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Universidade Federal Fluminense Instituto de Letras Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura Departamento de Letras Estrangeiras Modernas Mestrado em Estudos de Literatura Amanda da Trindade BITENCOURT A musicalidade em Katatay de José María Arguedas Niterói 2015

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Page 1: A musicalidade em Katatay de José María Arguedas§ão Amanda da... · A musicalidade em Katatay de José María Arguedas / Amanda da Trindade Bitencourt. – Niterói, 2015. 105

Universidade Federal Fluminense

Instituto de Letras

Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura

Departamento de Letras Estrangeiras Modernas

Mestrado em Estudos de Literatura

Amanda da Trindade BITENCOURT

A musicalidade em Katatay de José María Arguedas

Niterói

2015

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Amanda da Trindade BITENCOURT

A musicalidade em Katatay

de José María Arguedas

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Estudos de Literatura da

Universidade Federal Fluminense como

quesito para a obtenção do Título de Mestre

em Estudos de Literatura.

Orientadora: Profa. Dra. Gladys Viviana GELADO

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Bitencourt, Amanda da Trindade A musicalidade em Katatay de José María Arguedas / Amanda da Trindade Bitencourt. – Niterói, 2015. 105 f.

Dissertação (Mestre em Estudos da Literatura). –

Programa de Pós-graduação em Estudos da Literatura da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015.

Área de concentração: Literaturas Hispânicas. Orientadora: Profª. Dra. Gladys Viviana Gelado.

1. Musicalidade. 2. Cultura Andina. 3. Katatay. 4. José María Arguedas. 5. Heterogeneidade cultural.

I. Gelado, Viviana (orient.) II. Universidade Federal Fluminense III. Título.

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Amanda da Trindade BITENCOURT

A musicalidade em Katatay de José María Arguedas

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Estudos de Literatura da

Universidade Federal Fluminense como quesito

para a obtenção do Título de Mestre em Estudos

de Literatura.

Orientadora: Profa. Dra. Gladys Viviana GELADO

Aprovado em:__________________________________________________________

Banca examinadora:

_____________________________________________________________

Profa. Dra. Gladys Viviana Gelado – Orientadora

Universidade Federal Fluminense – UFF

_____________________________________________________________

Prof. Dr. Rodrigo Labriola

Universidade Federal Fluminense – UFF

_____________________________________________________________

Profa. Dra. Luciana di Leone

Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ

NITERÓI

2015

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A minha avó que, com afeto e amor, me conduziu por essa longa estrada com seus ensinamentos e muita sabedoria. A ela, mais essa conquista.

(Maria Bitencourt – In memoriam)

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AGRADECIMENTOS

Ao longo deste trabalho, muitas pessoas e instituições, direta ou

indiretamente, contribuíram para o desenvolvimento desta pesquisa. E neste

momento que finalizo esta etapa não poderia deixar de mencionar algumas delas e

reconhecer o quão importante foi a participação de cada um para que este objetivo

fosse alcançado.

Como não poderia ser de outra forma, agradeço primeiramente aos meus

pais, Rejane e Marcos Vinícius, por terem me proporcionado a educação necessária

para que hoje eu pudesse alcançar mais este progresso. Ao meu irmão, Hugo

Vinícius, sempre tão querido e tão presente.

A minha orientadora, Viviana Gelado, pela paciência, compreensão, amizade,

por seu infinito apoio e por todas as conversas ao longo de tantos anos de

convivência. Agradeço por sua generosidade intelectual sempre me motivando, por

nunca ter me deixado desistir e acima de tudo, por acreditar em meu trabalho. Sou

grata por ter me guiado pelo mundo acadêmico desde a Iniciação Científica, em

2009, e não ter permitido que eu me perdesse nessa longa caminhada. Certamente

este trabalho não existiria sem este esforço conjunto.

A Raquel Fernandes pelo companheirismo, amor, apoio e amizade, não só

durante este, mas em todos os nossos projetos.

A Kíssila Rangel e Igor Garcez pelos fins de semana compartilhados em

nossos grupos de estudo, pelo apoio à conclusão deste projeto e por todas as boas

risadas que demos mesmo nos momentos de maior preocupação.

Às amigas Bruna Silvério, Gabrielle Rodrigues e Pollyana Heyzer agradeço

por terem dividido comigo os momentos de angústia e comemorarem aqueles de

alegria.

Agradeço imensamente a Maria Elena Venero Ugarte e sua mãe, Marina

Ugarte de Venero, pela gentileza com que me receberam para realização de

entrevistas para a elaboração deste trabalho. Assim como ao professor Julio Wong

pela colaboração e ânimo a esta pesquisa.

Agradeço a Gonzalo Cornejo Polar por atender, sempre tão solícito, aos meus

pedidos e facilitar a bibliografia necessária para a construção deste trabalho.

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Agradeço a Capes pela concessão da bolsa que financiou o desenvolvimento

deste projeto e ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da

Universidade Federal Fluminense, bem como aos seus professores, técnicos e

demais funcionários.

Agradeço também aos professores Rodrigo Labriola, Ana Isabel Borges e

Luciana di Leone pelas ricas contribuições a esta pesquisa.

A todos aqueles que participaram de forma direta ou indireta para a

construção deste trabalho, muito obrigada.

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RESUMO

A musicalidade e as práticas orais discursivas representam no

universo andino o espaço de enunciação e manutenção da

cultura indígena andina.

Observa-se na obra do peruano José María Arguedas a

presença destes componentes culturais que possuem profunda

significação para a formação de sua escrita tanto literária como

etnográfica.

A partir destas características, a proposta contida no presente

trabalho objetiva a investigação de parte do conjunto de

poemas reunidos em Katatay, destacando a música, o canto e

a dança como um meio de expressão coletiva, buscando, desta

forma, um estudo mais detalhado e pertinente acerca desta

produção artística de José María Arguedas.

Palavras-chave: Musicalidade. Cultura Andina. Katatay. José

María Arguedas. Heterogeneidade cultural

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RESUMEN

La musicalidad y las prácticas orales discursivas representan

en el universo andino el lugar de enunciación y mantenimiento

de la cultura indígena andina.

En la obra del peruano José María Arguedas se observa la

presencia de estos componentes culturales, que poseen

profunda significación para la formación de su escritura, sea

literaria o etnográfica.

A partir de estas características, este trabajo se propone

analizar parte del conjunto de poemas reunidos en Katatay,

destacando la música, el canto y la danza como formas de

expresión colectiva, con el propósito de alcanzar, por este

medio, un estudio más detallado y pertinente de esta

producción artística de José María Arguedas.

Palabras-clave: Musicalidad. Cultura Andina. Katatay. José

María Arguedas. Heterogeneidad cultural

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 11

1.1 Puente sobre el mundo: o papel da tradução na obra de José María Arguedas. 18

2. RUMOR DE ESPACIO: A IMPORTÂNCIA DA MUSICALIDADE NA FORMAÇÃO

DE ARGUEDAS............................................................................................................ 28

3. KATATAY: DUALISMO E (DES)INTEGRAÇÃO NA CULTURA ANDINA.............. 34

3.1. Poesía y temblor em José María Arguedas ......................................................... 35

3.2. Desintegração e criação em José María Arguedas.............................................56

3.3. Dialógos entre tradição e modernidade em José María Arguedas ..................... 69

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 79

REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 83

ANEXOS ....................................................................................................................... 88

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1. INTRODUÇÃO

A música e a dança sempre representaram, na cultura andina, um meio de

expressão coletiva. São formas de transmissão e, consequentemente, de

permanência de uma cultura tradicionalmente ágrafa. Assim, a “literatura oral” nesta

tradição cultural se baseia em uma memória coletiva, que em suas distintas

perfomances se renova e se atualiza.

Esta memória coletiva era conservada através de suas práticas orais

discursivas como o canto, mas também através da dança e da música. São estes os

espaços nos quais o andino se reconhece e expressa sua visão de mundo,

preservando sua filiação com seu universo de referência, ainda que este tenha sido

penetrado, de diversas maneiras, pelo “castelhanismo”.

Neste sentido, estas práticas orais carregavam (e ainda carregam) em si a

representação da sociedade andina uma vez que, como forma viva, a linguagem

utilizada se destinava a um coletivo através de uma produção e interpretação

também coletivas.

Antes da chegada dos espanhóis, estas práticas discursivas eram uma das

formas de celebração dentro da cultura andina. Entretanto, a partir de sua

consideração como rituais de idolatria, com a colonização, transformaram-se em

formas de resistência à/na entrada da cultura ocidental. Desta maneira, é possível

observar o surgimento de diversos movimentos baseados na música e na dança

com esta função adicional e não mais somente como celebração ou atividade

terapêutica, como o Taki Onqoi — primeiro movimento com características

messiânicas de que se tem notícia, o Taki Onqoi, surgido no século XVI,

correspondeu à reação indígena frente à colonização europeia e se intensificou

rapidamente na região andina.

Deste modo, nota-se que a música – enquanto produção de sons – e a

dança – como movimento e tremor no/do universo andino – colocam-se em tensão

com o mundo ocidental. A dança produz na cultura andina este movimento/tremor

capaz de (re)ordenar este universo de referência.

José María Arguedas, ensaísta, poeta e antropólogo, dedicou boa parte de

sua pesquisa ao estudo das tradições orais e da música como formas de expressão

desse cosmo tradicional andino ao longo da história. O autor demonstrou através de

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suas investigações e produções acerca da cultura andina – ensaios, romances,

poemas etc. – que enxergava na música andina a forma intrínseca de expressão do

homem indígena. Em seu ensaio “La canción popular mestiza e india en el Perú, su

valor documental y poético”, Arguedas destaca como a música tradicional andina

carrega em si a história da população dessa região.

El wayno es como la huella clara y minuciosa que el pueblo mestizo ha ido dejando en el camino de salvación y de creación que ha seguido. En el wayno ha quedado toda la vida, todos los momentos de dolor, de alegría, de terrible lucha, y todos los instantes en que fue encontrando la luz y la salida al mundo grande en que podía ser como los mejores y rendir como los mejores. […] Y en la historia del wayno, que es la historia del pueblo andino, hay algo que es fundamental: la música del wayno ha sido poco alterada, mientras que la letra ha evolucionado con rapidez y ha tomado formas infinitamente diversas, casi una forma para cada hombre. […] Son los mismos waynos antiguos que hoy canta el mestizo, y mientras que sólo quedan vestigios de la letra antigua de los cantos, la música ha sufrido cambios apenas perceptibles, como reacción del mestizo sobre la música antigua.

(ARGUEDAS, 2009, pp. 147-148).

A música andina, como bem afirma Arguedas, expressa a identidade do

homem indígena e suas crenças; o lugar de produção de sua cultura. Neste sentido,

podemos entender a música da população dos Andes peruanos como o seu meio de

expressão e manutenção de sua identidade e subjetividade. Neste sentido, o

pesquisador Tiago de Oliveira Pinto afirmou que

Na realidade música raras vezes apenas é uma organização sonora no decorrer de limitado espaço de tempo. É som e movimento num sentido lato (seja este ligado à produção musical ou então à dança) e está quase sempre em estreita conexão com outras formas de cultura expressiva. Considerar este contexto amplo, quando se fala em música, é estar adotando um enfoque antropológico. A inserção da música nas várias atividades sociais e os significados múltiplos que decorrem desta interação constituem importante plano de análise na antropologia da música. A relação entre som, imagem e movimento é enfocada de forma primordial neste tipo de pesquisa. Aqui música não é entendida apenas a partir de seus elementos estéticos mas, em primeiro lugar, como uma forma de comunicação que possui, semelhante a qualquer tipo de linguagem, seus próprios códigos. Música é manifestação de crenças, de identidades, é universal quanto à sua existência e importância em qualquer que seja a sociedade. Ao mesmo tempo é singular e de difícil tradução, quando apresentada fora de seu contexto ou de seu meio cultural. (PINTO, 2001)

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Assim, retomando o pensamento arguediano, a música andina representa

toda a manifestação da subjetividade e identidade do homem indígena e desta

maneira, “traduzir” ao castelhano formas que eram “sentidas” em quéchua

representa a dificuldade mesma de se traduzir uma cultura para outra, de encontrar

um “equivalente” não só em outro idioma, mas em outra forma de pensamento.

[...] no hace quince días que logré rascar la cabeza de un nionena (chango) […]. Medio que quiso huir, pero la dicha de la rascada lo hizo detenerse; empezó a gruñir con delicia, luego (¡cuánto me cuesta encontrar los términos necesarios!) se derrumbó a pocos y, ya echado y con los ojos cerrados gemía dulcemente. (ARGUEDAS, 1996, p.18. Grifo meu).

Sobre esta dificuldade de transpor os significados do universo andino para o

universo linguístico castelhano, Dalís Valera afirma que

Interpretar los signos del mundo indígena, no es solamente transportar al castellano, los códigos que componen la cultura Quechua, es lograr la articulación de los signos culturales del indígena a los del mundo del blanco. Es mezclar los elementos de ambas culturas para lograr un efecto; es trasponer con la palabra un

universo real en un universo estético. (VALERA, 2009, p. 24).

Para José María Arguedas, a busca por uma linguagem que fosse capaz de

expressar a cultura andina e “dizer” a totalidade cultural se tornou uma tarefa que

era ao mesmo tempo apaixonante (ou apaixonada) e angustiante. Através de uma

linguagem escrita artificial – como afirma Cornejo Polar–, o autor se propõe a

transformar em letra o que é produzido pela voz.

Segundo Martin Lienhard, “cuando un escritor se propone trasladar un

producto del sistema oral a un texto literario, tiene que extraerlo de su contexto

original, despojarlo de su materialidad, reducir su espesor semiótico a la dimensión

verbal”. (LIENHARD, 2010, p. 197).

Neste sentido, ao tentar “traduzir” o produto oral ao campo da escrita,

Arguedas se coloca em uma encruzilhada: oralidade versus escrita.

José María Arguedas, que disse ter sido monolíngue quéchua até os sete

anos de idade, tem em sua memória oral elementos que o ligam ao universo

quéchua, uma vez que viveu boa parte da infância imerso nesta cultura. Daí surge o

conflito que o perseguirá ao longo da construção de toda sua produção, seja

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literária, etnográfica ou antropológica. Descobrir como expressar uma cultura de

tradição oral dentro de um marco atravessado pela escrita será a tarefa de sua vida.

Nesse contexto, a música aparece como a possibilidade de expressão de

um universo que, para Arguedas, não é possível “transportar” ao pensamento

ocidental, pois não se trata somente de uma tradução entre idiomas, mas sim de

uma “tradução” entre culturas. É a transposição de uma realidade intangível ao

espaço restrito do papel em um idioma “estrangeiro”, o castelhano.

Arguedas, através de seus conhecimentos sobre a música andina,

sistematizados, em boa medida, durante a realização de seus trabalhos

etnográficos, dá importante destaque a ela dentro da sua obra. Este elemento

cultural passa a ser não somente um “tópico folklórico”, mas, e sobretudo, em

palavras de William Rowe, o lugar de enunciação de sua criação literária e

interpretação do mundo andino.

Com efeito, sensível à importância deste componente cultural William Rowe

propõe, em Ensayos arguedianos (1996), a noção de “espacio sonoro” para estudar

a obra de Arguedas. O autor enfatiza a necessidade de “[...] pensar la música en

otra dimensión: hay que reflexionar sobre ella como ordenamiento de las

percepciones y contribución a la producción de un lugar de enunciación” (ROWE,

1996, p. 36).

Neste sentido, a proposta de William Rowe direciona a análise da obra de

Arguedas para além da noção de folklore e possibilita o estudo da música como um

dos elementos centrais do cosmo andino. A música neste caso não é uma

representação da cultura andina, mas sim um lugar de produção de signos. Através

da música, a prática cultural e o material sígnico resultante expressam sua pertença,

ambos, ao universo andino.

A música em Arguedas representa um meio de expressão que se coloca em

tensão com o universo ocidental. Neste sentido, podemos identificar na obra Los ríos

profundos (1958) os momentos em que a música quéchua ocupa a obra – escrita

nos moldes formais do romance – desestabilizando, desta maneira, os protocolos

ficcionais do mais canônico dos gêneros literários da modernidades ocidental.

Sin embargo, durante la noche, como un estribillo tenaz, escuché en

sueños un huayno antiguo, oído en la infancia, y que yo había

olvidado hacía ya mucho tiempo:

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Apank’ orallay,

apank’ orallay

apakullawayña

tutay tutay

wasillaykipi

uywakullawayña.

Pelochaykiwan

yana wañuy

pelochaykiwan

kuyaykullawayña

Apankora, apankora

llévame ya de una vez;

en tu hogar de tinieblas

críame, críame por piedad.

Con tus cabellos,

con tus cabellos que son la muerte

acaríciame, acaríciame.

(ARGUEDAS, 1983, t. III, p. 80-81)

Ao inserir a sonoridade presente no universo andino à sua obra, Arguedas

projeta dois espaços antagônicos.

Encordelé mi hermoso zumbayllu y lo hice bailar.

El trompo dio un salto armonioso, bajó casi lentamente, cantando por

todos sus ojos. Una gran felicidad, fresca y pura, iluminó mi vida.

Estaba solo, contemplando y oyendo a mi zumbayllu que hablaba

con voz dulce, que parecía traer al patio el canto de todos los

insectos que zumban musicalmente entre los arbustos floridos.

- ¡Ay zumbayllu, zumbayllu! ¡Yo también bailaré contigo! – le dije.

Y bailé, buscando un paso que se pareciera al de su pata alta. Tuve

que recordar e imitar a los danzantes profesionales de mi aldea

nativa.

(ARGUEDAS, 1983, t.III, p. 81. Grifo meu).

No trecho acima, a aparição dos termos “zumban” e “musicalmente” colocam,

deliberadamente, duas visões de mundo em tensão. Desde o ponto de vista

ocidental, zumbir – produzir ruídos -, não ocuparia o espaço de uma categoria

musical. Entretanto, no universo indígena, esta musicalidade produzida pelo “zumbir”

do zumbayllu do personagem Ernesto, corresponderia justamente a esta sonoridade

andina presente em todos os elementos, sejam eles naturais ou humanos.

A música e a dança são inerentes à cultura andina e transcendem os limites

do humano ou inanimado. Desta maneira, ainda no capítulo dedicado ao zumbayllu

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em Los ríos profundos, Ernesto, ao acompanhar os passos da “dança” do pequeno

trompo, vê movimentos análogos aos praticados pelos dançarinos serranos de sua

aldeia, o que demonstra, mais uma vez, a complementaridade entre o homem e os

espaços/elementos naturais.

A música na obra de José María Arguedas representa o ordenamento das

percepções e a contribuição à produção de um lugar de enunciação, como afirma

Rowe. Em tal sentido, enquanto ordenadora do caos de uma cultura afetada pela

introdução da cultura ocidental, a música possibilita o reencontro com um universo

de referência.

Assim, as formas orais (canções, ditos e vocábulos em quéchua), como

retomada dos aspectos indígenas na produção de Arguedas, não representam um

tema, mas sim expressam um universo próprio, permitindo a imersão no mundo

indígena e dando voz a um processo simbólico que representa este “cosmo” de

referência. Esse movimento levado a cabo por José María Arguedas oferece aos

modos andinos uma forma de instalar-se (ou reinstalar-se) na cultura ocidental

através da ressemantização de seus elementos tradicionais como uma visão

alternativa de inserção na modernidade.

Arguedas, formado em uma “tradição oral” pelo contato íntimo que teve com o

quéchua desde a infância, utiliza na sua poesia elementos que derivam de uma

“literatura oral” quéchua. Assim, a partir de algumas formas poéticas tradicionais,

Arguedas reelabora essas dicções em um conteúdo contemporâneo e ainda

pulsante na cultura andina.

O poeta peruano, através da sua obra, tenta remodelar os elementos de um

universo ocidental e moderno com elementos tradicionais do mundo indígena, a

partir da sua visão dual - índio/espanhol -, como um migrante “a caballo entre dos

mundos”. E para tal, recorre às formas tradicionais andinas como elementos

figurativos do referente indígena, como a presença dos cantos e da dança nas suas

obras. Estes elementos operam no “cosmo tradicional andino” como um processo de

revolução cósmico-social, ao mesmo tempo em que representam o poder e as

significações da tradição oral dentro deste universo cultural.

Desta maneira, a presente investigação se baseia no estudo acerca da obra

poética de José María Arguedas, tendo como foco a musicalidade e as práticas orais

como espaço de enunciação dessa produção poética.

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Na elaboração deste trabalho, selecionamos quatro dos sete poemas do livro

Katatay para análise. Sendo assim, optou-se por analisar os poemas “Katatay”, “A

nuestro padre creador Tupac Amaru”, “Llamado a algunos doctores” e “Oda al Jet”

por operarem com figurações e/ou eventos mais explícitos do universo andino

peruano. Entretanto, a análise também faz paralelos com outras obras de José

María Arguedas, como o relato “La agonía de Rasu-Ñiti” e a narrativa Los ríos

profundos.

A pesquisa se justifica na importância central que reveste, na obra de

Arguedas, a expressão das vinculações ancestrais na cultura andina entre discurso

oral, música e dança, cuja dicção é perceptível, de maneira privilegiada, tanto na

produção de sua obra poética, como na atividade constante de tradução de poesia

realizada por ele. Neste sentido, é possível dizer que o trabalho desenvolvido por

Arguedas como tradutor funcionou como uma sorte de laboratório para a escrita de

sua própria obra poética, à qual se dedicou mais plenamente – sem abandonar a

prosa ficcional e ensaística – no fim da vida.

O estudo proposto será norteado pelas categorias críticas dos estudos

literários bem como pelo âmbito da tradução e da antropologia, aliando estes

enfoques a fim de produzir uma investigação mais pertinente de um objeto de estudo

altamente representativo da heterogeneidade latino-americana.

Além das razões expostas, a realização deste projeto se justifica também pela

inexistência de trabalhos no meio acadêmico brasileiro sobre a obra poética Katatay,

bem como pela escassa recepção crítica existente até mesmo na área andina

peruana que privilegie esta produção de José María Arguedas.

A presente investigação objetiva explorar melhor a obra poética de Arguedas,

tão pouco estudada, a fim de estabelecer uma análise mais significativa sobre o

objeto de estudo em questão, dando conta de sua complexidade como

representação da heterogeneidade formadora do universo cultural andino e latino-

americano.

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1.1. Puente sobre el mundo: o papel da tradução na obra de José

María Arguedas

¡Como tú, río Pachachaca! Hermoso caballo de crin brillante, indetenible

y permanente, que marcha por el más profundo camino terrestre!

José María Arguedas (Los ríos profundos)

José María Arguedas Altamirano (1911-1969) produziu, ao longo de sua vida,

diversas obras literárias e levou a cabo, paralelamente, investigações etnográficas e

antropológicas, bem como realizou e publicou trabalhos como tradutor. Nascido em

Andahuaylas, departamento de Apurímac localizado na Serra peruana, perdeu sua

mãe quando tinha apenas três anos de idade, e após o segundo casamento de seu

pai – um advogado que, na obra do autor, assume o papel de herdeiro da cultura

espanhola (cristã-ocidental) –, vai viver com a madrasta, quem, segundo o autor, o

obrigava a passar os dias na cozinha junto aos indígenas que trabalhavam em sua

vasta propriedade.

Esse contato que mantém com os indígenas deixará, de acordo com ele,

marcas que o afetarão por toda sua vida, tanto pessoal como literária. José María

diz herdar dos indígenas a língua quéchua – aprendida antes que o espanhol –

através das canções ouvidas de sus madres indias, assim como a compreensão e o

amor pelos elementos naturais e a visão mágico-religiosa do mundo. Em diversas

ocasiões o autor se referiu à relação mantida com sua madrasta como conflituosa,

reafirmando, como contrapartida, sua filiação e afeto aos indígenas, sobretudo às

mulheres indígenas e a este universo filtrado pela língua quéchua e sua respectiva

cosmovisão. Assim, Arguedas criará uma cena mítica infantil a partir da qual

construirá mais tarde seu discurso ficcional.

[…] [Mi madrastra] me tenía tanto desprecio y tanto rencor como a los indios, y decidió que yo había de vivir con ellos en la cocina, comer y dormir allí. Así viví muchos años. […] Los indios y especialmente las indias vieron en mí exactamente como si fuera uno de ellos, con la diferencia de que por ser blanco acaso necesitaba más consuelo que ellos… y me lo dieron a manos llenas. Pero algo de triste y de poderoso debe tener el consuelo que los que sufren dan a los que sufren más, y quedaron en mi

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naturaleza dos cosas muy sólidamente desde que aprendí a hablar: la ternura y el amor sin límites de los indios, el amor que se tienen entre ellos y que le tienen a la naturaleza, a las montañas, a los ríos, a las aves; y el odio que tienen a quienes, casi inconscientemente, y como por una especie de mandato Supremo, les hacían padecer. Mi niñez pasó quemada entre el fuego y el

amor. (ARGUEDAS, 1969, p. 192. Grifo meu).

A coerência do mundo narrativo de Arguedas surge tanto do relato que ele

constrói em torno à sua “experiência autobiográfica”, como de sua capacidade de

recodificar estas vivências em objeto ficcional. A experiência, dita assim,

autobiográfica, torna-se potencialmente produtiva, encontrando, nos conflitos sociais

e culturais andinos, o lugar para a recriação dos relatos de episódios que o autor

afirmara haver vivenciado em sua infância.

Sendo assim, a experiência que o autor narrara sobre sua primeira infância,

marcada por el fuego y el amor, suscita um profundo sentimento de identificação

com o universo andino, assumindo, desta forma, seus elementos culturais

fundamentais. J.M.A. declarou em inúmeras ocasiões sentir no cosmo andino o

ânimo que o levara a escrever e que, de algum modo, definira sua relação com a

literatura. O autor comenta como iniciou seu vínculo com o literário e que fatos

definiram sua vocação.

Creo que al escuchar los cuentos quechuas que eran narrados por algunas mujeres y hombres que eran muy queridos en los pueblos de San Juan de Lucanas y Puquio, por la gracia con que cautivaban a los oyentes. Creo que influyó mucho la belleza de la letra de las canciones quechuas que aprendí durante la niñez. Debía de tener unos seis o siete años cuando ya cantaba un huayno cuyos primeros versos: < El fuego que ha prendido en la montaña / está llameando, está ardiendo, / anda, niña: llora sobre el fuego, / apágalo con tus lágrimas puras…> No olvidé jamás la lectura de un poema de González Prada titulado “Amor” […]. Y, finalmente, los novelistas rusos y franceses y, en especial, los cuentos de López Albújar y Ventura García Calderón. Éstos mostraban una imagen tan distinta del universo andino, no sólo del indio, tan distinta de como yo lo había vivido en una relación tan entrañable con el paisaje y con los hombres de todas las clases sociales, aunque más entrañable con los comuneros y siervos de habla quechua. (ARGUEDAS, 1996, p. 405).

Entretanto, apesar das referências autorais convocadas na citação acima,

Arguedas assume frente à sua escritura literária um posicionamento bastante

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distinto do assumido por eles. Assim, é a partir deste amor recebido dos indígenas

que Arguedas nutre seus escritos, a fim de oferecer uma expressão de seu país

desde sua visão enquanto integrante de uma dada comunidade, mas também como

um observador crítico desta sociedade. Para ele, a interpretação dada à sociedade

andina não correspondia ao seu universo cultural.

Recorrí los campos e hice las faenas de los campesinos bajo el infinito amparo de los comuneros quechuas. La más honda y bravía ternura, el odio más profundo, se vertían en el lenguaje de mis protectores; el amor más puro, que hace de quien lo ha recibido un individuo absolutamente inmune al escepticismo. No conocí gente más sabia y fuerte. Y los describían como degenerados, torpes e impenetrables. Así son para quienes los trataron como a animales durante siglos. (ARGUEDAS, 1996, p. 406).

O desejo de desmistificar a imagem deste índio que Arguedas acreditava

estar desfigurado por alguns relatos indigenistas até então, o leva a buscar uma

forma que possa corresponder à cosmovisão andina e dar conta da sua

expressividade. Neste sentido, o autor relata sobre sua primeira experiência de

escrita literária.

Yo comencé a escribir cuando leí las primeras narraciones sobre los indios […] En estos relatos estaba tan desfigurado el indio y tonto el paisaje o tan extraño que dije: “No, yo lo tengo que describir tal cual es, porque yo lo he gozado, yo lo he sufrido”, y escribí esos primeros relatos que se publicaron en el pequeño libro que se llama Agua. Yo lo había escrito en el mejor castellano que podía emplear, que era bastante corto, porque yo aprendí a hablar el castellano con cierta eficiencia después de los ocho años, hasta entonces sólo hablaba quechua. […] Cuando yo leí ese relato, en ese castellano tradicional, me pareció horrible, me pareció que había disfrazado el mundo tanto casi como las personas contra quienes intentaba escribir y a quienes pretendía rectificar. Ante la consternación de unos amigos, rompí todas estas páginas. Unos seis o siete meses después, las escribí en una forma completamente distinta, mezclando un poco la sintaxis quechua dentro del castellano, en una pelea infernal con la lengua. (ARGUEDAS, 2009, p. 15. Grifo meu).

A busca por um “estilo” literário que expressasse de um modo menos

estereotipado esta realidade surge, como o próprio José María afirma, como una

pelea infernal. A linguagem representa o primeiro choque ao qual o autor se

enfrenta. A escolha do idioma no qual escreveria seus relatos, bem como o “estilo”

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no qual deveriam ser escritos, demonstram sua preocupação em encontrar uma

forma de expressão que fosse capaz de comunicar de maneira ampla seu discurso

acerca do indígena e do mundo quéchua. Em um ensaio publicado em 1939 – Entre

el kechwa y el castellano: la angustia del mestizo – Arguedas esclarece as

dificuldades para encontrar este “idioma”:

En nosotros, la gente del Ande, hace pocos años ha empezado el conflicto del idioma, como real y expreso en nuestra literatura; desde Vallejo hasta el último poeta del Ande. […] Si hablamos en castellano puro, no decimos ni del paisaje ni de nuestro mundo interior; porque el mestizo no ha logrado todavía dominar el castellano como su idioma y el kechwa es aún su medio legítimo de expresión. Pero si escribimos en kechwa hacemos literatura estrecha y condenada al olvido. (ARGUEDAS, 2009, p. 142).

A busca por uma forma narrativa significava para Arguedas muito além do

aspecto formal ou meramente estético; representava, como bem assinalou a autora

Dora Sales, uma significação política e ideológica encaminhada a uma afirmação

cultural de um povo oprimido. Desta forma, Arguedas tenta preservar o caráter

pluricultural do Peru, valendo-se dos dois idiomas que conhece e assume “que la

solución formal para su praxis narrativa pasa por hacer del castellano <el molde

justo>, trabajando con él desde dentro. [...] <la solución del bilingüe, trabajosa,

cargada de angustia> (SALES apud ARGUEDAS, 2009, p.26).

Arguedas assume que, para que o castelhano fosse “el molde justo”, deveria

haver um “desordenamento” e para alcançar este êxito, o autor desconstrói a sintaxe

espanhola e insere em seu lugar a quéchua. Este desarranjo deliberado poderia ser

lida como a postulação de uma nova ordem, outra ordem para o castelhano. Ou

seja, para que o castelhano fosse, para Arguedas, “el molde justo”, deveria

transformá-lo, movê-lo, forçando-o a adaptar-se à sintaxe quéchua.

Neste sentido, a eleição pelo castelhano como molde formal para seus relatos

longe de ser uma síntese harmoniosa, demonstra justamente essa relação

conflituosa que ocupa a Arguedas e que se deriva da desigual convivência de

culturas distintas e opostas.

Arguedas, enquanto sujeito migrante, atualiza, como afirma Antonio Cornejo

Polar, dois idiomas, quéchua e espanhol; duas tecnologias discursivas, a oral e

escrita; dois gêneros artísticos, a canção e o romance. (CORNEJO POLAR, 2000, p.

305-306). Este processo do qual o autor lança mão, não pode ser lido como uma

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síntese, mas sim como um processo no qual o que vale ressaltar é o modo que este

sujeito migrante entre o lá e o aqui, o ontem e hoje, encontra para expressar esta

pluralidade de códigos no qual está imerso.

En mi experiencia personal la búsqueda del estilo fue, como ya dije, larga y angustiosa. Y un día de aquellos, empecé a escribir, para mí fluida y luminosamente, como se desliza el agua por los cauces milenarios. Concluí el primer relato en pocos días y lo guardé temerosamente. […] Muchas esencias, que sentía como las mejores y legítimas, no se diluían en los términos castellanos construidos en la forma ya conocida. Era necesario encontrar los sutiles desordenamientos que harían del castellano el molde justo, el instrumento adecuado. (ARGUEDAS, 2009, p. 158. Grifo

meu).

Na citação acima o autor refere sua desassossegada experiência de narrar

em castelhano o universo andino. Para que o castelhano pudesse corresponder ao

“molde justo” de uma escrita literária, este idioma deveria ser desordenado e

reordenado, para que se alcançasse a expressão do universo narrativo andino em

questão. Arguedas, neste sentido,

Modifica el castellano, quita y pone, hasta convertirlo en un instrumento propio. Crea efectos, implicaciones, nuevas sonoridades, hace penetrar el quechua en el castellano a través del uso profuso de vocablos quechuas y calcando la sintaxis de esa lengua. Son esos los desordenamientos.

(HARÉ, 1998, p. 159)

Na citação acima, antes que uma solução o que se nota é o conflito e o

choque. Neste sentido, a opção de Arguedas por escrever em castelhano significa a

escolha deliberada de um meio expressivo em um momento determinado de sua

carreira; meio este que, no entanto, não solucionou o problema da língua. Ao

contrário, neste caso, expôs o conflito que Arguedas, enquanto escritor bilíngue e

sujeito cultural “quéchua moderno”, percebia e queria expressar.

Esta experiência, segundo alguns críticos, provém de uma imposição com a

qual o autor se depara ao chegar à cidade de Lima. Sobre este fato, John Murra

escreve em “Semblanza de Arguedas”, artigo que forma parte da obra Las cartas de

Arguedas (1996) editado pelo mesmo John Murra e Mercedes López Baralt, que

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Vale la pena al hablar de sus novelas mencionar el idioma. Arguedas era muy consciente del idioma que usaba, e hizo una labor muy consciente también, de crear un idioma que comunicaría al lector algo del otro idioma, del idioma materno, que sus héroes hablaban. Ahí, los que estudian estas cosas, ven una progresión de cambios en el manejo del castellano. […] pero creo que es importante ver que la obra novelística fue hecha en castellano […] Esto no era el plan de Arguedas. Cuando Arguedas llega finalmente a Lima, a la edad de veinte o veintiún años, iba a ser novelista, pero no tenía la intención de escribir en castellano. El hecho de que termina escribiendo en castellano es parte de la nefasta influencia de Lima la horrible y hay que verlo así. (ARGUEDAS, 1996, p. 285).

Ainda que Murra afirme que Arguedas haja optado por escrever em

castelhano devido às imposições do meio no qual estava se inserindo, devemos

pensar além desta questão empírica e simplória. A decisão do escritor peruano em

narrar em espanhol seus escritos significou para ele uma tarefa difícil que acarretou

em uma “pelea infernal con la lengua”, como o mesmo afirmara e já citado

anteriormente. No entanto, podemos pensar que a narrativa arguediana

desestabiliza o romance escrito em língua espanhola, uma vez que o autor insere,

em boa parte – senão todas – de suas obras, a co-presença do quéchua e do

castelhano, colocando, desta maneira, dois universos em conflito. Certamente

Arguedas, como migrante advindo da serra peruana, sofre, assim como os demais

migrantes, influências da modernização imposta pela ocidentalização do Peru;

entretanto, não podemos pensar que a eleição pela escrita arguediana tenha se

dado tão somente pela necessidade de corresponder à língua do colonizador.

Neste sentido, talvez uma das maiores contribuições de Arguedas à narrativa

peruana tenha sido a criação – ou invenção – de uma língua castelhana repleta de

formas e estruturas quéchuas. Este “idioma literário”, fruto da capacidade criativa de

Arguedas, pode-se dizer que forma “el tinku” postulado por López Baralt, onde se

encontram, de maneira conflituosa, dois idiomas historicamente enfrentados. O autor

mencionou inúmeras vezes que o castelhano “tradicional” não lhe servia, que era

necessário um instrumento linguístico distinto que se adequasse às suas

necessidades expressivas. Daí a criação de um idioma literário que pudesse atender

àquilo que parecia ser imprescindível ao autor.

O desafio que o narrador peruano propõe a si mesmo de narrar em

castelhano o mundo quéchua se mantém como problema estético e simbólico ao

longo de toda sua atividade literária. A solução bilíngue como <mixtura>, como ele

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mesmo nomeou o castelhano repleto de “quechuísmos”, logo daria lugar à tradução

do quéchua ao espanhol. Entretanto, convém ressaltar que a tradução na literatura

arguediana surge como criação artificiosa, um “castellano especial”, uma linguagem

artificial, assumida por Arguedas como verdadeira ficção, uma forma de “dar voz” a

seus personagens quechua-hablantes.

Em 1950, José María publica um ensaio intitulado “La novela y el problema de

la expresión literaria en el Perú”. Nessa época o autor passa por um período de

“esterilidade artística”, uma vez que sua produção literária é muito escassa.

Significativamente, esta época coincide com seu período como aluno do recém

criado Instituto de Etnología de la Universidad de San Marcos. Neste ensaio,

Arguedas, oportunamente, trata sobre sua experiência pessoal na busca de uma

linguagem e explicita os motivos pelos quais elegeu uma linguagem “ficcional”,

criada como um “novo” idioma para o universo andino.

¿En qué idioma se debía hacer hablar a los indios en la literatura? Para el bilingüe, para quien aprendió a hablar en quechua, resulta imposible, de pronto, hacerlos hablar en castellano; en cambio quien no los conoce a través de la niñez, de la experiencia profunda, puede quizá concebirles expresándose en castellano. Yo resolví el problema creándoles un lenguaje especial, que después ha sido empleado con horrible exageración en trabajos ajenos. ¡Pero los indios no hablan en ese castellano ni con los de lengua española, ni mucho menos entre ellos! es una ficción. Los indios hablan en quechua. (ARGUEDAS, 2009, p. 159).

Esta linguagem artística forjada pelo escritor peruano parece solucionar

inicialmente o problema da expressão literária. No entanto, a tradução tal como

aparece nos primeiros relatos de Arguedas apenas demonstra a dicotomia existente

entre dois polos linguísticos, dois universos opostos de línguas e culturas tão

desiguais, como afirmou Dora Sales. Há uma necessidade de traduzir não só o

idioma para falar do povo quéchua, mas há também, e sobretudo, a necessidade de

traduzir ao ponto de enfocar a língua e a cultura quéchua desde o seu interior. Neste

sentido, o romance Los ríos profundos (1958) pode ser considerado sua obra

“maestra”.

Atento a esta questão, o crítico William Rowe afirmara que “el principio

crucial de Los ríos profundos es el de la traducción, tanto del idioma como de la

cultura.” (ROWE, 1996. p.101). Notamos que no romance citado, a dinâmica

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transculturadora adotada por Arguedas funciona como artifício criador em uma

construção narrativa que reestrutura, através dos aspectos incorporados da cultura

“dominante”, uma situação histórica. A opção da “tradução” utilizada por Arguedas

em Los ríos profundos não deve ser interpretada na esteira do indigenismo realista

que vê o indígena como um tópico a ser revelado para o outro – neste caso, o outro

ocidental, não quéchua-hablante – mas sim como a apropriação dos elementos

procedentes da cultura ocidental em função de ressemantizá-los e reposicioná-los

dando, desta maneira, expressividade à cultura quéchua. Deste modo, Arguedas

afirmou que

Esta ansia de dominar el castellano llevará al mestizo hasta la posesión entera del idioma. Y su reacción sobre el castellano ha de ser porque nunca cesará de adaptar el castellano a su profunda necesidad de expresarse en forma absoluta, es decir, de traducir hasta la última exigencia de su alma, en la que lo indio es mando y raíz. (ARGUEDAS, 2009, p. 143. Grifo meu).

Ainda pensando acerca da tradução, Rowe assinalou que “la traducción, que

en cierto nivel significa trasladar lo indígena al otro idioma, representa a un nivel más

profundo la apropriación del idioma más universal por lo indígena”. No caso de

Arguedas, a apropriação do idioma ocidental e sua respectiva forma literária mais

comum na Modernidade – o romance – correspondem também, em certa medida, a

um desejo de subverter o castelhano, inscrevendo em seu lugar a cultura quéchua,

expondo a pluralidade da cultura peruana e demonstrando, desta forma, que o

enfrentamento ao que se lança não está marcado somente por duas línguas

opostas, mas sim, e sobretudo, por “dos sistemas de percepción, es decir, dos

sensibilidades.” (SALES apud ARGUEDAS, 2009, p. 26).

Em Los ríos profundos vemos Arguedas mergulhar em uma praxis narrativa

que subverte o pensamento ocidental, inserindo em seu lugar o ordenamento das

percepções dentro dos moldes andinos, “quechuizando” a palavra, como bem

sinalizou Roland Forgues

[...] la [escritura] de Arguedas es [...] subversiva y revolucionaria. Ella no se contenta con traducir la realidad contingente; trata por igual de ordenarla, de hacerla coherente y armoniosa; en una palabra: de darle un sentido. (FORGUES apud ARGUEDAS, 2009, p.27).

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José María Arguedas, que mantém vínculos com a cultura quéchua-andina

orientado por moldes sensíveis a este universo tais como a música, os bailes e ritos

- símbolos de expressão desta cultura –, apresenta em toda sua obra o tema do

homem andino como eixo central, seja sistematizado por seus conhecimentos

antropológicos ou por sua intuição adquirida através do intenso vínculo que manteve

enquanto imerso nesta cultura, em um contato direto com populações de língua

quéchua. Sendo assim, não é rara a aparição dos elementos que fazem parte das

crenças do mundo andino; tampouco os personagens que formam parte desta

história.

Arguedas tem suas percepções do mundo quéchua guiadas, em boa medida,

pela música e os bailes andinos, o que influencia e caracteriza sua escrita de algum

modo. Los ríos profundos é uma obra que está moldada desde uma cadência da

música andina e é ela que em muitos momentos intervém na narrativa, atribuindo-

lhe sentido. Segundo Dora Sales Los ríos profundos “está asentada, de manera

fundacional, sobre una estructura musical quechua”. A autora afirma que

en esta novela, más que ninguna otra, la canción popular proyecta una sensibilidad personal y de grupo, y de un mundo afectivo y emocional que otorga sentido a las cosas. Con mucho, Los ríos profundos es hermosamente lírica e intensamente épica, como revela el pensamiento mágico-religioso y musical de Ernesto, el motín de las mestizas que reclaman la sal, la invasión de los colonos pidiendo una misa que mate a la peste, o la evolución de la conciencia social del muchacho. (ARGUEDAS, 2009. p 30).

Neste sentido, pode-se afirmar que a obra está fundamentada desde uma

perspectiva quéchua-andina, articulada desde esta cosmovisão, que permite ao

autor revelar de modo extraordinário o universo indígena, apresentando sua relação

com este correspondente, utilizando como fio condutor o narrador-personagem

Ernesto. Esta personagem revela ao longo da trama narrativa sua ligação com o

mundo andino através do vínculo que mantém com os elementos tradicionais da

população andina e que possibilitam que ele revisite, através da sua memória, este

universo — as pedras do muro incaico em Cuzco, a relação com o zumbayllu, seu

encontro feliz com as danças e os huaynos en las chicherías e o profundo

sentimento afetivo com o rio Pachachaca demonstram um cosmo que o autor deseja

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(re)presentar e o faz a partir de elementos que possuem uma função simbólica

profunda dentro da cultura andina.

Com isso, vemos em Los ríos profundos as mudanças no processo formal da

escrita arguediana, na qual o autor assume uma nova postura frente à forma

linguística apresentando, desta maneira, um câmbio que revela um universo

extremamente complexo, nutrido por uma perspectiva quéchua que emerge em um

discurso que se concebe, em sintonia com o universo cultural andino, como

eminentemente plural.

Pode-se afirmar, desta forma, que os estudos antropológicos e a experiência

etnográfica de José María Arguedas influenciaram profundamente no seu

posicionamento e seu fazer literário. A fusão de suas experiências pessoais e as de

etnólogo andarilho repercutiu na sua cena literária reiteradamente. Arguedas está “a

caballo entre el Occidente y el mundo indígena”, em um entre-lugar quase sempre

beligerante. Sua identidade está marcada por uma pluralidade tal qual aquela

representativa da cultura latino-americana.

Atento a esta condição, Cornejo Polar apontou a “desassossegada

experiência [de Arguedas] de ser homem de vários mundos, mas afinal de nenhum,

e de existir sempre – desconcertado – em terra alheia.” (CORNEJO POLAR, 2000,

p.129). Arguedas, que se autodefinia como um forasteiro, deixava a marca de sua

angustiada condição na sua escrita sempre oscilante entre dois mundos opostos –

quéchua/espanhol.

A linguagem pensada por JMA atua como porta de acesso ao cosmo andino,

como uma ponte entre o indígena e o ocidental, que ao mesmo tempo liga, mas

antes explicita o abismo existente entre um e outro. A ligação entre estes dois

espaços antagônicos na produção arguediana, seja no âmbito literário ou

antropológico, não corresponde em momento algum a um encontro harmonioso,

mas sim a um contato inevitável, sempre dual, expresso na própria condição de

Arguedas enquanto sujeito mestiço, afiliado a dois mundos em contraste. É no

contexto deste conflito – que o acompanharia ao longo de sua vida – que se revela,

de maneira autêntica em suas obras como correspondência da própria concepção

cultural andina e latino-americana, uma totalidade contraditória e complexa.

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2. RUMOR DE ESPACIO: A IMPORTÂNCIA DA MUSICALIDADE NA FORMAÇÃO

DE ARGUEDAS

As práticas culturais tradicionais andinas ocuparam lugar de grande interesse

para José María Arguedas. Ao longo de sua vida como escritor e antropólogo, a

música, o canto e a dança estiveram em lugar privilegiado, fosse no âmbito literário

ou fora dele. Sua infância acompanhada pelos cantos andinos entoados em

quéchua transformou-se em tema de reflexão ao longo de sua carreira no campo

das letras, bem como na sua reflexão etnográfica e antropológica, e nas funções que

desempenhou em instituições culturais e de pesquisa estatais.

Arguedas ingressa em 1931 na Faculdade de Letras da Universidad Nacional

Mayor de San Marcos, em Lima, como estudante de Literatura. Entre os anos de

1932 e 1937 trabalha como auxiliar da Administração Central de Correios de Lima,

mas perde seu cargo após ser preso por participar em uma manifestação estudantil.

Assim, passa cerca de um ano na prisão El Sexto. Após este período, Arguedas é

nomeado professor de Castelhano e Geografia em Sicuani, Cuzco. Esta época em

que passa a viver no vale de Vilcanota, em Sicuani, lhe permite retomar um contato

mais próximo e assíduo com a cultura andina e a partir deste momento Arguedas

inclina-se à sua vocação como etnólogo, recolhendo canções tradicionais junto a

seus alunos pelas comunidades andinas locais. Neste período também é quando o

autor passa a escrever os artigos que enviava a La Prensa de Buenos Aires.

Nesses artigos – recopilados postumamente por Sybila Arredondo e

publicados com o título Indios, mestizos y señores, em 1985 – “se fragua el lenguaje

literario maduro de Arguedas, el de Los ríos profundos. Son de tema etnológico,

pero a la inversa de mucha etnografía, se basan en un acercamiento apasionado al

objeto de estudio” (ROWE, 1996, p.61). Nos quarenta e quatro artigos publicados na

referida obra, a música, a dança, os cantos e os rituais andinos ocupam um lugar de

destaque.

Neste sentido, Sybila Arredondo afirma na introdução a Indios, mestizos y

señores que

José María Arguedas, en años de admirable constancia de trabajo dedicado a una variedad de áreas de conocimiento tocantes al arte

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popular, etnología, evolución cultural y constitución de un proyecto nacional, logra expresar con lucidez las potencias creativas con que el hombre andino contribuye a la construcción del Perú; el escritor, regido por su signo de justicia liberadora y optimista, hace que la unidad –en su producción– se transcodifique en la diversidad y sea la fuerza subyacente de su vigoroso mensaje. (ARREDONDO apud ARGUEDAS, 1989, p. 7).

Nota-se, portanto, que Arguedas, através da valorização das práticas

tradicionais, busca a construção de um projeto nacional que ressalte a cultura e o

homem andino como força criativa e constitutiva do universo quéchua. Neste

sentido, o autor afirmou em Canto Kechwa que

El wayno es arte, como música y como poesía. Sólo falta que se haga ver bien esto. Lo indígena no es inferior. Y el día en que la misma gente de la sierra, que se avergüenza todavía de lo indio, descubra, en sí misma, las grandes posibilidades de creación de su espíritu indígena, ese día, seguro de sus propios valores, el pueblo mestizo e indio podrá demostrar definitivamente la equivalencia de su capacidad creadora con relación a lo europeo, que hoy los desplaza y avergüenza. […] Ese día aflorará, poderoso y arrollador, un gran arte nacional de tema, ambiente y espíritu indígena, en música, en poesía, en pintura, en literatura, un gran arte, que, por su propio genio nacional, tendrá el más puro y definitivo valor universal. (ARGUEDAS, 1989, pp. 17-18).

A música para Arguedas, como afirma Rowe, proporciona uma modalidade de

conhecimento alternativo ao racionalismo ocidental. Segundo o teórico, a música, na

cultura andina, tem uma raiz profundamente transformadora, não se dissociando da

necessidade de mudança social. O modelo do conhecimento oferecido pela cultura

quéchua necessita, neste sentido, para que se realize plenamente, transcender as

limitações da resistência e participar em uma transformação revolucionária da

sociedade como um todo. Desta maneira, William Rowe aponta que

[...] Arguedas echa mano a la cultura andina para construir una imagen del conocimiento no enajenado, que alimentará su vida y su creación. Lo cual implica ya, no un acercamiento meramente funcional a la cultura andina, tal cual es, sino un acercamiento en cierta medida utópico, que no significa la falsificación, ni tan siquiera una actitud indigenista. Se trata más bien de utilizar los materiales y los símbolos de esa cultura, dentro de una perspectiva utópica y transformadora con el fin de presentar una nueva cultura posible y necesaria. (ROWE, 1996, pp. 60-61).

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Em tal sentido, pode-se observar que a música foi o ponto de partida,

resgatando as formas que caíam no esquecimento, não só contribuindo à

sobrevivência, mas também ao enriquecimento da música, da dança e do canto

tradicionais. De tal modo, ao longo de sua vida, Arguedas se mostra um defensor da

música popular bem como de seus intérpretes visando a valorização e a

manutenção das práticas andinas em um universo que passava por um processo de

modernização cada vez mais em ascensão.

José María Arguedas deu início ao trabalho de recopilação, conservação e

promoção da música vernácula andina quando ocupava o cargo de Conservador

Geral de Folklore do Ministério de Educação, em 1947. Nos anos seguintes,

continua a exercer seu fecundo trabalho como Chefe de Estudos Etnológicos no

Museu Nacional da Cultura Peruana, em 1953.

Ao ser designado Diretor da Casa da Cultura do Peru, em 1963, Arguedas

inicia, de forma sistematizada, a compilação de um rico material musical. Acerca

desse fato, Leo Casas Ballón declara que

La estrategia fue genial, sencilla, y eficaz. Consistía en tomar una prueba de suficiencia a los músicos populares, a quienes se les otorgaba un carné que los acreditaba como artistas con autorización oficial de la Casa de la Cultura del Perú para fines de exoneración tributaria. […] el carné era un reconocimiento oficial a trabajadores de un arte marginal, menospreciado, vilipendiado y aun reprimido en la capital de la República y otras ciudades. […] ese carné era como un escudo contra la explotación de dueños de los coliseos, radioemisoras privadas, empresarios discográficos y de espectáculos que los llevaban a actuar en centros mineros y ciudades del interior en condiciones de abuso y explotación, con la promesa de futuro estrellato que nunca llegaba. (BALLÓN apud ARGUEDAS, 2011, p. 56).

José María Arguedas atuou como uma grande ponte entre os músicos e

intérpretes que chegavam de distintos lugares do Peru e as rádios e coliseus

limenhos. Foi deste modo que o escritor permitiu que muitos artistas fossem

nacionalmente conhecidos por suas músicas e canções do universo andino,

universalizando aquilo que era restrito ao espaço dos pueblos.

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La diligencia de Arguedas hacía que los más destacados intérpretes de los que se presentaban a las evaluaciones para calificación y acreditación, actuaran también en el auditorio de Radio Nacional del Perú, que transmitía el programa en vivo y en onda corta a todo el país. Ese era el medio perfecto para la consagración de un artista en su pueblo natal, en su provincia y región, así como entre los migrantes que ya llegaban a Lima por oleadas desde el año 1940. Servía también como trampolín para llegar a los coliseos y a las empresas discográficas. (BALLÓN apud ARGUEDAS, 2011, p. 57).

Arguedas levou a cabo de forma comprometida o estudo, a recopilação, a

promoção, difusão e defesa da música tradicional andina, em um momento em que

a cultura indígena era hostilizada, numa sociedade em que a modernização mais

recente, propiciada pelo Estado, aprofundava uma divisão geográfica e simbólica

entre serra/costa, indígenas/mestiços.

Cuando llegué a las ciudades de la costa, la gente de esos pueblos todavía despreciaba mucho a los serranos. En esas ciudades no se podía cantar waynos; todos miraban al que cantaba un wayno como a inferior, como a un sirviente, y se reían. Por eso, todos los colegiales que iban a estudiar a la costa procuraban aprender, lo más pronto, el modo de hablar, de caminar y de vestirse de los costeños;

y cuando oían un wayno ellos también se reían: “Eso cantan los

indios, nomás”, decían. (ARGUEDAS, 1989, p.12).

Atuando na contramão do pensamento da maior parte dos mestiços

costenhos, Arguedas vê na música a oportunidade de abordar o conflito histórico-

social peruano desde outra perspectiva. Através dela, bem como dos cantos e das

danças de tradição quéchua, o escritor nos mostra como estas formas, enquanto

expressão surgida da sociedade andina, contribuem à produção de um lugar de

enunciação, como já afirmara William Rowe. Desta forma, Leo Casas Ballón

declarou que

En un país como el Perú y en una época de antagonismo entre indígenas y mestizos, propugnó la alianza de dichos sectores, teniendo al canto, la música y la danza como punto de partida, encuentro y proyección con claro contenido social y político, orientado a la transformación social y a la redención nacional. (BALLÓN apud ARGUEDAS, 2011, p. 54).

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José María Arguedas em sua fecunda trajetória como recopilador da música

vernácula peruana, apoiava, enquanto funcionário em seus diversos cargos no

Estado, aos vários músicos que chegavam a Lima. Logo, como reconhecimento

deste labor, inicia-se na capital peruana a abertura de um mercado de música

andina, encabeçada por um grupo de intérpretes e conjuntos que chegava de

distintas regiões do Peru. Com gravações de discos, divulgações em rádios e

diversas apresentações, aumenta-se a popularidade desta produção musical andina

e com isso aumenta também a preocupação por parte de Arguedas e outros

investigadores que, segundo Mujica Bayly e Roel Mendizábal, temiam que esta

transformação significasse também a perda das tradições e substituição pelos

estereótipos urbanos sobre a música e as populações andinas, criando, assim, uma

imagem distorcida acerca da música popular andina. Para evitar que isto ocorresse,

sinaliza Roel Mendizábal que

En la necesidad planteada desde Arguedas, Josafat Roel y otros investigadores e interesados por distinguir a los intérpretes más originales, se iniciaron registros de música popular, indicando nombre, procedencia y géneros interpretados. Algunos de estos intérpretes contarían con el apoyo y promoción de Arguedas y Roel, quienes los convocarían para presentaciones en vivo en escenarios más “prestigiosos”, patrocinando festivales folclóricos. Y sobre todo incluyéndolos dentro de conjuntos musicales como Danzas y Canciones del Perú, que aparecerían como embajadores oficiales de la cultura nacional en diversos países del hemisferio. (MUJICA BAYLY e ROEL MENDIZÁBAL apud ARGUEDAS, 2011, p. 9-10).

Destas e de outras gravações, surge o trabalho discográfico que Arguedas

realizou durante o período em que trabalhava para o Instituto de Estudos

Etnológicos do Museu da Cultura Peruana, instituição que se dedicava ao estudo e

investigação do patrimônio cultural tradicional do Peru. A salvaguarda destes

registros musicais representa uma das primeiras tentativas de resgate da expressão

popular andina a partir de seus intérpretes legítimos.

Além disso, Arguedas colaborou com a revista Folklore Americano – órgão do

Comitê Interamericano de Folklore – durante os anos de 1953 a 1963 e publicou

artigos e resultados de suas investigações em livros e outras revistas

especializadas, como Cultura y Pueblo, órgão informativo da Casa da Cultura do

Peru quando o mesmo Arguedas ainda ocupava sua chefia.

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Percebe-se, desta maneira, que Arguedas se dedicou à música enquanto

expressão cultural andina não só na área das Letras, mas sim, e sobretudo, em sua

aproximação a ela enquanto obra artística, utilizando-a como lugar de enunciação e

alcançando, desta forma, um diálogo que integrasse os espaços divididos

historicamente e manifestasse toda a capacidade de sentir a emoção estética dos

discursos populares.

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3. KATATAY: DUALISMO E (DES)INTEGRAÇÃO NA CULTURA ANDINA

A obra Katatay reúne sete poemas quéchuas de José María Arguedas,

“Tupac Amaru kamaq taytanchisman / A nuestro padre creador Tupac Amaru”,

publicado pela primeira vez em 1962, em edição bilíngue quéchua/castelhano, em

Ediciones Salqantay (Lima) com um breve prólogo de Arguedas; “Jetman, haylli /

Oda al Jet”, cuja primeira aparição se deu em 1965, na revista Zona Franca

(Caracas), e, posteriormente, em Cuadernos del Esqueleto Equino (Lima), em 1966,

em edição também quéchua/castelhano; “Katatay / Temblar” foi publicado pela

primeira vez no segundo número da revista Kachkaniraqmi (Lima), em 1966 e no

número 39-40 da revista Alcor (Asunción), no mesmo ano; “Huk Doctorkunaman

Qayay / Llamado a algunos doctores” teve sua primeira divulgação em 1966 no

Suplemento Dominical de El Comercio, em versão somente em castelhano e, duas

semanas após, por insistência do autor, foi publicada a versão em quéchua no

mesmo Suplemento. Os demais poemas que completam a coletânea não possuem

menção quanto a suas primeiras publicações.

Os referidos poemas tiveram suas respectivas traduções ao castelhano feitas

pelo próprio autor; exceto “Qollana Vietnam Llaqtaman / Ofrenda al pueblo de

Vietnam” [ca. 1968-1969], traduzido por Alfredo Torero, “Cubapaq / A Cuba” [1968],

traduzido por Leonidas Casas, e “Iman Guayasamin / Qué Guayasamín” [1964-

1965], cuja tradução Arguedas deixou inconclusa e foi finalizada por Jesús Ruiz

Durand. A coletânea de poemas foi recopilada por Sybila Arredondo, viúva de

Arguedas, e publicada em 1972, com prefácio de Alberto Escobar, pela editora do

Instituto Nacional de Cultura (INC).

Nas seções a seguir propomos a leitura crítica de alguns deles que, como dito

anteriormente, foram escolhidos em virtude da correlação que guardam mais

explicitamente em relação às figurações do universo andino peruano.

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3.1. Poesía y temblor em José María Arguedas

KATATAY

Dicen que tiembla la sombra de mi pueblo;

está temblando porque ha tocado la triste sombra del corazón

de las mujeres.

¡No tiembles, dolor, dolor!

¡La sombra de los cóndores se acerca!

—¿A qué viene la sombra?

¿Viene en nombre de las montañas sagradas

o a nombre de la sangre de Jesús?

—No tiembles; no estés temblando;

no es sangre; no son montañas;

es el resplandor del Sol que llega a la pluma de los

Cóndores

—Tengo miedo, padre mío.

El Sol quema; quema al ganado, quema las sementeras.

Dicen que en los cerros lejanos

que en los bosques sin fin,

una hambrienta serpiente,

serpiente diosa, hijo del Sol, dorada,

está buscando hombres.

—No es el Sol, es el corazón del Sol,

su resplandor,

su poderoso, su alegre resplandor,

que viene en la sombra de los ojos de los cóndores.

No es el Sol, es una luz.

¡Levántate, ponte de pie; recibe ese ojo sin límites!

Tiembla con su luz;

sacúdete como los árboles de la gran selva,

empieza a gritar.

Formen una sola sombra, hombres, hombres de mi pueblo;

todos juntos

tiemblen con la luz que llega.

Beban la sangre áurea de la serpiente de dios.

La sangre ardiente llega al ojo de los cóndores,

carga los cielos, los hace danzar,

desatarse y parir, crear.

Crea tú, padre mío, vida;

hombre, semejante, mío, querido.

(ARGUEDAS, 1983, t. V, pp. 247 e 249)

No poema que dá título à obra – “Katatay” –, Arguedas utiliza a forma

tradicional do haylli – hinos que desde épocas pré-colombianas as comunidades

andinas dirigem a los dioses1 – mantendo o “eu” coletivo, ressemantizando e

1 haylli: s. Triunfo, victoria. || Regocijo, alegría. || Mús. Canto triunfal de victoria en la guerra o de regocijo al

término de las faenas agrícolas. Diccionario Quechua/Español/Quechua. Cusco, 2005. jaylli. s. Canción sagrada, heroica o agrícola. || Canción. Composición en verso para cantar. Taki. || Canción romántica y sentimental. Arawi, yarawi, jarawi. Diccionario bilingüe. La Paz: 2007.

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refuncionalizando um gênero tradicional andino. O haylli é um gênero poético, uma

forma de poesia solene dirigida aos dioses andinos, que na antiguidade assumia

essencialmente um caráter agrícola, heroico ou sagrado, tendo como principal

característica seu teor exortativo e interpelante.

Estes cantos eram uma das formas que o homem andino utilizava para dirigir-

se a seus deuses, fosse para agradecer ou suplicar. Nos hayllis andinos tradicionais,

a interpelação ou exortação se direcionava ao “deus”. Em “Katatay” notamos que

além desta característica, o poema assume a forma de um canto coral em um

registro comunitário. É possível observar também que há, ao longo do poema, uma

oscilação entre a primeira pessoa do singular e a terceira pessoa do plural,

caracterizando as “vozes” do ayllu. Esta deliberada alternância provoca um efeito

polifônico, um coro de vozes que ao fim irrompem em um “grito”.

- Tengo miedo, padre mío El Sol quema; quema al ganado, quema las sementeras. Dicen que en los cerros lejanos que en los bosques sin fin, una hambrienta serpiente, serpiente diosa, hija del Sol, dorada, está buscando hombres. - No es el Sol, es el corazón del Sol, su resplandor, su poderoso, su alegre resplandor, que viene en la sombra de los ojos de los cóndores. No es el Sol, es una luz. ¡Lévantate, ponte de pie; recibe ese ojo sin límites! tiembla con su luz; Sacúdete con los árboles de la gran selva, empieza a gritar.

(ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 247).

Este “grito” seria a liberação desta comunidade para a criação de uma

sociedade na qual os indígenas fossem atores desta nova configuração social. O

haylli, enquanto composição poética, é um canto triunfal, e em “Katatay” pode-se

compreender este triunfo como a resistência criativa de um grupo que persiste em

sua cultura, alçando-se contra o invasor, personificado no poema arguediano como

“la hambrienta serpiente”.

Entretanto, este haylli arguediano assume um caráter exortativo e

interpelante, como palavra ofertada a seus dioses. Com efeito, em “Katatay”

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notamos a celebração ao dios como interpelação e exortação aos seus

leitores/ouvintes.

Além da mudança na função atribuída ao uso das pessoas gramaticais – 1ª e

3ª pessoas do singular e do plural, respectivamente –, a presença do imperativo

introduz no poema um tom exortativo, como pode ser percebido no haylli. O uso da

forma imperativa nos leva a pensar em um chamamento ou uma convocação ao

ayllu. Desta forma, pode-se também observar dois momentos distintos dentro do

poema. No primeiro, teríamos as vozes complementárias do ayllu – tremor-temor; no

segundo, a presença do Amauta nesse deslocamento ao tremor-transformação

como força resistente e criativa.

¡Lévantate, ponte de pie; recibe ese ojo sin límites! tiembla con su luz; Sacúdete con los árboles de la gran selva, empieza a gritar. Formen una sola sombra, hombres, hombres de mi pueblo;

todos juntos tiemblen con la luz que llega. Beban la sangre áurea de la serpiente de dios.

La sangre ardiente llega al ojo de los cóndores, carga los cielos, los hace danzar, desatarse y parir, crear. Crea tú, padre mío, vida; hombre, semejante, mío, querido.

(ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 247).

A voz coral que aparece ao início do poema dirigida a Dios surge, na segunda

parte, em tom de exortação marcado pelo uso dos imperativos. A voz do enunciador

sugere uma forma una direcionada a um coletivo. Inicialmente esta voz parece

dirigir-se a cada membro da comunidade – ayllu – individualmente a fim de incitar o

ânimo de cada um; em seguida, há a substituição do imperativo singular pelo plural,

o que indica o caráter deliberado desta substituição por parte de Arguedas. A

exposição deste artifício poético sugere a presença de um Amauta cuja voz se

dirige, agora, a todo o coletivo considerado por ele como único mediador possível

porque comunitário. É este mesmo líder que ao fim do poema parece assumir a voz

de um “eu” coletivo e se dirige ao dios protetor em nome de toda a coletividade em

forma de súplica: crea tú, padre mío, vida;/hombre, semejante, mío, querido.

Do mesmo modo que em “Katatay” há alternativamente a presença de um

mediador entre o ayllu e Dios, podemos observar de maneira análoga esta mesma

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cena no ritual de La danza de las tijeras. No referido baile, o Dansak – “bailarino” –

se apresenta como mediador entre a Pachamama e os Apus – Dios Montaña – em

nome da sua comunidade. Deste modo, se afirma que cada um destes dansak’s é

considerado como um dos gestores dos ayllukuna. A dança é uma forma de entrar

em contato com a Pachamama e os Apus ou Wamani e transmitir aos demais

membros da comunidade esta vibração como fonte de energia viva através dos

movimentos da dança.

La danza de las tijeras é uma competição entre os dansak’s e consiste em

movimentos executados por cada dançarino e que devem ser alternativamente

repetidos e superados pelos seus oponentes. Deste modo, a dança se constitui em

uma cadeia de movimentos de demonstração de força e habilidade por cada dansak,

o que, no universo cultural andino é uma forma de venerar os dioses. Neste sentido,

a danza de las tijeras é uma entrega através do corpo até o limite das forças como

reverência e agradecimento. Além disso, a dança age como renovação das

energias, uma vez que a comunicação entre a Pachamama e o ayllu mantém viva a

cultura quéchua através da dança.

Ao percebermos em “Katatay” o caráter polifônico da voz comunitária,

podemos estabelecer mais uma relação com o ritual da dança mencionada acima.

Do mesmo modo como na competição em que há entradas e saídas dos dansak’s

em um conjunto, uma complementação de passos de dança, no poema, também

parece haver estas entradas formando, desta maneira, uma soma de vozes, como

esta voz comunitária.

Deste modo, notamos que o gênero ao qual se adscreve este poema possui

uma nova funcionalidade. Esta voz comunitária revela uma das inovações levadas a

cabo por José María Arguedas, dando expressão à oscilação no discurso andino

tradicional, atravessado pela cultura ocidental não mais durante a Colonização, mas

ainda e especialmente na modernidade.

O conhecimento de Arguedas acerca da cultura andina, construído, em boa

parte, através de suas investigações nas comunidades indígenas, o ajudou a criar

seus relatos e inserir, fosse na literatura ou nos trabalhos etnográficos, uma visão

mais profunda e íntima do universo andino. Deste modo, Arguedas expressa de

modo singular a musicalidade andina.

Assim, ao utilizar um gênero poético tradicional e reelaborá-lo em um

conteúdo contemporâneo e pulsante na cultura andina, Arguedas expressa o desejo

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e a necessidade de reivindicar a cultura andina tradicional como um processo de

recuperação do cosmo social andino, em face da imposição ocidental hispânica da

Colonização e criolla da modernização, revelando a possibilidade de criação do povo

indígena através da manutenção de sua cultura como base de uma modernidade

alternativa.

Desde o próprio título – Katatay (tremor) –, o poema sugere uma

desestabilização no universo andino frente à entrada de uma cultura estranha,

sugerindo, desta maneira, a ameaça de desintegração na cultura andina. Através do

poema e de seus meios imagéticos, Arguedas postula o temor a uma perda da

coletividade presente nos ayllukuna enquanto constituinte de um mesmo universo

cultural.

Dicen que tiembla la sombra de mi pueblo; está temblando porque ha tocado la triste sombra del corazón de las mujeres.

(ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 247).

O início do poema – Dicen que [...] – sugere a presença de uma tradição oral

dos relatos quéchuas, vinculando, uma vez mais, como veremos adiante, a

convivência de duas culturas opostas (quéchua-oral/castelhana-escrita). Desta

maneira, temos os primeiros indícios, dentro do poema, de um universo cultural

conflituoso e por sua vez, oscilante: “Dicen que tiembla la sombra de mi pueblo”.

Esta “sombra” à qual as vozes se referem pode ser lida como o próprio cosmo

andino. Neste sentido, este tremor sugere uma instabilidade neste meio provocada

pela dualidade instaurada pela oposição ocidental/indígena.

Esta “sombra/cosmo” demonstra a existência de uma sociedade viva,

metaforizando uma comunidade capaz de unir-se, mantendo sua cultura.

Este mesmo tremor revela na primeira parte do poema um temor, um

sentimento de desamparo no universo andino, um dolor profundo, nas palavras do

próprio Arguedas. Este sentimento, causado pela entrada traumática da/à cultura

ocidental, fora descrito pelo poeta em um ensaio intitulado “La soledad cósmica en la

poesía quechua”. Nele, o autor peruano se refere a “el período de la desolación” no

universo andino, que teria levado toda essa cultura ao que ele caracteriza como “la

soledad cósmica”. Um sentimento que, segundo ele, aparece como expressão de

uma dor mais profunda, quando “el hombre peruano antiguo se despide del universo

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creado por sus manos e ingresa bruscamente en la servidumbre”. No entanto, este

dolor profundo é o que desperta, como vemos no poema, um sentimento de

renovação de um cosmo andino.

A “sombra” mais uma vez surge no poema representando agora,

metaforicamente, um processo de renovação, vinculando-se também, como

veremos, a um elemento tradicional da cultura andina: “el cóndor”.

Em “Katatay”, o vocábulo sombra, que aparece ao longo de toda a primeira

parte do poema, assume diferentes sentidos, ora simbolizando um sentimento

corrosivo, desolador

[...] está temblando porque ha tocado la triste sombra del corazón de las mujeres.

(ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 247).

ora como símbolo de um processo renovador

¡No tiembles, dolor, dolor! ¡La sombra de los cóndores se acerca!

(ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 247).

Desta forma, “sombra” pode tanto ser uma sombra produzida por um

elemento “natural”, de profunda significação cultural; como uma forma poética que,

topicalizada também em um “elemento natural” (o coração das mulheres), metaforiza

um momento de tensão na história cultural. Nos versos acima, “la sombra de los

cóndores” surge como uma força renovadora do cosmo andino.

Na versão em quéchua de “Katatay”, a “sombra” aparece vinculada a duas

acepções distintas: na primeira, sombra aparece no sentido de nuvem, que na

cultura andina supõe preceder um momento de tensão tal qual se apresenta no

poema – “está temblando porque ha tocado la triste sombra del corazón de las

mujeres”. Esta sombra do coração das mulheres, como dito acima, metaforiza um

momento de tensão. Entretanto, mais abaixo, esta sombra, também na versão em

quéchua, aparece associada em sua grafia à forma vocabular mais próxima ao

castelhano – sombranmi. Esta “sombra” se relaciona – como elemento natural

projetado por um corpo – com a chegada de “los cóndores”. A “sombra”, ao contrário

da interpretação ocidental, não surge como noção negativa – sombra/escuridão –

mas sim como a presença de um elemento de profunda significação cultural andina.

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No poema, a voz interpela à divindade – característica dos hayllis tradicionais

–, porém há uma variante nele que transforma esta interpelação em diálogo.

– ¿A qué viene la sombra? ¿Viene en nombre de las montañas sagradas o a nombre de la sangre de Jesús? Tengo miedo, padre mío.

(ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 247).

A voz que aparece no poema, ao interpelar a “su taytay” parece confrontar-se

com um dualismo – montañas sagradas/sangre de Jesús – que vai perfilando-se ao

longo de “Katatay”. O dualismo presente expressa a ameaça de desintegração e

desordem de uma sociedade afetada por uma duplicidade cultural.

Esta dualidade característica da cultura andina pode ser percebida desde a

formação geográfica – serra/costa –, como construção simbólica criolla da

nacionalidade peruana; como na própria concepção andina que vê a sociedade em

duas metades – hanan/hurin (mundo de cima/mundo de baixo). José María

Arguedas recria esta bipartição como expressão central em sua escrita.

Paralelamente, ao estabelecer um “diálogo” entre os “de baixo”, o ayllu – figura

representada por uma voz coletiva – e “os de cima” – formalizado no taytay Inti, a

quem vai dirigido o haylli – está também colocando em evidência o diálogo

heterogêneo e contraditório a que se enfrenta a cultura andina na era moderna.

Neste sentido, a intencional instabilidade apresentada no poema representa a

convivência quase sempre beligerante de uma “totalidade contraditória”, nos termos

de Cornejo Polar.

Desta forma, podemos pensar na definição utilizada por López Baralt sobre a

escrita literária de Arguedas, que a autora caracteriza como tinku.

El tinku no se articula textualmente en momentos específicos, sino que marca la totalidad de la escritura de nuestro autor [Arguedas]. Pues cabe leer su obra como un gran tinku literario en el que se encuentran conflictivamente sierra y costa, quechua y español, tradición oral y escritura, pasado y presente, el hombre andino y el hombre occidental. La escritura de Arguedas constituye un singular ejemplo del tradicional tinku andino, que, en palabras de Franklin Pease, alude a aquel lugar de encuentro ritual donde la batalla entre fuerzas opuestas engendra la compleja totalidad. El tinku siempre supone una dimensión conflictiva, y en el caso de Arguedas la expresión literaria de la totalidad peruana no deja de ser agónica. (LÓPEZ BARALT, 2005, p. 336).

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No caso de Arguedas, esta dimensão conflituosa é o que anima sua produção

literária. Em “Katatay” notamos que a partir do contato destas duas culturas

beligerantes –hispano/quéchua– surge, como liberação de uma energia

transformadora, uma resistência ao universo ocidental através dos processos

tradicionais andinos.

Neste caso, esta dimensão conflituosa e agônica, acentua o caráter exortativo

que o poema assume na segunda parte, na qual não há só uma interpelação mas, e

sobretudo, uma convocação, um chamamento a que todos se unam formando

novamente “una sola sombra”, um só povo.

¡Levántate, ponte de pie; recibe ese ojo sin límites! Tiembla con su luz; sacúdete con los árboles de la gran selva, empieza a gritar. Formen una sola sombra, hombres, hombres de mi pueblo; todos juntos tiemblen con la luz que llega.

(ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 247).

Nestes versos pode-se notar que há uma convocação a um coletivo, o

enunciador assume a voz da coletividade. Aqui a “sombra” se transforma em “luz” e

o tremor – temblar – pode ser lido como um processo renovador.

De tal modo, assim como a “sombra”, o “temblar” – tremor – dá voz, em

diferentes momentos do poema, ao sentimento de opressão e medo que assola o

povo andino:

No tiembles; no estés temblando; no es sangre; no son montañas; es el resplandor del Sol que llega en las plumas de los Cóndores.

(ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 247).

Em outros momentos, a “sombra” funciona como exortação e ânimo para a

realização de uma revolução cósmico-social, da voz ao grito, reivindicando o caráter

uno e ao mesmo tempo plural da cultura andina:

Tiembla con su luz; sacúdete con los árboles de la gran selva, empieza a gritar.

(ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 247).

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William Rowe afirma que uma dessas forças mobilizadoras se encontra no

próprio canto e danças, nos hinos antigos e novos. Estes elementos ressemantizam

o Taki Onqoi2 como processo de renovação na cultura andina e trazem à tona este

tremor – Katatay.

A “sombra”, enquanto protetora, figura como presença dos princípios

tradicionais indígenas que devem ser assumidos pela população andina como uma

manifestação da sua própria cultura.

– No es el Sol, es el corazón del Sol, su resplandor, su poderoso, su alegre resplandor, que viene en la sombra de los ojos de los cóndores. No es el Sol, es una luz. ¡Levántate, ponte de pie; recibe ese ojo sin límites! Tiembla con su luz; [...]

(ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 247).

Se retomamos o primeiro verso de “Katatay” – Dicen que tiembla la sombra

de mi pueblo – e pensamos neste temblar – tremor – como um processo que

ameaça desintegrar a cultura, nos últimos versos do trecho acima, notamos o desejo

de reintegração e renovação do cosmo andino a partir dos princípios tradicionais

indígenas. Neles, por sua vez, o tremor e a sombra demonstram a desestabilização,

o próprio estremecimento que o povo andino pode causar à cultura ocidental.

O conteúdo exortativo da poesia de Arguedas se dirige, sobretudo, à

sensibilidade do ouvinte (leitor), como incitação à renovação deste “cosmo” andino.

Renovação esta que só virá a partir de “la vuelta al pasado hacia el futuro”

(LIENHARD, 1989, p.31), ou seja, somente com a posta em cena dos princípios

tradicionais da cultura andina. Não se trata de um processo de regresso, mas sim de

uma ordem reestabelecida a partir das necessidades de uma comunidade, tendo

esta como partícipe e o presente e o futuro como tempos de sua realização.

2 O Taki Onqoi é o primeiro movimento com características messiânicas de que se tem notícia.

Correspondeu à reação indígena frente à colonização europeia e se intensificou rapidamente na

região andina. Ver: MILLONES, Luis. “Mesianismo en América hispana: el Taki Onqoy”. (Artículos) in:

Memoria americana. N. 15; Ciudad Autónoma de Buenos Aires. Ene/dic. 2007.

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Em “Katatay”, assim como no primeiro capítulo de Los ríos profundos onde

Ernesto – personagem principal da narrativa – vê as pedras do muro incaico mover-

se, vemos, poeticamente, a presença de uma cultura viva e pulsante, em ebulição,

como uma energia transformadora capaz de criar e recriar universos:

Beban la sangre áurea de la serpiente de dios. La sangre ardiente llega al ojo de los cóndores, carga los cielos, los hace danzar,

desatarse y parir, crear. (ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 247 e 249).

Notamos também que a dança, como tremor, forma parte de um processo de

libertação, de mudanças, de criação. É a partir da dança, expressão intrínseca da

cultura andina quéchua, que o novo pode surgir sem a aniquilação do tradicional. É

a dança a expressão que atualiza e renova o cosmo tradicional, convocando

contemporaneamente os sujeitos andinos a se mobilizarem com ele.

A dança como elemento expressivo deste cosmo em processo de renovação

e ao mesmo tempo como forma de resistência aparece em diversas obras de

Arguedas, demonstrando o valor cultural e simbólico atribuído a esta prática dentro

da cultura quéchua. A partir dela o autor expressa os modos como a população

andina e sua respectiva cosmovisão foram capazes de reposicionar-se dentro de

uma região afetada por um processo de modernização excludente.

Neste sentido, podemos pensar no caráter simbólico da representação de La

danza de las tijeras, prática proibida durante séculos nos espaços rurais pelas

autoridades civis e religiosas que relacionavam (com razão) a dança aos rituais

religiosos indígenas. Desta maneira, a sobrevivência e permanência desta

expressão na cultura andina “fue concebida como una práctica [...] que se resiste a

morir y que tiene conexiones con expresiones culturales de resistencia indígena”

(ZEVALLOS AGUILAR, 2009, p. 93).

Zevallos Aguilar afirma que

La danza de las tijeras (Danzaks en quechua) es un baile masculino en el que los bailarines, acompañados por sus respectivas orquestas compuestas de violín y arpa, danzan en turnos que forman parte de una competencia llamada Atipanakuy. […] Se especula que la danza se ha practicado por cientos de años en los espacios rurales de la región central del Perú. […] Alrededor de los años cincuenta (...) los inmigrantes andinos de los departamentos de Apurímac, Ayacucho,

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Huancavelica y parte de Arequipa introdujeron la danza en los espacios urbanos de la costa y especialmente en Lima. (ZEVALLOS AGUILAR, 2009, p. 91).

Pode-se observar que, assim como na “Danza de las Tijeras”, no poema

“Katatay” há um crescendo, um aumento gradual na intensidade – seja dos passos

na dança ou na exortação dentro do poema – que marca uma dinâmica de transição

que se dá através da própria dança. Assim como na dança os passos,

complementários, dão forma à competição, no poema, as vozes também se

complementam, formando um conjunto de vozes característico dos ayllukuna.

Esta dinâmica marca a forma comunitária e coletiva do universo andino. Mais

que vozes complementárias, estas vozes expressam o valor comunal da formação

social indígena. Essas vozes excedem o “dizer” e representam a linguagem

característica do mundo andino, expresso como movimento e som, dança e música.

A dança produz, na cultura andina, um processo de renovação e atualização

com uma força resistente, rompendo fronteiras geográficas e culturais,

transformando este cosmo em algo vivo e pulsante. Podemos, neste sentido, citar o

exemplo do Zumbayllu3 em Los ríos profundos. Nesta narrativa arguediana, através

da musicalidade do pequeno trompo – zumbayllu – o personagem Ernesto – figura

central da trama – encontra o estímulo para seu espírito atormentado por sua

duplicidade cultural. O zumbayllu funciona como antídoto, como afirma Rowe, por

sua capacidade de atravessar as fronteiras sociais e culturais transtornando os

valores institucionais atribuídos aos respectivos universos culturais em conflito.

O zumbayllu mescla o visual e o auditivo, o que também pode caracterizar

uma tensão, uma vez que na cultura ocidental a visão enquanto sentido é mais

valorizada que a audição. Desta forma, podemos identificar mais uma vez a posta

em cena de dois polos opostos em tensão.

A música, neste caso, aparece como mediadora nos momentos de conflito

mais intensos e produz, desta forma, eventos novos. Aqui é possível ver como a

música, enquanto função simbólica na cultura andina, opera dentro desse “cosmo”

como ordenadora do mundo. O zumbayllu “crea un espacio de lucidez dentro de un

3 Zumbayllu significa, em castelhano, “trompo” ou “peão” em português. Ver capítulo VI de Los ríos

profundos dedicado ao Zumbayllu.

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ambiente sumamente hostil por estar saturado de mensajes que ocultan las

experiencias de la población indígena y mestiza” (ROWE, 1996, p.51).

Ainda no romance arguediano, do mesmo modo como ocorre com o

Zumbayllu, o canto da María Angola se estende por todo o cosmo e se funde em

todas as coisas, convertendo todo o espaço em música.

Estábamos juntos; recordando yo las descripciones que en los viajes hizo mi padre, del Cuzco. Oí entonces un canto. - ¡La María Angola! – le dije. - Sí quédate quieto. Son las nueve. En la pampa de Anta, a cinco leguas, se le oye. Los viajeros se detienen y se persignan. […] Yo sabía que la voz de la campana llegaba a cinco leguas de distancia. Creí que estallaría en la plaza. Pero surgía lentamente, a intervalos suficientes; y el canto se acrecentaba, atravesaba los elementos; y todo se convertía en esa música cuzqueña, que abría las puertas de la memoria. (ARGUEDAS, 1983, t. III, pp. 18-19).

O canto saído da María Angola traz à tona elementos da cultura andina que

filiam Ernesto a este universo tal qual aparece figurado no capítulo Zumbayllu, onde

a música do pequeno “trompo” faz reavivar na memória do protagonista tudo aquilo

que o vinculava ao universo quéchua.

El canto del zumbayllu se internaba en el oído, avivaba en la memoria la imagen de los ríos, de los árboles negros que cuelgan en las paredes de los abismos. (ARGUEDAS, 1983, t. III, p. 66).

Neste sentido, em Los ríos profundos, a María Angola tem função simbólica

análoga à do Zumbayllu. O canto do Zumbayllu, assim como o da María Angola, é

capaz de alcançar espaços e fundir-se às coisas.

Yo no podía ver el pequeño trompo ni la forma cómo Antero lo encordelaba. […] Era aún temprano; las paredes del patio daban mucha sombra; el sol encendía la cal de los muros, por el lado del poniente. El aire de las quebradas profundas y el sol cálido no son propicios a la difusión de los sonidos; apagan el canto de las aves, lo absorben; en cambio, hay bosques que permiten estar siempre cerca de los pájaros que cantan. En los campos templados o fríos, la voz humana o la de las aves es llevada por el viento a grandes distancias. Sin embargo, bajo el sol denso, el canto del zumbayllu se propagó con una claridad extraña; parecía tener agudo filo. Todo el aire debía estar henchido de esa voz delgada; y toda la tierra, ese piso arenoso del que parecía brotar.

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- ¡Zumbayllu, zumbayllu! Repetí muchas veces el nombre, mientras oía el zumbido del trompo. Era como un coro de grandes tankayllus fijos en un sitio, prisioneros sobre el polvo. Y causaba alegría repetir esta palabra, tan semejante al nombre de los dulces insectos que desaparecían cantando en la luz. (ARGUEDAS, 1983, t. III, p. 65).

Da mesma forma que “la voz del río” é capaz de atravessar todos os

elementos, o zumbayllu e “la campana de la María Angola” possuem a capacidade

de ultrapassar os limites do humano.

Pode-se observar como Arguedas propõe, através da música, uma dimensão

utópica e transformadora. As illas da María Angola surgem como fonte de

transformação e mudança.

En los grandes lagos, especialmente en los que tienen islas y bosques de totora hay campanas que tocan a la medianoche. A su canto triste salen del agua toros de fuego, o de oro, arrastrando cadenas; suben a las cumbres y mugen en la helada; porque en el Perú los lagos están en la altura. Pensé que esas campanas debían de ser illas, reflejos de la María Angola, que convertiría a los amarus en toros. Desde el centro del mundo, la voz de la

campana, hundiéndose en los lagos, habría transformado a las antiguas criaturas. (ARGUEDAS, 1983, t. III, p. 20).

Arguedas dedica várias linhas para esclarecer o significado das terminações

yllu e illa — síntese do movimento-luz / movimento-som. Yllu, segundo Arguedas, é

um certo tipo de som; por outro lado, illa é conceitualmente mais complexa: pode ser

o reflexo de outro ser, como um espectro, ou até mesmo uma réplica. O Zumbayllu

aparece como a co-presença da cultura andina dentro do universo ocidentalizado,

que se nega a desaparecer. Este jogo do auditivo-visual e a associação luz/sombra

marca justamente esta presença como um espectro, uma presença/ausência da

cultura andina peruana em um universo marcado pela entrada da cultura ocidental

moderna. Em Los ríos profundos, o som do Zumbayllu pode ser entendido como o

reflexo do mundo. Neste sentido, Chalena Vasquez sinaliza que

Las detalladas consideraciones dedicadas al Pinkuyllu, sirven de guía para apreciar la función del Zumbayllu, actuando como instrumento mágico que al interior del internado se convertía en el cristal en el que vibraba el mundo. (VASQUEZ, 2002, p. 83).

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O zumbayllu atua, neste caso, como parte integrante do funcionamento do

cosmo social. Desta maneira, Chalena Vasquez afirma que

Los sonidos naturales de las aves, el viento, el rumor del río, así como el brillo u opacidad de los astros, las estrellas, el color de las hojas, de la madera, de la tierra, es fuente de información permanente sobre las necesidades de estos otros seres, de su funcionamiento, de su transcurrir vital; en este transcurrir se entiende lo natural y lo social-humano como partes inseparables del cosmos en funcionamiento. (VASQUEZ, 2002, p. 67).

O Zumbayllu surge no discurso narrativo como uma força resistente no

ambiente hostil do Colegio, como manutenção do andino dentro de um universo

onde o indígena era menosprezado e ignorado. Do mesmo modo, é possível

observar no movimento Taki Onqoi esta força resistente através dos elementos

tradicionais andinos – música e dança. O Taki Onqoi, movimento já citado

anteriormente, que se acredita ter surgido no século XVI, representou uma

resistência indígena nos Andes frente à colonização europeia. No entanto, segundo

Luis Millones, antes que o Taki Onqoi fora considerado como movimento de

resistência, este designava uma atividade terapêutica que tinha por objetivo uma

purificação, pois “en tiempos de crisis preeuropea las ceremonias de purificación

incluían un baile, o bien la danza denunciaba la necesidad de los ritos para calmar la

crisis” (MILLONES, 2007, p. 9). De tal modo, a música, como princípio cósmico,

desde antes mesmo do contato com os europeus, funcionava como ordenadora

deste caos.

Desta maneira, se pensamos no poema “Katatay” notamos que a dança, com

seu tremor, sacode a cultura ocidental e restitui, simbolicamente, esta força que se

resiste a morir, como afirmou Zevallos Aguilar. No poema, a voz conclama

¡Levántate, ponte de pie; recibe esse ojo sin límites! Tiembla con su luz; sacúdete con los árboles de la gran selva, empieza a gritar. Formen una sola sombra hombres, hombres de mi pueblo; todos juntos tiemblen con la luz que llega.

(ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 247).

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Neste sentido, as práticas andinas tradicionais – poesia de tradição oral,

música e dança – passam, ao longo de séculos de resistência à cultura ocidental,

por processos de renovação e atualização: seja em movimentos de resistência,

como o Taki Onqoi; ou através de suas formas poéticas, como em “Katatay”.

Com este mesmo processo de atualização podemos identificar na cultura

andina um movimento análogo ao executado na dança. O conceito quéchua do

Yawar Mayu supõe um processo de renovação: Yawar Mayu – rio de sangue. Em

um primeiro plano, ele representaria a destruição causada pelo movimento dos rios

caudalosos em épocas de chuva; entretanto, terminado este período, as regiões

inundadas se converteriam nas terras mais férteis pelo lodo sedimentado. Neste

sentido, a ideia de criação (los hace danzar/ desatarse y parir, crear) estaria

intimamente ligada a este processo de “ebulição” (La sangre ardiente llega al ojo del

cóndor) provocado pelo movimento “de los grandes ríos caudalosos” assim como do

estremecimiento causado pela dança.

Segundo a consideração do Yawar Mayu na tradição cultural andina, este

movimento – destruição/florecimento – “es una metáfora que significa un proceso

donde muerte y regeneración están unidos” (ZEVALLOS AGUILAR, 2009, p. 104).

De tal modo, notamos que na invocação final do poema há a expectativa de

surgimento de vida e homem novos:

Crea tú, padre mío, vida; hombre, semejante, mío, querido.

(ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 249)

Estes versos, indicando um processo de criação a partir de um movimento de

regeneração, como notamos ao longo do poema, nos direcionam à figura mítica de

Inkarrí como formação deste “hombre, semejante”, tal como aparece nas linhas

finais da transcrição do mito recolhido por Arguedas:

Dicen que solo la cabeza de Inkarrí existe. Desde la cabeza está creciendo hacia adentro: dicen que está creciendo hacia los pies. Entonces volverá, Inkarrí, cuando esté completo su cuerpo. No ha regresado hasta ahora. Ha de volver a nosotros, si Dios da su asentimiento. Pero no sabemos, dicen, si Dios ha de convenir en que vuelva. (ARGUEDAS, 1981, p. 40).

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A criação deste “homem” – Inkarrí – também se dá com base em uma

reintegração – “cuando su cuerpo esté completo” (como o de Tupac) –, em

consonância com a fé presente na cultura andina – reintegração para uma

renovação.

Inkarrí, uma figura mítica, inspira na cultura andina uma autoidentificação

enquanto um runa (homem, semelhante). Deste modo, é significativa, no final

(recomeço?) do poema, a presença enfática dos vocábulos “semejante” e “mío”, e o

pedido a Inti (Dios Sol) pela criação deste “novo homem” que seria capaz de

transformar o universo.

A criação deste “novo homem” capaz de modificar o espaço andino teria por

característica a preservação das bases tradicionais andinas, demonstrando, desta

forma, a sobrevivência de uma cultura ainda após a entrada violenta de outra

estranha. Acerca deste mesmo tema, Arguedas, em 1962, publica “La agonía de

Rasu-Ñiti”. Este conto narra os momentos finais do dansak Rasu-Ñiti, “que baila

hasta morir la danza de las tijeras dentro de su casa”. Com a morte de Rasu Ñiti “[…]

el Wamani deja su cuerpo y pasa al de su discípulo Atok’sayku [...]. Se comprueba la

mudanza del Wamani cuando Atok’sayku toma las tijeras de las manos de su

maestro y baila la danza con un brío jamás visto” (ZEVALLOS AGUILAR, 2009, p.

104).

O ritual descrito no conto de Arguedas narra a díada morte/vida (ZEVALLOS

AGUILAR, 2009, p. 104). Ao passo que Rasu-Ñiti morre, o Wamani – Dios protetor –

que estava em seu corpo passa ao corpo de Atok’sayku, reiniciando, através da

dança, um novo ciclo. Atok’sayku perpetua, através do ritual da danza de las tijeras,

a ideia de renovação e ressurgimento presente no/do messianismo andino. Morte e

vida aparecem com a ideia de fim e (re)começo, como complementaridade. Desta

maneira, Zevallos Aguilar afirma que “la descripción del ritual de muerte le sirve a

José María Arguedas para demostrar a sus lectores urbanos que todavía existe una

cultura india viva y autónoma con sus propias formas de reproducción sociocultural

[…]” (p.105).

Arguedas ao retomar neste conto a ideia messiânica – vida-morte-vida – nos

permite pensar mais uma vez no conceito do Yawar Mayu, já mencionado

anteriomente. A respeito disso, William Rowe considera que

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Por un lado, el Yawar mayu es una fase de varias danzas quechuas contemporáneas donde los bailarines se azotan las pantorrillas hasta hacerlas sangrar. Por otro, Yawar mayu (río de sangre) es un concepto quechua que, considerando la importancia del fluido vital para mantener la vida del hombre y los animales, explica la díada muerte y vida. (ROWE apud ZEVALLOS AGUILAR, 2009, pp. 104-105).

No conto, o Yawar mayu acompanha, em um ritmo lento e arrastado, os

passos finais do dansak Rasu-Ñiti alcançando, quando o Wamani transpassa de

Rasu-Ñiti a Atok’sayku, um ritmo mais vivo e forte, semelhante àquele de los

grandes ríos turbios. Neste sentido, Martín Lienhard, afirmou que

La mitad del texto, aproximadamente, se apoya directamente en la sucesión de los ritmos musicales del ritual de los danzantes para alcanzar su propio ritmo narrativo. La descripción de la agonía y resurrección del dansaq traslada al nivel del enunciado el significado dramático de los pasos de danza. (LIENHARD, 1983, p. 154).

Assim, no relato de Arguedas vemos que

Lurucha, que no parecía mirar al bailarín, empezó el yawar mayu (río de sangre), paso final que en todas las danzas de indios existe. […] Rasu-Ñiti vio a la pequeña bestia. ¿Por qué tomó más impulso para seguir el ritmo lento, como el arrastrarse de un gran río turbio, del yawar mayu éste que tocaban Lurucha y don Pascual? Lurucha aquietó el endiablado ritmo de este paso de la danza. Era el yawar mayu, pero lento, hondísimo; sí, con la figura de esos ríos inmensos, cargados con las primeras lluvias; ríos de las proximidades de la selva que marchan también lentos, bajo el sol pesado en que resaltan todos los polvos y lodos, los animales muertos y árboles que arrastran, indeteniblemente. Y estos ríos van entre montañas bajas, oscuras de árboles. No como los ríos de la sierra que se lanzan a saltos, entre la gran luz; ningún bosque los mancha y las rocas de los abismos les dan silencio. […] Rasu-Ñiti seguía con la cabeza y las tijeras este ritmo denso. Pero el brazo con que batía el pañuelo empezó a doblarse; murió. Cayó sin control, hasta tocar la tierra. [...] Lurucha avivó el ritmo del yawar mayu. Parecía que tocaban campanas graves. El arpista no se esmeraba en recorrer con su uña de metal las cuerdas de alambre; tocaba las más extensas y gruesas. Las cuerdas de tripa. Pudo oírse entonces el canto del violín más claramente. (ARGUEDAS, 1983, t. I, p. 207-208).

Com efeito, nele observa-se que as etapas da dança em Rasu-Ñiti

acompanham, metaforicamente, o ritmo das águas – lento na selva, ao passo que

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ao entrar na região serrana se transformam em rios de águas violentas, arrastando

tudo que encontram pelo caminho, como o Yawar Mayu.

O ritual de morte e “ressurreição” do dansak através do Wamani demonstra

justamente esta cultura ainda viva, capaz de recriar-se na modernidade, mas ainda

com base na tradição andina. Arguedas uma vez mais recorre ao mito, à ideia

messiânica de vida-morte-vida – como no mito de Inkarrí – para explicar um contexto

sócio-político. Tanto em “Katatay” como em “La agonía de Rasu-Ñiti”, o

(re)surgimento deste “homem novo” – Inkarrí em “Katatay” (como veremos) e

Atok’sayku no conto arguediano – pode-se definir, como afirmou Rowe, como “el

renacimiento colectivo de la nación quechua y de su cultura” (ROWE, 1996, p.98).

A música ocupa lugar central no conto - que também pode ser lido como um

microcosmo da própria sociedade peruana e da visão que Arguedas possuía deste

universo. Seria a música a responsável, neste caso, pela sobrevivência desta cultura

em agonia.

A la hija menor le atacó el ansia de cantar algo. Estaba agitada, pero como los demás, en actitud solemne. Quiso cantar porque vio que los dedos de su padre que aún tocaban las tijeras iban agotándose, que iban también a helarse. Y el rayo de sol se había retirado casi hasta el techo. El padre tocaba las tijeras revolcándolas un poco en la sombra fuerte que había en el suelo. (ARGUEDAS, 1983, t. I, p. 208).

Sobre a mesma questão, Lienhard afirmou que

La transformación de una trama rítmico-musical quechua en trama narrativa expresada en español supone una notable <quechuización> de la última, y una doble operación de transculturación textual profunda. Rasu-Ñiti representa así un ejemplo avanzado de cómo una cultura oral puede subvertir el vehículo de una cultura escrita moderna. El danzaq, en este cuento, es el agente de tal subversión. (LIENHARD, 1983, p. 154-155).

A interminável circularidade da dança em “La agonía de Rasu-Ñiti”, como

afirmou Cornejo Polar, demonstra a ideia de sobrevivência de uma cultura através

de suas bases tradicionais – expressas, neste caso, pela dança e a música.

Esta fe histórica se enlaza en el relato al tema de la sucesión humana como signo de inmortalidad. Rasu-Ñiti pervivirá en Atok’ sayku y la danza mágica no cesará:

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«Atok’ sayku saltó junto al cadáver. Se elevó ahí mismo, danzando; tocó las tijeras que brillaban. Sus pies volaban. Todos estaban mirando. «Lurucha» tocó el lucero kanchi (alumbrar de la estrella), del wallpa wak’ay (canto del gallo) con que empezaban las competencias de los danzak’, a la media noche. ¡El Wamani aquí! ¡En mi cabeza! ¡En mi pecho, aleteando! – dijo el nuevo dansak’. Nadie se movió. Era él, el padre «Rasu-Ñiti», renacido con tendones de bestia tierna y el fuego del Wamani, su corriente de siglos aleteando. (CORNEJO POLAR, 1997, pp. 165-166).

A música que acompanha a entrada de Atok’sayku – wallpa wak’ay: canto del

gallo – é a mesma utilizada no início das competições da Danza de las Tijeras.

Desta maneira, podemos entender a entrada do novo danzaq como análoga ao

Cóndor em “Katatay”. No poema, o Cóndor surge como a presença de uma força

renovadora tal qual o danzaq no conto arguediano que, através da dança, mantém

viva a cultura andina.

Como o próprio Cornejo Polar sinalizou, o conto arguediano está composto

por uma forma básica de narração – primeira e terceira pessoas –, abarcando dois

tempos cronológicos – passado e presente – e um tempo mágico, como polos de

uma representação objetiva e de uma representação mágica, que, contudo, não se

opõem. Esta forma “mágica” presente em “La agonía de Rasu-Ñiti” remete à crença

mítica presente na cultura andina do retorno de Inkarrí que o próprio Arguedas, de

maneira angustiada4, acreditava coincidir com a recomposição de todos os valores

autênticos do universo quéchua.

O autor ainda afirma que “La agonía de Rasu-Ñiti”, “pese a su simplicidad y

llaneza, […] ofrece una riquísima gama representativa y una no menos abundante

pluraridad de perpectivas” (CORNEJO POLAR, 1997, p. 163). Neste sentido, o conto

abre-se a diversas dimensões.

4 La fe en Inkarrí (en lo que éste simboliza en el mito) está rodeada en Arguedas de un contexto

angustiosamente inseguro. Em 1956, concluye el artículo sobre Puquio con las siguientes palabras:

«Inkarrí vuelve y no podemos menos que sentir temor ante su posible impotencia para ensamblar

individualismos quizá irremediablemente desarrollados. Salvo que detenga al Sol, amarrándole de

nuevo, con cinchas de hierro, sobre la cima de Osqonta, y modifique a los hombres; que todo es

posible tratándose de una criatura tan sabia y resistente» (p.232). A la larga Arguedas fluctuó durante

toda su vida entre la fe en Inkarrí y la destrucción de toda esperanza de recomposición de los valores

auténticos del pueblo quechua. (CORNEJO POLAR, 1997, p. 166)

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—¡Ya! ¡Estoy llegando! ¡Estoy por llegar! —dijo con voz fuerte el bailarín, pero la última sílaba salió como traposa, como de la boca de un loro. Se le paralizó una pierna. —¡Está el Wamani! ¡Tranquilo! —exclamó la mujer del dansak’ porque sintió que su hija menor temblaba. El arpista cambió la danza al tono de Waqtay (la lucha). “Rasu-Ñiti” hizo sonar más alto las tijeras. Las elevó en dirección del rayo de sol que se iba alzando. Quedó clavado en el sitio; pero con el rostro aún más rígido y los ojos más hundidos, pudo dar una vuelta sobre su pierna viva. Entonces sus ojos dejaron de ser indiferentes; porque antes miraba como en abstracto, sin precisar a nadie. Ahora se fijaron en su hija mayor, casi con júbilo. —El dios está creciendo. ¡Matará al caballo! —dijo.

(ARGUEDAS, 1983, t. I, p. 207).

Na citação acima notamos a sobrevivência de uma cultura através da sua

tradição pelo legado deixado através da própria dança. Neste caso, é a dança a

responsável pela manutenção da cultura andina e, além disso, sugere as mudanças

pelas quais tal tradição vinha passando, como por exemplo a entrada de mulheres

danzak’s nas competições da Danza de las Tijeras. Tal característica pode ser

notada por “la mirada del padre a su hija mayor” e não a um filho como herdeiro de

uma tradição ancestral.

O temblor – tremor – da filha menor do dansak se assemelha ao t(r)emor que

figura ao início do poema Katatay – No tiembles, dolor, dolor. Além disso, podemos

relacionar analogamente este Dios que está creciendo e que matará al caballo ao

mito de Inkarrí. A reconstituição de Inkarrí – está creciendo – enquanto

representativo do mundo indígena significa, metaforicamente, a própria revolta da

população andina retomando o que lhe fora retirado desde o momento da invasão

espanhola, antes do período da Conquista. Desta maneira, o mágico serve a

Arguedas enquanto expressão mítico-social, hacia un nivel antropológico-cultural,

em palavras de Cornejo Polar.

Neste sentido, podemos pensar no tratamento que Arguedas dá ao mito

enquanto parte inerente da cultura quéchua: um estatuto análogo ao que Mariátegui

atribuiria ao mito como uma necessidade social. Aníbal Quijano no prólogo a uma

das edições dos 7 ensayos de la realidad peruana (2007) afirma que Mariátegui

toma “[…] la idea del mito social como fundamento de la fe y de la acción

revolucionaria de las multitudes, así como antídoto contra el escepticismo de los

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intelectuales y alimento esencial de una concepción metafísica de la existencia.”

(QUIJANO apud MARIÁTEGUI, 2007, p. LXX).

Contudo, Cornejo Polar encerra seus comentários acerca do conto

arguediano afirmando que

Ambas dimensiones (el crecimiento del dios y la continuidad de la danza) concentran su significación en la líneas finales del cuento. Cuando el maestro Lurucha afirma que «dansak’ no muere» (p. 155) el lector sabe ya que el dansak’ es símbolo de todo un pueblo, el pueblo quechua que ha resistido siglos de opresión y que, sin

embargo, habrá de recomponerse y triunfar. (CORNEJO POLAR, 1997, p. 166).

Não só no poema “Katatay” Arguedas sugere como o temblor andino pode

reconfigurar o espaço mestiço/criollo da modernidade, mas também em “La agonía

de Rasu-Ñiti” reafirma como a cultura pode manter-se viva e pulsante ao longo de

séculos, atualizando-se e renovando-se:

Era él, el padre “Rasu-Ñiti”, renacido, con tendones de bestia tierna y el fuego del Wamani, su corriente de siglos aleteando. […] —Enterraremos mañana al oscurecer al padre “Rasu-Ñiti”. —No muerto. ¡Ajajayllas! —exclamó la hija menor—. No muerto. ¡Él mismo! ¡Bailando!

(ARGUEDAS, 1983, t. I, p. 209).

A dança age como forma não só de representação dos elementos tradicionais

andinos, mas também de resistência ao mundo ocidental.

“La sangre ardiente”, que ferve como a cultura andina pulsante, traz à tona os

elementos ocultos e ignorados desde a Colonização e faz, através da dança como

um dos seus significantes privilegiados na cultura quéchua, perder o temor e criar

eventos novos, recriar este espaço ameaçado de desintegração pela imposição dos

moldes culturais europeus. Em outras palavras, erradicar o tem(bl)or da

desintegração cultural com o temblor dançante de sua atualização e renovação

contemporâneas.

No poema “Katatay” vemos emergir diversas cenas que revelam o dualismo

presente no universo quéchua como manifestação de uma heterogeneidade não

dialética, em termos de Cornejo Polar. Neste sentido, os vínculos estabelecidos

através da dança – temor/tremor; desintegração/reintegração – colocam em cena a

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tensão desta convivência beligerante (não passível de síntese) entre duas culturas

opostas.

Neste sentido, o tremor –katatay– provocado pelos cantos e danças opera como

mobilizador neste “cosmo tradicional andino”, como um processo de revolução

cósmico-social. A dança revela, mas também, e sobretudo, refunde e transforma

este universo. São os elementos vernáculos – canto e dança – os que reordenam o

caos em cosmo.

3.2. (Des)integração e criação em José María Arguedas

O poema “Tupac Amaru kamaq taytanchisman - A nuestro padre creador

Tupac Amaru” (1962) é um canto dirigido a Tupac Amaru e dedicado a Doña

Cayetana – madre india que “protegió con sus lágrimas y su ternura” a Arguedas

quando este “era un niño huérfano alojado en una casa hostil y ajena”. Neste

poema, José María Arguedas une a tradição dos cantos quéchuas, como bem

aparece no subtítulo do poema – haylli-taki – aos de uma modernidade em

expansão no Peru. O poema, pode-se dizer, se instala em um movimento

modernizante, em um momento em que o espaço urbano peruano, sobretudo Lima,

recebe inúmeros imigrantes.

Abaixo reproduzimos o texto completo do poema em castelhano, para melhor

compreensão da análise literária que será desenvolvida mais adiante.

A nuestro padre creador Tupac Amaru (himno-canción)

A Doña Cayetana, mi madre india, que me protegió con sus lá-

grimas y su ternura, cuando yo era un niño huérfano alojado en una

casa hostil y ajena. A los comuneros de los cuatro ayllus de Puquio

en quienes sentí por vez primera, la fuerza y la esperanza.

Tupac Amaru, hijo del Dios Serpiente; hecho con la nieve del Salqantay; tu

sombra llega al profundo corazón como la sombra del dios montaña, sin cesar y

sin límites.

Tus ojos de serpiente dios que brillaban como el cristalino de todas las águilas, pudieron

ver el porvenir, pudieron ver lejos. Aquí estoy, fortalecido por tu sangre, no

muerto, gritando todavía.

Estoy gritando, soy tu pueblo; tú hiciste de nuevo mi alma; mis lágrimas las hiciste

de nuevo; mi herida ordenaste que no cerrara, que doliera cada vez más. Desde

el día en que tú hablaste, desde el tiempo en que luchaste con el acerado y sanguinario

español, desde el instante en que le escupiste a la cara; desde cuando tu hirviente

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sangre se derramó sobre la hirviente tierra, en mi corazón se apagó la paz y

la resignación. No hay sino fuego, no hay sino odio de serpiente contra los demonios,

nuestros amos.

Está cantando el río,

está llorando la calandria,

está dando vueltas el viento;

día y noche la paja de la estepa vibra;

nuestro río sagrado está bramando;

en las crestas de nuestros Wamanis montañas, en sus dientes, la nieve go-

tea y brilla.

¿En dónde estás desde que te mataron por nosotros?

Padre nuestro, escucha atentamente la voz de nuestros ríos; escucha a los temibles

árboles de la gran selva; el canto endemoniado, blanquísimo del mar; escúchalos,

padre mío, Serpiente Dios. ¡Estamos vivos; todavía somos! Del movimiento

de los ríos y las piedras, de la danza de árboles y montañas, de su movimiento,

bebemos sangre poderosa, cada vez más fuerte ¡Nos estamos levantando,

por tu causa, recordando tu hombre y tu muerte!

En los pueblos, con su corazón pequeñito, están llorando los niños.

En las punas, sin ropa, sin sombrero, sin abrigo, casi ciegos,

los hombres están llorando, más triste, más tristemente que los niños.

Bajo la sombra de algún árbol, todavía llora el hombre, Serpiente Dios,

más herido que en tu tiempo; perseguido, como filas de piojos.

¡Escucha la vibración de mi cuerpo!

Escucha el frío de mi sangre, su temblor helado.

Escucha sobre el árbol de lambras el canto de la paloma abandonada,

nunca amada;

el llanto dulce de los no caudalosos ríos, de los manantiales que suave-

mente brotan al mundo.

¡Somos aún, vivimos!

De tu inmensa herida, de tu dolor que nadie habría podido cerrar, se levanta para nosotros la rabia que hervía en

tus venas. Hemos de alzarnos ya, padre, hermano nuestro, mi Dios Serpiente. Ya no le tenemos miedo al rayo

de pólvora de los señores, a las balas y a la metralla, ya no le tememos tanto. ¡Somos todavía! Voceando tu

nombre, como los ríos crecientes y el fuego que devora la paja madura, como las multitudes infinitas de las

hormigas selváticas, hemos de lanzarnos, hasta que nuestra tierra sea de veras nuestra tierra y nuestros pueblos

nuestros pueblos.

Escucha, padre mío, mi Dios Serpiente, escucha:

las balas están matando,

las ametralladoras están reventando venas,

los sables de hierro están cortando carne humana;

los caballos, con sus herrajes, con sus locos y pesados cascos, mi cabeza,

mi estómago están reventando,

aquí y en todas partes;

sobre el lomo helado de las colinas de Cerro de Pasco,

en las llanuras frías, en los caldeados valles de la costa,

sobre la gran yerba viva, entre los desiertos.

Padrecito mío, Dios Serpiente, tu rostro era como el gran cielo, óyeme; ahora el

corazón de los señores es más espantoso, más sucio, inspira más odio. Han corrompido

a nuestros propios hermanos, les han volteado el corazón y, con ellos,

armados de armas que el propio demonio de los demonios no podría inventar y fabricar,

nos matan. ¡Y sin embargo, hay una gran luz en nuestras vidas! ¡Estamos

brillando! Hemos bajado a las ciudades de los señores. Desde allí te hablo. Hemos

bajado como las interminables filas de hormigas de la gran selva. Aquí estamos,

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contigo, jefe amado, inolvidable, eterno Amaru.

Nos arrebataron nuestras tierras. Nuestras ovejitas se alimentan con las hojas

secas que el viento arrastra, que ni el viento quiere; nuestra única vaca lame agonizando

la poca sal de la tierra. Serpiente Dios, padre nuestro: en tu tiempo éramos

aún dueños, comuneros. Ahora, como perro que huye de la muerte, corremos hacia

los valles calientes. Nos hemos extendido en miles de pueblos ajenos, aves despavoridas.

Escucha, padre mío: desde las quebradas lejanas, desde las pampas frías o quemantes

que los falsos wiraqochas nos quitaron, hemos huido y nos hemos extendido

por las cuatro regiones del mundo. Hay quienes se aferran a sus tierras amenazadas

y pequeñas. Ellos se han quedado arriba, en sus querencias y, como nosotros,

tiemblan de ira, piensan, contemplan. Ya no tememos a la muerte. Nuestras

vidas son más frías, duelen más que la muerte. Escucha, Serpiente Dios: el azote,

la cárcel, el sufrimiento inacabable, la muerte, nos han fortalecido, como a ti, hermano

mayor, como a tu cuerpo y tu espíritu. ¿Hasta dónde nos ha de empujar esta

nueva vida! La fuerza que la muerte fermenta y cría en el hombre ¿no puede hacer

que el hombre revuelva el mundo, que lo sacuda?

Estoy en Lima, en el inmenso pueblo, cabeza de los falsos wiraqochas. En la

Pampa de Comas, sobre la arena, con mis lágrimas, con mi fuerza, con mi sangre,

cantando, edifiqué una casa. El río de mi pueblo, su sombra, su gran cruz de madera,

las yerbas y arbustos que florecen, rodeándolo, están, están palpitando dentro

de esa casa; un picaflor dorado juega en el aire, sobre el techo.

Al inmenso pueblo de los señores hemos llegado y lo estamos removiendo.

Con nuestro corazón lo alcanzamos, lo penetramos; con nuestro regocijo no extinguido,

con la relampagueante alegría del hombre sufriente que tiene el poder de

todos los cielos, con nuestros himnos antiguos y nuevos, lo estamos envolviendo.

Hemos de lavar algo las culpas por siglos sedimentadas en esta cabeza corrompida

de los falsos wiraqochas, con lágrimas, amor o fuego ¡Con lo que sea! Somos miles

de millares, aquí, ahora. Estamos juntos; nos hemos congregado pueblo por

pueblo, nombre por nombre, y estamos apretando a esta inmensa ciudad que nos

odiaba, que nos despreciaba como a excremento de caballos. Hemos de convertirla

en pueblo de hombres que entonten los himnos de las cuatro regiones de nuestro

mundo, en ciudad feliz, donde cada hombre trabaje, en inmenso pueblo que no

odie y sea limpio, como la nieve de los dioses montañas donde la pestilencia del

mal no llega jamás. Así es, así mismo ha de ser, padre mío, así mismo ha de ser, en

tu nombre, que cae sobre la vida como una cascada de agua eterna que salta y

alumbra todo el espíritu y el camino.

Tranquilo espera,

tranquilo oye,

tranquilo contempla este mundo.

Estoy bien ¡alzándome!

Canto;

bailo la misma danza que danzabas

el mismo canto entono.

Aprendo ya la lengua de Castilla,

entiendo la rueda y la máquina;

con nosotros crece tu nombre;

hijos de wiraqochas te hablan y te escuchan

como al guerrero maestro, fuego puro que enardece, iluminando.

Viene la aurora.

Me cuentan que en otros pueblos

los hombres azotados, los que sufrían, son ahora águilas, cóndores de

inmenso y libre vuelo.

Tranquilo espera.

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Llegaremos más lejos que cuanto tú quisiste y soñaste.

Odiaremos más que cuanto tú odiaste;

amaremos más de lo que tú amaste, con amor de paloma encantada, de

calandria.

Tranquilo espera, con ese odio y con ese amor sin sosiego y sin límites, lo

que tú no pudiste lo haremos nosotros.

Al helado lago que duerme, al negro precipicio,

a la mosca azul que ve y anuncia la muerte

a la luna, las estrellas y la tierra,

el suave y poderoso corazón del hombre;

a todo ser viviente y no viviente,

que está en el mundo,

en el que alienta o no alienta la sangre, hombre o paloma, piedra o arena,

haremos que se regocijen, que tengan luz infinita, Amaru, padre mío.

La santa muerte vendrá sola, ya no lanzada con hondas trenzadas ni

estallada por el rayo de pólvora.

El mundo será el hombre, el hombre, el mundo, todo a tu medida.

Baja a la tierra, Serpiente Dios, infúndeme tu aliento; pon tus manos sobre la tela

imperceptible que cubre el corazón. Dame tu fuerza, padre amado.

(ARGUEDAS, 1983, t. V, pp. 223-233)

O poema a Tupac Amaru foi escrito em um período de grandes migrações à

cidade de Lima. É neste contexto urbano moderno que Arguedas compõe uma nova

poesia em quéchua (reconstruída depois em castelhano) que quase nada se

assemelhava à poesia contemporânea peruana. Estes poemas foram escritos em

quéchua e somente depois passados ao castelhano, na maioria das vezes a pedido

de leitores “profissionais” da obra de José María Arguedas e/ou editores.

Neste sentido, o autor como um “sujeito migrante” opera o que Cornejo Polar

denominara uma “heterogeneidade não dialética”. Segundo o autor, “os conteúdos

de multiplicidade, instabilidade e deslocamento” (CORNEJO POLAR, 2000, p.301)

estão implícitos neste discurso e, além disso, de grande relevância é a “sua

indispensável referência a uma dispersa variedade de espaços socioculturais que

tanto se espalham quanto se articulam através da própria migração” (CORNEJO

POLAR, 2000, p.301). Em “... Tupac Amaru” estes espaços socioculturais ao mesmo

tempo em que se dispersam, se articulam dentro deste mesmo processo migratório.

Para Antonio Cornejo Polar, o discurso migrante é plenamente descentrado,

construído de maneira inconciliável e contraditória, “não tenciona sintetizar num

espaço de resolução harmônica” (2000, p.304). De acordo com Cornejo Polar o

discurso migrante celebra a desterritorialização, já que “o deslocamento migratório

duplica (ou mais) o território do sujeito e lhe oferece a oportunidade de falar a partir

de mais de um lugar [...]. É um discurso duplo ou multiplamente situado” (2000,

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p.304). Deste modo, em “...Tupac Amaru” identificamos a presença deste

hoje/ontem – aqui/lá como ideia de um duplo lugar/ não-lugar.

Estoy em Lima, en el inmenso pueblo, cabeza de los falsos wiracochas. En la Pampa de Comas, sobra la arena, con mis lágrimas, con mi fuerza, con mi sangre, cantando, edifiqué una casa. El río de mi pueblo, su sombra, su gran cruz de madera, las yerbas y arbustos que florecen, rodeándolo, están, están palpitando dentro de esa casa; un picaflor dorado juega en el aire, sobre el techo. (ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 229. Grifo meu)

A “sombra” deste pueblo aparece como espectro desta sociedade andina

serrana que insiste em não desaparecer. Esta presença, representada por seus

elementos mais íntimos, demonstra a existência deste ainda lugar do sujeito

migrante, lugar de pertencimento e identificação. A “casa” enunciada no poema pode

ser interpretada como a construção deste novo lugar do sujeito migrante, vinculada à

expressão de uma identidade pessoal, marcada, neste caso, pelo “cantar” que

acompanha este sujeito.

A ideia do “estar” também é representativa, uma vez que os elementos

vinculados a este “estar” remetem à cultura andina como presença – espectro –

ainda no espaço de uma Lima ocidentalizada e excludente.

No poema a Tupac Amaru percebe-se que há uma reivindicação quanto ao

caráter simbólico, e por sua vez tradicional, do termo kamaq, que em quéchua

significa “ordenador”. Neste sentido, Amaru é não só o padre creador, mas também

o ordenador deste cosmo andino e indica a postulação de uma ordem diferente

daquela imposta até então, estabelecida segundo os moldes da cultura moderna

ocidental. Na versão em quéchua do poema, a voz enunciativa dirige-se a Tupac

Amaru como Pachakama – que traduzido ao castelhano significaria

aproximadamente Dios Hacedor de la Tierra y del Universo. 5

Tupac Amaru, Amaruq churin, Apu salqantaypa ritinmanta ruwasqa; llantuykin, Apu suyu sombran hina sonqo ruruykupi mastarikun, may pachakama. (ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 225. Grifo meu).

5 “Ser supremo, deidad que controla los movimientos sísmicos y gobierna todas las cosas, en la

mitología inkaica”. Diccionario Quechua-Español-Quechua. Academia Mayor de la Lengua Quechua.

Segunda Edición, Cusco, Perú, 2005.

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Desta maneira, a reivindicativa de Tupac Amaru como pachakama –

ordenador – nos sugere a tentativa de subversão do ordenamento atual, o desejo de

transformar este cosmo e revertê-lo aos moldes da cultura (tradicional) andina. Com

efeito, de acordo com Martin Lienhard,

La mitificación de Tupac Amaru se apoya [...] en la atribución de dos títulos de larga trayectoria andina: amaru y kamak. El destinatario del poema debe saber (el texto no lo explicita) que la serpiente mitológica amaru aparece siempre en los momentos de crisis cósmica, de pachakutiy. [...] Amaru o hijo de amaru, “Tupac Amaru” se formó a partir de la nieve del Sallqantay, un cerro donde se ubica, para una parte de las poblaciones apurimeña y cusqueña, la divinidad quechua suprema. (LIENHARD, 1989, p. 259).

Assim, é possível notar que a figura central do poema possui atributos divinos

de tradição andina – kamaq era o título que se atribuía no período pré-hispânico às

divindades criadoras. Além disso, a voz ofertante refere-se a Tupac Amaru como

[…] hijo del Dios Serpiente; hecho con la nieve del Salqantay; tu sombra llega al profundo corazón como la sombra del dios montaña, sin cesar y sin límites. (ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 225. Grifo meu).

Desta maneira, vemos perfilar-se no poema de Arguedas um Tupac Amaru

segundo a cosmovisão andina. Entretanto, também é possível perceber, além dos

atributos divinos de origem quéchua, e por trás de um discurso em que ecoam

marcas do discurso mítico judeu-cristão, a interpelação ao herói topicalizada na

verdade histórica do castigo que a autoridade colonial espanhola lhe impingiu em

resposta a seu levantamento:

¿En dónde estás desde que te mataron por nosotros? (ARGUEDAS, 1983, t. V, p.225).

O diálogo com a divindade era uma especificidade dos cantos antigos; à qual

vem se aderir a “muerte por nosotros”, como símbolo característico da cultura cristã:

a imolação do filho de Deus para salvar a humanidade. Neste contexto, nota-se que

a presença do imaginário cristão está também incorporada aos elementos

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tradicionais andinos, como um novo traço desta cultura: “te mataron por nosotros”;

ao mesmo tempo em que revela a tradição dos cantos quéchuas, que Arguedas

utiliza nos seus poemas reelaborando-a e ressemantizando-a.

Na citação acima, a voz ofertante se dirige a uma divindade abstrata e

distante, da mesma maneira que o falante antigo ou até mesmo o próprio Inca

dialogava com o interlocutor divino. Contudo, podemos identificar, na elaboração

poética de José María Arguedas, a incorporação de elementos novos oferecidos

pela tradição ocidental, “traduzidos” para os motivos tradicionais indígenas.

Segundo a tradição andina, o haylli era um canto que os incas dirigiam a seus

dioses – como Wiracocha, por exemplo – e também um canto de triunfo dirigido ao

Inca vitorioso. Neste sentido, Martín Lienhard aponta para a alternância de tons ao

longo do poema: ora de grande violência

Padre nuestro, escucha atentamente la voz de nuestros ríos; escucha a los temibles árboles de la gran selva; el canto endemoniado, blanquísimo del mar; escúchalos, padre mío, Serpiente Dios. […] (ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 227).

ora mais lírico

Está cantando el río, está llorando la calandria, está dando vueltas el viento; día y noche la paja de la estepa vibra; nuestro río sagrado está bramando; en las crestas de nuestros Wamanis montañas, en sus dientes, la

nieve gotea y brilla. ¿En dónde estás desde que te mataron por nosotros? (ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 225).

O desdobramento que Arguedas estabelece no poema apresentando

diferentes tons ao longo de sua construção pode ser entendido também como o

desdobramento da própria figura de Tupac Amaru entoada no haylli-taki arguediano.

Pode-se compreender um Tupac Amaru histórico, último dos líderes indígenas do

período da Conquista, morto em 1572. Mas também podemos relacionar a figura

celebrada no poema com a de um herói mitificado que, como bem intuiu Lienhard,

poderia vincular-se ao chamado Tupac Amaru II (ou José Gabriel Condorcanqui) –

líder da insurreição andina no século XVIII. Para boa parte da população da época, o

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personagem de José Gabriel Condorcanqui era um Inca ressuscitado, um modelo do

mítico Inkarrí no qual enxergavam a restauração de uma ordem quebrada após a

invasão espanhola.

Desde el día en que tú hablaste, desde el tiempo en que luchaste con el acerado y sanguinario español, desde el instante en que le escupiste a la cara; desde cuando tu hirviente sangre se derramó sobre la hirviente tierra, en mi corazón se apagó la paz y la resignación. No hay sino fuego, no hay sino odio de serpiente contra los demonios, nuestros amos. (ARGUEDAS, 1983, t. V, p.225).

Do mesmo modo como a figura mítica de Inkarrí representa uma força

ordenadora, no poema, Tupac Amaru funciona como reordenador do cosmo andino

dentro de uma perspectiva messiânica tal qual a ideia atribuída no mito de Inkarrí. A

existência de uma serpente – amaru – como interlocutora, indica um período de

crise, como afirma Lienhard, de desordem cósmico-social cujo reestabelecimento só

seria possível através da ação/mediação do “dios creador Tupac Amaru” que “no es

en el fondo sino el nombre que se atribuye a la memoria histórica, la cultura y la

ilimitada fuerza colectiva del hombre andino” (LIENHARD, 1989, p. 37).

Esta força coletiva é percebida no poema através da voz mesma que oferece

o canto.

De tu inmensa herida, de tu dolor que nadie habría podido cerrar, se levanta para nosotros la rabia que hervía en tus venas. Hemos de alzarnos ya, padre, hermano nuestro, mi Dios Serpiente. Ya no le tenemos miedo al rayo de pólvora de los señores, a las balas y la metralla, ya no le tememos tanto. ¡Somos todavía! (ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 227).

Em “A nuestro padre creador Tupac Amaru” notamos um anseio de revolução,

de subversão, por assim dizer, dentro do universo andino.

¿Hasta donde [sic] nos ha de empujar esta nueva vida? La fuerza que la muerte fermenta y cría en el hombre ¿no puede hacer que el hombre revuelva el mundo, que lo sacuda? (ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 229).

É possível estabelecer paralelos entre os elementos imagéticos presentes no

poema e processos análogos utilizados por Arguedas em sua narrativa. Em Los ríos

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profundos (1958) a relação de animismo presente nos muros incaicos vistos por

Ernesto – personagem central da obra – aponta, metaforicamente, a um processo de

inversão e mudança através de uma cultura em “ebulição”, “fervente”.

Eran más grandes y extrañas de cuanto había imaginado las piedras del muro incaico; bullían bajo el segundo piso encalado, que por el lado de la calle angosta, era ciego. Me acordé, entonces, de las canciones quechuas que repiten una frase patética constante: “yawar mayu”, río de sangre; “yawar unu”, agua sangrienta; “puk-tik’ yawar k’ocha”, lago de sangre que hierve; “yawar wek’e”, lágrimas de sangre. ¿Acaso no podría decirse “yawar rumi”, piedra de sangre, o “puk’tik yawar rumi”, piedra de sangre hirviente? Era estático el muro, pero hervía por todas sus líneas y la superficie era cambiante, como la de los ríos en verano, que tienen una cima así, hacia el centro del caudal, que es la zona temible, la más poderosa. Los indios llaman “yawar mayu” a esos ríos turbios, porque muestran con el sol un brillo en movimiento, semejante al de la sangre. También llaman “yawar mayu” al tiempo violento de las danzas guerreras, al momento en que los bailarines luchan. - ¡Puk’tik, yawar rumi! – exclamé frente al muro, en voz alta

(ARGUEDAS, 1983, t. III, p. 6).

Este processo de ebulição põe em cena uma sociedade viva e movente,

capaz de remexer e reordenar uma tradição que foi brutalmente combatida.

Al inmenso pueblo de los señores hemos llegado y lo estamos removiendo. Con nuestro corazón lo alcanzamos, lo penetramos; con nuestro regocijo no extinguido, con la relampagueante alegría del hombre sufriente que tiene el poder de todos los cielos, con nuestros himnos antiguos y nuevos, lo estamos envolviendo (ARGUEDAS,

1983, t. V, p. 229).

O caráter transgressor do poema não estaria somente em seu conteúdo

enquanto (re)estabelecimento de uma nova ordem, de transformação do modelo

imposto, mas também no próprio posicionamento que Arguedas assume com

relação à sua escrita. O quéchua, como língua oral que a caracteriza, é um idioma

que antes de ser lido, deve ser escutado. Neste sentido, é significativa a declaração

do poeta peruano com relação ao modelo utilizado para a elaboração do texto em

quéchua. Ele explica que

Este haylli-taki está escrito, pues, en un quechua que podrá ser íntegramente comprendido por los hablantes de la gran área del runasimi. Repetimos que no está dirigido a los eruditos; que hemos

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elegido el quechua cuzqueño pero sin respetar, en muy pequeño número de palabras, la pronunciación estricta y su correspondiente escritura para no dificultar en el área chanka (Apurímac, Ayacucho,

Huancavelica) […] (ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 269).

De acordo com a afirmação acima, os poemas estariam escritos de acordo

com um artifício tal que permitisse que eles fossem ouvidos/lidos/compreendidos

pela maior parte da população andina, não estando, segundo Arguedas, dirigidos a

leitores quéchuas eruditos, mas sim aos falantes comuns.

Os poemas arguedianos por serem escritos distanciam-se, desta maneira,

dos cantos quéchuas do período pré-hispânico, uma vez que não são

acompanhados de seus respectivos bailes. São emitidos, por assim dizer, desde

uma consciência letrada. Entretanto, percebe-se que o texto, ainda que escrito, não

deixa de se relacionar com a música e as danças andinas características. Com

efeito, através de recursos imagéticos e sinestésicos, o autor proporciona ao

ouvinte/leitor um texto em quéchua e espanhol para ser ouvido antes que lido. Nota-

se som e movimento dentro do poema, ruídos provocados por uma ebulição de

elementos apresentados a fim de dar ao texto escrito, através de um diálogo

escenificado, o rumor existente nos cantos de origem quéchua.

Del movimiento de los ríos y las piedras, de la danza de árboles y montañas, de su movimiento, bebemos sangre poderosa, cada vez más fuerte. ¡Nos estamos levantando, por tu causa, recordando tu nombre y tu muerte! [...] ¡Escucha la vibración de mi cuerpo! Escucha el frío de mi sangre, su temblor helado. Escucha sobre el árbol de lambras el canto de la paloma abandonada,

nunca amada; el llanto dulce de los no caudalosos ríos, de los manantiales que

suavemente brotan al mundo. ¡Somos aún, vivimos!

(ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 227).

Na citação acima é possível perceber que “dança” e “música” são produzidas

por elementos naturais – ríos, piedras, árboles – que figuram, desta forma, a relação

do homem andino com o universo que o cerca e que forma parte, assim como ele,

do cosmo de referência andino.

Valendo-se de modos de uma cultura claramente enraizada nos moldes

tradicionais andinos e suas práticas orais, Arguedas reelabora a musicalidade

característica dos cantos indígenas em seu poema. O animismo traz à cena a

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existência de elementos divinos do universo indígena, apresentando-os como a

principal ligação entre o universo quéchua e seus elementos significativos.

Seguindo esta linha, William Rowe afirma que se deve “[...] pensar la música

en otra dimensión: hay que reflexionar sobre ella como ordenamiento de las

percepciones y contribución a la producción de un lugar de enunciación”. Este lugar

de enunciação ao qual se refere Rowe – ou lugar de produção de signos – supera o

espaço humano. Aqui humano e não-humano significam em igual medida.

[...] en un alarido que lleva la vibración de la sangre, el regocijo casi primitivo del hombre cuando cosecha directamente de la tierra; por eso ese canto sale como brotado de la entraña misma de los campos, el aire lo lleva al cielo, lo arrastra por las sombras, lo mezcla con las nubes, lo reproduce con extraña fuerza en los roquedales y bajo la fronda de los grandes eucaliptus. (ARGUEDAS apud ROWE, 1996, p.43).

Formado em uma “tradição oral” pelo contato íntimo que teve com o quéchua

desde a infância, o autor utiliza em sua poesia elementos que derivam de uma

“literatura oral” quéchua e que a partir de algumas formas poéticas tradicionais, ele

reelabora em um conteúdo contemporâneo e ainda pulsante na cultura andina.

Desta forma, notamos em Arguedas um esforço evidente por animar a palavra, como

apontou Martín Lienhard. Assim, a musicalidade enquanto elemento figurativo de um

“cosmo social”, não significa um objeto de representação, mas sim o lugar da

enunciação próprio dos conteúdos andinos.

En la tarde llegamos a la cima de las cordilleras que cercan al Apurímac. “Dios que habla” significa el nombre de este río. […]. El sonido del Apurímac alcanza las cumbres, difusamente, desde el abismo, como un rumor de espacio. (ARGUEDAS, 1983, t. III, pp. 17-18).

Com a profunda transformação promovida pelos processos de modernização

e o grande crescimento demográfico, as comunidades não têm alternativa a não ser

a de emigrar. Desta forma, os ayllus e toda a organização tradicional pré-hispânica

são transtornados por estes deslocamentos, convertendo a sociedade em um caos.

A migração, como assinala Arguedas, é empreendida com temor, “el indio de las

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comunidades desintegradas está obligado a salir para siempre”. (ARGUEDAS, 1962-

1963, p. 20).

Nos arrebataron nuestras tierras. Nuestras ovejitas se alimentan con las hojas secas que el viento arrastra, que ni el viento quiere; nuestra única vaca lame agonizante la poca sal de la tierra. Serpiente Dios, padre nuestro: en su tiempo éramos aún dueños, comuneros. Ahora, como perro que huye de la muerte, corremos hacia los valles calientes. Nos hemos extendido en miles de pueblos ajenos, aves

desvaporidas. (ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 229, grifo meu).

Parodoxalmente, a separação dos povos foi o que possibilitou, através da

migração, que o povo quéchua retomasse as quatro partes de Tawantinsuyo.

Al inmenso pueblo de los señores hemos llegado y lo estamos

removiendo. […] con nuestro regocijo no extinguido [...] con nuestros himnos antiguos y nuevos, los estamos envolviendo. […] Estamos juntos; nos hemos congregado pueblo por pueblo, nombre por nombre, y estamos apretando a esa inmensa ciudad que nos odiaba, que nos despreciaba como a excremento de caballos. Hemos de convertirla en pueblo de hombres que entonen los himnos de las cuatros regiones de nuestro mundo, en ciudad feliz.

(ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 17. Grifo meu).

O poema “A nuestro padre creador Tupac Amaru” foi escrito em um momento

de grandes migrações da população quéchua andina, dentro destes cenários

modernos que ameaçam dissolver e desintegrar a sociedade andina. Por tal motivo,

William Rowe, em Ensayos Arguedianos, enfatiza que a escolha pelo uso das

formas épicas pré-hispânicas na construção poética em detrimento das formas de

canção mestiça possa estar vinculada ao momento histórico-social da produção do

poeta peruano e que poderia ser interpretada, a partir das palavras de Cornejo

Polar, como “una variante relativizada [...] que asume la añoranza como perspectiva

posible de un sentido que también puede ser -y es- triunfalista”, pois “triunfo y

nostalgia no son términos contradictorios en el discurso del migrante” (CORNEJO

POLAR, 1996, p. 840).

Para o sujeito migrante a sobrevivência do ontem – como nostalgia – e o hoje

– como possibilidade de triunfo – não são contraditórios. Do mesmo modo que em

“Katatay” há uma interpelação ao dios andino como retomada dos mitos pré-

hispânicos e uma exortação e ânimo à população andina através de seus elementos

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tradicionais – o canto e a dança –, em “... Tupac Amaru” notamos a presença destes

discursos opostos que se tornam possíveis dentro da perspectiva da estética do

migrante.

Não se trata, como afirma Rowe, de repetir formas surgidas em circunstâncias

históricas distantes, mas de ressemantizá-las em um contexto moderno.

Ao longo de toda sua obra, Arguedas buscará um meio de instalar a cultura

tradicional dentro da modernidade, sem negar a existência desta, mas também sem

aculturar-se definitivamente. Não substitui sua cultura pela do colonizador, mas sim

assimila rasgos novos e os recria como forma de expressão de uma cultura que é ao

mesmo tempo distinta da sua, mas também distinta da ocidental, assegurando,

assim, a possibilidade de expressar sua tradição de forma singular.

A pergunta pelo lugar da divindade –“¿En dónde estás?”– alude a outra

manifestação que Arguedas definiu como “la soledad cósmica”. O antropólogo

afirmava que

En la música quechua y en el rostro de sus creadores se cree percibir la expresión de un dolor más profundo, considerado como “típico de raza” y, por tanto, incurable. Se trata, por supuesto, del “impasible” rostro que los indios muestran a los observadores extraños; en cuanto al dolor llamado “cósmico”, porque en sus formas de expresión se percibe como el lamento de la propia naturaleza silente y terriblemente quebrada de los Andes peruanos, este “dolor” existe y el adjetivo que lleva consigo no es gratuito. (ARGUEDAS, 1962-1963, p. 16).

Este sentimento, presente no poema “A nuestro padre creador...”, que o autor

define como “dolor profundo”, “describe en términos precisos la desintegración del

mundo antiguo peruano”, como afirmou o próprio Arguedas (1962-1963, p. 17). Esta

“soledad” aparecerá para o indígena, após a Colonização, como um “sentimiento

corrosivo y desgarrante”, como um mal do individualismo e da modernidade.

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3.3. Dialógos entre tradição e modernidade em José María Arguedas

Por isso, quem quiser ver em profundidade, tem de aceitar o contraditório.

Antonio Candido

Literatura e Sociedade

Nesta subseção trataremos de dois poemas de José María Arguedas:

“Llamado a algunos doctores” e “Oda al Jet”. Os poemas compõem a obra Katatay –

organizada por Sybila Arredondo e publicada em 1972 – e sugerem a abordagem de

questões surgidas a partir da convivência entre duas cosmovisões opostas –

andina/ocidental; tradição/modernidade – dentro da sociedade andina peruana, na

segunda metade do século XX.

O poema “Llamado a algunos doctores”, escrito em julho de 1966 e publicado

por primeira vez no Suplemento Dominical de El Comercio, está dedicado a Carlos

Cueto Fernandini e John Murra. O poema corresponde à resposta de Arguedas aos

ataques recebidos contra seu romance Todas las sangres (1964) em uma mesa

redonda realizada no Instituto de Estudios Peruanos, em Lima em 1965. Neste

poema, a voz enunciativa interpela aqueles a quem denomina, ironicamente,

“doctores”.

Abaixo reproduzimos os poemas integralmente para melhor compreensão da

análise adiante.

Llamado a algunos doctores

Dicen que no sabemos nada, que somos el atraso, que nos han de cambiar la cabeza por otra mejor. Dicen que nuestro corazón tampoco conviene a los tiempos, que está lleno de temores, de lágrimas,

como el de la calandria, como el de un toro grande al que se degüella, que por eso es impertinente.

Dicen que algunos doctores afirman eso de nosotros, doctores que se reproducen en nuestra misma

tierra, que aquí engordan o que se vuelven amarillos.

Que estén hablando, pues: que estén cotorreando, si eso les gusta.

¿De qué están hechos mis sesos? ¿De qué está hecha la carne de mi corazón?

Saca tu larga vista, tus mejores anteojos. Mira, si puedes.

Quinientas flores de papas distintas crecen en los balcones de los abismos que tus ojos no alcanzan, sobre la

tierra en que la noche y el oro, la plata y el día se mezclan. Esas quinientas flores son mis sesos, mi carne.

¿Por qué se ha detenido un instante el sol, por qué ha desaparecido la sombra en todas partes, doctor?

Pon en marcha tu helicóptero y sube aquí, si puedes. Las plumas de los cóndores, de los pequeños pájaros se

han convertido en arco iris y alumbran.

Las cien flores de la quinua que sembré en las cumbres hierven al sol en colores, en flor se ha convertido la

negra ala del cóndor y de las aves pequeñas.

Es el mediodía; estoy junto a las montañas sagradas: la gran nieve con lampos amarillos, con manchas rojizas,

lanzan su luz a los cielos.

En esta fría tierra, siembro quinua de cien colores, de cien clases, de semilla poderosa. Los cien colores son

también mi alma, mis infaltables ojos.

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Yo, aleteando amor, sacaré de tus sesos las piedras idiotas que te han hundido. El sonido de los precipicios que

nadie alcanza, la luz de la nieve rojiza que, espantando, brilla en las cumbres. El jugo feliz de los millares de

yerba, de millares de raíces que piensan y saben, derramaré tu sangre, en la niña de tus ojos.

El latido de miradas de gusanos que guardan tierra y luz; el vocerío de los insectos voladores, te los enseñaré

hermano, haré que los entiendas.

Las lágrimas de las aves que cantan, su pecho que acaricia igual que la aurora, haré que las sientas y las oigas.

Ninguna máquina difícil hizo lo que sé, lo que sufro, lo que gozar del mundo gozo.

Sobre la tierra, desde la nieve que rompe los huesos hasta el fuego de las quebradas, delante del cielo, con su

voluntad y con mis fuerzas hicimos todo eso.

No huyas de mí, doctor, acércate. Mírame bien, reconóceme. ¿Hasta cuándo he de esperarte?

Acércate a mí; levántame hasta la cabina de tu helicóptero. Yo te invitaré el licor de mil savias diferentes; la vida

de mil plantas que cultivé en siglos, desde el pie de las nieves hasta los bosques donde tienen sus guaridas

los osos salvajes.

Curaré tu fatiga que a veces te nubla como bala de plomo, te recrearé con la luz de las cien flores de quinua, con

la imagen de su danza al soplo de los vientos; con el pequeño corazón de la calandria en que se retrata el

mundo, te refrescaré con el agua limpia que canta y que yo arranco de la pared de los abismos que templan

con su sombra a nuestras criaturas.

¿Trabajaré siglos de años y meses para que alguien que no me conoce y a quien no conozco me corte la cabeza

con una máquina pequeña?

No, hermanito mío. No ayudes a afilar esa máquina contra mí, acércate, deja que te conozca, mira

detenidamente mi rostro, mis venas, el viento que va de mi tierra a la tuya es el mismo; el mismo viento que

respiramos; la tierra en que tus máquinas, tus libros y tus flores cuentas, baja de la mía, mejorada,

amansada.

Que afilen cuchillos, que hagan tronar zurriagos; que amasen barro para desfigurar nuestros rostros; que todo

eso hagan.

No tememos a la muerte; durante siglos hemos ahogado a la muerte con nuestra sangre, la hemos hecho danzar

en caminos conocidos y no conocidos.

Sabemos que pretenden desfigurar nuestros rostros con barro; mostrarnos así, desfigurados, ante nuestros hijos

para que ellos nos maten.

No sabemos bien qué ha de suceder. Que camine la muerte hacia nosotros; que vengan esos hombres a

quienes no conocemos. Los esperaremos en guardia, somos hijos del padre de todos los ríos, del padre de

todas las montañas ¿es que ya no vale nada el mundo, hermanito doctor?

No contestes que no vale. Más grande que mi fuerza en miles de años aprendida; que los músculos de mi cuello

en miles de meses; en miles de años fortalecidos, es la vida, la eterna vida mía, el mundo que no descansa,

que crea sin fatiga; que pare y forma como el tiempo, sin fin y sin precipicio.

(ARGUEDAS, 1983, t. V, pp. 251-257)

Já o poema “Oda al Jet”, escrito em 1965 e publicado pela primeira vez na

revista Zona Franca (Caracas) no mesmo ano, figura o contato da modernidade -

advinda do universo ocidental - e da tradição andina. No poema, a voz da

enunciação fala desde a perspectiva do próprio “jet”, expressando, deste modo, uma

mudança no universo andino.

Oda al Jet

¡Abuelo mío! Estoy en el Mundo de Arriba,

sobre los dioses mayores y menores, conocidos y no conocidos.

¿Qué es esto? Dios es hombre, el hombre es dios.

He aquí que los ríos, los adorados, que partían el mundo, se han convertido en el más delgado hilo que

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teje la araña.

El hombre es dios.

¿Dónde está el cóndor, dónde están las águilas?

Invisibles como los insectos alados se han perdido en el aire o entre las cosas ignoradas.

Dios Padre, Dios Hijo, Dios Espíritu Santo: no os encuentro, ya no sois, he llegado al estadio que vuestros

sacerdotes, y los antiguos, llamaron el Mundo de Arriba.

En ese mundo estoy, sentado, más cómodamente que en ningún sitio, sobre un lomo de fuego,

hierro encendido, blanquísimo, hecho por la mano del hombre, pez de viento.

Sí. "Jet" es su nombre.

Las escamas de oro de todos los mares y los ríos no alcanzarían a brillar como él brilla.

El temible filo de nieve de las sagradas montañas, allá abajo resplandece, pequeñito; se ha convertido en

lastimoso carámbano.

El hombre es dios. Yo soy hombre. Él hizo este incontable pez golondrina de viento.

¡Gracias, hombre! No hijo del Dios Padre sino su hacedor.

Gracias, padre mío, mi contemporáneo. Nadie sabe hasta que mundos lanzarás tu flecha.

Hombre dios: mueve este pez golondrina para que tu sangre creadora se ilumine más a cada hora.

¡El infierno existe! No dirijas este fuego volador, señor de los señores, hacia el mundo donde se cuece la carne

humana;

que esta golodrina de oro de los cielos fecunde otros dioses en tu corazón, cada día.

Bajo el suave, el infinito seno del "jet"; más tierra, más hombre, más paloma, más gloria me siento; en

todas las flores del mundo se han convertido mi pecho, mi rostro y mis manos.

Mis pecados, mis manchas, se evaporan, mi cuerpo vuelve a la dulce infancia.

Hombre, Señor, tú hiciste a Dios para alcanzarlo, ¿o para qué otra cosa?

Para alcanzarlo lo creaste y lo persigues ya de cerca.

Cuidado con el filo de este "jet", más penetrante que las agujas de hielo terrenas, te rompa los ojos por la

mitad;

es demasiado fuego, demasiado poderoso, demasiado libre, este inmenso pájaro de nieve.

Cuidado que tu hijo te envíe el latido de la muerte; la mariposa que nació de tu mano creadora puede

convertir tu cabeza en cenizas.

Oye, hombre, ¡entiéndeme!

Bajo el pecho del "Jet" mis ojos se han convertido en los ojos del águila pequeña a quien le es

mostrado por primera vez el mundo.

No siento temor. Mi sangre está alcanzando a las estrellas;

los astros son mi sangre.

No te dejes matar por ningún astro, por este pez celeste, por este dios de los ríos que tus manos eternas

fabricaron.

Dios Padre, Dios Hijo, Dios Espíritu Santo, Dioses Montañas, Dios Inkarrí: mi pecho arde. Vosotros sois

yo, yo soy vosotros, en el inagotable furor de este "Jet".

No bajes a la tierra.

Sigue alzándote, vuela más todavía, hasta llegar al confín de los mundos que se multiplican hirviendo,

eternamente. Móntate sobre ellos, dios gloria, dios hombre.

Al Dios que te hacía nacer y te mataba lo has matado ya, semjante mío, hombre de la tierra.

¡Ya no morirás!

He aquí que el "jet" da vueltas, movido por la respiración de los dioses de dioses que existieron, desde el

comienzo hasta el fin que nadie sabe ni conoce.

(ARGUEDAS, 1983, t. V, pp. 239-243)

Como mencionado anteriormente, o poema “Llamado a algunos doctores”

seria a resposta aos ataques que o autor sofrera em uma Mesa Redonda. Arguedas

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sofreu duras críticas a respeito de sua última obra Todas las sangres que, segundo

Salazar Bondy, “exhibe una doble doctrina, una doble concepción del Perú, que

resulta en cierto modo contradictoria, […] por una parte, la novela presenta una

concepción mágica de la naturaleza, una concepción indígena, [por otra] está su

concepción racional, científica de la sociedad” (SALAZAR BONDY apud

QUINTANILLA PONCE, 2000).

Para um letrado resulta difícil pensar a literatura oral em outra linha que não

seja a de uma cultura arcaica e atrasada. Isso se deve claramente ao pensamento

ocidentalizado e iluminista que vê a prática oral como a etapa mais primitiva de

expressão verbal humana. Portanto, para a visão letrada da sociedade, a cultura oral

não é compatível com a modernidade, sendo entendida como fonte de atraso, sem

possibilidades de transformação e renovação.

Além disso, há uma forte tendência a entender a tradição oral como uma

mera repetição de formas já fixadas, sem passar por processos de mudanças em

seu discurso “literário”; porém, como demonstra Arguedas em seus poemas, a figura

do “migrante” ofereceu inovações significativas no campo das práticas orais, que,

como afirma Martín Lienhard, “no es en absoluto la repetición de la [producción

literária oral] del siglo XVI ni de la del siglo XVIII”. Reformulando alguns aspectos

tradicionais, novos grupos foram (re)criando, a partir de suas próprias motivações e

experiências, uma produção de textos orais.

Os poemas em quéchua escritos por Arguedas escapam dos problemas

campestres ou rurais. Ao lermos a obra Katatay nos deparamos com poemas que se

voltam aos problemas de sua contemporaneidade: a temática da Revolução Cubana

em “A Cuba”; e a guerra do Vietnã – que pôs em confronto os Estados Unidos de um

lado, aliados ao Vietnã do Sul (República do Vietnã), e do outro, o Vietnã do Norte

(República Democrática do Vietnã) – em “Ofrenda al pueblo de Vietnam”. Pode-se

dizer, desta forma, que os poemas quéchuas arguedianos mantêm suas “raízes”

fincadas nas bases da sociedade andina – en su Pachamama – mas com inovações

que se estendem aos problemas que eram atuais no Peru, na América latina e no

mundo da década de 1960.

Em “Llamado a algunos Doctores”, há a convocação por parte de Arguedas

daqueles que designa ironicamente como “doctores”. O “llamado”, como invocação

oral, polemiza acerca da relação entre a cultura tradicional, considerada arcaizante

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pela cultura letrada, com a modernização e a visão de “algunos doctores” sobre o

estatuto “dual” –modernidade/tradição– do Peru da década de 1960.

Dicen que ya no sabemos nada, que somos el atraso, que nos han de cambiar la cabeza por otra mejor. Dicen que nuestro corazón tampoco conviene a los tiempos, que está lleno de temores, de lágrimas, como el de la calandria, como el de un toro grande al que se degüella; que por eso es impertinente; Dicen que algunos doctores afirman eso de nosotros; doctores que se reproducen en nuestra misma tierra, que aquí engordan o que se vuelven amarillos.

(ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 253).

O poema assume um tom bastante irônico e Arguedas sugere que os

“doctores” dos quais ele fala são justamente aqueles que “conociendo la cultura

andina, niegan sus posibilidades futuras” (Quintanilla Ponce, 2000, s.i.p). São

letrados que não alcançaram a sensibilidade necessária para compreender a obra

arguediana dentro de sua complexidade, que não possuem a sutileza para entender

suas ficções, estas que não são sinônimos de atraso, mas sim maneiras de não se

submeter – ou submeter sua cultura – a meras imitações das leis metropolitanas que

a cidade letrada faz circular ou impõe em detrimento das formas tradicionais,

menosprezadas socialmente.

José María Arguedas, neste sentido, indica que não seria difícil pensar que

estes letrados – que julgam a cultura tradicional andina como “el atraso” –

estivessem olhando para este universo com “sus largavistas”, desde outra

perspectiva, do centro da cidade letrada para a periferia, sem “acercarse”, sem

enxergar o que estava “a la orilla de los ríos”:

“¿Qué hay a la orilla de esos ríos que tú no conoces, doctor? Saca tu largavista, tus mejores anteojos. Mira, si puedes. Quinientas flores de papas distintas crecen en los balcones de los abismos que tus ojos no alcanzan, sobre la tierra en que la noche y el oro, la plata y el día se mezclan. Esas quinientas flores son mis sesos, mi carne.

(ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 253).

Para Arguedas era fundamental, para compreender o papel do intelectual

moderno na formação de uma nova cultura nacional peruana, reintegrar-se ao

mundo indígena. Desta forma, o imaginário deste autor, estaria “hecho” da matéria

mesma que compõe este mundo, este cosmo indígena.

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¿De qué están hechos mis sesos? ¿De qué está hecha la carne de mi corazón? Los ríos corren bramando en la profundidad. El oro y la noche, la plata y la noche temible forman las rocas, las paredes de los abismos en que el río suena; de esa roca están hechos mi mente, mi corazón, mis dedos.

(ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 253).

Na citação acima nota-se a cosmogonia andina, em que humano e não-

humano não se dissociam. Não há fatores hierarquizantes entre estas criaturas, pois

ambas são feitas da mesma matéria. Arguedas segue a linha de Mariátegui ao

pensar que “no hay una contradicción entre una concepción mágica y una

concepción racionalista; sino que cada personaje ve el mundo de acuerdo con su

formación humana” (ARGUEDAS apud ROCHABRÚN, 2011, p.29). Arguedas

possuía uma formação não só andina como acadêmica, o que lhe dava ferramentas

para produzir uma reflexão na qual não estivesse ausente a sensibilidade, que

permitisse unir o mágico ao científico porque, como ele mesmo afirma, “los niños y

los locos dibujan maravillosamente. Pero la palabra no. Requiere de mucho tino, de

un gran temple, de búsqueda hasta el infinito” (ARGUEDAS apud ROCHABRÚN,

2011, p. 29). Neste sentido, Arguedas crê que para falar do indígena ou do mestiço

não seria paradoxal pensar, articulando magia e ciência, tradição e modernidade,

poesia escrita e produção oral.

Os poemas arguedianos são escritos; logo, formam parte do universo letrado.

Entretanto, pelas peculiaridades da linguagem oral presentes nos poemas, pode-se

“escutar” os sons produzidos dentro de cada um deles. Os poemas parecem haver

sido compostos para primeiro serem escutados e somente depois lidos, como

formas de “poemas cantados”. O canto quéchua – a tradição oral – parece

apresentar-se na cena do poema como representação dos diálogos. A profusão de

sons provocados pela aliteração e as imagens que surgem ao longo do poema,

revelam a filiação com as práticas tradicionais andinas.

Yo, aleteando amor, sacaré de tus sesos las piedras idiotas que te

han hundido. El sonido de los precipicios que nadie alcanza, la luz de la nieve rojiza que, espantando, brilla en las cumbres; el jugo feliz de millares de yerbas, de millares de raíces que piensan y saben, derramaré en tu sangre, en la niña de tus ojos.

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El latido de miríadas de gusanos que guardan tierra y luz; el vocerío de los insectos voladores, te los enseñaré, hermano, haré que los

entiendas. (ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 255).

Arguedas expressa, através da natureza, ultrapassando o limite do

metafórico, seu desejo de demonstrar que a realidade destes índios e mestiços não

está formada unicamente “de la miseria como ahora la denominan desde el centro

de estas ciudades, quienes no tienen ojos para ver lo profundo y perciben solamente

la basura y el mal olor”. Para compreender este cosmo social é necessário “beber

del jugo feliz de millares de yerbas”, é necessário escutar e entender “el vocerío de

los insectos voladores”, ser fiel ao ayllu e suas tradições, assimilar as grandes ideias

e técnicas da cultura ocidental; não imitar e sim (re)criar.

O que anima o poema de Arguedas “Llamado a algunos Doctores” é

justamente a tarefa que a voz que entoa o poema nomeia como “aproximar-se” para

reconhecer “que el viento que va de mi tierra a la tuya es el mismo; el mismo viento

respiramos”.

¡No huyas de mí, doctor, acércate! Mírame bien, reconóceme ¿Hasta cuando he de esperarte? (ARGUEDAS, 1983, t. V, 255).

Como bem aponta William Rowe, o manejo do tempo nos poemas

arguedianos é bastante complexo. Os poemas aludem a uma temporalidade muito

extensa que remonta aos tempos pré-colombianos e alcança os dias atuais. Em

“Llamado a algunos Doctores”, há uma mescla de elementos e temporalidades.

¿Trabajaré siglos de años y meses para que alguien que no me conoce y a quien no conozco me corte la cabeza con una máquina pequeña? (ARGUEDAS, 1983, t. V, p.255).

Na citação acima, o poeta faz referência à morte de Atahualpa, como afirma

Rowe, – me corte la cabeza – indicando a entrada de elementos presentes na

memória da Conquista; ao passo que a “máquina pequeña”, responsável pela morte

do Inca, se refere no poema não à guilhotina, mas sim à máquina moderna da

tecnologia, associada ao espaço letrado dos senhores “doctores”. É a cidade letrada

aqui que representa o futuro – trabajaré – dentro do conceito temporal de realidade

futura. Se por um lado se alude a um fato histórico realizado – a morte de Atahualpa

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–, por outro, esta “ciudad de las letras” aparece como uma possibilidade no novo

universo anunciado pelos “señores doctores”, como transição de um mundo a outro.

Este resgate memorial em que se mesclam o antigo e o moderno, a tradição e

a modernidade, surge de modo análogo no poema “Oda al jet”. O poema se inicia

com a retomada de um passado, figurada no “abuelo”, como resgate destes

antepassados presentes na sociedade andina. Nos primeiros versos do poema a

inversão da ordem cósmica surge como temática central. O homem passa a ocupar

o lugar da divindade, graças ao uso da máquina que o leva acima dos rios e dioses.

¡Abuelo mío! Estoy en el Mundo de Arriba, sobre los dioses mayores y menores, conocidos y no conocidos. ¿Qué es esto? Dios es hombre, el hombre es dios. He aquí que los poderosos ríos, los adorados, que partían el mundo,

se han convertido en el más delgado hilo que teje la araña.

El hombre es dios. (Arguedas, 1983, t. V, p. 241).

Nota-se que a cultura andina, desde a perspectiva “del Jet”, indica uma

transformação do/no universo. “Los dioses” parecem desaparecer desde o “mundo

de arriba” e o homem passa a ocupar o lugar divino.

O poema sugere que a modernidade, metaforizada “en el jet”, faz

desaparecer o universo mágico-religioso andino.

¿Dónde está el cóndor, dónde están las águilas? Invisibles como los insectos alados se han perdido en el aire o entre las cosas ignoradas.

(ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 241).

Entretanto, a presença do imaginário religioso ocidental também é

desfigurada por esta modernidade. E o Deus, que justificava todos os feitos de um

passado de violência cultural por parte do colonizador, agora desaparece. O “Mundo

de Arriba”, como a redenção dos pecados na fé cristã ocidental, é alcançado pelo

próprio homem, que neste momento ocupa o lugar da divindade.

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Dios Padre, Dios Hijo, Dios Espíritu Santo: no os encuentro, ya no sois; he llegado al estadio que vuestros sacerdotes, y los antiguos, llamaron el Mundo de Arriba.

En ese mundo estoy, sentado más cómodamente que en ningún sitio, sobre un lomo de fuego,

hierro encendido, blanquísimo, hecho por la mano del hombre, pez de viento. Sí. “Jet” es su nombre.

(ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 241).

No poema, “el jet” está construído desde a própria linguagem – “Jet” es su

nombre – como criação deste “homem-deus”, mas também pelo próprio som

onomatopaico que sugere o ruído da máquina moderna exaltada no poema.

No poema, o homem é posto como “el Dios” e vai além: o homem passa a ser

“el hacedor del dios”.

El hombre es dios. Yo soy hombre. Él hizo este incontable pez golondrina de viento.

¡Gracias, hombre! No hijo del Dios Padre sino su hacedor. Gracias, padre mío, mi contemporáneo. Nadie sabe hasta qué mundos

lanzarás tu flecha. Hombre dios: mueve este pez golondrina para que tu sangre creadora se

ilumine más a cada hora. ¡El infierno existe! No dirijas este fuego volador, señor de los señores, hacia el

mundo donde se cuece la carne humana; que esta golondrina de oro de los cielos fecunde otros dioses en tu corazón,

cada día. (ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 243).

De maneira análoga ao poema “Katatay”, onde há a exortação à criação do

“homem novo” – Crea tú, padre mío, vida; / hombre, semejante, mío, querido – em

“Oda al Jet” também há o desejo de um novo ciclo com a criação deste “homem

novo”. Na citação acima, esta aspiração é sugerida ao postular-se que o homem,

“hacedor de dioses”, possa fecundar “otros dioses”. Ou seja, o homem, agora

“hacedor de otros dioses” e logo de outros homens também, deveria construir a si

mesmo sob esta nova condição.

Em “Oda al Jet”, o espaço da enunciação é o próprio “jet”: espaço móvel no

qual predomina o fluxo de significados provenientes de ambas as culturas, ocidental

e andina, caracterizando, desta maneira, este sujeito migrante, em constante

movência. Arguedas, neste poema, coloca a linguagem utópica dentro da

modernidade, não como algo inalcançável, mas sim como um desafio de enfrentar a

modernização cultural presente na cultura andina.

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O sujeito andino aparece como consciente de que é possível olhar para o

indígena desde outra perspectiva: a moderna. O andino não é posto como temeroso,

mas sim como maravilhado com as possibilidades que a modernidade pode trazer-

lhe, admirando sua potencialidade criativa.

Bajo el pecho del "Jet" mis ojos se han convertido en los ojos del águila pequeña a quien le es mostrado por primera vez el mundo.

No siento temor. Mi sangre está alcanzando a las estrellas; los astros son mi sangre. No te dejes matar por ningún astro, por este pez celeste, por este dios de los

ríos que tus manos eternas fabricaron. Dios Padre, Dios Hijo, dios Espíritu Santo, Dioses Montañas, Dios Inkarrí: mi

pecho arde. Vosotros sois yo, yo soy vosotros, en el inagotable furor de este "Jet".

No bajes a la tierra. Sigue alzándote, vuela más todavía, hasta llegar al confín de los mundos que

se multiplican hirviendo, eternamente. Móntate sobre ellos, dios gloria, dios hombre. Al Dios que te hacía nacer y te mataba lo has matado ya, semejante mío,

hombre de la tierra. ¡Ya no morirás! He aquí que el "jet" da vueltas, movido por la respiración de los dioses de

dioses que existieron, desde el comienzo hasta el fin que nadie sabe ni conoce.

(ARGUEDAS, 1983, t. V, p. 243).

“Oda al Jet” se constrói como um grande canto à modernidade e esta

construção não se faz contraditória em Arguedas, uma vez que o autor nunca

negara a modernização, mas sim postulara sempre um meio de instalar a cultura

andina dentro do processo de modernização. Não substituir sua cultura pela do

colonizador, mas sim assimilar características novas e recriá-las como forma de

expressão de uma cultura que é ao mesmo tempo distinta da sua, mas também

distinta da ocidental, assegurando, assim, a possibilidade de expressar sua tradição

de forma singular.

Desta forma, pode-se notar que nos poemas analisados, Arguedas postula

que tradição e modernidade não devem ser entendidas como oposições binárias

excludentes. Ao contrário, o escritor peruano formula um discurso em que apresenta

a possibilidade do tradicional recriar-se dentro do moderno, alcançando novas

perspectivas em um discurso cada vez mais amplo e plural, como a própria cultura

não só andina, mas latino-americana.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Levando em consideração a música como elemento cultural constitutivo da

cosmovisão andina, analisou-se nesta investigação a musicalidade e as práticas

orais discursivas dentro da obra poética Katatay de José María Arguedas.

A pesquisa discorre acerca das formas tradicionais andinas – música, canto e

dança – como lugar de enunciação na produção artístico-literária de Arguedas que,

através de seus conhecimentos sobre a música andina, sistematizados em boa parte

por seus trabalhos etnográficos, dá relevante espaço a esta especialmente dentro de

sua obra poética.

Ao longo da investigação utilizou-se como metodologia a leitura crítica e

análise, tanto da bibliografia de base (corpus de ficção e poesia) como da bibliografia

de referência (literatura teórico-crítica). Para a análise dos componentes discursivos

pelos quais se expressa o conflito cultural na área andina nos poemas reunidos em

Katatay se recorreu aos estudos de Antonio Cornejo Polar, Américo Ferrari, Martin

Lienhard e William Rowe, entre outros. Além disso, para os aspectos relativos à

antrolopologia, se lançou mão da leitura dos trabalhos específicos de Mercedes

López Baralt e John Murra, bem como dos trabalhos de Zevallos Aguilar e Luis

Millones para os aspectos relativos mais especificamente à musicalidade no

universo cultural andino.

Neste sentido, analisou-se na primeira seção a importância da música no

contexto andino e como esta prática carrega em si a representação da sociedade

quéchua-andina. Além disso, mostrou-se como a música, enquanto prática

discursiva, se converteu, após a Colonização, em forma de resistência à entrada da

cultura espanhola.

Para José María Arguedas, a expressão de um universo tradicionalmente oral

dentro de uma sociedade atravessada pela escrita, transforma-se em uma busca

não só estética, mas, e sobretudo, simbólica. Desta forma, a música surge como

possibilidade de expressão do universo andino, enquanto lugar de criação e

interpretação da cosmovisão andina.

Deste modo, nota-se que Arguedas privilegia a música não só em sua

construção literária, como também o fato de que ela se constitui em tema de reflexão

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em seus ensaios etnográficos. O estudo da música em José María Arguedas,

segundo William Rowe, representa o ordenamento das percepções e a contribuição

à produção de um lugar de enunciação.

Entende-se, desta maneira, que Arguedas recorre aos elementos tradicionais

andinos como elementos figurativos do universo quéchua, incluindo a presença de

cantos e danças em suas obras, não como tópicos, mas como significação da

tradição oral dentro deste universo cultural.

Na subseção seguinte tratou-se de observar o papel da tradução dentro da

obra de José María Arguedas. O autor assume a necessidade de encontrar um

“estilo” literário que fosse capaz de expressar o universo andino fora dos moldes

estereotipados. Neste sentido, a linguagem surge como o primeiro choque com o

qual se depara. A escolha do idioma em que estariam escritos seus relatos e

poemas corrobora a preocupação do antropólogo e poeta peruano em encontrar

uma forma narrativa não só pelo aspecto formal ou estético, mas sobretudo pela

significação política e ideológica, como afirmou a autora Dora Sales, compreendida

em toda escolha de uma perspectiva cultural.

Desta forma, Arguedas assume, em um primeiro momento, o castelhano

como molde formal para seus relatos; entretanto, o autor sinaliza que para que este

fosse o molde justo, deveria ser transformado, forçando-o a adaptar-se à sintaxe

quéchua. A busca por um idioma como expressão do universo andino acompanhará

o escritor ao longo de toda sua trajetória e será a música a que, em muitos

momentos, mediará a relação de Arguedas com seu universo de referência.

A música enquanto tema de reflexão ocupou não só o campo literário e

etnográfico de José María Arguedas, mas também o desenvolvimento de diversos

projetos a partir dos cargos públicos que o autor ocupou, desempenhando funções

em instituições culturais e de pesquisa estatais. Arguedas enxergou na música a

oportunidade de abordar o conflito histórico-social peruano desde outra perspectiva.

Foi através dela, bem como dos cantos e das danças de tradição quéchua, que o

poeta peruano explorou e expressou as possibilidades de produção de um lugar de

enunciação pautado nas bases tradicionais andinas.

Arguedas, enquanto funcionário do Estado, apoiou a diversos músicos recém-

chegados a Lima, iniciando, desta maneira, a abertura de um mercado de música

andina, encabeçada por um grupo de intérpretes e conjuntos que chegava de

diversas regiões do Peru. Percebe-se, desta forma, que José María Arguedas se

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dedicou à música utilizando-a como fio condutor para “narrar uma sociedade” desde

seu interior, integrando espaços divididos historicamente e manifestando toda a

capacidade de sentir a emoção estética dos discursos populares.

No que tange à análise dos poemas, abordou-se como ponto de partida o

poema “Katatay” observando as inovações levadas a cabo por Arguedas enquanto

expressão do discurso tradicional andino atravessado pela cultura ocidental. Neste

sentido, focou-se no caráter dual e (des)integrador na cultura andina que desde o

título do poema – Katatay (tremor) – sugeriria a desestabilização no universo andino

frente à entrada de uma cultura estranha, indicando assim, a ameaça de

desintegração na cultura tradicional, anterior à invasão europeia. Arguedas postula o

temor à perda da coletividade representativa dos ayllus enquanto constituinte de um

mesmo universo cultural.

Já no poema “A nuestro padre creador Tupac Amaru”, há uma vindicação do

caráter simbólico do termo Kamaq enquanto ordenador do cosmo andino. Esta

reivindicação sugere o estabelecimento de uma nova ordem, distinta daquela

imposta pelos moldes da cultura ocidental moderna. Nota-se no poema que a figura

central – Tupac Amaru – possui atributos divinos de tradição andina, mas também

características cristão-ocidentais, demonstrando que a presença do imaginário

ocidental está incorporada aos elementos tradicionais andinos, como traço desta

nova cultura.

Tanto em “Katatay” como em “A nuestro padre creador Tupac Amaru”, a

música e a dança se apresentam de forma característica, proporcionando ao

leitor/ouvinte um texto que antes de ser lido deve ser ouvido. Arguedas cria nos

poemas movimentos e ruídos que escenificam o diálogo dando-lhe som e

movimento.

Na subseção dedicada aos poemas “Oda al Jet” e “Llamado a algunos

doctores”, notamos a presença de um diálogo mais contundente com os eventos

contemporâneos à produção dos mesmos. Em “Llamado a algunos doctores”

Arguedas polemiza a relação entre a cultura tradicional, vista pela cultura letrada

como arcaica e atrasada, e a modernização no Peru da década de 1960. Em “Oda al

Jet” a postulação entre tradição e modernidade também surge como tema principal

na reflexão que propõe o poema. Nele a modernidade se metaforiza no “jet”,

transformando o universo mágico-religioso andino. O espaço da enunciação em

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“Oda al Jet” é o próprio “Jet”, simbolizando este lugar movente no qual o migrante

andino se encontra instalado.

Em todos os poemas a presença da dualidade tradição/modernidade está

posta em cena como explicitação da problemática dentro do universo peruano

contemporâneo. As formas tradicionais andinas surgem como expressão intrínseca

desta sociedade e revelam o poder das tradições andinas e como estas podem se

ressemantizar, assumindo novas funcionalidades dentro da sociedade peruana

moderna.

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ANEXOS - Poemas extraídos da obra Katatay de José María Arguedas. Obras Completas, tomo V.

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