a morte de deus e uma nova possibilidade de expressÃo do sagrado em gianni vattimo

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Marcos Paulo Nogueira da Silva A MORTE DE DEUS E UMA NOVA POSSIBILIDADE DE EXPRESSÃO DO SAGRADO EM GIANNI VATTIMO: considerações a partir de Depois da cristandade, por um cristianismo não religioso. Trabalho apresentado à disciplina de Niilismo e Religião, do Mestrado em Ciências da Religião, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, orientado pelo professor doutor Flávio Augusto Senra Ribeiro.

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Page 1: A MORTE DE DEUS E UMA NOVA POSSIBILIDADE DE EXPRESSÃO DO SAGRADO EM GIANNI VATTIMO

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Marcos Paulo Nogueira da Silva

A MORTE DE DEUS E UMA NOVA POSSIBILIDADE DE EXPRESSÃO DO SAGRADO EM GIANNI VATTIMO:

considerações a partir de Depois da cristandade, por um cristianismo não religioso.

Trabalho apresentado à disciplina de Niilismo e Religião, do Mestrado em Ciências da Religião, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, orientado pelo professor doutor Flávio Augusto Senra Ribeiro.

Belo Horizonte2009

Page 2: A MORTE DE DEUS E UMA NOVA POSSIBILIDADE DE EXPRESSÃO DO SAGRADO EM GIANNI VATTIMO

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 3

2. A VOLTA DA RELIGIÃO 4

3. A MORTE DE DEUS E O FIM DO ATEÍSMO NA FILOSOFIA

7

3.1. A ténica científica e a fragmentação da realidade 9

4. KENOSIS E O ENFRAQUECIMENTO DAS ESTRUTURAS DO SER

11

4.1. Cristo ou a verdade: a luta entre o “resíduo grego” e a novidade cristã

12

4. CONCLUSÃO 15

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 16

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1. INTRODUÇÃO

Para Vattimo pelo menos dois “fatos” são evidentes na cultura Ocidental atual

representando eles mesmos uma tarefa para o pensamento: de um lado o renascimento

da religião na cultura comum e de outro o fim das razões filosóficas para o ateísmo.

O primeiro capítulo desse trabalho pretende situar a primeira parte dessa afirmativa, ou

seja, a volta da religião na sociedade contemporânea e as razões principais que

induziram ou propiciaram tal retorno.

O tema do segundo capítulo será o fim das razões filosóficas para o ateísmo. Vattimo

entende que as bases que sustentavam o ateísmo filosófico desmantelaram-se com o fim

das metanarrativas e isso desabona uma afirmação rígida de ateísmo. Além disso, esse

capítulo mostra também que tanto o advento da técnica moderna como a dissolução da

metafísica são resultantes da mensagem cristã no Ocidente.

O terceiro e último capítulo tenta mostrar que a filosofia de cunho nietzschiana e

heideggeriana tem sua inspiração na vocação para o enfraquecimento presente na

proposta da mensagem cristã original que, na visão de Vattimo, é a kenosis paulina.

Nenhum dos temas tratados nessa pesquisa será levado a exaustão. Primeiro por causa

da natureza mesma da pesquisa e segundo por conta de espaço. A base da pesquisa será

o pensamento de Vattimo em seus escritos mais tardios, especialmente a obra Depois da

cristandade: por um cristianismo não religioso.

Não se objetiva abrir linhas de diálogo com outros autores e obras que tratam sobre o

assunto, a não ser aqueles que o fazem partindo da leitura vattimiana. No

desenvolvimento da pesquisa pretende-se mostrar a centralidade da kenosis no

pensamento de Vattimo e como esta, relacionada com a morte de Deus e ao fim da

metafísica, possibilita novas formas de expressão religiosa na contemporaneidade, além

de desabonar o ateísmo na filosofia.

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2. A VOLTA DA RELIGIÃO

A experiência de retorno é um fenômeno típico da experiência religiosa. Essa foi uma

tese apresentada por Vattimo na Ilha de Capri no ano de 1994 (VATTIMO, 2000, p.

92). Naquela ocasião ele escreveu um artigo intitulado Vestígio do vestígio (2000) no

qual traçou brevemente alguns aspectos do seu pensamento religioso, desenvolvido

posteriormente e principalmente nas obras Acreditar em acreditar (1998) e Depois da

cristandade: por um cristianismo não religioso (2004).

Nessa última obra a teoria do retorno da religião perpassa de maneira discreta os seus

capítulos-artigos1, mas mantém sua importância, pois trata-se de uma premissa da qual

depende boa parte de sua construção filosófico-religiosa. A volta do religioso configura-

se como uma “escuta renovada do ensinamento da Igreja, como necessidade de

verdades definitivas, como desejo de reencontrar a própria identidade, também e acima

de tudo, com relação à transcendência (VATTIMO, 2004, p. 110).2 Vattimo entende que

muitos anunciaram o fim da religião ou a sua irrelevância. A contemporaneidade seria,

para esses, uma época pós-cristã ou pós-religiosa. O “pós”, nesse sentido, significaria

uma ruptura, um desligamento radical que implicaria numa atitude que nada tem a ver

com o período anterior. Essa perspectiva, entretanto, não se sustenta na medida em que

se observa a presença da religião como “fato” ou fenômeno social.

Esse renascimento da religião contém explicações múltiplas, mas, em última análise,

suas razões podem ser associadas às mesmas circunstâncias que deram início ao fim da

metafísica (VATTIMO, 2004, pp. 27, 106-107), a saber:

1. A queda do eurocentrismo colonial que deu vida própria para muitas nações;

2. A queda do colonialismo ocidental que permitiu uma interação cultural de etnias

no interior das nações da Europa;

1 Isso porque esse livro, a exemplo da obra O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna, é uma compilação de artigos, apresentações em aulas, congressos e seminários que foram publicados em revistas ou obras conjuntas. O tema do retorno da religião está presente mais especificamente nos capítulos 1 (O Deus que morreu) e 6 (Morte ou transfiguração da religião).2 Esse retorno da religião apresenta-se, num primeiro momento, como uma renovada busca de novos fundamentos que substituam os não bem sucedidos fundamentos da sociedade tecno-científica.

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3. A atitude decisiva do Papa João Paulo II na queda do comunismo do Leste

europeu;

4. O envolvimento cada vez menor da Igreja Romana na política italiana;

5. A necessidade humana de identidade frente a uma sociedade industrial e de

consumo;

6. A gravidade dos problemas provocados pelo desenvolvimento das ciências da

vida, que, ao se mostrarem insolúveis em vários aspectos, induziu as pessoas a

buscarem verdades mais profundas e essenciais.

Este último aspecto, na opinião de Vattimo, está no âmago do fim da metafísica e da

volta do religioso. Para ele o desapontamento provocado pela falência da estabilidade

do pensamento técnico-científico abriu uma lacuna na qual a religião achou sua

oportunidade de retorno. Posto doutra forma, a descredibilidade nas verdades do mundo

da técnica chamou de volta as propostas de sentido da religião.3

Com a expressão “Que me importa”, Nietzsche teria sugerido que a ciência moderna

traria uma forma nova de pensar na qual as coisas últimas não teriam lugar ou não

seriam relevantes. Ao que parece, as questões relativas à “salvação da alma” seriam

gradualmente ignoradas pelo pensamento científico até tornarem-se plenamente

abolidas. Vattimo, entretanto, coloca que “os limites a que chegou hoje a ciência

experimental em muitos terrenos parecem desmentir esta profecia: justamente os

cientistas se encontram, atualmente, com frequência, confrontados com as questões

últimas”. (VATTIMO, 2004, p. 107).

Havia uma expectativa ou mesmo uma esperança de que os avanços científicos e

tecnológicos levariam o homem moderno a um tipo de maturidade na qual a religião

seria vista como algo pertencente à infância intelectual. A modernidade científica

parecia ser incompatível com a experiência religiosa e essa deveria ser expurgada na

medida em que as ciências se estabelecessem. Mas, muito embora ocorresse o

3 Uma obra que expõe de maneira singular esta entrada da religião, em especial do cristianismo, na lacuna aberta pela falta de respostas da sociedade técnica é Cristo e a cultura, de Richard Niebuhr (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967).

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estabelecimento das ciências modernas e dos avanços tecnólogicos, em especial no

campo da biologia e medicina, a religião não se esvaiu.

De todo modo, tanto os aspectos teóricos como os de caráter histórico-social da volta da

religião, dependem da dissolução da metafísica, ou seja, de qualquer forma de descrição

absoluta e definitiva das estruturas do ser. É nesse contexto que se torna possível aos

filósofos falar de Deus, de anjos, de salvação etc.; e, de forma semelhante, é no

ambiente marcadamente plural das sociedades pós-modernas que se permite que as

religiões ressurjam novamente (VATTIMO, 2004, p. 28).

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3. A MORTE DE DEUS E O FIM DO ATEÍSMO NA FILOSOFIA

Embora possa parecer antagônico, na concepção de Vattimo, foi exatamente com a

morte de Deus e com o fim da metafísica que se abriu uma nova porta para a

experiência religiosa na pós-modernidade (VATTIMO, 2004, p. 9).

Se Deus morreu, ou seja, se a filosofia tomou consciência de não postular, com absoluta certeza, um fundamento definitivo, então, também não existe mais a “necessidade” de um ateísmo filosófico. Somente uma filosofia “absoluta” pode se sentir autorizada a negar a experiência religiosa (VATTIMO, 2004, p. 12).

O Deus que morreu em Nietzsche foi aquele que nasceu da religião cristã e do

platonismo cujo legado foi a afirmação de um dualismo intransponível entre o mundo

do ser e o mundo do devir (ROCHA, 2008, p. 2). Já desde a década de 50 e 60 os

proponentes da Teologia da Morte de Deus viam no anúncio nietzschiano uma benção

para a teologia e para a espiritualidade (ALTIZER, 1967, p. 41)4, na medida em que

liberta seus discursos das amarras platônicas que criaram um discurso excludente. Com

a morte de Deus perde-se o centro gravitacional e o lugar estável e seguro no qual

repousava a noção rígida da realidade.

O enfraquecimento do pensamento levou à negação das metanarrativas filosóficas e

teológicas o que, na opinião de Vattimo, anulou o ateísmo e, por conseqüência,

anunciou uma nova possibilidade de se falar de Deus. À luz da experiência pós-

moderna, exatamente o fim da noção de uma estrutura metafísica do real, trouxe de

volta a chance de se crer em Deus (VATTIMO, 2004, p. 12).

No plano filosófico a religião tem marcado presença, mas de forma discreta. Questões

teológicas são deliberadamente colocadas de lado ou tratadas de forma preconceituosa.

Mesmo nas filosofias que acenam com certa simpatia para a causa religiosa, Deus é

concebido apenas como “uma diversidade e de um vazio que não se pode deixar de

admitir, e que, contudo, não fala positivamente ao pensamento filosófico e sobre o qual

o pensamento filosófico não fala” (VATTIMO, 2004, p. 109).5

4 Entre os quais se situam Gabriel Vahanian, Paul van Buren e Thomas Altizer, além do Willian Hamilton.5 Nesse momento Vattimo se refere principalmente a Lévinas e a Ricoeur.

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Todavia, Vattimo entende que depois do fim da metafísica e das grandes

metanarrativas6, a filosofia perdeu as razões para qualquer forma de ateísmo7 explícito,

ainda que seja notório o silêncio da filosofia quanto a discussão sobre Deus, a

experiência religiosa ou mesmo à fé enquanto tal. Ele é contundente quando se refere ao

ateísmo filosófico ao afirmar que “Os filósofos hoje parecem ser, em sua maioria,

irreligiosos ou anti-religiosos somente por inércia e não em função de fortes razões

teóricas.” (VATTIMO, 2004, p. 27; cf. tb. p. 109). As grandes estruturas sobre as quais

repousavam as razões filosóficas para o ateísmo ruíram e, por conseguinte, não faz

sentido uma forma atéia de filosofia ou uma filosofia que se recusa a pensar acerca de

Deus e da fé:

O fato é que, com o crepúsculo das grandes metanarrativas [...] também perderam o valor todas as razões fortes para um ateísmo filosófico. Se não é mais válida a metanarrativa do positivismo, não se pode mais pensar que Deus não existe porque este não é um fato demonstrável cientificamente. Se não é mais válida a metanarrativa do historicismo hegeliano ou marxista, não se pode mais pensar que Deus não existe porque a fé nele corresponde a uma fase superada da história da evolução humana, ou é uma representação ideológica funcional ao domínio (VATTIMO, 2004, p. 109. Cf. tb. p. 27).

O anúncio da morte de Deus em Nietzsche, talvez, esteja na base desse ateísmo

filosófico que não escuta sobre a fé e nada fala sobre Deus. Contudo, o caráter desse

anúncio representa uma das várias faces paradoxais do pensamento nietzschiano. Nesse

aspecto em especial, Vattimo sugere que, dado à sua paradoxalidade, e talvez à falta de

maior empenho na análise da morte de Deus, muitos filósofos ainda não

compreenderam que o Deus que morre em Nietzsche é o Deus moral, ou “o Deus

fundamento, o Deus ato puro de Aristóteles, o Deus supremo arquiteto da racionalidade

iluminista” (VATTIMO, 2004, p. 110).

Ainda que se desconsiderasse tais razões filosóficas (ou seja, o fim das grandes

metanarrativas e o fim da metafísica) “o renascimento da religião na cultura

contemporânea não pode deixar de representar um problema para uma filosofia que se

habituou a não mais considerar relevante a questão de Deus” (VATTIMO, 2004, p.

110).

6 Termo que Vattimo usa se reportando a Lyotard.7 Ateísmo em Vattimo tem mais o sentido de negação da existência de Deus.

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3.1. A ténica científica e a fragmentação da realidade

De acordo com Vattimo, um dos elementos principais que levou à superação da

metafísica, a saber, o advento da técnica científica,8 é o mesmo que criou as condições

de vida na modernidade e na tarda-modernidade. O pensamento, por força da ciência

experimental, ocupa-se mais com as questões próximas, embora os resultados múltiplos

não se deixem reduzir a um único fundamento. A sociedade é cada vez menos rígida e,

ao mesmo tempo, mais complexa e ramificada. A política assume uma postura menos

direta e central e a subjetividade individual torna-se ainda mais provisória. Todo esse

conjunto que compõe a atualidade “exclui qualquer possibilidade de uma interpretação

em termos de fundamento” (VATTIMO, 2004, p. 113-114). A ordem unitária do

mundo, nesse contexto, tornou-se inconcebível e as condições de existências mudaram

profundamente. O pensamento, por sua vez, viu-se obrigado a oferecer interpretações,

ainda que inevitavelmente comprometidas com esse mesmo processo. Essas

interpretações gravitam em torno da certeza de sua natureza histórica e da não

necessidade de oferecer qualquer descrição objetiva (VATTIMO, 2004, p. 24). Isso se

dá porque o anúncio da morte de Deus em Nietzsche e o fim da metafísica em

Heidegger abalaram a antiga esperança racionalista de se chegar ao conhecimento das

coisas tal qual elas são e atingiu vitalmente o discurso de uma verdade-fundamento

sobre a qual repousaria toda a realidade. Nessa perspectiva o conceito de verdade-

fundamento, pautado na noção de progresso e unidade da história, é visto como

instrumento de poder e controle a serviço dos dominadores do mundo social, político e

também religioso (VATTIMO, 2004, p. 25-26). Qualquer assertiva rígida, forte,

universal e totalizante, deve ser olhada com suspeita sempre a procura de a quem ela se

presta ou quem dela se beneficia.

Seguindo Arnold Gehlen, Vattimo sugere que a técnica tornou possível a manipulação

da natureza, mas depois passou a manipular também o indivíduo. Ela, num primeiro

momento era puramente funcional e se prestava principalmente para tornar o trabalho

manual menos penoso. Nos fins da modernidade e na pós-modernidade ela se tornou

8 Ao contrário de ver a técnica (Ge-Stell) como oposta à tradição metafísica baseada no humanismo, Vattimo entende que a técnica representa o apogeu da metafísica, o que impede a contraposição e uma com a outra (VATTIMO, 2007, p. 28).

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tecnologia da informação. Nessa função ela fragmentou a realidade ao mostrá-la como

sendo “um jogo de interpretações” (VATTIMO, 2004, p. 66). Através, principalmente,

da mídia de massa e das empresas de publicidade, o gosto e a escola individuais

tornaram-se produtos do mercado e, consequentemente, a sociedade tornou-se sociedade

de consumo na qual toda a realidade foi reduzida “a uma experiência de imagens (tudo

se vê em monitores de TV)” (VATTIMO, 2007, p. XIII).

Esses elementos, além de constituírem a modernidade enquanto tal, são também a

verdadeira base da dissolução da metafísica. A ciência técnica abriu caminho para o fim

da metafísica e tanto um como outro são produtos da ação da mensagem cristã no

Ocidente

A ontologia hermenêutica [...] e o fim da metafísica da presença como êxito da ciência técnica moderna resultaram da ação da mensagem cristã na história da civilização ocidental; são interpretações secularizantes desta mensagem, mas em um sentido positivo-construtivo do termo (VATTIMO, 2004, p. 85-86)

Seja como for, esse movimento tecno-científico, que cultminou na fragmentação da

realidade, é concebido por Vattimo como “processos de enfraquecimento” e, conforme

ele coloca, neste quadro “o pensamento se conscientiza de que não existem razões fortes

para o ateísmo e se abre novamente para a possibilidade da religião” (VATTIMO, 2004,

p. 114).

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4. A KENOSIS E O ENFRAQUECIMENTO DAS ESTRUTURAS DO

SER

Para Vattimo o pensamento que se liberta das amarras da metafísica e das grandes

metanarrativas é herdeiro da tradição judaico-cristã.9 Mais do que isto, ele é também a

consumação destinal da própria mensagem cristã que deve ser entendida a partir de seu

ponto central, a saber, o rebaixamento de Deus naquilo que Paulo chamou de kenosis.

A emancipação da história através da consumação de suas bases sólidas é uma releitura

filosófica da doutrina paulina da kenosis. É a colocação em termos filosóficos daquilo

que a Bíblia já havia posto em termos míticos, ou, de forma bem objetiva, a descrição

bíblica do esvaziamento de Deus lança os fundamentos para o enfraquecimento do ser

presente na filosofia. (VATTIMO, 2004, p. 115; Cf. Tb. VATTIMO, 2004, p. 105-106).

A metáfora da encarnação é, para Vattimo, a plataforma sobre a qual toda a filosofia

contemporânea deve se pôr para pensar a questão de si própria. A encarnação de Deus

aparece primeiro no texto paulino10 que trata da kenosis e depois transfigura-se no

pensamento pós-metafísico de Heidegger que trata do Ereignis (VATTIMO, 2000, p.

105-106).

Dessa forma tanto a morte de Deus em Nietzsche como a superação da metafísica em

Heidegger devem ser lidas no contexto da tradição cristã kenótica. A encarnação do

filho de Deus é um equivalente ou um pré-anúncio da ontologia do debilitamento. É

nesse ambiente, bem diferente do contexto platônico-cristão tradicional, que aparecem

os vestígios e os traços de um Deus que renasce com a mesma vocação para o

enfraquecimento de que fala a filosofia de cunho heideggeriano (VATTIMO, 1998, p.

27-30).

9 Até mesmo a noção de história e progresso modernos desenvolveram-se a partir da secularização da noção cristã de história. A história da salvação tornou-se busca de perfeição humana no mundo e depois em história do progresso. Essa leitura também vem de Arnold Gehlen e, segundo Vattimo, aparece de forma modificada em Heidegger quando ele trata acerca da não historicidade do mundo técnico. Cf. VATTIMO, 2007, p. XIII.10 Filipenses 2,5-11.

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É dessa constação que vem a afirmativa de Vattimo de que o destino da metafísica é o

niilismo e o enfraquecimento do ser é uma transcrição da doutrina cristã da encarnação

do filho de Deus (VATTIMO, 1998, p. 26).11

4.1. Cristo ou a verdade: a luta entre o “resíduo grego” e a

novidade cristã

Na kenosis o Deus todo-poderoso assume a fraqueza como possibilidade. Ela, na

condição de expressão do sagrado por meio do enfraquecimento, é “o lugar pós-

moderno por excelência, tanto para a teologia como para a espiritualidade cristãs. Ela é

o princípio de uma nova ontologia: de uma ontologia do enfraquecimento” (ROCHA,

2008, p. 13). Por que, então, o cristianismo baseou sua pregação em afirmações

objetivas, rígidas e totalizantes, uma vez que sua mensagem original era a da

emancipação por meio do enfraquecimento?

O pensamento Ocidental, por força da influência grega, sobretudo platônica, que

concebe a realidade em termos objetivos, se impos à mensagem cristã originária que

apontava na direção contrária, ou seja, para o enfraquecimento das estruturas rígidas

sobre as quais a sociedade grega estava posta (VATTIMO, 2004, p. 134; cf. tb. PIRES,

2008, p. 169).

Esta vinculação com o modelo grego de pensar levou os pais da igreja e depois todo o

pensamento medieval, a identificar Cristo com a verdade. Com isso surge a noção de

uma verdade básica a partir da qual o pensar só se dava em termos descritvos e

objetivos.

A verdade com a qual Cristo fora identificado tem um sentido complexo no pensamento

de Vattimo. Ela está em estreita relação com a forma metafísica do pensar ocidental e só

assume contornos próximos daquela que seria a proposta da mensagem cristã inaugural

na pós-modernidade, sobretudo a partir de Nietzsche e Heidegger. É por isso que em

11 O niilismo de Vattimo é o abandono da noção de verdade objetiva em favor de uma perspectiva que concebe a verdade como produto da ação daqueles que detém o poder. Cf. VATTIMO, 2004, p. 132.

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Vattimo a pós-modernidade representa “uma possibilidade de existência diferente para o

homem” (VATTIMO, 2007, p. XVII).

A experiência pós-moderna da verdade apresenta-se como experiência estética, o que,

todavia, “nada tem a ver com a redução da experiência da verdade a emoções e

sentimentos ‘subjetivos’, mas, antes, leva a reconhecer o vínculo da verdade com [...] a

‘substancialidade’ da transmissão histórica (VATTIMO, 2007, p. XIX). A morte do

Deus moral abriu o caminho para a verdade do cristianismo orginário, ou seja, para a

verdade que não se constrói na obediência, mas na amizade:

A morte do Deus "moral" é o fim da possibilidade de preferirmos a verdade à amizade, porque esta morte significa que não existe nenhuma verdade "objetiva" ontológica etc., que possa ter a pretensão de não ser simplesmente a expressão de uma amizade, ou de uma vontade de potência, de uma ligação subjetiva [...] Amizade, vontade, ou, ainda, em termos pascalianos, razões do coração (VATTIMO, 2004, p. 131).

A verdade cristã, portanto, configura-se, na opinião de Vattimo, como uma espécie de

acordo baseado na amizade. Esta volatilização da verdade tem seu paradigma na

encarnação e morte de Cristo que seria, também, uma metáfora da naturalização da

imagem de Deus. “Em que sentido todo este consumar-se da verdade objetiva na

expressão de diferentes amizades – e, portanto, nas “razões do coração”- pode ser

considerado como efeito da morte de Cristo [...]?” (VATTIMO, 2004, p. 132).

Wihelm Dilthey é vocado para ajudar a responder a esta pergunta. Vattimo entende que

a história do pensamento Ocidental apresentada por Dilthey12 serve como base para

situar a dissolução da metafísica e, consequentemente, essa perda da noção de verdade

objetiva. Conforme ele coloca, Dilthey vê a história da metafísica européia em dois

planos: o dos metafísicos antigos e dos modernos. Este último estaria destinado a

dissolver-se, o que teria passado pela interioridade de Agostinho, pela crítica de Kant e

culminando no historicismo de Dilthey. O platonismo, na visão de Dilthey, concebe a

verdade como forma visível, como um "dado" exterior colocado frente aos olhos do

espírito de maneira objetiva. Nessa perspectiva o foco recai sobre o intelecto que

concebe e organiza a realidade. O cristianismo, por sua vez, mudou a direção do

pensamento do dado exterior para a interioridade humana. Com isso ele tira a primazia

do intelecto e o posta na vontade (VATTIMO, 2004, p. 133). O cristianismo, dentro

12 Que teria influenciado profundamente a Heidegger.

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desse pensamento, seria o pano de fundo para a mutação da metafísica de cunho

platônico para uma metafísica de cunho kantiano (p. VATTIMO, 2004 136-137).

Essa luta entre o “resíduo objetivo” da metafísica grega e a novidade representada pelo

movimento inaugural da mensagem cristã é, segundo Vattimo, uma tentativa de

estabelecer a verdade em vez amizade. Amizade essa que vem conseguindo algumas

vitórias desde Kant, mas, sobretudo, em Nietzsche e Heidegger. Contudo, segundo

Vattimo, mesmo estes dois últimos não levaram a cabo, de forma radical, a proposta da

mensagem cristã paradigmatizada na kenosis: “Nietzsche e Heidegger [...] permanecem,

eles também, prisioneiros do objetivismo grego e se recusam a levar até as últimas

consequências as implicações da revolução antimetafísica cristã (VATTIMO, 2004, p.

138.)”. Implicações estas que “não podem ser plenamente desenvolvidas sem o recurso

à caridade (VATTIMO, 2004, p. 138.)”. Tal “caridade”, porém, não é algo bem claro no

pensamento de Vattimo. Ele esboça uma explicação que, de todo modo, permanece

vaga:

A pregação cristã da caridade não é apenas, ou não é de forma alguma, uma consequência ética, aliás edificante, da revelação da verdade "objetiva” com relação à nossa natureza de filhos de Deus. Ela é, muito mais, um apelo que provém do fato histórico da encarnação [...] e que nos fala de um destino niilista do ser, de uma teleologia do enfraquecimento de toda rigidez "ôntica" em favor de um ser onto-lógico — ou seja, do Verbum, Logos, palavra trocada no Gesprãch que, enquanto seres históricos, somos. Verdade como caritas e ser como Ereignis, evento, são dois aspectos estreitamente interligados (VATTIMO, 2004 p. 140).

As sentenças de Vattimo, no que se refere à verdade-amizade-caridade abre uma

reflexão importante, a saber, que a tradição cristã originária pretendia não a imposição

de uma verdade objetiva, mas de uma verdade de troca baseada na amizade-caridade.

Entretanto, a explicitação do que seria, no final das contas, essa amizade-caridade não

acontece. Assim, não fica claro como seria a transposição da perspectiva objetivista

grega para verdade-amizade da novidade cristã. Isso, conseqüentemente, confere um

caráter impreciso às conclusões de Vattimo, como ele mesmo reconhece (VATTIMO,

2004, p. 140)

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CONCLUSÃO

O retorno da religião está ligado mais especificamente a condições histórico-sociais

como o fim das barreiras étnicas e culturais na Europa, a fragmentação da realidade

ocasionadas pela mídia de massa e ainda pelo desespero causado pela possibilidade de

catástrofes mundiais resultantes do fracasso das “verdades” do mundo tecno-científico.

Já o ateísmo filosófico perde força porque a religião, enquanto “fato” social presente, é

algo do qual o pensamento não pode deixar de notar e refletir. A tecnização da

existência não conseguiu, como se esperava, abolir a religião e esta se mostra cada vez

mais revigorada apresentando-se como uma experiência típica da pós-modernidade.

Some-se a isso, principalmente, o fim das grandes metanarrativas, como o positivismo

científico e o historicismo hegeliano e marxista, sobre os quais repousavam as

principais razões fortes para o ateísmo filosófico.

Vattimo estabeleceu uma ligação vital entre o enfraquecimento das estruturas fortes da

metafísica com a tradição judaico-cristã, especialmente na doutrina da kenosis. A partir

dessa ele dirá que a vocação da metafísica para a dissolução de suas bases fortes e o

avento do mundo técnico como catalisador e apogeu dessa dissolução, são resultantes da

ação da mensagem cristã na história ocidental.

Embora pouco esclarecido, a verdade metafísica totalizante e unificadora da história

assume em Vattimo um caráter consensual baseado na amizade cuja definição também é

imprecisa. O que se percebe, à luz da noção de enfraquecimento que balisa suas idéias

acerca da kenosis e do enfraquecimento das estruturas do ser, é que a verdade da

mensagem cristã original tem um caráter provisório, histórico e se estabelece na

comunidade que, em dado tempo e sob determinada circunstância, a toma como válida,

mantendo sempre aberta a porta para a sua reconfiguração temporal.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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