a mula e o preconceito

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Rosenilson e sua mula, de grande estimação, moravam em uma cidadezinha do interior de Minas. Era uma dessas cidades que, mesmo sendo muito pequena, tinha a uma praça central, um pequeno botequim e sua Matriz. A igreja era muito bem “paroquiada” pelo Padre Roselli, um franciscano recém chegado da Itália, e que ainda não tinha domínio total do Português. A Matriz não era grande, mas a cidade também não, nem o botequim da praça onde Rosenilson e sua companheira freqüentavam, religiosamente, todos os domingos, enquanto aconteciam as celebrações do Padre. Como se estivessem fazendo parte de alguma cerimônia, ao final da missa, Rosenilson e sua companheira deixavam o boteco e atravessam a praça central, atraindo a atenção dos fiéis. Ela mancava um pouco e, como o movimento gerado era exótico, Rosenilson providenciou um acessório para a companheira. Ela trazia sempre em seu lombo um baixeiro bordado, muito bem feito com a seguinte inscrição: “não importa que a mula é manca, eu quero é rosetar”. Pensamento que Rosenilson havia concebido A Mula e o Preconceito

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Page 1: A mula e o preconceito

Rosenilson e sua mula, de grande estimação, moravam em uma cidadezinha do interior de Minas. Era uma dessas cidades que, mesmo sendo muito pequena, tinha a uma praça central, um pequeno botequim e sua Matriz.

A igreja era muito bem “paroquiada” pelo Padre Roselli, um franciscano recém chegado da Itália, e que ainda não tinha domínio total do Português. A Matriz não era grande, mas a cidade também não, nem o botequim da praça onde Rosenilson e sua companheira freqüentavam, religiosamente, todos os domingos, enquanto aconteciam as celebrações do Padre.

Como se estivessem fazendo parte de alguma cerimônia, ao final da missa, Rosenilson e sua companheira deixavam o boteco e atravessam a praça central, atraindo a atenção dos fiéis. Ela mancava um pouco e, como o movimento gerado era exótico, Rosenilson providenciou um acessório para a companheira.

Ela trazia sempre em seu lombo um baixeiro bordado, muito bem feito com a seguinte inscrição: “não importa que a mula é manca, eu quero é rosetar”. Pensamento que Rosenilson havia concebido pelo seu passado como vaqueiro: ofício onde os desafios do dia-a-dia têm que ser vencidos com determinação, seguindo-se sempre em frente, independente das dificuldades que apareçam.

Ele não entendia o porque, mas percebia uma certa reação negativa que a síntese de sua filosofia particular provocam, principalmente no rebanho de Dom Roselli. As senhoras ficavam inconformadas com os dizeres e pelo fato de a cena ser repetia a cada domingo.

A Mula e o Preconceito

Page 2: A mula e o preconceito

Depois da terceira vez seguida, algumas beatas foram exigir providências ao responsável pela igreja. Não seria apropriado dizer que ele ficou de saia curta, mas o padre também não conseguia entender porque a frase incomodava tanto as beatas.

Mas, preocupado com o seu rebanho, resolveu ter uma conversa com Rosenilson. Argumentou sobre a repercussão dos acontecimentos, as implicações e o verdadeiro trauma que estava causando na comunidade religiosa. O padre adotou uma postura compreensiva, confirmando que todos possuem liberdade para pensar, embora sejam responsáveis por todos os seus atos, dentro do livre arbítrio outorgado por Deus.

Rosenilson ficou perplexo. Argumentou que a frase era, na verdade, recurso de auto-ajuda, um estímulo para ele e sua companheira; os dois já calejados pelas provas do mundo mas sempre seguindo em frente. Explicou para o Padre que rosetar, na terra onde nasceu, significa usar esporas para trotar, galopar ou estimular cavalos e mulas.

Ponderou, pediu, insistiu, mas o Padre Roselli não abriu mão de uma providência rápida para o problema, já para a próxima missa. Rosenilson, por sua vez, não disse nem que sim nem que não.

Homem forte, porém humilde, refletiu e pensou a semana inteira. Não era de seu feitio desagradar ninguém, mas a sua mulinha ficava bonita demais da conta com aquela alegoria de algibeira.

No domingo seguinte, o padre não escondeu o seu nervosismo. A igreja estava lotada, o botequim da praça também e lá estava Ronilson com sua inseparável companheira.

Quando a missa acabou o padre nem esperou pelos cumprimentos, como de costume. Foi para a porta da igreja observar se a já famosa mula e seu dono estavam a caminho, torcendo para que a situação, constrangedora para muitos, não se perpetuasse. Para o desespero de Dom Roselli a primeira pessoa avistada fora do botequim era Rosenilson, ele e sua companheira.

Mas quando a dupla passou em frente à igreja todos os receios do padre se desfizeram. A mula não trazia mais a antiga inscrição. Trazia uma nova, com os seguintes dizeres: “Continuo querendo”.