faziam as tiranias atravs do isolamento poltico, mas tambm o prprio elemento da ao, destruindo assim qualquer possibilidade efetiva de surgimento da poltica, que acontece somente na pluralidade dos homens.

    Assim sendo, a percepo de Arendt da ruptura que levou ao surgimento de um novo tipo de governo a fez procurar compreender as caractersticas bsicas e funes que possibilitaram tal acontecimento. De acordo com Tsao, o pensamento arentdtiano divide o totalitarismo em trs fases formalmente sucessivas, que so: o poder enquanto pr-estgio, a consolidao e o exerccio do poder estatal e a dominao total7. A preocupao fundamental de Arendt no a origem histrica do totalitarismo, mas como os lderes totalitrios conseguiram ultrapassar esses estgios citados acima, a ponto dessa organizao os levar ao poder.

    Portanto, nossa tarefa tentar compreender o modo como os movimentos totalitrios protagonizados por Hitler e Stalin se organizaram a ponto de chegar ao domnio total. A princpio, para alcanar tal objetivo, o movimento necessitou de uma massa de seguidores, massa essa que j existia antes do totalitarismo, composta por pessoas vistas como suprfluas, que no integravam nenhuma organizao poltica baseada no interesse comum, sendo aparentemente indiferentes e apticas (Cf. ARENDT, 2007d, pp. 361-362); essas massas foram facilmente recrutadas e atomizadas pelo totalitarismo. A origem dessas massas est na apatia poltica surgida nos grupos e camadas da populao aps a primeira guerra mundial, o que fez com que muitos desses homens aderissem de maneira inteiramente altrusta ao movimento totalitrio. Pessoas que no tinham mais sentimento algum de pertena a nenhuma classe ou grupo estabelecido de interesse social, passando a se tornar o primeiro alvo para a promoo da ideologia totalitria.

    7De acordo com Tsao, (2002, p. 591), Although Arendt distinguishes three formally successive stages of totalitarianism the pre-power stage, the consolidation and exercise of state power, and finally total dominationhers is not really a diachronic analysis at all

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    1.2. Estgios iniciais do Totalitarismo

    Nesta seo,seguiremos a trilha do pensamento arendtiano na terceira parte de Origens do Totalitarismo, como forma de compreender seus principais estgios. Desta feita, partiremos da anlise daquele que se tornou o primeiro estgio ou pr-estgio do totalitarismo, o movimento totalitrio, que no pode ser comparado ao governo totalitrio e a nenhum governo no sentido tradicional. Segundo Tsao, o que Arendt entende por movimento totalitrio um padro concntrico de organizao, cujo ncleo um partido altamente disciplinado e cujo permetro central pode ou no se estender s instituies de governo (2002, p. 592), dependendo do estgio em que o movimento se encontra. Os movimentos totalitrios encontraram terreno para seu desenvolvimento no grande nmero de indivduos que aps a Primeira Guerra Mundial no tinham um sistema em que se conformar.

    Foi, portanto, no solo de uma sociedade fragmentada que surgiram os indivduos que tinham como principais caractersticas o isolamento, a falta de interesse comum, a indiferena poltica e a estupidez, que formava a sociedade de massas8 oriundas da Revoluo Industrial. Para Arendt,

    O termo massa s se aplica quando lidamos com pessoas que, simplesmente devido a seu nmero, ou sua indiferena, ou a uma mistura de ambos, no se podem integrar numa organizao baseada no interesse comum, seja partido poltico, organizao profissional ou sindicato de trabalhadores. Potencialmente as massas existem em qualquer pas e constituem a maioria das pessoas neutras e politicamente indiferentes, que nunca se filiam a um partido e raramente exercem o poder de voto (2007d, p. 361)

    Contudo, foram os homens atomizados que nunca haviam participado da poltica, que formaram a base para os movimentos totalitrios, passando a constituir o maior nmero de adeptos fanticos. Podemos dizer que os movimentos totalitrios so organizaes macias de indivduos atomizados e isolados (ARENDT, 2007d, p. 371). Homens insatisfeitos e desesperados, sem interesse comum, reduzidos condio biolgica, que mantinham suas cabeas baixas e recusavam-se a pensar sobre as atrocidades que estavam cometendo, tornaram-se membros desses movimentos de maneira inteiramente altrusta (Cf. CANOVAN, 1992, p. 54).

    8 Quando Arendt fala das massas ela est se referendo mais especificamente as experincias bolchevistas, pois o

    desprendimento dos adeptos das massas se aproxima mais daquele inspirado em um tipo de bolchevismo. (Cf. TSAO, 1992,p. 602)

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    Essas massas de indivduos atomizados foram atradas pelo totalitarismo atravs da propaganda9, que passou a ser utilizada na poltica e que no enseja formar uma opinio, mas provocar um comportamento, gerar uma atuao (AGUIAR, 2007, p. 9), sendo responsvel pela criao do mundo fictcio dos movimentos totalitrios; oferecendo uma realidade coerente por meio da pura imaginao. A propaganda tem sua fora na capacidade irresistvel e atraente de isolar os indivduos atomizados do mundo real, pois o mundo real representa uma ameaa s pretenses totalitrias de domnio global. O anseio das massas pela coerncia levou os movimentos totalitrios a criarem um falso mundo de coerncia, baseado nas mentiras que necessitam para transpor o abismo entre a realidade e a fico (ARENDT, 2007d, p. 402)

    Os movimentos totalitrios usaram da propaganda e da mentira na poltica para burlar a realidade tornando a histria extremamente previsvel, de modo que a verdade digna de confiana desaparece por completo da vida pblica, e com ela o principal fator de estabilizao nos cambiantes assuntos dos homens (ARENDT, 2008c, p.17). Dentre as mentiras criadas pela propaganda totalitria, a mais eficaz foi suposio de uma conspirao mundial judaica, que se tornou o principal elemento da fictcia realidade nazista (Cf. ARENDT, 2007d, pp. 403-411) e que era utilizada por essemovimento como expediente organizacional no extermnio do povo judeu. A propaganda e a mentira tornam-se assim a base da organizao totalitria, aplicadana criao de um mundo inteiramente ilusrio e distante do mundo real, cuja principal desvantagem no ser lgico, coerente e organizado (ARENDT, 2007d, p. 411).

    Todavia, a propaganda nazista visava organizar10 todos os alemes e torn-los simpatizantes do movimento, outro objetivo era aumentar sua condio de atomizao; sendo que, a diviso organizacional do movimento era feita da seguinte forma: formao de elite, membros e simpatizante (Cf. ARENDT, 2007d, p.433). O movimento totalitrio, atravs de suas organizaes de vanguarda utilizava-se de dispositivos organizacionais com o intuito de enganar os seus membros quanto verdadeira natureza do mundo exterior, da mesma forma que engana o mundo exterior quanto ao verdadeiro carter do movimento (ARENDT, 2007d,

    9 Diferente da ral e da elite, que segundo Arendt, so atradas no pela propaganda, mas pelo mpeto do

    totalitarismo. (Cf. ARENDT, 2007d, p. 390). De outro modo, a propaganda nazista no deve ser vista como uma inveno desses movimentos, pois de acordo com Arendt, os nazistas, sem o confessarem aprenderam tanto com as organizaes dos gngsteres americanos quanto sua propaganda, confessadamente, aprendeu com a publicidade comercial americana (ARENDT, 2007d, p. 394). 10Segundo Arendt, o totalitarismo nazista comeou com uma organizao de massa que foi apenas gradualmente dominada pelas formaes de elite, enquanto os bolchevistas comearam com formulaes de elite e organizaram as massas de acordo com elas. Em ambos os casos o resultado foi idntico. (2007d, p. 430).

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    p. 416). O maior objetivo desses movimentos era destruir a vida comum e poltica, ampliando cada vez mais o mundo fictcio criado por eles, onde a mentira toma o lugar da verdade e torna-se a fora legitimadora. Portanto, a propaganda totalitria enquanto principal instrumento de organizao do movimento oferece um mundo deitado de coerncia que se adqua mais s necessidades da vida humana que prpria realidade, deixando as massas desenraizadas do seu lugar no mundo (Cf. TSAO, 2002, p. 596).

    No centro desse movimento est a figura do Lder, que assume um papel de destaque principalmente pela urea da infalibilidade de seus atos (Cf. ARENDT, 2007d, p. 432). O Lder conquista a credulidade dos simpatizantes tornando suas mentiras e fices aceitveis para o mundo exterior e impedindo que a verdade do mundo real venha tona11. Porm, para Arendt, o que caracteriza a crena na infalibilidade do Lder no a lealdade, mas a conveno de que pode tornar-se infalvel qualquer pessoa que comande os instrumentos de violncia com os mritos superiores da organizao totalitria (ARENDT, 2007d, p. 438).

    O Lder totalitrio tem ainda de enfrentar duas tarefas indispensveis com vistas a impedir que o movimento se torne um modo de vida, o que faria com que o totalitarismo perdesse sua qualidade total,

    [...] tem de estabelecer o mundo fictcio do movimento como realidade operante da vida de cada dia, e tem, por outro lado, de evitar que esse novo mundo adquira nova estabilidade; pois a estabilizao de suas leis e instituies certamente liquidaria o prprio movimento e, com ele, a esperana da futura conquista do mundo (ARENDT, 2007d, p. 470).

    Feita essa meno, podemos dizer que o totalitarismo evita constantemente o confronto com a realidade, livrando os homens da imprevisibilidade da vida e eliminando sempre qualquer realidade rival que possa se sobrepor a suas pretenses de domnio total. A partir daqui podemos avanar para aquele segundo estgio do totalitarismo no pensamento de Arendt: sua consolidao e o exerccio do poder estatal;nela o totalitarismo passa a utilizar da administrao do Estado para seu objetivo de domnio total da populao da terra; ao mesmo tempo em que instaura a Polcia Secreta com a finalidade de transformar a fico em realidade12. Destarte, s aps a compreenso desses estgios iniciais poderemos chegar ao seu ltimo estgio, da criao dos campos de concentrao e extermnio, que ser analisado na 11De acordo com Arendt, os governantes totalitrios tinham de encarar dois problemas, proteger o mundo fictcio do movimento (ou do pas totalitrio) contra o impacto da realidade, e de manter a aparncia de normalidade e de bom senso perante o mundo normal de fora (2007d, p. 470). Desse modo, o Lder garantia para as massas: a sua onipotncia e a coerncia dos fatos com a realidade. 12

    Essa fase de dominao total acontece quando as instituies de Estado esto totalmente assimiladas pelo totalitarismo.

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    seo 1.4. deste captulo, por tratar-se do principal alvo de nossa pesquisa, visto que foram os campos os primeiros responsveis pela reduo do homem a mera condio de ser natural, isto , foram os campos os responsveis pela fabricao de uma espcie de ser humano natural, que at ento no existia.

    Parafraseando Hannah Arendt, podemos dizer que o Estado totalitrio o herdeiro lgico do movimento totalitrio, do qual deriva a sua estrutura organizacional (ARENDT, 2007d, p. 470). Assim, quando o totalitarismo chega ao poder estatal e estabelece o Estado totalitrio, cria um estado de permanente ilegalidade, destruindo qualquer perspectiva de se chegar a algum tipo de normalizao e mantendo cada vez mais os indivduos isolados e presos s suas fices (Cf. TSAO, 2002, p. 609). Para Arendt, o fato mais interessante do Estado totalitrio a coexistncia (ou conflito) de uma dupla autoridade, o partido e o Estado (ARENDT, 2007d, p. 445), sendo que o verdadeiro poder est sempre nas mos do partido e no do Estado. Logo, a conquista do poder pelo nazismo na Alemanha representou no s a destruio de todas as estruturas de governo existentes, como tambm a duplicao dos rgos e diviso da autoridade, deixando o poder real nas mos do partido e o aparente para o Estado, que no alterado de sua condio, mas passa a servir apenas como fachadapara o partido (Cf. ARENDT, 2007d, p. 448).

    Aps a chegada ao poder, os governos totalitrios no se baseiam em nenhum princpio de autoridade hierrquica, sua autoridade vem diretamente do Lder que visa, atravs do domnio totalitrio13 a abolio da liberdade at mesmo eliminao de toda liberdade humana e no a simples restrio, por mais tirnica que seja, da liberdade (ARENDT, 2007d, p. 455). Desse modo, o domnio totalitrio, que tem sua base no isolamento de indivduos atomizados, no s destri a liberdade dos outros como tambm nega a sua prpria liberdade com o fim de alcanar a realizao de sua ideologia.

    Para Arendt, o que move a organizao totalitria a f inabalvel num mundo ideolgico fictcio e no o desejo de poder (ARENDT, 2007d, p. 467). Nesse sentido, o totalitarismo completamente livre de qualquer considerao utilitria e indiferente ao interesse nacional e ao bem do povo, pois sua nica preocupao a utopia totalitria do futuro domnio global (Cf. ARENDT, 2007d, p. 471). A pretenso de concretizao desse desejo de domnio global levou os regimes totalitrios a cometerem assassinatos em massa, destruindo vrias camadas da populao a partir de um mtodo de identificao ideolgica da Polcia Secreta, que elegia determinado grupo de pessoas como inimigos objetivos do regime. 13

    At hoje s tivemos conhecimento da existncia de duas formas de domnio totalitrio: A nacional-socialista (1938) e a bolchevista (1930). (Cf. ARENDT, 2007d, p. 469).

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    Para a Polcia Secreta, os inimigos objetivos do totalitarismo eram definidos ideologicamente pelo movimento, pois tais inimigos eram necessrios para manter a dinmica do terror (Cf. CANOVAN, 1992, p. 58), de modo que, como j frisamos, os governos totalitrios no podem ser vistos como governos no sentido tradicional, mas como movimentos, cujo avano constantemente encontra-se com novos obstculos que tm de ser eliminados (Cf. TSAO, 2002, p. 605). Dessa feita, esses governos criam inimigos objetivos, que passam a ser vistos como portadores de doenas incurveis; so pessoas escolhidas pelo governo para serem sacrificadas, sem que tenham nem mesmo conscincia do por que de sua morte. Afirma Arendt:

    A categoria dos inimigos objetivos sobrevive aos primeiros inimigos do movimento, ideologicamente determinados; e novos inimigos objetivos so encontrados segundo as circunstncias: os nazistas, prevendo o fim do extermnio dos judeus, j haviam tomado as providncias preliminares necessrias para a liquidao do povo polons, enquanto Hitler chegou a planejar a dizimao de certas categorias de alemes (2007d, p. 474).

    A grande questo que a lei objetiva do movimento precisa de um inimigo para ser exterminado assim que uma determinada categoria j tenha sido liquidada, esse inimigo ser sempre escolhido ao acaso, entre uma determinada categoria da populao, sem que tenha feito nada para merecer tal sacrifcio; passando todos os membrosda populao a estar expostos ao risco de ser includos na condio de suspeitos do movimento e, por conseguinte, indignos de viver. Ora, segundo Arendt, o domnio totalitrio no precisa de um princpio de ao, como precisavam outros governos presente na tradio, mas sim de um meio para preparar igualmente os indivduos para os dois papis, o de carrasco e o de vtima (ARENDT, 2008b, 368).

    Portanto, o domnio totalitrio atinge um nvel to arbitrrio que o inocente e culpado so igualmente indesejveis (ARENDT, 2007d, p. 483). A posio compreensvel pelo fato desses governos no estarem buscando um ideal de justia e sabedoria, mas sim preocupados na execuo das leis do movimento da Histria e da Natureza. Deste modo, Arendt defende no captulo Ideologia e Terror, que o terror totalitrio apenas aumenta quando o regime chega ao poder, destruindo toda a pluralidade dos agentes humanos e tornando-os partes do movimento da Histria e da Natureza (Cf. TSAO, 2002, pp. 608-609).

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    1.3. Ideologia e Terror

    O textoIdeologia e Terror:uma nova forma de governo passou a compor a obra Origens do Totalitarismo a partir da segunda edio,em 1955, no lugar dos comentrios finais presentes nas edies anteriores do livro. O captulo havia sido escrito em 1953 e representava outra fase do pensamento arendtiano sobre o assunto em questo, sem que com isso a autora abandonasse os argumentos anteriores (TSAO, 2002, pp. 580-581). Nele, Arendt caracteriza o governo totalitrio como um novo tipo de sistema poltico, que tem o terror como sua essncia e a ideologia no lugar do princpio de ao (Cf. CANOVAN, 1992, p. 91), sendo totalmente diferente dos outros tipos de governos conhecidos, contrrio s leis estabelecidas e portador de uma qualidade totalmente destrutiva. A questo bsica defendida por Arendt no captulo que o terror totalitrio aumenta quando se consolida no poder, passando a obedecer rigorosa e inequivocamente quelas leis da Natureza ou da Histria que sempre acreditvamos serem a origem de todas as leis (2007d, p. 513).

    Na reflexo que pretendemos desenvolver na presenteseo, buscaremos no s compreender os novos elementos apresentando por Arendt em Ideologia e Terror como configuradores de uma nova forma de governo; como tambm, com base em outros escritos da autora, perceber a maneira como nesse captulo Arendt volta-se para o problema do marxismo enquanto suporte da ideologia bolchevista. Ora, aps escrever a obra Origens do Totalitarismo, Arendt tinha em mente a pretenso de organizar um livro sobre os Elementos totalitrios no marxismo (Totalitarian elements in marxism), como forma de abordar o tema no mencionado em Origens, no entanto, Arendt abordou esse projeto pela metade. Assim, no presente texto daremos incio tentativa de resgatar alguns desses elementos que se encontram fortemente presente emIdeologia e Terror e em outros escritos e rascunhos da autora que fazem analogia ao assunto em questo.

    Nessa linha, iniciaremos por afirmar que para Arendt o terror totalitrio desafia todo sistema de legalidade, visando reduzir os homens a simples membros de uma espcie que se limita ao papel de seguir os processos das leis da Natureza e da Histria. A individualidade e espontaneidade so banidas por completo do meio dos homens, destruindo a pluralidade dos agentes humanos e qualquer espao que possibilite o exerccio da ao e do discurso. De modo que o totalitarismo recorre, a todos os meios para estabilizar os homens, para torn-los sim, a eles estticos, no fito de impedir qualquer ato imperativo, livre ou espontneo que possa retardar o livre curso do terror (ARENDT, 2008b, p.361).

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    Em Ideologia e Terror, Arendt apresenta o conceito de lei do movimento, utilizado pelos lderes totalitrios para manter a dinmica do terror em constante desenvolvimento; ao mesmo tempo em que incrementa sutilmente, na discusso, os elementos totalitrios presentes na teoria marxista. Portanto, para a autora, o conceito de lei do movimento surge primeiramente em Hitler como um pseudo-darwinismo, lei da luta racial; e no caso de Stlin, como um pseudo-marxismo, lei da luta de classes (TSAO, 2002, p. 606). Escreve a autora,

    Sob a crena nazista em leis raciais como expresso da lei da natureza, est a idia de Darwin do homem como produto de uma evoluo natural que no termina necessariamente na espcie atual de seres humanos, da mesma forma como, sob a crena bolchevista numa luta de classes como expresso da lei da histria, est a noo de Marx da sociedade como produto de um gigantesco movimento histrico que se dirige, segundo a sua prpria lei de dinmica, para o fim dos tempos histricos, quando no se extinguir a si mesmo. (ARENDT, 2007d, p. 515).

    A referida citao nos d a compreenso que tanto a teoria evolucionista do darwinismo14, bem como a teoria marxista da luta de classes so teorias muito prximas, pois o movimento da histria e a evoluo natural so um s e progridem infinitamente15. a partir dessa compreenso que podemos afirmar a influncia dessas teorias na promoo das ideologias totalitrias do nazismo e do bolchevismo no sculo XX, que seguiram risca a ideologia de uma lei da natureza humana e da histria inseridas em um processo sem fim. Nessa direo, Arendt menciona no texto De Hegel a Marx16 a adoo feita por Marx da dialtica hegeliana, que

    ao converter a dialtica em mtodo, Marx a libertou dos contedos que a mantinha delimitada e atada realidade substancial. E assim ele tornou possvel o gnero de pensamento-processo caracterstico das ideologias do sculo XIX, culminando na lgica devastadora dos regimes totalitrios cujo aparato de violncia no est sujeito s restries da realidade. (2008a, p. 122)

    No entanto, no podemos acusar Marx de ser totalitrio ou mesmo que sua teoria seja a fundadora do totalitarismo, embora o marxismo distorcido17 possa tornar-se uma ideologia

    14

    Nesse sentido importante lembrar que Marx e Engels eram adeptos da teoria evolucionista de Darwin. 15Para Arendt, a lei natural da sobrevivncia dos mais aptos a lei da histria e pde ser usada como tal pelo racismo quanto a lei de Marx da sobrevivncia da classe mais progressista. Por outro lado, a luta de classes de Marx como fora motriz da histria apenas a expresso externa do desenvolvimento de foras produtivas que, por sua vez, emanam da energia-trabalho dos homens. (2007d, p. 516). 16

    Segundo nota de Jerome Kuhn (Cf. ARENDT, 2008a, p. 8), Esse texto o manuscrito de um discurso radiofnico em alemo (Von Hegel zu Marx), que foi ao ar em 1953. 17

    Por distoro ou perverso do marxismo entendemos o modo como o marxismo pode transformar-se em uma ideologia totalitria, assim diz Arendt: A confuso entre ao poltica e fazer histria remonta a Marx. Depois que Hegel interpretou a histria da humanidade, Marx tinha a esperana de poder mudar o mundo, isto , fazer

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    totalitria, porm,mesmo assim, se fizermos tal acusao estaremosdizendo que toda a tradio do pensamento poltico Ocidental teria necessariamente terminado na monstruosidade que foi esse o regime totalitrio (Cf. CANOVAN, 1992, p. 64). Todavia, sabemos que a teoria marxista18 dos processos e da lei da histria contribuiu fortemente para as bases ideolgicas do totalitarismo quando passou a ser aplicada pelo bolchevismo, assim como a teoria cientificista de Darwin, tambm utilizada por Marx, contribuiu para a elaborao da ideologia nazista. De outro modo, podemos dizer ainda que o rompimento de Marx com a autoridade da tradio do pensamento poltico Ocidental colaborou decisivamente para a edificao da ideologia totalitria bolchevista e nazista.

    Retomando a ideia j mencionada de uma lei do movimento, lei essa que parte de um processo sem fim, pois para o totalitarismo sempre existiu categorias nocivas e indignas de viver; bem como sempre existiu luta de classe, o que torna necessrio seu constante movimento,podemos dizer que essa ideia de uma lei do movimento est profundamente enraizada na ruptura com todo consensus iuris e o modo de se pensar as leis contidas na tradio, pois o regime totalitrio no tem necessidade alguma de estabelecer seu prprio consensus iuris, de forma que a poltica totalitria afirma transformar a espcie humana em portadora ativa e inquebrantvel de uma lei a qual os seres humanos somente passivamente e relutantemente se submeteriam (ARENDT, 2007d, p. 514).

    importante ressaltar que o totalitarismo, tomando emprestado o conceito de lei da teoria marxista, afirma ter a lei um significado radicalmente diferente do que tinha para toda a tradio do pensamento, pois deixou de designar o arcabouo de estabilidade dentro do qual as aes humanas deveriam e poderiam ocorrer e passou a ser a prpria expresso desses movimentos (ARENDT, 2008b, p. 360), no podendo ser estabelecida de modo algum com o propsito de edificar um corpo poltico. Nesse sentido, as leis no devem servir para manter a estabilidade a partir dos critrios de certo ou errado, mas devem estar a servio de um movimento que visa executar a lei da Histria ou da Natureza sem convert-la em critrios de certo e errado que norteiem a conduta individual (ARENDT, 2007d, p. 514), pois os governantes totalitrios no desejam ser justo ou sbio, mas somente executores dessas leis. Assim, escreve Arendt que para Marx

    o futuro da humanidade. O marxismo pde se transformar numa ideologia totalitria devido a essa distoro, ou incompreenso, da ao poltica como fazer a histria (ARENDT, 2008b, p. 412). 18Segundo Hannah Arendt, o que chamamos de marxismo em um sentido especificamente poltico no chega a fazer justia extraordinria influncia de Marx nas humanidades (2008a, p. 120)

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    A lei da histria e o mesmo vale para todas as leis de desenvolvimento do sculo XIX uma lei de movimento e, desse modo, em fragrante contradio com todos os outros conceitos de lei que conhecemos de nossa tradio. Tradicionalmente, leis so fatores de estabilizao na sociedade, ao passo que lei aqui indica o movimento previsvel e cientificamente observvel da histria em desenvolvimento (2008a, p. 139).

    Portanto, a nica lei que Marx reconhecia era a lei da histria. Os governos totalitrios, apropriando-se dessa teoria, tornaram-se os responsveis por uma profunda ruptura com todas as formas de leis e governos presentes na tradio19, passando a serem guiados no por um princpiode ao20, como eram guiadas as demais formas de governo em toda a tradio do pensamento poltico Ocidental. Foi Montesquieu o primeiro a mencionar que cada forma de governo tem um princpio inato que o pe em movimento e guia todas as suas aes (ARENDT, 2008b, p. 350) sendo a virtude, a honra e o medo os princpios norteadores das aes dos governos e dos governados. O totalitarismo como forma totalmente diferente de governo rompe com essa ideia de princpio de ao estabelecida por Montesquieu, desafiando toda a autoridade das leis positivas e afirmando ser movido pelas leis universalmente vlidas da Natureza e da Histria, que garantem sua legalidade; pois segundo sua lgica so essas prprias leis que do autoridade s leis positivas (Cf. ARENDT, 2007d, p. 513). Logo, como responsveis pela aplicao das leis da Natureza e da Histria os lderes totalitrios se julgam no direito de cometer as piores atrocidades para garantirem a efetividade dessas leis junto humanidade.

    Segundo Canovan, Arendt afirma genuinamente que Hitler e Stalin acreditavam que a condio de seu sucesso seria que suas aes estivessem de acordo com as supostas leis da Natureza e da Histria (Cf. CANOVAN, 1992, p. 57). Para tanto, o governo totalitrio no admitia a interferncia de nenhuma ao livre dos simples seres humanos (ARENDT, 2008b, p. 361), pois o grande objetivo do terror totalitrio seria a destruio de toda e qualquer expresso da pluralidade dos agentes humanos. Da a importncia da Ideologia21, como base do terror totalitrio, responsvel pela lgica do movimento. As ideologias eram 19

    Os governos totalitrios no so um regime no sentido tradicional, mas um movimento, cujo avano encontra-se constantemente com novos obstculos que precisam ser eliminados (Cf. TSAO, 2002, p. 605). 20Segundo Hannah Arendt, Montesquieu introduziu trs princpios de ao: a virtude, que inspira as aes numa repblica; a honra, que inspira os sditos em uma monarquia; e o medo, que guia as aes numa tirania, a saber: o medo que os sditos tm do tirano e dos outros sditos e o medo que o tirano tem dos sditos. (2008a, P. 112). 21De acordo com nossa autora, a palavra ideologia parece sugerir que uma idia pode tornar-se o objeto de estudo de uma cincia, como os animais so o objeto de estudo na zoologia, e que o sufixo logia da palavra ideologia, como em zoologia, indica nada mais que os logoi os discursos cientficos que se fazem a respeito da idia. Se isso fosse verdadeiro, a ideologia seria realmente uma pseudocincia e uma pseudofilosofia, violando ao mesmo tempo os limites da cincia e os da filosofia. [Mas] [...] Uma ideologia bem literalmente o que seu nome indica: a lgica de uma idia (ARENDT, 2007d, pp. 520-521).

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    basicamente insignificantes na poltica, at que Hitler e Stlin perceberam seu potencial totalitrio e passaram a utiliz-las como acessrio na forma de mentiras que seguem necessariamente uma sequncia lgica (Cf. CANOVAN, 1992, p. 90).

    A ideologia totalitria que Arendt introduz emIdeologia e Terror diferente da apresentada nos demais captulos de Origens. Sua novidade est no fato de que essa ideologia constitui acima de tudo uma forma de terror capaz de dominar os seres humanos a partir de dentro, roubando at sua capacidade de formular pensamentos independentes. Uma ideologia acima de tudo a lgica de uma ideia, por isso pode facilmente ser transformada em instrumentos totalitrios, simplesmente pelo fato de seguir uma conscincia lgica que pode levar as concluses mais absurdas. Para Arendt, foi atravs de um processo de transformao da dialtica como mtodo para a dialtica como ideologia, processo esse ainda desconhecido por Hegel e Marx, que se tornou possvel a transformao da primeira proposio do processo dialtico em uma premissa lgica, possibilitando, assim, o fato que nas ideologias totalitrias, a lgica se apodera de certas ideias e as perverte em premissas (ARENDT, 2008a, p. 124); o que caracteriza o rompimento total com o fio da tradio.

    Segundo Arendt, todas as ideologias contm elementos totalitrios, mas estes s se manifestam inteiramente atravs dos movimentos totalitrios o que nos d a falsa impresso de que somente o racismo e o comunismo so de carter totalitrio (ARENDT, 2007d, p. 522). O pensamento ideolgico tem trs elementos que podem ser classificados como totalitrios: primeiro, as ideologias esto preocupadas unicamente com o elemento do movimento e nunca com o que realmente existe, pois sempre se orientam na direo da histria; segundo, o pensamento ideolgico emancipa-se da realidade, passando a alter-la a partir de suas afirmaes ideolgicas; e terceiro, as ideologias conseguem emancipar o pensamento da experincia atravs de certos mtodos de demonstrao, isto , atravs da deduo lgica esse pensamento arruma os fatos partindo de uma premissa aceita axiomaticamente, do qual tudo mais deduzido dela (Cf. ARENDT, 2007d, p. 522-523).

    Essa coerncia lgica fazia com que os seguidores do movimento, crentes no suposto processo revelador e consciente da histria, fechassem os olhos e os ouvidos para o que realmente estava acontecendo no mundo (Cf. CANOVAN, 1992, p. 90). De modo que, nas palavras de Arendt, a lgica desencadeada pela ideia, se apoderou das massas (ARENDT, 2008a, p. 124). Dessa forma, os governos totalitrios passaram a levar as implicaes ideolgicas aos extremos da coerncia lgica (ARENDT, 2007d, p. 524), passando atravs desse processo a condenar pessoas e raas inteiras a morte, chegando ao extremo terror dos

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    campos de concentrao e extermnio, que reduz os seres humanos a mais pura condio de naturalizao por meio da execuo de foras supostamente sobre-humanas.

    O terror totalitrio visa tornar todos os homens parte de um processo sem fim, que os leva a renunciar toda a sua liberdade, enquanto capacidade de comear e espao de movimento entre os homens, como tambm os coloca na condio natural de seres presos ao campo das necessidades. Assegura Arendt,

    A liberdade, como capacidade interior do homem, equivale capacidade de comear, do mesmo modo que a liberdade como realidade poltica equivale a um espao que permita o movimento entre os homens. Contra o comeo, nenhuma lgica, nenhuma deduo convincente pode ter qualquer poder, porque o processo de deduo pressupe o comeo sob forma de premissa. Tal como o terror necessrio para o nascimento de cada novo comeo que imponha ao mundo a sua voz, tambm a fora autocoerciva da lgica mobilizada para que ningum jamais comece a pensar -e o pensamento, como o mais livre e a mais pura das atividades humanas, exatamente o oposto compulsrio da deduo. (2007d, pp. 525-526).

    Portanto, uma das principais caractersticas da ideologia imobilizar o homem para impossibilit-lo de pensar. Assim, a experincia totalitria torna-se possvel em meio solido das massas desarraigadas e trabalhadoras22, que so aprisionadas s necessidades da vida material e privada. Nesse sentido, solido no o mesmo que isolamento, pois o isolamento acontece quando a esfera poltica de interesse comum dos indivduos destruda, impossibilitando o poder e a capacidade de agir, no entanto, a capacidade produtiva e de ao dos homens permanece preservada. Somente quando o homem isolado deixa de pertencer ao mundo de todos, perdendo seu lugar no terreno da ao poltica e no mundo das coisas, separando-se da experincia humana da realidade e entregando-se ao mundo das necessidades da natureza humana: o isolamento se transforma em solido. Diz a autora,

    O governo totalitrio, como todas as tiranias, certamente no poderia existir sem destruir a esfera da vida pblica, isto , sem destruir, atravs do isolamento dos homens, as suas capacidades polticas. Mas o domnio totalitrio como forma de governo novo no sentido de que no se contenta com esse isolamento, e destri tambm a vida privada. Baseia-se na solido, na experincia de no pertencer ao mundo, que uma das mais radicais e desesperadas experincias que o homem pode ter. (ARENDT, 2007d, p. 527).

    A solido (loneliness) que representa a perda do sentido da realidade e a incapacidade de fazer julgamentos a base do terror totalitrio, que elimina os indivduos no s dos outros mas tambm de si mesmo. Arendt distingue solido de retirada do mundo dos homens, de 22

    Aqui a palavra trabalho aparece no sentido de labor, de atividade utilizada para gerao de bens de consumo humano.

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    estar s, de ausncia de companhia, que uma condio prvia para o dilogo consigo mesmo, pois quando estamos a ss com ns mesmo ainda precisamos e pressupomos um contato com o mundo dos homens (Cf. CANOVAN, 1992, p. 92), um dois-em-um; enquanto que na solido se est privado de um mundo comum, privado de todos os outros homens. Assim, a solido se relaciona diretamente com o desarraigamento e a superfluidade das massas modernas surgidas a partir da Revoluo Industrial e com as crises polticas do sculo passado.

    A preocupao de Arendt com a solido est diretamente ligada aos elementos do marxismo no totalitarismo, que se estendem as anlises feitas em sua obra A condio Humana, que aprofundaremos mais detalhadamente no segundo captulo dessa dissertao. O homem moderno est cada vez mais aprisionado s necessidades da vida privada e vulnervel solido, o que o torna mais passivo de aceitar as ideologias totalitrias. A preocupao crescente de Arendt com o totalitarismo sovitico relaciona-se com os elementos do marxismo presentes nele e que esto diretamente relacionados com a libertao do homem dos processos da vida e com a emancipao econmica da classe trabalhadora promovida pelo socialismo, elevando a vida material a uma dignidade sem precedentes, e fazendo com que as pessoas passem a viver a histria como fluxo de um processo inexorvel. (Cf. CANOVAN, 1992, p. 93).

    Para tanto, apresentaremos o ltimo estgio do totalitarismo, que seria a implantao dos campos de concentrao e extermnio, esses campos marcaram o incio da perverso do animal humano, provocado pelos regimes totalitrios, quando de sua ascenso ao governo. Os campos de concentrao totalitrios so os responsveis pelo domnio da vida humana em todas as suas dimenses, levando o homem a condio da mais completa animalizao. Assim, esses campos, atravs do domnio total da natureza humana, tornaram possvel, segundo Agamben, a radical transformao da poltica em espao da vida nua (AGAMBEN, 2007, p. 126).

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    1.4. Os campos deextermnio

    Os campos de concentrao no so uma criao dos regimes totalitrios23, j existiam campos de concentrao antes desses regimes; a grande novidade dos campos criados pelo totalitarismo seu extremo potencial de extermnio, onde suas vtimas desaparecem sem deixar nenhum vestgio, apagando assim a sua prpria existncia. A questo que se apresenta para Arendt, e que tentaremos explicitar nas linhas que se seguem : como compreender o que de fato aconteceu nesses campos de concentrao e extermnio? Como a experincia dos campos de extermnio se tornou possvel? E de que maneira o campode concentrao se tornou espaos de naturalizao ou mesmo fabricao de um novo tipo de seres humanos?

    O que levou Arendt a escrever e foi decisivo na sua tentativa de compreender os regimes totalitrios foi, sem dvida, os campos de concentrao e em especial Auschwitz. Quando Arendt soube da experincia dos campos de concentrao e extermnio, ela no acreditou que de fato isso estivesse acontecendo. Assim, Arendt declarou em uma entrevista cedida a Gnther Gaus, em 1964, quando de sua descoberta da existncia de Auchwitz, isso no deveria est acontecendo. E no me refiro apenas ao nmero de vtimas. Eu me refiro ao mtodo, fabricao de cadveres e assim por diante (...). Isso no era pra ter acontecido (ARENDT, 2008b, p. 43). Portanto, foram as experincias dos campos de concentrao e extermnio que levaram Arendt a tentar compreender o terror e a novidade dos regimes totalitrios de nosso sculo.

    Para a autora, os campos de concentrao e extermnio so o fundamento e a instituio central do regime totalitrio, se no conseguirmos compreender isso dificilmente conseguiremos compreender o resto de sua argumentao. Os campos funcionam como laboratrios onde se demonstra a crena fundamental do totalitarismo de que tudo possvel (ARENDT, 2007d, p. 488). De tal modo que, os campos criaram uma realidade que vista de fora parece completamente impossvel, eles transcenderam o princpio niilista de que tudo permitido, rompendo com todo interesse utilitrio e governamental e passando a atuar na esfera do tudo possvel; ora, a realidade dos campos parece incompreensvel para as pessoas normais, que se recusam a acreditar nesse fato, pois o que o bom senso e as pessoas normais se recusam a crer que tudo possvel (ARENDT, 2007d, p. 491). A esfera do tudo possvel significa que as pessoas podem ser tratadas, de jure e de facto, como suprfluas e 23Para Arendt, nem mesmo os campos de concentrao so inveno dos movimentos totalitrios. Surgiram pela primeira vez durante a Guerra dos Beros, no comeo do sculo XX, e continuaram a ser usados na frica do Sul e na ndia para os elementos indesejveis. (2007d, pp. 490-491)

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    descartveis (LAFER, 1997, p. 55), e que os campos de concentrao configuram a existncia de um mal radical, onde no existem modelos polticos ou histricos que nos ajude a compreend-los e onde sua vitria significa a mesma inexorvel runa para todos os seres humanos que o uso da bomba de hidrognio traria para toda raa humana (ARENDT, 2007d, p. 495).

    Segundo Aguiar, importante compreender que no existe totalitarismo sem campo de concentrao (2009, p. 210). De outro modo, torna-se necessrio tambm compreender, que somente a partir dos campos que a experincia de desumanizao e naturalizao dos seres humanos se efetivou de fato. Nos campos o domnio da natureza humana ocorreu em todas as dimenses, tornando o homem um animal pervertido de todos os atributos que lhe garantiam humanidade. Assim,

    O domnio total, que procura sistematizar a infinita pluralidade e diferenciao dos seres humanos como se toda humanidade fosse apenas um individuo, s possvel quando toda e qualquer pessoa seja reduzida mesma identidade de reaes. O problema fabricar algo que no existe, isto , um tipo de espcie humana que se assemelhe a outras espcies animais, e cuja nica liberdade consista em preservar a espcie. (ARENDT, 2007d, p. 488).

    A reduo do homem condio de simples exemplar da espcie o nico modo dele ser totalmente dominado. Todavia, a dominao total s realmente possvel atravs dos campos de concentrao e extermnio enquanto mquinas de organizao do poder totalitrio. Assim sendo, o estado totalitrio atravs desses campos reduziu a espcie humana a apenas um feixe de reaes, que se comporta sempre da mesma forma, condicionando a personalidade humana a uma simples coisa, como o exemplo citado por Arendt do Co de Pavlov, que era treinado para comer quando tocasse o sino, mesmo que no estivesse com fome, era um animal degenerado (ARENDT, 2007d, p. 489), expressando, desse modo, a condio em que se encontravam as pessoas nos campos, controladas e privadas de toda a espontaneidade, como animais que no se queixam. Nessa mesma direo Arendt menciona ainda,

    Quem aspira ao domnio total deve liquidar no homem toda a espontaneidade, produto da existncia da individualidade, e persegui-la em suas formas mais peculiares, por mais apolticas e inocentes que sejam. O co de Pavlov, o espcime humano reduzido s reaes mais elementares, o feixe de reaes que sempre pode ser liquidado e substitudo por outro feixe de reaes de comportamento exatamente igual, o cidado modelo do estado totalitrio; e esse cidado no pode ser produzido de maneira perfeita a no ser nos campos de concentrao. (2007d, p. 507).

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    No entanto, essa reduo no significa dizer que os homens se transformaram em animais, conforme esclarece a prpria autora, [...] sem dvida possvel criar condies sob as quais os homens sejam desumanizados como campos de concentrao, tortura ou inanio mas isto no significa que se transforme em animais (ARENDT, 2008c, p. 136). O que aconteceu nos campos de concentrao foi a perverso do homem, transformando-o em uma espcie de animal que no era humano, e que poderia ser totalmente dominado e que marchavam docilmente para a morte (CANOVAN, 1992, p. 60), privando o homem de seu lugar no mundo. Podemos tambm compreender os campos de concentrao e os processos de naturalizao da espcie humana, promovidos por eles, como modos de fabricao de um tipo de animal inumano, animal esse que at ento no existia, ou seja, um ser pervertido de todos os atributos humanos e profundamente entregue condio natural da vida nua; era isso o que os campos produziam. Ora, dessa feita, podemos dizer que os campos promoveram no somente uma reduo do homem simples condio natural da espcie, mas acima de tudo a fabricao de um tipo humano inexistente, que entregue sua condio natural torna-se profundamente pervertido dos atributos que lhe garantem humanidade.

    Segundo Arendt, a primeira e essencial medida para quem aspira ao domnio total matar a personalidade jurdica do homem (ARENDT, 2007d, p. 498), colocando-o fora da lei e do sistema normal penal, na condio de cadveres vivos. De acordo com Siviero, a destruio da pessoa jurdica do homem necessria para posteriormente domin-lo (SIVIERO, 2008, p. 77). Assim, o primeiro passo dos regimes totalitrios foi destruir a personalidade jurdica dos homens, de modo que, os campos de concentrao no poderiam ser comparados com nenhum sistema penal normal, neles os presos no haviam sido acusados de absolutamente nada, estando totalmente excludos de qualquer personalidade jurdica. Cabe aqui, mencionar as palavras de Primo Levi, em seu livro isto um homem?, quando relata a maneira como ele, enquanto integrante do Campo, compreendia aquela realidade: para ns, o Campo no uma punio; para ns no est previsto um prazo; o Campo apenas um gnero de existncia que nos foi atribudo, sem limites de tempo, dentro da estrutura alem (1988, p. 84). Portanto, os campos no deveriam ser vistos como modo de castigar algum por algum crime cometido, mas como espao de naturalizao que privava os seres humanos de seus direitos e de sua capacidade de agir e pensar.

    A segunda medida necessria ao domnio total seria matar a pessoa moral do indivduo, que garante a sua identidade nica. Assim, os campos de concentrao abandonaram os indivduos ao puro esquecimento, onde no existe espao para dor e

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    recordao e onde at o direito de ser lembrado lhes tolhido. A prpria morte foi roubada dos indivduos, pois uma vez abandonado em um campo torna-se impossvel saber se aquele prisioneiro est vivo ou morto. Portanto, j destitudos de toda cidadania, isto , do direito a ter direito, restou somente a esses presos a pura individualidade, que sistematicamente destruda atravs do tratamento bestial a que eram submetidos nos campos de concentrao (Cf. CANOVAN, 1992, p. 60). Afirma Arendt,

    Morta a individualidade, nada mais resta seno horrveis marionetes com rostos de homens, todas com o mesmo comportamento do co de Pavlov, todas reagindo com perfeita previsibilidade mesmo quando marcham para a morte. Esse o verdadeiro triunfo do sistema: O triunfo da SS exige que a vtima torturada se deixe levar fora sem protestos, que renuncie e se entregue ao ponto de deixar de afirmar sua identidade. No gratuitamente nem por mero sadismo que os homens da SS desejavam a sua submisso. Sabem que o sistema que consegue destruir a vtima antes que ela suba ao patbulo (...) , sem dvida, o melhor para manter um povo inteiro na escravido, na submisso. (2007d, p. 506).

    Com base no trecho supracitado, podemos dizer que dentre os principais objetivos do domnio totalitrio, atravs de seus campos de concentrao, est a negao da identidade dos indivduos, convertendo os seres humanos em criaturas infra-humanas, estticas e sem nenhum tipo de espontaneidade, incapazes de qualquer imprevisibilidade. Nessa perspectiva, o ser humano entregue a esfera das necessidades vitais, refm do metabolismo biolgico e incapaz de qualquer ao que possa qualific-lo enquanto ser de potencialidades, tornando-se assim um ser absolutamente suprfluo.

    Outra caracterstica que se faz necessrio mencionar novamente nesse texto o carter

    antiutilitrio e no econmico dos campos de concentrao. Os campos de concentrao no tinham nenhum interesse econmico ou produtivo, pelo contrrio, eram portadores de uma tremenda inutilidade, pois sua manuteno e os altos custos inerentes ao transporte de milhes de pessoas para o extermnio saiam muito caro ao estado, principalmente num perodo de guerra e escassez. Logo, os campos de concentrao do nazismo eram visto de fora como imagem do Inferno que, segundo Arendt, representado por aquele tipo de campos que os nazistas aperfeioaram e onde toda a vida era organizada, completa e sistematicamente, de modo a causar o maior tormento possvel. (2007d, p. 496).

    O que se encontra, no entanto, embutido por traz de toda essa experincia de dominao e superfluidade dos homens? Como j mencionado nas linhas anteriores, o

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    principal interesse desses campos o processo de naturalizao dos homens24. Segundo Arendt, o que as ideologias totalitrias visam, portanto, no a transformao do mundo exterior ou a transmutao revolucionria da sociedade, mas a transformao da prpria natureza do homem (ARENDT, 2007d, p. 510). Assim, o que se encontra por traz de todas essas ideologias no um desejo de poder ou amor expanso e ao lucro como no imperialismo, mas a tentativa de destruir a dignidade humana e a capacidade que os homens tm desde seu nascimento de iniciar algo novo, atravs de mecanismo de controle que visa tornar os homens seres suprfluos, isto , simples marionetes.

    Cito Arendt:

    A experincia dos campos de concentrao demonstra realmente que os seres humanos podem transformar-se em espcimes do animal humano, e que a natureza do homem s realmente humana na medida em que d ao homem a possibilidade de torna-se algo eminentemente no-natural, isto , um homem. (2007d, p. 506).

    Portanto, o grande risco a que estamos expostos, e que era bem percebido tanto por Arendt como por Agamben, que essas experincias permanecem conosco de agora em diante, pois as solues totalitrias podem muito bem sobreviver queda dos regimes totalitrios sob a forma de forte tentao que surgir sempre que parea impossvel aliviar a misria poltica, social ou econmica de um modo digno do homem (ARENDT, 2007d, p. 511). Ora, muitos desses elementos totalitrios ainda se encontram presentes nos dias atuais, o que nos leva a crer que as derrotas desses regimes no eliminaram seu potencial diante do enorme nmero de massas humanas existentes na modernidade. Assim, podemos dizer que Andr Duarte est correto ao afirmar que devemos estar atentos presena efetiva de elementos totalitrios e protototalitrios nas modernas democracias de massa e mercado (2010, p. 311).

    Portanto, nas linhas que se seguem dessetexto, buscaremos propor a hiptese de que o totalitarismo ainda permanece presente nas nossas atuais democracias de massa. Para tanto, nos apropriaremos do pensamento do filsofo italiano Giorgio Agamben em sua obra Homo sacer I: o poder soberano e a vida nua, bem como do conceito de biopoltica do filsofo francs Michel Foucault; para tentarmos, a partir dessas perspectivas, formular, com base no

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    Sobre essa tentativa de naturalizao dos seres humanos, de reduo do homem condio de simples membro da espcie, torno novamente a citar Primo Levi, quando menciona que a voz do campo, a expresso sensorial de sua geomtrica loucura, da determinao dos outros em nos aniquilar, primeiro, como seres humanos, para depois matar-nos lentamente. Assim, o campo torna os homens mortos vivos, seres preocupados somente em manter seu corpo biolgico vivo. (1988, p. 50)

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    pensamento arentdiano, o lugar do totalitarismo e dos campos de concentrao nos fenmenos polticos contemporneos.

    1.5. O risco protototalitrio

    Sobre o horizonte das obras de Arendt, Foucault e Agamben, que tm em suas filosofias o compromisso de fazer um diagnstico crtico da realidade de seu tempo, tentaremos a partir desse ponto testar a hiptese de que essas filosofias dialogam em suas perspectivas e que de algum modo se encontram ao analisar o risco a que a vida est exposta na modernidade. No entanto, no nossa pretenso neste trabalho tentar unir ou nivelar pensadores to distintos, mas somente encontrar o ponto comum a essas reflexes, ponto esse bem percebido por Agemben ao comparar as anlises feitas por Arendt dos campos de concentrao perspectiva biopoltica apresentada por Foucault; nesse contexto, Agamben nos serve como ponte de aproximao para esses pensadores. Por outro lado, tentaremos ao final desta interpretao, com base na realidade biopoltica atual, defender a proposta de que o totalitarismo ainda se encontra presente em nossa sociedade contempornea sobre sua forma protototalitria, pois como bem afirmou Arendt possvel que [...] os verdadeiros transes de nosso tempo somente venham a assumir a sua forma autntica embora no necessariamente a mais cruel quando o totalitarismo pertencer ao passado (ARENDT, 2007d, p. 512).

    1.5.1. A biopoltica em Arendt, Agamben e Foucault

    Iniciaremos, portanto, da anlise e explanao do conceito de biopoltica e de biopoder, introduzidos por Foucault para mostrar a nova forma que o poder assume a partir do sculo XIX. De acordo com o autor, na soberania clssica o soberano tinha o direito de vida e o direito de morte, isto , poderia deixar viver ou fazer morrer, seu poder sobre a vida era exercido a partir de seu potencial de morte. No entanto, o sculo XIX foi marcado por uma grande transformao na poltica, que passou a se dar de maneira diferente atravs de uma substituio radical do velho direito clssico, ou seja, atravs de uma complementao que modifica esse direito, passando ento de um direito de fazer morrer para um direito de deixar viver, nas palavras de Foucault, poder de fazer viver e de deixar morrer (1999, p. 287). Essa nova forma de poder surge aproximadamente pelo final do sculo XVIII e incio do sculo

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    XIX e denominada por Foucault de biopoder, que representa uma nova roupagem do poder, passando a ser um poder sobre a vida (1994, p. 140).

    Portanto, na modernidade, a espcie humana o que est em jogo nas estratgias polticas e o Estado assume a funo de proteger e deliberar sobre as condies de vida da populao, nesse sentido afirma Foucault: [...] o homem durante milnios, permaneceu o que era para Aristteles: um animal vivo e, alm disso, capaz de uma existncia poltica; o homem moderno um animal na poltica do qual a sua vida de ser vivo est em causa (1994, p. 145). Assim, o poder volta-se agora diretamente para a preocupao com a espcie humana enquanto seres vivos, com seus processos biolgicos: a proliferao, o nascimento e a mortalidade, o nvel da sade, a durao de vida, a longevidade, com todas as condies que podem faz-las variar (FOUCAULT, 1994, p. 141). Sua preocupao no mais centrada no indivduo, mas nos indivduos, possibilitando assim o surgimento da noo de populao. Foucault vai chamar essa categoria tecnolgica de poder de regulamentao,

    [...] portanto, do grande poder absoluto, dramtico, sombrio que era o poder da soberania, e que consistia em poder fazer morrer, eis que aparece agora, com essa tecnologia de biopoder, com essa tecnologia de poder sobre a populao enquanto tal, sobre o homem enquanto ser vivo, um poder contnuo, cientfico, que o poder de fazer viver. A soberania fazia morrer e deixava viver. Eis que agora aparece um poder que eu chamaria de regulamentao e que consiste, ao contrrio, em fazer viver e em deixar morrer. (FOUCAULT, 1994, p. 294).

    Essa nova forma do poder passa ento a ter o direito de intervir e organizar a vida, isto , passa a exercer um poder sobre a vida. Nessa mesma direo Foucault apresenta que em nossas sociedades desde o fim do sculo XVIII existem duas tecnologias de poder que so introduzidas: uma disciplinar, centrada no corpo e outra de regulamentao, centrada na vida da populao. Ambas no esto no mesmo nvel e juntas constituem uma sociedade de normalizao, pois segundo Foucault, a norma o que pode tanto se aplicar a um corpo que se quer disciplinar quanto a uma populao que se quer regulamentar (1999, p. 302), nesse sentido, na sociedade de regulamentao norma e disciplina se entrelaam.

    Destarte, o sculo XIX passa a ser marcado por um biopoder enquanto tecnologia de poder que visa dominar tantos os corpos como a vida das pessoas. A vida torna-se um objeto poltico; o direito a vida torna-se a questo fundamental da poltica e no os direitos polticos dos cidados, configurados por Arendt como o direito a ter direito. a partir desse cenrio de biopolitizao da vida que podemos falar de um racismo, no de um racismo nos sentido tnico, mas de um racismo que passa a ser utilizado nos mecanismo do Estado, tornando-se tambm um mecanismo de poder. Desse modo, a raa, o racismo a condio de

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    aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normalizao (FOUCAULT, 1999, p. 306), sendo o racismo a condio para se exercer o antigo direito soberano de matar e, nesse sentido, Foucault no se refere somente a matar a vida no sentido biolgico, mas tambm a vida poltica, a excluso.

    O exemplo mais prximo que podemos ter de um Estado racista sem dvida o Estado nazista. Desse modo, o nazismo torna-se para ns o exemplo da conjugao de poder disciplinar e biopoder, que se utiliza de um racismo no sentido evolucionista para exercer o seu poder assassino e ao mesmo tempo suicida. Ora, apenas o nazismo, claro, levou at o paroxismo o jogo entre o direito do soberano de matar e os mecanismos do biopoder (FOUCAULT, 1999, p. 312). Nessa mesma direo Arendt tambm percebeu em suas anlises a forte presena do racismo no estado totalitrio; racismo esse que, segundo a autora,teria sido herdado da poltica imperialista sendo transformado em ideologia poltica pelos nazistas, pois os nazistas sabiam que o melhor meio de propagar a sua idia estava na poltica racial (ARENDT, 2007d, p. 180). Logo, o grande perigo do uso d