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A superação da metafísica e o fim das verdades eternas Entrevista com Ernildo Stein Há trinta anos morria o autor de Sein und Zeit (Ser e tempo), publicada em 1927, ou seja, há quase oitenta anos. Martin Heidegger foi, nas palavras do Prof. Dr. Ernildo Stein, “o pensador de vulto que, na filosofia, problematizou de modo mais profundo a modernidade", pois, segundo Ernildo Stein, “com a modernidade, surgiu a questão da subjetividade e com isso a questão do método. O ser humano está livre das amarras da tradição e da história passada, para traçar o seu caminho e os seus projetos". Assim, “passa a con- siderar a natureza e os recursos do Planeta como transformáveis e manipuláveis sem limite. Heideg- ger vê nisso o surgimento de uma espécie de com- pulsão para a transformação. Ele costuma chamar a irresistível tendência de o ser humano transfor- mar tudo de dispositivo (Gestell)". Dessa forma, Heidegger, ainda na primeira metade do século XX, levanta “o problema daquilo que hoje deno- minamos globalização". Em entrevista exclusiva por e-mail para a IHU On-Line, em 19 de junho de 2006, o filósofo Ernildo Stein destacou que, já no final dos anos 1930, a filosofia de Heidegger problematizava o que hoje entendemos por globalização. Além dis- so, continua Stein, esse filósofo “libertou o ser hu- mano como ser no mundo de qualquer amarra metafísica, deixando como tarefa sua, a instaura- ção da verdade.” E completa: “Estamos sós no Planeta e nele somos um acontecimento que se es- panta consigo mesmo.” Graduado em Filosofia e bacharel em Direito pela UFRGS, Stein é doutor em Filosofia pela mes- ma instituição com a tese Compreensão e finitude – estrutura e movimento da interrogação Heideg- geriana. Cursou pós-doutorado nas universidades de Erlangen, Heidelberg, Freiburg, Frankfurt, Munster e Wüppertal, todas na Alemanha. Atual- mente, leciona no Departamento de Filosofia da PUCRS. Stein publicou dezenas de livros, entre eles Seminário sobre a verdade: lições introdu- tórias para a leitura do parágrafo 44 de Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1993; A caminho de uma fundamentação pós-metafísica. Por- to Alegre: Edipucrs, 1997; Diferença e metafísi- ca. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000; Compreen- são e finitude. Ijuí: Unijuí, 2001; Introdução ao pensamento de Martin Heidegger. Porto Alegre: Edipucrs, 2002; Mundo Vivido: Das vi- cissitudes e dos usos de um conceito da fe- nomenologia. Porto Alegre: Edipucrs, 2004; Seis estudos sobre Ser e Tempo. 3. ed. Petró- polis: Vozes, 2005. Confira a seguir, na íntegra, a entrevista com o filósofo. IHU On-Line – Quais são os aspectos mais atuais na filosofia heideggeriana? Qual é a importância de Heidegger como um intér- prete da pós-modernidade? Ernildo Stein – O filósofo é, sem dúvida, o pen- sador de vulto que, na filosofia, problematizou de modo mais profundo a modernidade. Até que ponto suas idéias sempre acertaram é uma outra questão. Não podemos, no entanto, negar a im- portância de sua teoria de que, com a moderni- dade, surgiu a questão da subjetividade e com isso a questão do método. O ser humano está li- vre das amarras da tradição e da história passa- da, para traçar o seu caminho e os seus projetos. Por isso, passa a considerar a natureza e os recur- sos do Planeta como transformáveis e manipulá- veis sem limite. Heidegger vê nisso o surgimento de uma espécie de compulsão para a transforma- 4

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A superação da metafísica e o fim das verdades eternas

Entrevista com Ernildo Stein

Há trinta anos morria o autor de Sein undZeit (Ser e tempo), publicada em 1927, ou seja,há quase oitenta anos. Martin Heidegger foi, naspalavras do Prof. Dr. Ernildo Stein, “o pensadorde vulto que, na filosofia, problematizou de modomais profundo a modernidade", pois, segundoErnildo Stein, “com a modernidade, surgiu aquestão da subjetividade e com isso a questão dométodo. O ser humano está livre das amarras datradição e da história passada, para traçar o seucaminho e os seus projetos". Assim, “passa a con-siderar a natureza e os recursos do Planeta comotransformáveis e manipuláveis sem limite. Heideg-ger vê nisso o surgimento de uma espécie de com-pulsão para a transformação. Ele costuma chamara irresistível tendência de o ser humano transfor-mar tudo de dispositivo (Gestell)". Dessa forma,Heidegger, ainda na primeira metade do séculoXX, levanta “o problema daquilo que hoje deno-minamos globalização".

Em entrevista exclusiva por e-mail para aIHU On-Line, em 19 de junho de 2006, o filósofoErnildo Stein destacou que, já no final dos anos1930, a filosofia de Heidegger problematizava oque hoje entendemos por globalização. Além dis-so, continua Stein, esse filósofo “libertou o ser hu-mano como ser no mundo de qualquer amarrametafísica, deixando como tarefa sua, a instaura-ção da verdade.” E completa: “Estamos sós noPlaneta e nele somos um acontecimento que se es-panta consigo mesmo.”

Graduado em Filosofia e bacharel em Direitopela UFRGS, Stein é doutor em Filosofia pela mes-ma instituição com a tese Compreensão e finitude– estrutura e movimento da interrogação Heideg-geriana. Cursou pós-doutorado nas universidadesde Erlangen, Heidelberg, Freiburg, Frankfurt,

Munster e Wüppertal, todas na Alemanha. Atual-mente, leciona no Departamento de Filosofia daPUCRS.

Stein publicou dezenas de livros, entre elesSeminário sobre a verdade: lições introdu-tórias para a leitura do parágrafo 44 de Sere tempo. Petrópolis: Vozes, 1993; A caminhode uma fundamentação pós-metafísica. Por-to Alegre: Edipucrs, 1997; Diferença e metafísi-ca. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000; Compreen-são e finitude. Ijuí: Unijuí, 2001; Introduçãoao pensamento de Martin Heidegger. PortoAlegre: Edipucrs, 2002; Mundo Vivido: Das vi-cissitudes e dos usos de um conceito da fe-nomenologia. Porto Alegre: Edipucrs, 2004;Seis estudos sobre Ser e Tempo. 3. ed. Petró-polis: Vozes, 2005. Confira a seguir, na íntegra, aentrevista com o filósofo.

IHU On-Line – Quais são os aspectos maisatuais na filosofia heideggeriana? Qual é aimportância de Heidegger como um intér-prete da pós-modernidade?Ernildo Stein – O filósofo é, sem dúvida, o pen-sador de vulto que, na filosofia, problematizou demodo mais profundo a modernidade. Até queponto suas idéias sempre acertaram é uma outraquestão. Não podemos, no entanto, negar a im-portância de sua teoria de que, com a moderni-dade, surgiu a questão da subjetividade e comisso a questão do método. O ser humano está li-vre das amarras da tradição e da história passa-da, para traçar o seu caminho e os seus projetos.Por isso, passa a considerar a natureza e os recur-sos do Planeta como transformáveis e manipulá-veis sem limite. Heidegger vê nisso o surgimentode uma espécie de compulsão para a transforma-

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ção. Ele costuma chamar a irresistível tendênciade o ser humano transformar tudo de dispositivo(Gestell). Foi assim que ele previu o que chamade europeização do mundo, a lógica e o cálculose disseminando implacavelmente pelo Planeta,arrasando as culturas locais com o progresso.Com isso, o filósofo levanta, já no fim dos anos1930, o problema daquilo que hoje denomina-mos globalização.

A filosofia não deve ser avaliada por sua atua-lidade, mas pela capacidade de ela, nos diversosfilósofos, pensar os fundamentos que podem, decerto modo, reger o comportamento dos seres hu-manos, fazendo uso de sua liberdade. A filosofianão compete com a ciência na descoberta de no-vos objetos. Ela pensa a moldura ou o âmbito nosquais as ciências descobrem e situam seus objetos.A filosofia não se volta contra a ciência, mas temum timing mais longo, porque não está submetidaàs urgências de transformação da realidade.

Talvez convenha dizer que Heidegger, final-mente, sem nenhuma inibição, libertou o ser hu-mano como ser no mundo de qualquer amarrametafísica, deixando como tarefa sua, a instaura-ção da verdade. Heidegger declara que não háverdades absolutas ou literalmente “não há verda-des eternas”. A verdade só existe porque o ser hu-mano opera com ela. É por isso que se inverte arelação medieval entre teologia e antropologia.Não há Deus sem o ser humano, pois somente ele,o ser humano, abre o espaço para o problema deDeus e assim deixa acontecer o que pode ser ex-presso em enunciados que tratam da possibilidadede Deus.

IHU On-Line – O que implica o fim da meta-física sugerido por Heidegger? Como enten-der esse argumento hoje?

Ernildo Stein – Heidegger fala em fim da meta-física como superação dos limites impostos emnome de teorias que se dizem filosóficas, masnão tratam das condições de possibilidade do co-nhecimento, simplesmente falam de coisas e ob-jetos. A superação da metafísica não significa ofim da metafísica. Kant1 mesmo dizia que semprerespiraremos o “ar impuro” da metafísica e “te-mos uma mancha podre” que nos faz operar comconceitos independentes da realidade. Heideg-ger concordaria com Kant, caso a afirmação delenão fosse uma pretensão de salvar o que nãopode ser salvo em sua teoria do conhecimento.Para Heidegger o fim da metafísica significa ape-nas que estamos livres do comando de outrosmundos não-humanos. Estamos sós no Planeta enele somos um acontecimento que se espantaconsigo mesmo.

IHU On-Line – O que o senhor quer dizercom uma fundamentação pós-metafísica?Ernildo Stein – Assim como vivemos a chamadapós-modernidade e nela identificamos a fragmen-tação de toda a unidade entre ciência, arte e reli-gião, assim temos que reconhecer que, se aindaprocuramos razões que não sejam as razões daciência, essas não são mais razões ou fundamen-tos metafísicos. O pós-metafísico é um mundosem fundamentos absolutos. Quem dá a moldurana qual se dá o acontecer daquilo que revela os li-mites da objetivação da ciência é o modo de o ho-mem ser no mundo que a filosofia pode descrevercomo sentido.

IHU On-Line – Como o conceito de angústiaé tratado por Heidegger em Ser e Tempo?Ernildo Stein – Heidegger, quando cria conceitosnão os apresenta como prontos. É próprio da feno-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

1 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussiano, considerado como o último grande filósofo dos princípios da era moderna,representante do Iluminismo, indiscutivelmente um dos seus pensadores mais influentes da filosofia. Kant teve um grandeimpacto no Romantismo alemão e nas filosofias idealistas do século XIX, tendo esta faceta idealista sido um ponto de partidapara Hegel. Kant estabeleceu uma distinção entre os fenômenos e a coisa-em-si (que chamou noumenon), isto é, entre o quenos aparece e o que existiria em si mesmo. A coisa-em-si (noumenon) não poderia, segundo Kant, ser objeto de conhecimentocientífico, como até então pretendera a metafísica clássica. A ciência se restringiria, assim, ao mundo dos fenômenos, e seriaconstituída pelas formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e pelas categorias do entendimento. A IHU On-Linenúmero 93, de 22 de março de 2004, dedicou sua matéria de capa à vida e à obra do pensador. Também sobre Kant foipublicado em 2005 o Cadernos IHU em formação número 2, intitulado Emmanuel Kant – Razão, liberdade, lógica eética. Os Cadernos IHU em formação estão disponíveis para download na página www.unisinos.br/ihu do InstitutoHumanitas Unisinos – IHU. (Nota da IHU On-Line)

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menologia ir atrás dos indícios formais que podemlocalizar traços comuns que podem ser converti-dos em conceitos e, no caso, em existenciais. A fi-losofia não carrega consigo só uma cesta de con-ceitos lógicos prontos. Depende do filósofo a ca-pacidade de descobrir sinais que podem nos levara novos conceitos, por exemplo, sobre o ser hu-mano. É assim que a angústia é descrita como asúbita percepção do ser humano de que ele é fini-to, isto é, de que está jogado entre um ainda não,o futuro e o não mais, o passado. A angústia quedisso resulta é o que mantém o ser humano, hu-mano. O que ele poderá fazer é tentar fugir dessaangústia, fugindo de si mesmo e divertindo-senuma “brincadeira” com os objetos, no instantepresente. De todo o modo, porém, a angústia apa-recerá de repente e, de modo implacável, remete-rá o ser humano contra o futuro e contra o passa-do e sem resultado.

IHU On-Line – De que forma se apresenta acompreensão e a finitude nesse filósofo? Oque elas podem ensinar à contemporanei-dade?Ernildo Stein – Heidegger não aceita outratranscendência que a transcendência finita. Com-preensão é essa transcendência, por isso ela é fini-ta. No entanto, o filósofo quer, com isso, dizer quecom a filosofia não consegue o ser humano pu-xar-se pelos cabelos do banhado. Isso quer dizerque o ser humano pensa tudo enquanto é e, pelofato de ser, nos permite chegar às coisas. Comodiz literalmente “tão finito é o ser humano que ele

precisa do conceito de ser, Deus não precisa doser, não faz ontologia, Deus não filosofa.”

IHU On-Line – Quais são suas objeções emrelação à leitura que Padre Vaz realiza deHeidegger?Ernildo Stein – Lima Vaz2 fez seu tema o diag-nóstico sintomático de Heidegger sobre o niilis-mo em que mergulhamos com a metafísicaonto-teológica. Isso porque nela o fundamento éconvertido em objeto e Deus é definido como umúnico expediente de causa de si mesmo. O filóso-fo brasileiro não concorda inteiramente com odiagnóstico do filósofo alemão, mas é com basenesse diagnóstico que ele vê a possibilidade decolocar os problemas verdadeiros nas duas ma-trizes de inteligibilidade: a natureza e a cultura.São elas que, no futuro, mudarão totalmente, anão ser que o ser humano seja capaz de manteruma identidade, a transformação que a técnicaproduz nessas duas matrizes. E essa identidade éa pergunta pela vida boa. Como posso ser feliz,como assumo volume e importância como serbiológico e passageiro, que significa viver suavida? Em todo o caso, Lima Vaz encontrou maisrazões em Heidegger, no seu questionamento ra-dical, do que em Hegel3, cuja maquinaria dialéti-ca nada mói, nada resolve, porque seu motor,Deus (ou a sociedade sem classes, ou a História),é conceito vazio. Deus está morto, diz Hegel, e écomovedora a frase no penúltimo capitulo da Fe-nomenologia do espírito: “E esse é o sentimen-to doloroso da consciência infeliz de que Deus

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

2 Pe. Henrique Cláudio de Lima Vaz (1921-2002): filósofo e padre jesuíta, autor de importante obra filosófica. A IHU On-Linenúmero 19, de 27 de maio de 2002, dedicou sua matéria de capa à vida e à obra de Lima Vaz. A referida edição teve comotítulo Sábio, humanista e cristão. Sobre ele também pode ser consultado na IHU On-Line número 140, de 9 de maio de 2005,um artigo em que comenta a obra de Teilhard de Chardin. A revista Síntese. Revista de Filosofia, n. 102, jan.-abr. 2005, p.5-24, publica o artigo Um Depoimento sobre o Padre Vaz, de Paulo Eduardo Arantes, professor do Departamento de Filosofiada USP, que merece ser lido e consultado com atenção. Celebrando a memória do Padre Vaz, a edição 142, de 23 de maio de2005, publicou a editoria Memória. Consulte nesta edição um comentário sobre a sua contribuição para a discussão ética noBrasil. (Nota da IHU On-Line)

3 Friedrich Hegel (1770-1831): filósofo alemão, um dos pensadores mais influentes dos tempos recentes. Como Aristóteles eSanto Tomás de Aquino, Hegel tentou desenvolver um sistema filosófico no qual estivessem integradas todas as contribuiçõesde seus principais predecessores. Sua primeira obra, A fenomenologia do espírito, tornou-se a favorita dos hegelianos daEuropa continental no séc. XX. Nesse livro, Hegel considerava uma variedade tão grande de concepções quanto os diversosestados da mente, e encarava-as como estágios no desenvolvimento do espírito em direção a uma maior maturidade. Suasegunda obra, A Ciência da Lógica, tenta fazer uma análise sistemática dos conceitos. Sua Enciclopédia das ciênciasfilosóficas contém todo o seu sistema de uma forma condensada. O último livro de Hegel foi A filosofia do direito. Depoisde sua morte, seus alunos publicaram suas conferências sobre filosofia da história, da religião e da arte e história da filosofia,usando principalmente suas anotações. (Nota da IHU On-Line)

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morreu”. Apesar de Hegel falar do Deus da Sex-ta-feira Santa, Nietzsche4 o toma a sério e proclama“Deus está morto”. Isso que se estendeu como umlema na entrada do projeto da modernidade. LimaVaz procura defender contra as críticas de Heideg-ger uma ontologia teológica que possa sustentar,como uma espécie de realismo, os enunciados dateologia e da religião. Nisso os dois filósofos se dis-tanciam e está com os estudiosos ver quem tem ra-zão nos seus argumentos que aqui não podem serapresentados de maneira completa.

IHU On-Line – Qual o significado que podeter o fato de Heidegger aceitar o cargo de rei-tor em plena Alemanha nazista?Ernildo Stein – O filósofo fez um juízo equivoca-do sobre o regime que estava começando, pensan-do que aceitando a reitoria, teria condições de criara nova universidade que substituiria a universidadedos mandarins. Ao ver que caíra na armadilha, de-mitiu-se no décimo mês dos quatro anos que tinha

pela frente e, a partir daí, o regime pôs um de seusagentes para supervisionar as suas aulas. O filósofofoi ingênuo porque desconhecia as ciências huma-nas da sociologia, da política, da economia e pen-sava, contudo, poder diagnosticar o futuro de umregime. Quem olha com atenção para a capa domeu livro Diferença e Metafísica. Porto Alegre:Edipucrs, 2000 vê que ela é feita com uma cartainédita de Heidegger que está em minhas mãos,em que ele se defende dizendo: “Ide a Munique eperguntai ao Pe. Karl Rahner5 que assistiu às mi-nhas aulas de 34 a 36, para verem a crítica que seousava contra o biologismo, o racismo do nacio-nal-socialismo”. É verdade que os filósofos não fo-ram feitos para serem heróis da resistência, Platão6

que o diga, preso pelo tirano de Siracusa a cujo re-gime tinha aderido. E mesmo Aristóteles7 não esca-pou do problema, indo asilar-se na sua fazenda deEubéia, para que os gregos não praticassem umsegundo crime contra Sócrates8.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

4 Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo alemão, conhecido por seus polêmicos conceitos “além-do-homem”, transvaloraçãodos valores, niilismo, vontade de poder e eterno retorno. Entre suas obras figuram como as mais importantes: Assim FalouZaratustra. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998; O Anticristo. Lisboa: Guimarães, 1916; A Genealogia daMoral. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2004. Escreveu até 1888, quando foi acometido por um colapso nervoso que nunca oabandonou, até o dia de sua morte. A Nietzsche foi dedicado o tema de capa da edição número 127 da IHU On-Line, de 13 dedezembro de 2004. Sobre o filósofo alemão, conferir ainda a entrevista exclusiva realizada pela IHU On-Line edição 175, de10 de abril de 2006, com o jesuíta cubano Emilio Brito, docente na Universidade de Louvain-La-Neuve, intitulada Nietzschee Paulo. (Nota da IHU On-Line)

5 Karl Rahner (1904-2004): importante teólogo católico do século XX, ingressou na Companhia de Jesus em 1922. Doutorou-se emFilosofia e em Teologia. Foi perito do Concílio Vaticano II e professor na Universidade de Münster. A sua obra teológica compõe-se demais de 4 mil títulos. Suas obras principias são: Geist in Welt (O Espírito no mundo), 1939, Hörer des Wortes (Ouvinte da Palavra),1941, Schrifften zur Theologie (Escritos de Teologia), 16 volumes escritos entre 1954 e 1984, Grundkurs des Glaubens (CursoFundamental da Fé), 1976. Em 2004, celebramos seu centenário de nascimento. A Unisinos dedicou à sua memória o SimpósioInternacional O Lugar da Teologia na Universidade do século XXI, realizado de 24 a 27 de maio daquele ano. A IHUOn-Line n.º 90, de 1º de março de 2004, publicou um artigo de Rosino Gibellini sobre Rahner; e a n.º 94, de 29 de março de 2004,uma entrevista de J. Moltmann, analisando o pensamento de Rahner. No dia 28 de abril de 2004, no evento Abrindo o Livro, ÉricoHammes, teólogo e professor da PUCRS, apresentou o livro Curso Fundamental da Fé, uma das principais obras de Karl Rahner. Aentrevista com o prof. Érico Hammes pode ser conferida na IHU On-Line n.º 98, de 26 de abril de 2004. Ainda sobre Rahner,publicamos uma entrevista com H. Vorgrimler na IHU On-Line n.º 97, de 19 de abril de 2004, sob o título Karl Rahner: teólogo doConcílio Vaticano nascido há 100 anos. A edição número 102 da IHU On-Line de 24 de maio de 2004 dedicou a matéria de capa àmemória do centenário de nascimento de Karl Rahner. Os Cadernos Teologia Pública n. 5 de 2004 publicaram o artigo Conceito eMissão da Teologia em Karl Rahner, de autoria do Prof. Dr. Érico João Hammes. (Nota da IHU On-Line)

6 Platão (427-347 a. C.): filósofo ateniense. Criador de sistemas filosóficos influentes até hoje, como a Teoria das Idéias e aDialética. Discípulo de Sócrates, Platão foi mestre de Aristóteles. Entre suas obras, destacam-se A República e o Fédon.(Nota da IHU On-Line)

7 Aristóteles de Estagira (384 a C. – 322 a. C.): filósofo grego, um dos maiores pensadores de todos os tempos. Suas reflexõesfilosóficas – por um lado originais e por outro reformuladoras da tradição grega — acabaram por configurar um modo depensar que se estendeu por séculos. Prestou inigualáveis contribuições para o pensamento humano, destacando-se: ética,política, física, metafísica, lógica, psicologia, poesia, retórica, zoologia, biologia, história natural e outras áreas deconhecimento. É considerado, por muitos, o filósofo que mais influenciou o pensamento ocidental. (Nota da IHU On-Line)

8 Sócrates (470 a. C. – 399 a. C.): filósofo ateniense e um dos mais importantes ícones da tradição filosófica ocidental. (Nota daIHU On-Line)

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O silêncio do filósofo sobre o gesto de que eleconfessou a Jaspers9 que “se sentia envergonhadodo passo dado”, deve-se à convicção de que umaconfissão pública não tinha sentido porque nãoapagaria nada. Para um filósofo como Heidegger,em cujo pensamento Deus depende do homem,não há ninguém para repor algo que possaresultar de qualquer arrependimento.

IHU On-Line – O nazismo é uma anomaliaou uma radicalização da razão moderna?Ernildo Stein – O nazismo é um totalitarismonascido das incertezas e dos irracionalismos dosanos 20 de nosso século. Assim como outros tota-litarismos. Tão nefasto quanto foi, não deixa deser uma espécie de banalidade do mal, mas umaobra humana, uma obra com autores determina-dos que se orientaram nas mais primitivas idéiassobre a relação dos seres humanos em sociedade.O nazismo é, em última análise, um resultado dasuspensão da lei, para que o tirano pudesse fazerdela o que bem entendesse, pois era a sua lei.Agamben10 bem vê nos campos de detenção querodeiam a Europa com uma coroa de desespera-dos, novos campos de concentração, em que a leiestá suspensa. Isso produz a “inexistência” de to-dos os refugiados porque estão juridicamente nus.

IHU On-Line – Como o pensamento heideg-geriano explica o paradigma da técnica leva-do às últimas conseqüências pelos nazistas?Ernildo Stein – Heidegger certamente não é umintérprete do nazismo. Mesmo que para isso tives-

se competência, não tem autoridade como filóso-fo. São outros campos de conhecimento que de-vem compreender o nazismo. Entretanto, Heideg-ger situou, na exacerbação do dispositivo da técni-ca, a compulsão dos nazistas de produzir a morteindustrializada. Por mais distantes que estejamosdo nazismo, não é a parafernália da técnica atualque retira de cada ser humano o direito de morrera sua morte. Morte é hoje, no dispositivo da técni-ca, apenas uma questão de higiene pública.

IHU On-Line – Quais seriam as influênciasdo cristianismo em Heidegger? E ele influ-enciou, de alguma forma, o pensamentocristão?Ernildo Stein – Certamente temos várias corren-tes teológicas que incorporaram as categorias daanalítica existencial de Ser e Tempo. Bultmann11

é um dos grandes exemplos de diálogo com Hei-degger, mas há muitos teólogos e correntes teoló-gicas que levam de contrabando elementos do dis-curso heideggeriano. Apenas não têm coragem delevá-lo às últimas conseqüências. Heidegger teveformação cristã, estudou Teologia e Filosofia católi-cas, dialogou muitíssimo com os pensadores evan-gélicos, para chegar à conclusão de que a filosofianão pode oferecer aval para nenhuma religião. Aopé da letra diz o filósofo: “Uma filosofia cristã é umferro de madeira, uma roda quadrada”.

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9 Karl Theodor Jaspers (1883-1969): filósofo e psiquiatra alemão. Ensinou Filosofia em Heidelberg desde 1921 e em Basiléia apartir de 1948. Fez o doutoramento em medicina, tendo inicialmente se dedicado à psicologia. É também conhecido como umdos principais representantes do existencialismo. (Nota da IHU On-Line)

10 Giorgio Agamben (1942): filósofo italiano. É professor da Facoltà di Design e arti della IUAV (Veneza), onde ensina Estética, edo College International de Philosophie de Paris. Formado em Direito, foi professor da Università di Macerata, Università diVerona e da New York University, cargo ao qual renunciou em protesto à política do governo norte-americano. Sua produçãocentra-se nas relações entre filosofia, literatura, poesia e fundamentalmente, política. Entre suas principais obras, estão Illinguaggio e la morte (Einaudi, 1982), La formula della creazione (Quodlibet, 1993), escrito com Giles Deleuze, HomoSacer (Einaudi, 1993/ Homo sacer - O poder soberano e a vida nua – UFMG), Que le resta di Auschwitz, (BollatiBoringhieri, 1998) e Stato di Eccezione (Bollati Boringhieri, 2003). (Nota da IHU On-Line)

11 Rudolf Karl Bultmann (1884-1976): teólogo luterano alemão nascido em Wiefelstede, Oldenburg, que propôs umainterpretação do Novo Testamento da Bíblia apoiada em conceitos de uma filosofia existencialista. Iniciou como professorsobre sua especialidade, o Novo Testamento (1916), em Breslau, Giessen e Marburg. Nessa cidade, tomou contato com MartinHeidegger e a filosofia existencialista, que influenciou seu pensamento posterior. Morreu em Marburg, então AlemanhaOcidental. Seu primeiro livro foi Jesus (1926) e sua mais famosa obra foi Das Evangelium des Johannes (1941). Na edição114, de 6 de setembro de 2004, publicamos na editoria Teologia Pública um debate sobre a obra Teologia do NovoTestamento, com a participação de Nélio Schneider e Johan Konings. (Nota da IHU On-Line)

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O nazismo e o “erro” filosófico de Heidegger

Entrevista com Gianni Vattimo

“Heidegger nunca enunciou, mas acreditoque ele deveria aceitar: lembrar o ser (para tentarsair da metafísica) significa somente lembrá-locomo já-sempre tendo ido embora; como Deusque se mostra a Moisés somente de costas. Portan-to, pensar o ser não é uma experiência de presen-ça cheia, de verdade luminosa; se levarmos emconsideração que, para Heidegger, a metafísica(esquecimento do ser) é a história do ser, então oser tem uma história que é sempre de diminuição,de esquecimento, de ´fraqueza´...” A afirmação éde Gianni Vattimo, filósofo italiano, que mais umavez nos brinda com uma instigante entrevista, so-bre Martin Heidegger, nos seus trinta anos de fale-cimento e quase oitenta anos da sua obra funda-mental Sein und Zeit. “Acredito que Heideggercomeçou o seu ‘erro’ nazista quando deixou demeditar sobre São Paulo e começou a mitificarHölderlin”, é outra contundente afirmação do filó-sofo do pensamento fraco. “Autenticidade signifi-ca co-responder à chamada do ser; mas o ser as-sim entendido é também a própria comunidade, asociedade na qual se vive etc. Também por isso He-idegger se empenhou com Hitler, errando. Mas de-vemos pensar que naqueles anos Lukacs e Blochestavam com Stalin, Giovanni Gentile, com Musso-lini...”. As afirmações são do filósofo italiano GianniVattimo, em entrevista por e-mail à IHU On-Line,em 3 de julho de 2006, explicando as relações en-tre o filósofo Martin Heidegger e o nazismo.

Essa é a quarta entrevista exclusiva que Vatti-mo concede à IHU On-Line. A primeira foi publi-cada na 88ª edição, de 15 de dezembro de 2003sob o título O cristianismo é a religião do pós-mo-derno, a segunda na 128ª edição, de 20 de de-zembro de 2004 sob o título Deus é projeto, e nós

o encontramos quando temos a força para proje-tar..., e a terceira saiu na edição 161, de 24 de ou-tubro de 2005, quando recebeu pessoalmente aIHU On-Line, em Porto Alegre, no dia 18 de ou-tubro daquele ano, às vésperas de proferir suaconferência no evento Metamorfoses da culturacontemporânea. Nessa oportunidade, ele falousobre O pós-moderno é uma reivindicação demultiplicidade de visão de mundo. Dele tambémpublicamos uma entrevista na 121ª edição, de 1ºde novembro de 2004, sob o título Garzantina difilosofia, um artigo na edição 53, de 31 de marçode 2003 sob o título A guerra pelos direitos huma-nos? e outro no número 80, de 20 de outubro de2003, sob o título Democracia, killer da metafísica.A editoria Livro da Semana, na edição 149, de 1ºde agosto de 2005, abordou a obra The future ofreligion, escrita por Vattimo, Richard Rorty eSantiago Zabala.

Vattimo nasceu em Turim, em cuja universi-dade se formou em Filosofia e na qual ministra au-las até hoje. Cursou uma especialização na Uni-versidade de Heidelberg (Alemanha) e teve algu-mas passagens por universidades americanascomo professor visitante. Foi deputado no Parla-mento Europeu, integrando várias comissões,como as de cultura, educação e justiça, entre ou-tras. Estudioso do pensamento de Nietzsche, Hei-degger e Gadamer, Vattimo é conhecido como omentor do “pensamento fraco”. De sua produçãointelectual, destacamos, Credere di Credere.Milano: Garzanti, 1996 (traduzido para o portu-guês), Dopo la cristianità. Per um cristiane-simo non religioso. Milano:Garzanti, 2002(traduzido para o português), O fim da moder-nidade: niilismo e hermenêutica na cultura

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pós-moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996;Introdução a Heidegger. Lisboa: Instituto Pia-get, 1998.

IHU On-Line – Como Heidegger ajuda a en-tender o enfraquecimento das estruturas doser na pós-modernidade?Gianni Vattimo – A concepção da diferença on-tológica – que Heidegger começa a desenvolverem Ser e Tempo significa que o ser não deve seconfundir com o ente, com alguma “coisa” pre-sente. E, como se sabe, Heidegger pensa queidentificar o ser com o ente é um “esquecimento”do ser. Agora, pode-se “lembrar” o ser? O que,porém, significaria fazê-lo “presente” diante dosolhos da nossa mente, portanto, reduzi-lo nova-mente a um “ente”. Além disso: Heidegger, nosseus escritos sobre Nietzsche, escreve que a meta-física é a história do ser. Eu tiro disso tudo a se-guinte conclusão: Heidegger nunca enunciou,mas acredito que ele deveria aceitar: lembrar o ser(para tentar sair da metafísica) significa somentelembrá-lo como já-sempre tendo ido embora;como Deus que se mostra a Moisés somente decostas. Portanto, pensar o ser não é uma expe-riência de presença cheia, de verdade luminosa;se levarmos em consideração que, para Heideg-ger a metafísica (esquecimento do ser) é a históriado ser, então o ser tem uma história que é semprede diminuição, de esquecimento, de “fraqueza”...

IHU On-Line – Qual é o lugar da verdade eda unidade do sujeito no pensamento deHeidegger?Gianni Vattimo – Verdade, para Heidegger, étambém aquela secundária das proposições “ver-dadeiras”, que correspondem a critérios dadoscom a abertura do ser no qual somos sempre arre-messados. Mas a verdade “primeira” é esta aber-tura (algo semelhante aos paradigmas dos quaisfala Kuhn12). A relação com esta verdade primária(por exemplo, na experiência da obra de arte, que

nos “dribla” porque é o anúncio de um paradigma“outro”, não é uma experiência de unidade do su-jeito, mas, ao contrário, exatamente uma expe-riência de “desorientação”).

IHU On-Line – Como explica a aproximaçãode Heidegger ao nazismo? É uma derivaçãode seu pensamento filosófico?Gianni Vattimo – De certa forma sim, foi um“erro” filosófico. Heidegger acreditou que fossepossível reconstruir uma situação histórica análo-ga àquela da Grécia pré-clássica, na qual, erran-do, porque esquecia a diferença ontológica, pen-sou que o ser pudesse “dar-se” de modo não-me-tafísico. Mas era um erro, antes de tudo filosófico.

IHU On-Line – O próprio nazismo deve serentendido como uma anormalidade na His-tória ou como uma radicalização da racio-nalidade moderna?Gianni Vattimo – Heidegger o entendeu comouma radicalização da racionalidade moderna.Pensando que esta racionalidade fosse o auge doesquecimento do ser, não a podia aceitar. De ou-tro modo, o extremo da metafísica devia tambémser o seu fim. “Onde está o perigo, cresce tambémo que salva” (Hölderlin13). Portanto, posição am-bígua; um pouco como o capitalismo para Marx: éo pior do pior, mas é também a condição que pre-para a revolução do proletariado...

IHU On-Line – O paradigma da técnica podeauxiliar a compreender as bases desse e dequalquer outro totalitarismo?Gianni Vattimo – A resposta está implícita naprecedente. Certo, como diz em Identität undDifferenz, a possibilidade de sair da metafísicaem direção a um novo evento do ser está tambémligada ao fato de que no Gestell, no mundo técni-co-totalitário, homem e mundo não têm mais oscaracteres de sujeito e objeto. Mas que caracteresterão?

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12 Thomas Kuhn (1922-1996): físico norte-americano, cujo trabalho incidiu sobre história e filosofia da ciência, tornando-se ummarco importante no estudo do processo que leva ao desenvolvimento científico. Sua obra mais conhecida é A estrutura dasrevoluções científicas. 7. ed. Säo Paulo: Perspectiva, 2003. (Nota da IHU On-Line)

13 Johann Christian Friedrich Hölderlin (1770-1843): poeta lírico alemão. (Nota da IHU On-Line)

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IHU On-Line – Se o ente está lançado nomundo, como entender sua responsabilida-de individual e política?Gianni Vattimo – Acredito que o Heideggerdos anos 1930, aquele depois da Kehre, se deuconta de que a autenticidade da qual falava Sere Tempo não é algo que se possa procurar “sozi-nho”. Autenticidade significa co-responder àchamada do ser; mas o ser assim entendido étambém a própria comunidade, a sociedade naqual se vive etc. Também, por isso, Heidegger seempenhou com Hitler, errando. Devemos pen-sar, porém, que naqueles anos Lukacs14 e Bloch15

estavam com Stalin16, Giovanni Gentile17, comMussolini18 etc.

IHU On-Line – Por que Heidegger afirmouque era impossível ultrapassar o niilismo?Como entender a esperança num mundoniilista?Gianni Vattimo – Como foi dito acima, o sernunca pode dar-se como ente. A esperança do nii-lismo é de que, reduzindo a imponência, a pe-remptoriedade, o peso do ente, do real (paixões,instinto de sobrevivência, violência recíproca) oser se dê como das Gering, o mínimo, o pequeno,do qual falava Vorträge und Asufsätze.

IHU On-Line – O ser-para-a-morte (Sein-zum-Tode) não é um conceito muito pessimistapara classificar o ser humano?Gianni Vattimo – De maneira nenhuma. Signifi-ca somente aceitar o próprio fim e historicidade,sentindo-se empenhados para responder a umachamada que vem de outros mortais, e não pen-sar nunca que atingimos já a verdade “objetiva”, o

ponto de vista de Deus. E, portanto, nunca bom-bardear o Iraque em nome do verdadeiro direitohumano.

IHU On-Line – Se pudéssemos trazê-lo aopresente, como Heidegger dialogaria com o“pensamento fraco” de Gianni Vattimo?Gianni Vattimo – Teria que adotá-lo como seufilho, embora um pouco extravagante. Fora debrincadeira: se Heidegger visse o que acontecehoje por causa do fundamentalismo, da pretensãode ser “correto” (Bush acredita de verdade, comoos nazistas, no Gott mit uns, Deus está conosco; eage exatamente como eles), enfraqueceria muitoas próprias posições...

IHU On-Line – Que relações podem ser esta-belecidas com o pensamento cristão e o hei-deggeriano? Há aí uma influência mútua?Gianni Vattimo – Certo, se pensarmos em umtexto como a Introdução à Fenomenologia daReligião, de 1920, nos daremos conta de que al-guns, ou talvez todos os conceitos fundamentaisque Heidegger desenvolveu após, em Ser e Tem-po (por exemplo, a autenticidade, a metafísicaetc.) estão já todos na sua leitura das cartas de SãoPaulo. Acredito que Heidegger começou o seu“erro” nazista - que durou somente alguns anos -quando deixou de meditar sobre São Paulo e co-meçou a mitificar Hölderlin. Entretanto, o seupensamento permanece profundamente cristão; etambém, a propósito de influência “mútua”, oscristãos de hoje deveriam elegê-lo a verdadeiromestre, deixando de lado os tantos resíduos demetafísica escolar que ainda dominam o ensinonos seminários.

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14 Lukács György (1885-1971): mais conhecido como Georg Lukács, filósofo húngaro. Em sua trajetória filosófica procurourefazer o percurso da filosofia clássica alemã, inicialmente como crítico influenciado por Kant, depois Hegel e, finalmente,aderindo ao marxismo. (Nota da IHU On-Line)

15 Ernst Bloch (1885-1977): filósofo alemão marxista heterodoxo, que construiu vasta obra que ressalta o papel da utopia nahistória do homem. Seu livro O Princípio Esperança. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005, foi destacado na editoria Livro daSemana da 151ª edição da revista IHU On-Line, de 15 de agosto de 2005, com a realização de duas entrevistas sobre a obra:uma com o tradutor do livro, Nélio Schneider, e outra com o professor da UFRGS, Edson Sousa. (Nota da IHU On-Line)

16 Josef Stalin (1878-1953): ditador soviético, responsável pelo stalinismo. (Nota da IHU On-Line)17 Giovanni Gentile (1875-1944): filósofo italiano. (Nota da IHU On-Line)18 Benito Amilcare Andrea Mussolini (1883-1945): jornalista e político italino, governou a Itália com poderes ditatoriais entre

1922 e 1943, autodenominando-se Il Duce, que significa em italiano “o condutor”. (Nota da IHU On-Line)

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Heidegger e a influência do cristianismo

Entrevista com Emmanuel Carneiro Leão

“Sem o cristianismo, na sua origem e prove-niência, não se compreende o pensamento de He-idegger”, pondera o Prof. Dr. Emmanuel CarneiroLeão, em entrevista por telefone à IHU On-Line,em 3 de julho de 2006, refletindo a influência docristianismo em Heidegger e vice-versa. CarneiroLeão menciona também a presença das idéias hei-deggerianas em Bultmann, Bruckner, Lackner eRahner e conta algumas de suas lembranças comoaluno de um dos filósofos mais discutidos e estu-dados da atualidade.

Doutor pela Universidade de Roma, Itália, elicenciado em Filosofia pela Universidade de Fri-burgo, Alemanha, onde foi aluno de Heidegger,Carneiro Leão regressou ao Brasil em meados dadécada de 1960. Desde então, dedica-se ao ma-gistério na condição de professor titular da Univer-sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na qualleciona até hoje. É um dos principais divulgadoresdo pensamento heideggeriano no Brasil, tendotraduzido para o português alguns livros do filóso-fo alemão. É autor de, entre outros, Aprendendoa pensar. Petrópolis: Vozes, 1991. Leia o que oprofessor pensa sobre o assunto.

IHU On-Line – Quais são suas principaislembranças como aluno de Heidegger?Emmanuel Carneiro Leão – Minha primeiralembrança é que a atividade de ensino e acadêmi-ca de Heidegger para com seus alunos, com os es-tudantes, aqueles que escutavam suas palestras,era de um cuidado todo especial. Era um profes-

sor com grande atenção para as dificuldades e osproblemas dos seus alunos. A segunda grandelembrança e impressão que tenho é que a impor-tância do ensino de Heidegger era promover a ca-pacidade de pensamento dos alunos. Ele nãoqueria ensinar respostas, problemas, perguntas,doutrinas, mas desenvolver a capacidade própriade pensar de cada aluno, porque a posição queele passava era que todo o homem tem uma con-tribuição a dar à vida do pensamento, de manei-ras diferentes, com graus diferentes, com qualida-de diferente, deixando transparecer que essa con-tribuição é fundamental para o desenvolvimentoda capacidade de pensar de todos.

IHU On-Line – Qual é a grande contribuiçãoda filosofia de Heidegger?Emmanuel Carneiro Leão – A principal contri-buição da obra de Heidegger e o grande mérito épromover esse aprofundamento do pensamento.Pensar não é ficar apenas nas relações já dadas,encontradas, mas aprofundar, com base no que édado, até a proveniência, a origem, a fonte deonde elas são oriundas.

IHU On-Line – Quais são as principais dife-renças entre a fenomenologia de Heideggere a de Husserl?Emmanuel Carneiro Leão – Podemos dizerque a fenomenologia de Husserl19 se constrói pormeio da intencionalidade da consciência. Isso sig-nifica que há uma diferença entre fenômeno e fe-

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19 Edmund Husserl (1859-1938): filósofo alemão, principal representante do movimento fenomenológico. Marx e Nietzsche, atéentão ignorados, influenciaram profundamente Husserl, que era um crítico do idealismo kantiano. Husserl apresenta comoidéia fundamental de seu antipsicologismo a “intencionalidade da consciência”, desenvolvendo conceitos como o da intuiçãoeidética e epoché. Pragmático, Husserl teve como discípulos Martin Heidegger, Sartre e outros. (Nota da IHU On-Line)

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nomenologia e o que faz a intermediação entreessa diferença é a intencionalidade dessa cons-ciência. Sem consciência, não há fenomenologia,para Husserl. Para Heidegger, já não é dessa for-ma. Ele acredita que a fenomenologia é o própriofenômeno. É por causa da fenomenologia do fe-nômeno que há consciência e intencionalidade. ODasein, a presença, o modo de ser do homem,não é intermediário entre o fenômeno e a fenome-nologia, mas é o lugar onde o fenômeno mostraque ele já é a fenomenologia.

IHU On-Line – Como Heidegger dialogacom a tradição filosófica? Quais são suasprincipais influências e quais são os rompi-mentos que propõe?Emmanuel Carneiro Leão – Heidegger temuma formação religiosa, cristã, escolástica e, pelaescolástica, ele encontra a filosofia grega. Como afilosofia grega, mediada pela escolástica é a filoso-fia clássica, o que significa Platão e Aristóteles,Heidegger procura suas fontes, de onde provêmesses pensadores. Por isso, a principal influênciapara o pensamento pré-socrático. Para se com-preender o pensamento clássico é indispensávelter uma experiência do que constitui a contribui-ção dos pré-socráticos. Com essa recuperação dospré-socráticos, que é uma tradição alemã desdeNietzsche, sobretudo, mas também de Hegel, em-bora este esteja mais ao lado de Aristóteles, o queleva a um movimento não de retorno e recupera-ção das fontes da cultura, da história, do pensa-mento, da ciência, da arte. Isso é a grande influên-cia que sofre o pensamento de Heidegger, umpensamento cuja originalidade é a sua origem.

IHU On-Line – Em quais aspectos Heideg-ger influencia o desconstrutivismo e porquê?Emmanuel Carneiro Leão – Sua influência sedá porque, para se chegar a essa fonte de origina-riedade do pensamento pré-socrático, há uma ne-cessidade de desvincular-se, desvencilhar-se dasrespostas já dadas, dos padrões de pensamento econhecimento já estabelecidos até aqui. Então épreciso se desconstruir o que se constitui a tradi-ção do pensamento, do conhecimento e da arte

para poder abrir caminho e libertar a experiênciapara o originário.

IHU On-Line – De que maneira podemoscompreender a afirmação do filósofo de que“chegamos muito tarde para os deuses emuito cedo para o ser”?Emmanuel Carneiro Leão – A nossa tradiçãoentende a realidade como sendo o resultado nãode uma atividade de sentido ou de criação, de umprincípio absoluto. Com a modernidade não te-mos mais essa consciência e essa necessidade, porisso, somos modernos à medida que perdemosessa necessidade. Isso significa que chegamos tar-de para os deuses, no entanto, com a modernida-de, para conseguir-se isso houve uma mudançanos padrões de relacionamento do homem euro-peu ocidental, que é a respeito de quem estamosfalando. Essa mudança aconteceu porque o ho-mem de agora não quer mais receber, como o ho-mem religioso de antes, os parâmetros e os pa-drões e princípios de como ele tem que viver. Elequer, ele mesmo, assumir a construção de sua cul-tura, sua sociedade, sua vida, seu pensamento,seu conhecimento. O homem moderno é aqueleque quer transformar a realidade e não apenasaceitá-la como ela é. A perda dessa perspectiva deaceitação leva consigo também uma experiênciade criação, o que significa que, para sermos cria-dores, não temos que nos deixar sufocar pela for-ma de conhecimento transformadora da realida-de. Por isso, chegamos cedo demais para essa ex-periência de doação criadora do real.

IHU On-Line – Há em Heidegger influênciasdo cristianismo? E no cristianismo viesesheideggerianos?Emmanuel Carneiro Leão – Sim, sem dúvidahá influências recíprocas. Heidegger queria fazercurso de teologia cristã. Toda a atividade de leitu-ra e interpretação da realidade que Heideggerpropõe é resultado do que ele aprendeu da inter-pretação e na leitura da chamada hermenêuticabíblica. Sem o cristianismo, na sua origem e pro-veniência, não se compreende o pensamento deHeidegger. No cristianismo católico e no evangéli-co, além de várias outras orientações, a influência

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de Heidegger foi fundamental nesse século. Aschamadas correntes evangélicas da teologia dialé-tica, teologia da morte de Deus, exegética, todaselas têm grande presença e influência heideggeria-nas. Em Bultmann, isso também pode ser notado,assim como em Bruckner, Lackner e Rahner. Essespensadores querem ler tanto a bíblia como a tradi-ção cristã sob a perspectiva do pensamento de in-terpretação de Heidegger.

IHU On-Line – Como o senhor avalia as rela-ções entre Heidegger e o advento do nazismo.?Emmanuel Carneiro Leão – Heidegger foi rei-tor da Universidade de Friburgo no período nazis-

ta. Sem dúvida, ele achava, inicialmente, que omovimento do Partido Nacional Socialista traziauma resposta para a situação de crise em que seencontrava a Alemanha depois da Primeira Guer-ra Mundial. No entanto, a seguir, ele se convenceude que estava enganado, de que o nazismo nãotrazia nenhuma proposta de libertação, de promo-ção para a Alemanha, pelo contrário, trouxe adestruição. Entretanto, isso só foi perceptível como tempo. Inicialmente, como todos os alemãesque estavam em crise depois da Primeira GuerraMundial, Heidegger viu nesse movimento políticode restauração uma saída, porém a saída que onazismo trouxe foi aprofundar a desgraça.

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A busca pelo sentido do ser

Entrevista com João Augusto Mac Dowell

Uma obra original e profunda, comparada àFenomenologia do Espírito, de Hegel. Essessão alguns dos méritos de Ser e Tempo, conside-rada a obra-prima de Heidegger. “Transformandoo método fenomenológico, herdado de seu mestreHusserl, em uma hermenêutica da própria reali-dade, ele não só questiona as categorias com quevinham sendo interpretados o ser humano e oente no seu conjunto desde o início do pensamen-to ocidental, mas também abre novos horizontesimensamente fecundos para a compreensão desua historicidade constitutiva”. A avaliação é do fi-lósofo João Augusto Mac Dowell SJ, reitor da Fa-culdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), an-tigo Centro de Estudos Superiores da Companhiade Jesus (CES), em Belo Horizonte. Por e-mail,ele concedeu entrevista à IHU On-Line, contri-buindo para o debate sobre Heidegger no ano emque se completam 30 anos de sua morte.

Graduado em Filosofia pela Faculdade de Filo-sofia Nossa Senhora Medianeira e em Teologia pelaPhilosophische Theologische Hochschule Sankt Ge-orgen, na Alemanha, Mac Dowell é mestre em Teo-logia pela mesma instituição. É doutor em Filosofiapela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG), naItália, com a tese A gênese da ontologia fundamentalde Martin Heidegger. O trabalho foi publicado pelaeditora Herder, de São Paulo, em 1970, e chegou àsegunda edição em 1993 pela Loyola. Escreveu,ainda, Religião também se aprende. 3. ed. SãoPaulo: Santuário, 2003 e organizou Saber filosófi-co, história e transcendência. Homenagem aoPadre Henrique Cláudio de Lima Vaz, SJ, emseu 80ª aniversário. São Paulo: Loyola, 2002.

IHU On-Line – Qual é a gênese da ontologiafundamental de Heidegger?

João Augusto Mac Dowell – Com este títuloOntologia Fundamental, Heidegger designa o proje-to de refundamentação da Metafísica desenvolvidoparcialmente e de maneira, afinal de contas aporéti-ca, em sua obra mestra Ser e Tempo. Este projetose origina da preocupação que anima o jovem Hei-degger de restaurar a Metafísica como pensamentode uma transcendência real, transcendência rejeita-da pelas correntes filosóficas dominantes, especial-mente na Alemanha, no início do século XIX, o cien-tificismo positivista e o neokantismo, limitado a umatranscendência meramente lógica. Tendo recebidosua primeira formação, também filosófica, num am-biente católico, ele pretendia com este projeto fazervaler a visão do mundo própria da cultura cristã,embora sobre novas bases, compatíveis com osprincípios da filosofia moderna, em particular, to-mando como ponto de partida a imanência do su-jeito humano. Aliás, o pensar de Heidegger, ao lon-go de todo o seu percurso, foi um pensar compro-metido, como tentativa de compreender o seu pró-prio tempo e de apontar caminhos para superar aslimitações do mundo moderno.

Entretanto, à medida que foi desenvolvendoo seu projeto nos dez anos que precederam a pu-blicação de Ser e Tempo (1927), Heidegger des-cobriu que a Ontologia Fundamental não poderiaconsistir na restauração da Metafísica, mesmo quesobre novas bases, e sim na elaboração da ques-tão do sentido de ser, questão, segundo ele, es-quecida por toda a tradição filosófica do Ocidentedesde Platão. Com efeito, a Metafísica, como pen-samento do ente como ente, determina o ser ouessência de cada ente e do ente em geral, quandopergunta: Que é (este) ente? Mas não perguntoujamais: Que é ser?, ou melhor: Por que há ser enão simplesmente nada? Em vez disso, para en-

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tender a existência do ente, ela remete a outroente e, finalmente, ao ente supremo (Deus), comoprincípio e fundamento de toda a realidade.

IHU On-Line – Por que Ser e Tempo é consi-derada sua obra mestra?João Augusto Mac Dowell – Trata-se de ummarco na história da filosofia semelhante, a meuver, por exemplo, à Fenomenologia do Espíritode Hegel. Sua importância reside, em primeiro lu-gar, na sua profunda originalidade. Heidegger pro-põe uma nova perspectiva global, que ele chama“existencial”, para a compreensão do ser humanoe aplica-a com admirável rigor ao longo de toda aobra. Transformando o método fenomenológico,herdado de seu mestre Husserl, em uma herme-nêutica da própria realidade, ele não só questionaas categorias com que vinham sendo interpretadoso ser humano e o ente no seu conjunto desde o iní-cio do pensamento ocidental, mas também abrenovos horizontes imensamente fecundos para acompreensão de sua historicidade constitutiva. So-mente pouco a pouco, porém, os intérpretes do fi-lósofo compreenderam que as brilhantes descober-tas da Analítica Existencial sobre o ser do homemconstituíam apenas o primeiro passo na elaboraçãoda questão do sentido de ser, verdadeiro alvo dainvestigação heideggeriana. Entretanto, esta em-preitada, assumida em Ser e Tempo, levou-o aconvencer-se de que a verdade do ser não poderiaser autenticamente desvendada a partir do movi-mento de transcendência do ser humano em buscade seu sentido. Esta constatação, que não tornousupérfluo o caminho percorrido até então, já quesó poderia acontecer no seu término, provocou ainversão do rumo de seu pensamento: de busca econquista do sentido de ser, ele transformou-se emacolhida de sua verdade como dom. Esta inversãoou conversão do pensar heideggeriano inaugurauma nova fase de sua trajetória espiritual.

Filosofia como hermenêuticada realidade

Paradoxalmente, mesmo que os resultadosda investigação nele desenvolvida tenham sido

superados pelo próprio Heidegger, Ser e Tem-po, mesmo assim, pode ser considerada suaobra-prima. Por um lado, há autores – não é omeu caso – que seguem Heidegger até Ser eTempo, mas recusam como divagação míticaou poética, destituída de significado filosófico, oseu pensamento ulterior. Por outro lado, as publi-cações subseqüentes do filósofo ou são relativa-mente breves, conferências as mais das vezes, di-vulgadas isoladamente ou reunidas em volumesde cunho mais ou menos homogêneo, ou consis-tem na transcrição de cursos, que, por sua próprianatureza, possuem um caráter mais difuso. Apesarde consignarem passos decisivos no caminho dopensar de Heidegger, estas obras, cada uma deper si, não alcançam a radicalidade inventiva e aimponência arquitetural de Ser e Tempo. Na ver-dade, é a própria índole meditativa do novo pen-sar inaugurado com a mencionada “conversão”ou “vira-volta”, que impede o filósofo de estrutu-rar suas idéias à maneira relativamente analítica eorgânica daquela produção magistral. O que aci-ma de tudo, todavia, determina a primazia de Sere Tempo é que as intuições fundamentais dessaobra, o filosofar entendido como hermenêutica darealidade, a compreensão existencial do ser hu-mano, a idéia de ser-no-mundo com todas a suasimplicações, a contraposição entre a temporalida-de existencial e a temporalidade cronológica e psi-cológica, a concepção da verdade como manifes-tação e o “des-ocultamento” do ente e, enfim, oprimado da questão do ser, permanecem válidasao longo de toda a obra heideggeriana e são elasque vão conduzir o seu pensamento a novas para-gens até então ainda não contempladas.

IHU On-Line – Como avalia a importância eo impacto de Heidegger na Filosofia?João Augusto Mac Dowell – Há certamenteconsenso entre os entendidos em colocar Heideg-ger, ao lado de Wittgenstein20 e talvez algum outromais, em lugar de absoluto destaque na galeria dosfilósofos do século XX. Com efeito, quer inspiran-do-se nele, quer rejeitando-o mais ou menos radi-calmente, ninguém que pretenda pensar o mundo

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

20 Ludwig Wittgenstein (1889-1951): filósofo analítico austríaco (Nota da IHU On-Line).

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de hoje pode deixar de confrontar-se com a suaobra. É verdade que a sua influência durante muitotempo esteve restrita praticamente à chamada filo-sofia continental21, permanecendo relativamentealheios às suas idéias, seja os pensadores de ten-dência marxista, seja as correntes filosóficas analíti-cas ou pragmatistas do mundo anglo-saxônico.

Depois de inspirar, em parte em função demal-entendidos, a filosofia existencialista do Sar-tre22 de O Ser e o Nada, bem como a tentativade superação da Ontologia de E. Lévinas23, semfalar em seus discípulos como H. Jonas24 e H.Arendt25, o pensamento heideggeriano se traduziuna corrente hermenêutica, representada por H G.Gadamer26 e, até certo ponto, por P. Ricoeur27. É

difícil citar o nome de um pensador significativodentro da tradição da filosofia continental que nãotenha sentido o impacto da reflexão heideggeria-na. Aliás, a sua irradiação extrapolou o campo dafilosofia, afetando, por exemplo, a psicologia,com Binswanger28 e Medard Boss29, e a teologiacristã tanto evangélica como católica, com figurascomo R. Bultmann, do lado evangélico, e K. Rah-ner, do católico.

IHU On-Line – E, em nossos dias, perdura asua influência?João Augusto Mac Dowell – Heidegger não fezpropriamente escola. Seu pensamento assistemá-tico não se presta a transmissões padronizadas.

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21 Analíticos e Continentais. São Leopoldo: Unisinos, 200222 Jean-Paul Sartre (1905-1980): filósofo existencialista francês. Escreveu obras teóricas, romances, peças teatrais e contos. Seu

primeiro romance foi A Náusea (1938), e seu principal trabalho filosófico é O Ser e o Nada (1943). Sartre define oexistencialismo, em seu ensaio O existencialismo é um humanismo, como a doutrina na qual, para o homem, “a existênciaprecede a essência”. Na Crítica da razão dialética (1964), Sartre apresenta suas teorias políticas e sociológicas. Aplicou suasteorias psicanalíticas nas biografias Baudelaire (1947) e Saint Genet (1953). As palavras (1963) é a primeira parte de suaautobiografia. Em 1964, foi escolhido para o prêmio Nobel de literatura, que recusou. (Nota da IHU On-Line)

23 Emmanuel Lévinas: filósofo e comentador talmúdico, nasceu em 1906, na Lituânia, e faleceu em 1995, na França. Desde1930, era naturalizado francês. Foi aluno de Husserl e conheceu Heidegger, cuja obra Ser e Tempo, de 1927, o influencioumuito. “A ética precede a ontologia” é uma frase que caracteriza o pensamento de Lévinas. Ele é autor do livro que o consagrouTotalité et infini. Essai sur l’extériorité que foi traduzido para o português com o titulo Totalidade e Infinito. Lisboa:Edições 70, 2000. No Brasil, a Editora Perspectiva, publicou Quatro leituras talmúdicas, em 2003, e a Editora Vozes, DeDeus que vem a idéia, em 2002. (Nota da IHU On-Line)

24 Hans Jonas (1902-1993): filósofo alemão, naturalizado norte-americano, um dos primeiros pensadores a refletir sobre as novasabordagens éticas do progresso tecnocientífico. A sua obra principal intitula-se: Das Prinzip Verantwortung. Versucheiner Ethik für die technologische Zivilisation, 1979. (Nota da IHU On-Line)

25 Hannah Arendt (1906-1975): filósofa e socióloga alemã, de origem judaica, nasceu em Hannover. Foi influenciada por Husserl,Heidegger e Karl Yaspers. Em conseqüência das perseguições nazistas, em 1941, partiu para os EUA, onde escreveu grande partedas suas obras. Lecionou nas principais universidades americanas. Propôs, em uma distinção inusitada, que os termos labor,trabalho e ação fossem entendidos como diferentes formas de atividades fundamentais do ser humano, sendo aquele vinculadoàs necessidades biológicas, o intermediário ao artificialismo da vida moderna e este às relações entre os homens sem a mediaçãodas coisas ou da matéria. Sua filosofia assenta numa crítica à sociedade de massas e à sua tendência para atomizar os indivíduos.Preconiza um regresso a uma concepção política separada da esfera econômica, tendo como modelo de inspiração a antigacidade grega. Entre suas obras, citamos: Eichmann em Jerusalém – Uma reportagem sobre a banalidade do mal. Lisboa:Tenacitas. 2004; O Sistema Totalitário. Lisboa: Publicações Dom Quixote.1978; O Conceito de Amor em SantoAgostinho. Lisboa: Instituto Piaget; A Vida do Espírito. v.I. Pensar. Lisboa: Instituto Piaget; Sobre a Revolução. Lisboa:Relógio D`Água; Compreensão Política e o Futuro e Outros Ensaios. Lisboa: Relógio D’Água (edição da Perspectiva,2002). Sobre Arendt, confira o número 168 da IHU On-Line, de 12 de dezembro de 2005, sob o título Hannah Arendt, SimoneWeil e Edith Stein. Três mulheres que marcaram o século XX. (Nota da IHU On-Line)

26 Hans-Georg Gadamer: filósofo alemão, autor do importante livro Verdade e método. Petrópolis: Vozes, 1997, faleceu no dia13 de março de 2002, aos 102 anos. Por essa razão, dedicamos a ele a matéria de capa da IHU On-Line número 9, de 18 demarço de 2002. (Nota da IHU On-Line)

27 Paul Ricoeur (1913-2005): filósofo francês. Sobre ele, conferir um artigo intitulado Imaginar a paz ou sonhá-la?, publicado na49ª edição da IHU On-Line, de 24 de fevereiro de 2003, e uma entrevista na 50ª edição, de 10 de março de 2003. A edição142, de 23 de maio de 2005, publicou a editoria Memória sobre Ricoeur, em função de seu falecimento. (Nota da IHUOn-Line)

28 Ludwig Binswanger (1881-1966): filósofo suíço considerado o fundador da psicologia existencial. (Nota da IHU On-Line)29 Medard Boss (1903-1990): psicanalista e psiquiatra suíço que desenvolveu uma forma de psicoterapia chamada análise do

Dasein, largamente influenciada na filosofia fenomenológico-existencial de seu amigo e mentor, Martin Heidegger. (Nota daIHU On-Line)

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No entanto, os desafios que ele lançou continuama repercutir em todas as faixas do espectro filosófi-co, numa proposta integradora, as linhas herme-nêutica e analítico-pragmática, inspiradas nosdois maiores mestres do século XX, Heidegger eWittgenstein, de um lado com K.-O. Apel30, e, dooutro, com R. Rorty31. Entretanto, é sobretudo opensamento pós-moderno de Lyotard32, J. Derri-da33, G. Vattimo e tantos outros, que não pode serentendido senão à luz da reflexão heideggerianasobre o destino da Metafísica e sobre o mundomoderno. Sua busca do fundo sem fundo do pen-sar, por um lado, e sua crítica do subjetivismo darazão instrumental moderna, por outro, deramazo ao surgimento do pensamento débil e da ra-zão fragmentada, que caracterizam as obras da-queles filósofos.

IHU On-Line – O fim da Metafísica anuncia-do por Heidegger ajuda a aprofundar a crisereligiosa das sociedades pós-modernas?João Augusto Mac Dowell – Para responder àsua pergunta será necessário esclarecer o que sig-nifica para Heidegger o fim da Metafísica. Defato, esta expressão entrou no jargão filosófico e,como tal, foi banalizada numa série de acepçõessuperficiais e confusas. O que Heidegger deno-mina “superação da Metafísica” não se identificacom as expressões idênticas ou equivalentes utili-

zadas por R. Carnap34 ou por Nietzsche ou aindapor Marx35. Estes autores, com base em pressu-postos certamente diversos, rejeitam simples-mente a Metafísica, como um tipo de pensamen-to ilusório e incapaz de revelar a verdade domundo. Para Heidegger, porém, que classifica,aliás, o pensamento desses filósofos como aindaenredado no dualismo metafísico, o fim da Meta-física constitui o acabamento de um processo his-tórico. Trata-se de uma etapa do pensamentoocidental, que possui sua grandeza própria, masque hoje já exauriu suas possibilidades. A Metafí-sica, tendo cumprido até o fim o seu destino, abreuma nova possibilidade de pensar e compreen-der o real no seu todo. Pensar o fim da Metafísicasignifica entender a essência do mundo moder-no, caracterizado pelo império da tecnociência,na qual o modelo metafísico do pensar chega àssuas últimas conseqüências.

Metafísica, estrutura da filosofia ocidental

Metafísica, segundo Heidegger, não é apenasuma das disciplinas filosóficas, ao lado da lógica,da ética, da antropologia filosófica e da filosofiada natureza. Constitui antes a própria estrutura dafilosofia ocidental desde Platão. A idéia heidegge-riana de Metafísica pode ser caracterizada, creio,por três elementos. Um deles é do dualismo platô-

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30 Karl-Otto Apel (1922): filósofo alemão que combinou as tradições filosóficas analítica e continental. É autor do livroTransformação da Filosofia V.1. São Paulo: Loyola, 2000. (Nota da IHU On-Line)

31 Richard Rorty: filósofo pragmatista estadunidense. Sua principal obra é Filosofia e o Espelho da Natureza. (Nota da IHUOn-Line)

32 Jean-François Lyotard (1924-1998): filósofo francês, autor de uma filosofia do desejo e significado representante dopós-modernismo. Escreveu, entre outros, A fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 1954, O inumano: considerações sobreo tempo. Lisboa: Estampa, 1990, Heidegger e ‘os judeus’. Lisboa: Instituto Piaget, 1999 e A condição pós-moderna. 8.ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 2004. (Nota da IHU On-Line)

33 Jacques Derrida (1930-2004): filósofo francês, criador do método chamado desconstrução. Seu trabalho é associado, comfreqüência, ao pós-estruturalismo e ao pós-modernismo. Entre as principais influências de Derrida encontram-se SigmundFreud e Martin Heidegger. Entre sua extensa produção, figuram os livros Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1973;L’Ethique du don, (1992), Demeure, Maurice Blanchot (1998), Voiles avec Hélène Cixous (1998), Donner la mort(1999). Dedicamos a Derrida a editoria Memória da IHU On-Line edição 119, de 18 de outubro de 2004 (Nota da IHUOn-Line).

34 Rudolf Carnap (1891-1970): filósofo alemão que trabalhou na Europa Central antes de 1935 e nos Estados Unidos após esseperíodo. Foi um dos principais membros do Círculo de Viena e um eminente defensor do positivismo lógico. (Nota da IHUOn-Line)

35 Karl Heinrich Marx (1818–1883): filósofo, cientista social, economista, historiador e revolucionário alemão, um dos pensadoresque exerceram maior influência sobre o pensamento social e sobre os destinos da humanidade no século XX. Marx foi estudadono Ciclo de Estudos Repensando os Clássicos da Economia. A palestra A Utopia de um novo paradigma para aeconomia foi proferida pela Prof.ª Dr.ª Leda Maria Paulani, em 23 de junho de 2005. O Caderno IHU Idéias, edição número41, teve como tema A (anti)filosofia de Karl Marx, com artigo de autoria da mesma professora. (Nota da IHU On-Line)

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nico, vigente sob formas diversas em todo o pen-samento ocidental, que se estabelece entre o mun-do sensível e o mundo inteligível, isto é, entre ascoisas individuais e mutáveis de nossa experiênciaimediata, situadas no espaço e no tempo, e a suaessência, como idéias universais e eternas, queconstituem a verdadeira realidade.

Outro traço determinante da Metafísica é oprivilégio do conhecente, radicalizado no subjeti-vismo moderno, mas vigente já, segundo Heideg-ger, na metafísica clássica, de determinar o ser doente, enquanto depende do juízo ou julgamentodo sujeito a sua verdade. A distinção entre ente eser é vista do sujeito, em função de seu movimen-to de transcendência sobre o ente para o ser. Éconstitutiva da Metafísica esta transcendência as-censional, na qual o ente é captado no seu ser erepresentado na sua verdade. Enfim, o tipo meta-físico de pensar tem um caráter onto-teológico,enquanto, embora se exercendo no âmbito da di-ferença ontológica entre ser e ente, não a pensa,ou seja, não interroga o sentido de ser, antes fun-damenta o ente no seu todo e na sua diversidadena unidade do ente primeiro, absoluto e infinito,identificado com o Deus cristão.

Tecnociência, expressão finalda Metafísica

A tecnociência moderna constitui para Hei-degger, como já disse, a expressão final e a ple-na realização do destino da Metafísica. Nela oente não é apenas re-presentado como ob-jetodo conhecimento, mas é também re-criado deacordo com os interesses e objetivos humanoscomo pro-jeto da vontade de poder. Nessascondições, as coisas do mundo se transformamem meros recursos, sem consistência própria,no interior de um sistema de controle, que cons-titui a essência da técnica. Entretanto, na suapretensão de tudo controlar, o ser humano aca-ba sendo controlado pela própria técnica. Ele jánão é capaz de pensar o ente e muito menos oser como tal, envolvendo sua existência, sem o

perceber, em um nada de sentido. Entretanto,diante da crise do que há de mais próprio no serhumano, quando todas as possibilidades dopensar metafísico se esgotaram, surge também aoportunidade de um novo pensar. Não se tratada negação da técnica nem da fuga do mundoda técnica, antes de procurar um caminho parao pensar neste contexto inexorável.

Este novo pensar, para o qual devemos nosdispor, segundo Heidegger, na sobriedade pró-pria da acolhida de um dom, já não será metafísi-co, nem tampouco antimetafísico e reducionista,como o cientificismo positivista ou o individualis-mo relativista. Ele terá de descartar, contudo, astrês características do pensamento metafísico aci-ma descritas. Desde Ser e Tempo, Heideggerapontava a necessidade de suplantar a oposiçãosecundária sensível/inteligível, ao desvendar aunidade originária da existência humana numatemporalidade existencial. Correspondentemen-te, o próprio ser, como horizonte último do pen-sar, não se situa no plano do imutável e eterno,mas implica uma historicidade constitutiva. Énesta perspectiva que a Metafísica, com seumodo próprio de pensar e compreender a reali-dade, constitui uma etapa na história do ser.Entretanto, a diferença ontológica já não se esta-belece mediante a transcendência do espírito hu-mano sobre o ente em direção ao ser. Pelo con-trário, a conversão ou vira-volta do itinerário hei-deggeriano, como superação da Metafísica, equi-vale à percepção de que é o próprio ser que tomaa iniciativa de se revelar, abrindo para o pensarum horizonte de compreensão. Isso significa aexclusão filosófica de qualquer pensar represen-tativo e objetivante. Trata-se antes de acolhercomo dom a manifestação do ser que torna osentes presentes ao pensar. Daí também se segueo questionamento da estrutura onto-teológica daMetafísica.

Essa caracterização de toda a história da Me-tafísica foi violentamente contestada por autores,que não aceitam que sejam assim rotulados deter-minados pensadores, como, por exemplo, Tomás

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de Aquino36. Sem envolver-me aqui mais a fundonesta discussão, basta dizer que, a meu ver, eladecorre de um mal-entendido. Com efeito, desdeAristóteles, a transcendência metafísica apontanuma dupla direção, por um lado, para o ente emgeral, isto é, o ente como ente (dimensão ontoló-gica), por outro, para o fundamento último doente (dimensão teológica). Portanto, a Metafísicatem inegavelmente um caráter onto-teológico. Oque pode ser questionado e discutido é o juízo deHeidegger a este respeito, ou seja, a afirmação dafundamentação do ente de nossa experiência emum ente primeiro, própria da Metafísica, como on-toteológica, não é uma interpretação filosofica-mente adequada da realidade.

Um pensar da essência,e não da existência

A posição heideggeriana decorre de váriospressupostos. O primeiro é a sua concepção da fi-losofia como determinação do ser ou “essência”do ente e, em última análise, do sentido de sercomo tal. Embora rejeite, a certa altura, pelos mo-tivos já dados, a Ontologia, como autêntico pen-sar do ser, a sua investigação tem certamente umcaráter “ontológico” (próprio do ser do ente), emoposição ao que chama de “ôntico” (próprio doente). Compreender o ente é compreender o seuser e não explicá-lo por outro ente, como fazem asciências positivas. Em virtude da adoção do méto-do fenomenológico, ele só focaliza o eidos, a casaformal no sentido aristotélico, desprezando todaconsideração da causa eficiente.

Para ele, a filosofia só pode levar em conside-ração aquilo que pode ser descrito fenomenologi-camente, isto é, que se manifesta implícita ou ex-plicitamente e pode ser experienciado, dando aotermo experiência o significado radical de presen-ça ao pensamento, independentemente da distin-

ção já superada, para ele, entre sensível e inteligí-vel. Tomando os termos no sentido tradicional,pode-se dizer, com aparente paradoxo, que o seupensar é um pensar da essência, e não da existên-cia. Ser, para Heidegger, não significa existir,como o fato de estar aí no mundo, mas sim o hori-zonte determinante do pensar, a iluminação e nãoo iluminado. Ele recusa, portanto, passar, median-te o raciocínio, do ente que é experienciado a seufundamento metafísico, inacessível à experiên-cia, a um ente supremo, que seria a razão suficien-te do que existe. Tal é a dimensão teológica daMetafísica, um procedimento de caráter ôntico,que a leva a esquecer a questão decisiva do statusdo próprio ser.

Com efeito, o novo pensar heideggerianonão pergunta pelo “porquê”. Esta pergunta sótem sentido no âmbito das relações entre os entesintramundanos. Procurar justificar o ente no seutodo, determinar a sua razão suficiente, alcançar oseu fundamento, foi a pretensão desmesurada darazão metafísica. O todo, no seu mistério, nãopode ser abarcado pela razão humana, essencial-mente limitada. O autêntico pensar é o que se si-tua modestamente diante do fundo sem fundo doser e, em vez de tentar dominá-lo, acolhe na grati-dão as suas manifestações. Uma vez que a revela-ção da verdade depende propriamente da iniciati-va do próprio ser, neste momento da crise do pen-samento metafísico, só resta ao ser humanodispor-se por uma expectativa serena a acolher aeventual comunicação de um novo pensar.

Heidegger e a questão de Deus

Só depois deste amplo rodeio, será possívelabordar diretamente sua pergunta sobre a religiãono pensamento de Heidegger e sobre as conse-qüências da superação heideggeriana da Metafísi-ca com relação à crise religiosa contemporânea.

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36 Tomás de Aquino (1227-1274): frade dominicano e teólogo italiano, santo da Igreja. Um de seus maiores méritos foi introduziro aristotelismo na escolástica anterior. A partir de São Tomás, a Igreja tem uma teologia (fundada na revelação) e uma filosofia(baseada no exercício da razão humana) que se fundem numa síntese definitiva: fé e razão. Nascido numa família nobre,estudou Filosofia em Nápoles e depois foi para Paris, onde se dedicou ao ensino e ao estudo de questões filosóficas eteológicas. Seus interesses não se restringiam à religião e filosofia, mas também à alquimia, tendo publicado uma importanteobra alquímica chamada Aurora Consurgens. Sua obra mais famosa e importante é a Suma Teológica. (Nota da IHUOn-Line)

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Em primeiro lugar, diga-se de passagem, que ostermos religião e experiência religiosa não sãobem vistos por ele, que os considera eivados dosubjetivismo moderno. Valoriza, ao invés, a expe-riência do sagrado e do divino, como constitutivada existência humana. A questão de Deus em Hei-degger é extremamente complexa e tem sido mui-to discutida. Só poderei acenar aqui para algunsaspectos mais importantes. Como já disse, ele re-jeita a linguagem metafísica sobre Deus, isto é,não aceita o tipo de pensamento que pretende de-monstrar a existência de Deus como fundamentoúltimo da realidade, nem reconhece no Deus doteísmo metafísico um Deus que possa ser objetode culto e de adoração. Por isso mesmo, enquantoum novo pensar não se consolidar, é mais sensatocalar-se diante do mistério do que querer falar deDeus.

Na verdade, segundo Heidegger, só é possí-vel falar autenticamente de algo à medida que semanifesta, ou seja, que é experienciado pelo pen-samento. Ora, o mundo da técnica, criado à ima-gem e semelhança do homem e de seus interesses,já não revela a presença de um Deus. Trata-se deum mundo dessacralizado, que impede o acessoautêntico ao divino. Estas observações indicamclaramente que, para ele, o divino, embora ocultopelo pensar representativo da modernidade, per-tence essencialmente ao horizonte existencial doser humano. Ele inclui expressamente esta dimen-são no quarteto, constitutivo do mundo, que en-volve a existência humana: céu, terra, deuses emortais. E a célebre entrevista que deu à revistaDer Spiegel por ocasião de seus 80 anos, para serpublicada apenas depois de sua morte, como seutestamento espiritual, contém a afirmação enig-mática, mas decisiva: “Só um Deus pode sal-var-nos”. A questão é saber de que Deus se trataaqui e qual é sua relação com o ser. É certo que oser, central no pensamento de Heidegger, não éDeus. O ser, aliás, não é, porque só do ente sepode dizer que é. E o ser não é um ente, aquiloque é. Por isso, Heidegger prefere dizer: há ser (esgibt Sein). Ora, o equivalente de “haver” em ale-mão se traduz literalmente em português por“dar-se”, que pode significar também algo como“haver”, “acontecer”, em frases como: “Isso se

deu (aconteceu, houve) naquele tempo”. Portan-to, ser, como se dá, implica algo comunicativo,algo de doação. É próprio do ser dar que pensar.Ele constitui a clareira em cujo âmbito as coisasvêm ao nosso encontro como sendo, isto é, na suaverdade e sentido.

Concepção de existênciano último Heidegger

Apesar de distinguir absolutamente entre oser e os entes, Heidegger lhe atribui uma espéciede atuação, que suporia uma consistência entitati-va e até um caráter pessoal. Para ele, como já ex-pliquei, é o ser que determina com suas iniciativasde manifestar-se ou ocultar-se o destino e a histó-ria do pensar. O verdadeiro pensar é aquele que,longe de arvorar-se em senhor da verdade, aco-lhe-a com gratidão como uma graça e favor doser. É evidente a semelhança dessa linguagemcom a que exprime na bíblia a relação entre Deuse a liberdade humana na revelação dos seus de-sígnios como história da salvação. Em todo ocaso, mesmo prescindindo da relação para comum Deus transcendente e criador, tem muito decristã a concepção da existência do último Hei-degger, como aceitação serena e agradecida dodom do ser como expressão suprema da liberdadecomo abertura à verdade.

Será que por trás do ser haveria que divisarum Deus, concebido não tanto como a causa efi-ciente do mundo empírico, quanto como a fontedo sentido, aquele que, ao comunicar o ser comoverdade, desperta o pensar como liberdade? Asintaxe do “dar-se” como “haver” em alemão édistinta da portuguesa, enquanto atribui gramati-calmente ao sujeito impessoal “es” o dom do serqual objeto direto. Poder-se-ia identificar neste“es” o mistério frontal do qual flui o ser como ohorizonte histórico da existência humana? Hei-degger não faz tal identificação. Mas esta reservanão decorreria, quem sabe, da convicção de quecom isso ultrapassaria os limites do puro filosofar?É possível. Em todo o caso, há também na suaobra indícios que vão em sentido contrário, ouseja, no sentido da concepção de um divino ima-nente ao cosmo, próxima à experiência do sagra-

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do própria da antiga religião da Grécia. A expres-são “deuses” como uma das dimensões do mun-do, que já mencionei, entre outras considerações,pode levar a tal interpretação. Nesse caso, o serplanaria sobre o mundo humano tal qual a “moi-ra” da mitologia grega, como o que determina, emúltima análise, o destino dos deuses e dos mortais.

Niilismo e “morte de Deus”

É possível que Heidegger tenha deixado, afi-nal, sem resposta a questão sobre o tipo de divinoao qual ele se refere. Qualquer que seja, porém, asua posição a esse respeito, é certo que o divinofaz parte de sua visão da realidade. O seu pensa-mento sobre o fim da Metafísica, bem entendido,longe de contribuir para o agravamento da crisereligiosa contemporânea, permite encará-la com amaior lucidez. Por um lado, a “morte de Deus”,característica da cultura moderna, não equivale aum atestado da inexistência de Deus, segundo suainterpretação da afirmação de Nietzsche, mas tãosomente à percepção de que o Deus da Metafísicaperdeu todo o seu vigor, já não é capaz de darsentido ao mundo contemporâneo. Por outrolado, ele tacharia certamente de superficiais e ab-solutamente incapazes de superar o niilismo atual,resultante da “morte de Deus”, as manifestaçõesde ressurgimento religioso dos últimos decênios.Esta religiosidade individualista, voltada para asatisfação afetiva do sujeito, constitui uma meraatitude reativa diante do racionalismo moderno,que, por isso mesmo, no seu irracionalismo per-manece atrelada ao mesmo esquema de pensa-mento. Como disse há pouco, para Heidegger, sóà medida que o divino se manifesta pode estabe-lecer-se um autêntico ser-para-Deus. Apenas elepode tomar a iniciativa de revelar-se, cabendo aoser humano tão somente acolher com atenção acomunicação divina. Destarte, nesta época deocultamento da divindade, não passaria de arro-

gância enfatuada qualquer tentativa de chegar aDeus, seja pela demonstração racional, seja pelosentimento religioso. Nem por isso propugna Hei-degger uma atitude de mera passividade e resigna-ção diante da crise atual. Trata-se de assumir a ta-refa de vigiar e proteger a verdade do ser, regiãoonde será possível experienciar o sagrado e pensarsua essência, desde que ele volte a manifestar-se.

IHU On-Line – De que forma o senhor inter-preta a decisão de Heidegger de filiar-se aonacional-socialismo, tendo em vista quequase foi padre e pediu um funeral religioso?João Augusto Mac Dowell – No tempo de suaadesão ao nacional-socialismo, Heidegger já haviarompido os laços com a Igreja Católica. Não creioque este episódio, já debatido à saciedade, possaser explicado, num ou noutro sentido, em funçãodas atitudes religiosas de Heidegger. Em todo ocaso, ele constitui uma mancha indelével na bio-grafia do filósofo. Mais grave, sob o ponto de vistaético, que a filiação, por um breve período, aopartido nazista – que poderia ter suas atenuantes –foi talvez sua recusa até o fim de exprimir sua meaculpa por tal gesto. Nem por isso se justifica a ten-tativa de, com base nesse fato, querer desqualifi-car o seu pensamento. Naturalmente, passos des-ta envergadura têm muito a ver com a mentalida-de da pessoa, os valores que a norteiam. Foram asesperanças de um ressurgimento do povo alemão,após as trágicas experiências da derrota na Pri-meira Guerra Mundial e do desastre da Repúblicade Weimar, e mais ainda sua visão de uma revita-lização da cultura ocidental com base em raízesautênticas, que ele projetou ingenuamente sobre afigura esquálida de Hitler37. No entanto, este errofatal de julgamento, logo corrigido, a respeito doeventual executor de tais ideais não comprovaqualquer afinidade entre seu pensamento e a ideo-logia nacional-socialista. São, portanto, deplorá-

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37 Adolf Hitler (1889-1945): ditador alemão, líder do Partido Nazista. Suas teses racistas e anti-semitas, bem como seus objetivospara a Alemanha ficaram patentes no seu livro de 1924, Mein Kampf (Minha Luta). No período da sua ditadura, os judeus eoutros grupos minoritários considerados “indesejados”, como ciganos e negros, foram perseguidos e exterminados no que seconvencionou chamar de Holocausto. Cometeu o suicídio no seu Quartel-General (o Führerbunker) em Berlim, com o ExércitoSoviético a poucos quarteirões de distância. A edição 145 da IHU On-Line, de 13 de junho de 2005, comentou na editoriaFilme da Semana, o filme dirigido por Oliver Hirschbiegel, A Queda – as últimas horas de Hitler. (Nota da IHU On-Line)

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veis as tentativas de invocar este episódio com ofito de minar a influência do pensador do ser.

IHU On-Line – A superação heideggerianada Metafísica não excluiria uma verdade ab-soluta? E a fundamentação das questõeséticas, como pode ser feita com base nessaposição?João Augusto Mac Dowell – A noção heideg-geriana da verdade originária como des-oculta-mento e manifestação do ente no seu ser e corres-pondentemente como abertura e liberdade dopensar relativiza a distinção metafísica entre ver-dade absoluta e relativa. A manifestação do ente ésempre verdadeira; poderá, sim, ser mais ou me-nos verdadeira, de acordo com o maior ou menordes-ocultamento do ser e de acordo com a ampli-tude da perspectiva hermenêutica do pensar. Nãohá, porém, para o pensar humano, essencialmen-te finito, uma verdade absoluta, isto é, uma reve-lação total do ente no seu ser. É isso que reconhe-ce o novo pensar que supera o racionalismo dametafísica moderna e sua pretensão de abarcar nopensamento toda a verdade. Não se pode fundarabsolutamente o edifício do saber. A verdade,contraposta à falsidade, como correspondênciaou não entre o que é afirmado no juízo predicativoe a realidade, é, para Heidegger, uma concepçãosecundária de verdade. Nada impede, todavia, deconsiderar a verdade do juízo, nesta acepção,como absoluta. Algo não pode, ao mesmo tempoe sob o mesmo aspecto, ser e não ser verdadeiro,como pretende o relativismo. No entanto, este dis-curso lógico-predicativo não é o mais adequadopara pensar o ente no seu todo, pensamento queencerra também, segundo Heidegger, uma di-mensão ética.

A sua posição a respeito das questões éticas écomplexa. Ele não desenvolve uma ética como

ciência das normas ou valores morais, porqueconsidera que tal saber pertence ao reino da Meta-física. Isso não o impede de distinguir em Ser eTempo a existência autêntica da inautêntica, em-bora o critério para tal distinção não seja a adesãoou não a determinadas normas obrigatórias, e simo assumir a finitude e a temporalidade da existên-cia como ser-para-a-morte, o que relativiza todasas possibilidades intramundanas, libertando a pes-soa para a escolha livre. Aqui, portanto, o acentorecai sobre a responsabilidade de cada um decompreender-se e projetar-se de acordo com osentido próprio de sua existência. A segunda fasedo pensamento heideggeriano contém também ede maneira talvez ainda mais central um aspectoético. Não se trata, porém, de uma disciplina filo-sófica específica. O agir humano só pode ser com-preendido em conexão com a essência das coisas,do próprio homem, do seu pensar, da sua lingua-gem e do ser. Desse modo, há uma ética imanenteao próprio pensar do ser, que é assim anterior àdistinção tradicional entre saber teórico e saberprático. Heidegger tem plena consciência de que,no mundo atual, justamente como dominado pelatécnica, não vigoram normas e valores absolutos.Por isso mesmo, nestas circunstâncias, não temsentido propor outro sistema de valores ou procu-rar fundamentá-lo. O que importa é dispor-se me-diante determinadas atitudes a acolher na liberda-de uma eventual manifestação do ser que, paraalém do mundo da técnica, configure uma novarelação do homem para com o ente no seu todo.Ele propõe, assim, em contraste com o subjetivis-mo e o antropocentrismo modernos, um ethos ca-racterizado por atitudes como a admiração e a re-verência ante o mistério do ser, a serenidade e agratidão, entre outras. Só assim o ser humano e oseu pensar, que é para ele a forma fundamental deagir, corresponderão aos apelos do ser.

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Heidegger e a subjetividade

Entrevista com William Richardson

Professor do Departamento de Filosofia doBoston College, em Chestnut Hill, Massachussets,EUA, o filósofo e psicanalista William RichardsonSJ afirmou por e-mail à IHU On-Line, em 3 de ju-lho de 2006, que “a contribuição de Heideggerpara o entendimento da subjetividade foi esclare-cer sobre o que um sujeito é e o que não é. Clara-mente, o que não é, é o ser que Heidegger tomoucomo o fenômeno humano por excelência: Dasein,cuja natureza essencial é simplesmente Estar-no-mundo (In-der-Welt-Sein). Se, eventualmente, eleage como sujeito, isso é uma função válida, porémpuramente secundária”.

Richardson é mestre em Filosofia pelo Institu-to Superior de Filosofia de Lovaina, na Bélgica.Ao longo de sua trajetória acadêmica recebeu di-versos prêmios e reconhecimentos, entre eles oCardinal Mercier Prize in Philosophy, da Universi-dade de Louvain, o Pós-doctoral Fellow, da Soci-ety for Values in Higher Education. De seus inú-meros artigos, destacamos The place of the un-conscious in Heidegger. Review of ExistentialPsychology and Psychiatry, V, 1965; Kant and theLate Heidegger. In Phenomenology in America,ed. J.M. Edie. Chicago: Quadrangle, 1967; Hei-degger and the Quest of Freedom. TheologicalStudies, XXVIII, 1967; The transcendence of Godin the World of Man. Proceedings of the CatholicTheological Society of America, XXIII, 1968.

IHU On-Line – Quais são as principais críti-cas de Heidegger à ciência? Como essasconsiderações podem ser aplicadas à ciên-cia de nossos dias?William Richardson – A crítica de Heidegger àciência é moldada pela sua crítica à metafísica,que surgiu da sua experiência filosófica anterior.Em uma carta de 1962, quando perguntado sobrecomo sua busca filosófica começou, ele respon-deu: “O primeiro texto filosófico no qual eu traba-lhei repetidas vezes desde 1907 foi a dissertaçãode Franz Brentano38: Sobre o Sentido Principal doSer em Aristóteles (1862). Na folha de rosto doseu trabalho, Brentanto cita a frase de Aristóteles:to on legetai pollachôs. Eu traduzo: “Um ser mani-festa-se (ou seja, a respeito de seu Ser) de váriosmodos.” Latente nesta frase é a questão que de-termina o modo do meu pensamento: o que é adeterminação penetrante, simples e unificada doSer que permeia todos os seus múltiplos sentidos?... Como eles podem ser trazidos para um acordocompreensível? Este acordo não pode ser com-preendido sem primeiro levantar-se e estabele-cer-se a questão: de onde este Ser como tal (nãomeramente ser como ser) recebe esta determina-ção?” (ênfase de Heidegger)

O “Ser” (Seidenes) do título de Brentano tra-duz o to on (“o que quer que seja”), isto é, um ser,como distinto do uso do “Ser” (Sein) de Heideg-

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38 Franz Brentano (1838-1917): filósofo alemão. Lecionou em Würzburg e na Universidade de Viena. Sua filosofia evoluiu paraum aristotelismo moderno, nitidamente empírico em seus métodos e princípios. Os trabalhos mais importantes de Brentano sãono campo da psicologia, por ele definida como ciência da alma. Os objetos de seus estudos não foram, porém, os estados, e simos atos e processos psíquicos. Segundo Brentano, o fenômeno psíquico distingue-se dos demais por sua propriedade dereferir-se a um objeto por meio de mecanismos puramente mentais. Ao filósofo caberia, então, estudar as diversas maneiraspelas quais a mente estabelece contatos com os objetos. Sua obra póstuma mais importante é Von Simmlichen umPoetishen Bewusstsein (Sobre a consciência sensorial e poética), de 1928. (Nota da IHU On-Line)

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ger no sentido de que um ser se manifesta como oque ele é – o É, por assim dizer, do o-que-é. O pró-prio Aristóteles, na sua “primeira filosofia”, procuraentender seres como seres (on hei on) tanto no sen-tido do menor denominador comum de todos osseres (o que foi mais tarde chamado de “ontologiageral”) ou de seres no sentido de suas bases finaisem algum ser supremo, a temática que mais tardefoi chamada “teologia”. Vistas juntas, essas duasabordagens ao questionamento dos seres como se-res se tornam idênticas como “metafísica”. As ra-zões para o termo são incertas, parcialmente porcausa da ambigüidade de meta (significando“após” ou “além”) como prefixo de physika (“físi-ca”) na fórmula. Qualquer que seja a origem do ter-mo, Heidegger insiste que a metafísica no seu todo épreocupada apenas com os seres como seres e ne-gligencia as questões mais profundas sobre o É doo-que-é na sua diferença do o-que-é, que repousana fundação da metafísica e a torna possível.

Segmento dos seres

O que nós chamamos de “ciência” lida comum certo segmento desses seres e começa com odesenvolvimento, pelos cientistas, de uma meto-dologia para medir, calcular e especular sobre anatureza de um certo segmento dos seres comuma visão para entendê-los melhor e na esperan-ça de aprimorar a capacidade do ser humano emlidar com eles nos interesses práticos da vida diária.Entendida dessa maneira, a ciência para Heideggeré totalmente merecedora do seu respeito. Até oponto em que, no entanto, os cientistas em plenovôo tendem a negligenciar as dimensões mais pro-fundas dos seres que deixam seu próprio trabalhodar em nada, Heidegger critica o esforço científicoem arriscar a redução a meros instrumentos para ocontrole humano e para o engrandecimento dodesejo humano pelo poder sobre eles.

Tal redução demanda a própria dignidadehumana do cientista, unicamente baseada naabertura ao Ser na sua diferença dos seres os quaisele formalmente investiga. Isso posto, Heideggerjogou uma grande luz na emergência histórica doempreendimento científico como o efeito de umesquecimento do Ser em uma época da históriamarcada pela origem da ciência moderna. Alémdisso, certos cientistas encontraram sua própriatécnica fenomenológica de Heidegger, a qual eleuma vez chamou de “hermenêutica de facticida-de”, que foi de grande ajuda em tornar as apre-sentações mais precisas, iluminando seus própriosprocedimentos metodológicos.

IHU On-Line – De que forma a filosofia hei-deggeriana contribui para um entendimen-to da subjetividade e dos fundamentos fi-losóficos da psicoanálise?William Richardson – Para Heidegger, o serhumano é considerado como Dasein39, ou seja,um ser entre o resto dos seres, por meio do que oSer se torna manifesto com a revelação de todosos seres em que e como são. Como tal, Dasein(ou Existência) é pensado como sendo um “eu”,mas não um “sujeito”. Ser um sujeito significa re-lacionar-se com todos os outros seres como “ob-jetos” para os quais o sujeito é o único ponto dereferência para determinar o que quer que pos-sam “significar”. Assim, todos os seres são obje-tos para sujeitos, ou sujeitos que servem comoobjetos para outros sujeitos (ou para si mesmos).Na psicanálise, o ser humano é concebido comoum sujeito – em princípio um sujeito consciente –que é capaz da atividade a qual – apesar de suaconsciência – é, na verdade, inconsciente. Essadimensão da qual o sujeito é inconsciente foi pri-meiro problematizada por Freud40 e designadapor ele como “o inconsciente”. Quer seja cons-ciente ou inconsciente, o sujeito analisado por

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39 A tradução literal do termo (alemão) seria “ser-aí”. (N. do T.)40 Sigmund Freud (1856-1939): neurologista e fundador da psicanálise. Interessou-se, inicialmente, pela histeria e, tendo como

método a hipnose, estudando pessoas que apresentavam esse quadro. Mais tarde, interessado pelo inconsciente e pelas pulsões,foi influenciado por Charcot e Leibniz, abandonando a hipnose em favor da associação livre. Estes elementos tornaram-se basesda psicanálise. Freud, além de ter sido um grande cientista e escritor, realizou, assim como Darwin e Copérnico, uma revolução noâmbito humano: a idéia de que somos movidos pelo inconsciente. Freud, suas teorias e seu tratamento com seus pacientes foramcontroversos na Viena do século XIX, e continuam muito debatidos hoje. A edição 170 da IHU On-Line, de 8 de maio de 2006,dedicou-lhe o tema de capa sob o título Sigmund Freud. Mestre da suspeita. (Nota da IHU On-Line)

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Freud foi o sujeito como o descoberto por Descar-tes41. A contribuição de Heidegger para o enten-dimento da subjetividade foi esclarecer sobre oque um sujeito é e o que não é. Claramente, oque não é, é o ser que Heidegger tomou como ofenômeno humano por excelência: Dasein, cujanatureza essencial é simplesmente Estar-no-mundo (In-der-Welt-Sein). Se, eventualmente,ele age como sujeito, isso é uma função válida,porém puramente secundária.

IHU On-Line – Quais as contribuições deHeidegger para uma compreensão mais am-pla do inconsciente do sujeito?William Richardson – Para um homem de tãogrande inteligência, o entendimento de Heideggersobre Freud parece cru e superficial. Ele foi seria-mente apresentado a Freud relativamente tardena vida, quando Medard Boss42 o convidou parauma série de seminários (1959-1969) para os psi-quiatras que ele estava treinando em Zollikon (Su-íça). Brevemente, Heidegger assumiu que, quan-do Freud encontrou um processo físico que elenão podia explicar pela causalidade consciente,ele postulou um processo psíquico inconscientepara esclarecê-lo. Mas isso foi ignorar completa-mente a dimensão do Dasein/Existência comoSer-no-mundo, a qual estende muito além o nívelde consciência consciente da Dasein/Existência.Considerando essa dimensão, seria necessário

postular algo tão bizarro quanto a inconsciênciafreudiana para poder explicar o comportamentohumano. De fato, o próprio Boss já havia (antesde 1959) dispensado a hipótese de uma incons-ciência freudiana a favor de uma análise clínicapróxima da Dasein/Existência como Ser-no-mun-do. Ele batizou esta técnica de “Dasainanálise” eformou a base de um método psicoterapêuticoque continua a ser usado por esse nome pelos su-cessores contemporâneos de Boss.

No entanto, essa atitude negativa para comFreud permanece sobre o entendimento fisicalistade Heidegger da metapsicologia de Freud. Maisrecentemente, uma nova abordagem de Freud foiproposta por um dos mais eminentes discípulos deFreud: o assim chamado “Freud francês”, JacquesLacan43. Após estudar intensamente os principaistrabalhos iniciais de Freud (A Interpretação dosSonhos {1900}, A Psicopatologia na VidaDiária {1901} e Chistes e sua relação com oInconsciente {1905}), Lacan concluiu que o in-sight épico de Freud foi no caminho dos trabalhoscom a linguagem. O recurso de Freud às categori-as fisicalistas a fim de especular sobre isso foi de-terminado pelo fato de que esses foram os únicosmeios disponíveis a ele nos círculos científicos dasua época para que se pudesse fazer esse insightespeculativamente crível. No século XX, entretan-to, outra ciência surgiu: a lingüística formal – ten-do como pioneiro Ferdinand de Saussure44, e foi

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41 René Descartes (1596-1650): filósofo, físico e matemático francês. Notabilizou-se sobretudo pelo seu trabalho revolucionáriona filosofia. Foi também famoso por inventar o sistema de coordenadas cartesiano, que influenciou o desenvolvimento docálculo moderno. Descartes, por vezes chamado o “criador da filosofia e da matemática modernas”, inspirou os seuscontemporâneos e gerações de filósofos. Na opinião de alguns comentadores, ele iniciou a formação daquilo a que hoje sechama de racionalismo continental (supostamente em oposição à escola que predominava nas ilhas britânicas, o empirismo),posição filosófica dos séculos XVII e XVIII na Europa. (Nota da IHU On-Line)

42 Medard Boss (1903-1990): psicanalista e psiquiatra suíço que desenvolveu uma forma de psicoterapia chamada análise doDasein, largamente influenciada pela filosofia fenomenológico-existencial de seu amigo e mentor, Martin Heidegger. (Nota daIHU On-Line)

43 Jacques Lacan (1901-1981): psicanalista francês. Lacan fez uma releitura do trabalho de Freud, mas acabou por eliminarvários elementos deste autor (descartando os impulsos sexuais e de agressividade, por exemplo). Para Lacan, o inconscientedetermina a consciência, mas ele é apenas uma estrutura vazia e sem conteúdo. (Nota da IHU On-Line)

44 Ferdinand de Saussure (1857-1913): lingüista suíço, cujas elaborações teóricas propiciaram o desenvolvimento da lingüísticacomo ciência e desencadearam o surgimento do estruturalismo. Além disso, o pensamento de Saussure estimulou muitos dosquestionamentos que existem na lingüística do século XX. (Nota da IHU On-Line)

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estendida para a cultura antropológica por ClaudeLévi Strauss45 – que pode servir como um para-digma melhor para a conceitualização do insightoriginal de Freud do que o fisicalista. O próprioprojeto de Lacan, então, tornou-se um retorno aoinsight original de Freud e um repensar as suas im-plicações lingüísticas de acordo com a hipótesefundamental de que “a inconsciência é estrutura-da como a linguagem”. Como teria reagido Hei-degger se Freud tivesse sido apresentado a elenesse contexto?

Base ontológica

Nós não sabemos, é claro, mas nós sabemosque, para o Heidegger inicial, a linguagem tinhaum lugar único na estrutura ontológica do Dasein/Existência. Dos três componentes “equiprimordi-ais” da estrutura ontológica do Dasein/Existência,die Rede, termo pelo qual Heidegger traduz o lo-gos grego, não é só “discurso” (traduzindo para oportuguês), mas a exata estrutura do Dasein/Exis-tência que permite Verstehen e Befindichkeit “che-gar à expressão” lingüística. Do mesmo modo,nós sabemos que, para o Heidegger recente, o lo-gos de Heráclito46 (como physis para Parmêni-des47) é um modo no qual o Ser/aletheia48 dá emnada. Conseqüentemente, logos/legein para He-ráclito é interpretado como o processo de agrupa-mento de seres neles mesmos, precisamente nasua acessibilidade (expressível). Por esta razão, lo-gos, como experienciado por Heráclito, pode serentendido como a própria linguagem na sua maisprofunda origem. Então, o esforço recente de Hei-degger em pensar o significado do Ser da funçãoda linguagem em poeta, pensador e homem deestado é um complemento coerente ao seu insight

inicial no logos como um componente estruturaldo Dasein/Existência no contexto do Ser e Tem-po. Conseqüentemente, o psicanalista, então dis-posto, pode pensar o analisando como um eu jáconstituído pelo logos como um componente on-tológico do seu Ser, que também é ôntico, deacordo com as leis da linguagem que a lingüísticadiscerne. São essas leis que podem estruturar eguiar o próprio processo analítico. Em suma, se “ainconsciência é estruturada como a linguagem”,Heidegger pode oferecer uma base ontológica paraa qual Lacan e seus seguidores são tentados para fa-zer o insight ôntico genial de Freud cientificamenterespeitável para outras gerações de pensadores.

IHU On-Line – Como Heidegger pode funda-mentar a liberdade na pós-modernidade?William Richardson – Esta é uma dupla ques-tão: a) como Heidegger entende a modernidadecomo uma época de Ser-como-história? b) qual éo papel da liberdade em tal concepção?

a) Modernidade. É senso comum agora dizerque as primeiras tentativas de Heidegger de discer-nir o significado de Ser por meio de uma fenomeno-logia do Dasein/Existência como Ser-no- mundo,em Ser e Tempo produziram uma conceitualiza-ção negativa do Ser, ou seja, como não- um-ser/coi-sa, como Não-coisa ou Nada (Nichts) que podemser articulados onticamente. No entanto, a análiseda verdade produziu a explicação clássica da ver-dade em conformidade entre o julgamento e o con-teúdo do que é afirmado, pressupondo uma arenaprévia de acesso entre juiz e julgado, no qual umprimeiro encontro entre as duas partes tem espaço.Essa área antecedente de abertura, segundo Hei-degger, é um tipo mais fundamental de verdadeque a forma contida em julgamentos, que os gre-

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45 Claude Lévi-Strauss (1908): antropólogo belga que dedicou sua vida à elaboração de modelos baseados na lingüísticaestrutural, na teoria da informação e na cibernética para interpretar as culturas, que considerava como sistemas decomunicação, dando contribuições fundamentais para o progresso da antropologia social. Sua obra teve grande repercussão etransformou, de maneira radical, o estudo das ciências sociais, mesmo provocando reações exacerbadas nos setores ligadosprincipalmente à tradição humanista, evolucionista e marxista. Ganhou renome internacional com o livro Les Structuresélémentaires de la parenté (1949). Em 1935, Lévi-Strauss veio ao Brasil para lecionar Sociologia na USP. Interessado emetnologia, realizou um trabalho de pesquisa em aldeias indígenas do Mato Grosso. A experiência foi sistematizada no livroTristes Trópicos, publicado em 1955, e considerado um dos mais importantes livros do século XX. (Nota da IHU On-Line)

46 Heráclito de Éfeso (540 a. C. - 470 a. C.): filósofo pré-socrático, considerado o pai da dialética. Problematiza a questão do devir(mudança). (Nota da IHU On-Line)

47 Parmênides de Eléia (530 a. C. – 460 a. C.): filósofo pré-socrático, fundador da escola eleática. (Nota da IHU On-Line)48 Termo grego para “verdade”. (N. do T)

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gos chamavam simplesmente aletheia, literalmen-te a – (“privação”) – lethe (“esquecimento”, “ocul-tamento”), portanto um processo inicial de “des-ocultamento” como prévio a qualquer outra for-ma de verdade. Este poderia ser um domínio depura abertura de todos os seres, o Aberto como tal(ou seja, o próprio Ser) que habilita todos os seresa se revelarem como o que e como são.

Após 1930, aletheia como des-ocultamentodesempenhou um papel mais ativo que antes e foiconcebida como simultaneamente, revelando-se parae ocultando-se da Dasein/Existência. Este processode revelação/ocultação em seguida levou a umsentido histórico como já antecipado em Ser eTempo e pensado posteriormente como uma es-pécie de dispensa do Ser-como-aletheia para oDasein/Existência, mesmo para indivíduos (ex:Parmênides, Heráclito, Platão etc), ou para gran-des grupos de humanos, assim constituindo todasas épocas da história. Teria sido esquecimento(Geschick) para Descartes, que iniciou um estilode pensamento filosófico geralmente categorizadocomo “subjetivismo”, de acordo com o qual todosos seres foram pensados na polaridade sujeito-ob-jeto. Como este estilo de pensamento tornou pos-sível a revolução científica de Copérnico49 a New-ton50 e além, Heidegger explica detalhadamente.Tudo somado, a revolução filosófica instituída porDescartes e a evolução da metodologia científicaque constituiu a emergência da ciência modernacoincidiram para formar o que nós agora chama-mos de época da modernidade. Heidegger insisti-ria, entretanto, que nós pensássemos sobre issomenos como uma realização humana do que efe-

tivamente um esquecimento do Ser como aletheiaao qual certos homens e gênios responderam.

O papel da liberdade

b) Liberdade. Cada esquecimento da aletheiaé um esquecimento de liberdade, pois aletheia im-plica liberação da escuridão que torna os sereshumanos livres e abertos para o que é/são. Hei-degger deixa esse ponto explícito ao discutir ou-tra época do Ser-como-história que ele caracteri-za como uma espécie de seqüência para a mo-dernidade e descreve a época da tecnicidade (dieTechnik). Na sua essência, ela é marcada não sópela objetivação de seres, mas pelo aumento dopoder sobre eles, que eventualmente vitimiza a siprópria. Heidegger a apresenta, entretanto, comouma época de liberdade na qual ela é um novomodo de des-ocultamento.

A essência da liberdade não está original-mente conectada com a vontade ou mesmo com acausalidade da vontade humana. A liberdade go-verna o espaço livre no sentido da clareza, a qualdeve-se dizer a revelada. ... Mas aquilo que liberta– o mistério está oculto e sempre se ocultando.Toda a revelação surge do livre, vai para o livre etraz o livre (A Questão a Respeito da Tecnologia,grifo de Heidegger).

Isso é bonito de se dizer, é claro, mas como a li-berdade então entendida se relaciona com a “von-tade e a causalidade da vontade humana”, a qualprecisa ser envolvida em qualquer resposta genuina-mente humana à liberdade como dispensa daaletheia? Heidegger não é de grande ajuda aqui.

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49 Nicolau Copérnico (1473-1543): astrônomo e matemático polonês, além de cânone da Igreja, governador e administrador,jurista, astrólogo e médico. Desenvolveu a teoria heliocêntrica para o sistema solar, que colocou o Sol como o centro do sistemasolar, contrariando a então vigente teoria geocêntrica - o geocentrismo (que considerava a Terra como o centro do sistemasolar). Essa teoria é considerada uma das mais importantes descobertas de todos os tempos, sendo o ponto de partida daastronomia moderna. A teoria copernicana influenciou vários outros aspectos da ciência e do desenvolvimento dahumanidade, permitindo a emancipação da cosmologia com relação à teologia. O IHU promoveu de 3 de agosto a 16 denovembro de 2005 o Ciclo de Estudos Desafios da Física para o Século XXI: uma aventura de Copérnico aEinstein. Sobre Copérnico, em específico, o Prof. Dr. Geraldo Monteiro Sigaud, da PUC-Rio, proferiu palestra em 3 deagosto, intitulada Copérnico e Kepler: como a Terra saiu do centro do Universo. (Nota da IHU On-Line)

50 Isaac Newton (1642-1727): físico, astrônomo e matemático inglês. Revelou como o universo se mantém unido através da suateoria da gravitação, descobriu os segredos da luz e das cores e criou um ramo da matemática, o cálculo infinitesimal. Essasdescobertas foram realizadas por Newton em um intervalo de apenas 18 meses, entre os anos de 1665 e 1667. É consideradoum dos maiores nomes na história do pensamento humano, por causa da sua grande contribuição à matemática, à física e àastronomia. O IHU promoveu de 3 de agosto a 16 de novembro de 2005 o Ciclo de Estudos Desafios da Física para oSéculo XXI: uma aventura de Copérnico a Einstein. Sobre Newton, em específico, o Prof. Dr. Ney Lemke proferiupalestra em 21 de setembro, intitulada A cosmologia de Newton. (Nota da IHU On-Line)

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IHU On-Line – Como podemos entenderessa liberdade diante de regimes totalitá-rios, como o nazista, por exemplo?William Richardson – Para Heidegger, a expe-riência da verdade como liberdade não é umabênção pura51. Cada revelação da verdade é finitae deixa um resíduo de trevas, lethe52. Ela pode as-sumir duas formas: uma forma é o “mistério”, “oesconder daquilo que é totalmente escondido, dosseres como tais”; o segundo modo Heidegger cha-ma “falibilidade” uma combinação de mistérioque ignora, subverte e até perverte o mistério, detal maneira que Heidegger a chama de “contra-es-sência da verdade”: “A falibilidade pertence àconstituição interna do Dasein/Existência na qualo homem histórico é admitido. (...) Desencami-nhando-o, a falibilidade domina o homem com-pletamente.” (Sobre a essência da verdade). Essadominação pode afetar o Dasein/Existência indi-vidual, ou grupos sociopolíticos, ou culturas intei-ras – até, certamente, a mais precursora experiên-cia dos gregos.

(Se) aletheia tem uma essência conflituosa, aqual aparece também nas formas opositivas dedistorção e esquecimento, então na polis53 comodomicílio essencial do homem há que se regrar to-das as mais extremas contra-essências e nisso to-dos os excessos do indisfarçável. ... Aqui as menti-ras disfarçaram a base primordial dessa caracterís-tica apresentada por Jacob Burkhardt pela primei-ra vez em toda sua distinção e multiplicidade: a“assustadoriedade”, a “horribilidade”54, a atroci-dade da polis grega. Assim é a ascensão e a quedado homem no domicílio histórico de sua essência(entre os gregos) (Paramenides, 90). Desse modo,fenômenos como o totalitarismo e o nazismo de-vem ser guardados como formas de excesso namodalidade da falibilidade. Como eles estão sen-do superados? A questão é essencialmente a mes-ma que: como estamos sendo “salvos” das pilha-gens da tecnicidade (die Technik)?

IHU On-Line – De que maneira o pensamen-to desse filósofo pode nos ajudar a compre-ender uma sociedade cada vez mais secula-rizada e mais subjugada pelo paradigma datécnica?William Richardson – A questão é análoga à deSer e Tempo: como tornar-se autêntico? Lá (emSer e Tempo) a resposta é: finalmente aceitan-do-se como o transcendente (ao mundo) que é fi-nito, cujo sentido último é tempo, ou seja, como aabertura à verdade como vivenciada em todas asconseqüências de sua finitude. O “sim” do Dasein’sexitentiell a essa situação ôntica/ontológica estána própria realização da autenticidade. Analoga-mente, sugiro que a única forma de o Dasein/Exis-tência “superar” o esquecimento da verdade quelhe fora concedida, com todas as conseqüênciasda negatividade que isso implica, é reconhecê-lacomo tal para o que é e lidar com sua negativida-de da melhor forma possível.

Quando o próprio Heidegger foi questionadosobre se havia alguma razão para esperar pela sal-vação dessa condição humana comum, sua res-posta foi “Apenas um deus pode salvar-nos!”.Tomo “deus” aqui por uma metáfora hölderlinia-na55 para um outro, ou seja, diferente, esqueci-mento do Ser, o que pode, claro, incluir sua pró-pria negatividade dinâmica. Isso deixa-nos ape-nas com um futuro bastante desanimador para oqual olhar? Talvez! Mas isso é mais promissor doque aquilo com que Nietzsche deixa-nos: o eternoretorno do mesmo. Para Heidegger, o futuro doDasein/Existência vem por meio do passado, defi-nitivamente, mas como um advento contínuo,sempre novo e fresco. Certamente o futuro seriapreso em sua própria inescapável escuridão, maspoderia ao menos deixar-nos livres para desejarque possamos beneficiar-nos com a experiênciade outros e lidarmos com isso melhor que antes.

Tudo isso implica, entretanto, que o Dasein/Existência seja capaz de responder ao esqueci-

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51 O termo usado no original, unmixed, significa “pura” no sentido de “não-adulterada”. (N. do T.)52 Palavra originária do grego e que significa “negatividade”. (N. do T.)53 Termo grego para “cidade”. (N. do T.)54 Os termos “assustadoriedade” e “horribilidade” não existem no português, porém foram “criados” para que a frase se fizesse

entender. (N. do T.)55 Relativa a Friedrich Hölderlin, poeta alemão do século XVIII/XIX. (N. do T.)

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mento do Ser, que seja de alguma forma livre paradizer “sim” ou “não” à chamada do Ser. Mas issoimplica um outro tipo de liberdade do esqueci-mento “original” da aletheia do que aquilo que sediscutiu até agora. “A essência da liberdade estáoriginalmente não conectada à vontade ou mes-mo à causalidade da vontade humana”, foi-nosdito (A Questão concernente à Tecnologia). Sendocomo seja, qualquer resposta ao chamado do Sersupõe alguma explanação crível sobre como a li-berdade secundária, essa da “vontade” ou da “ca-usalidade da vontade”, ou ao menos da capacida-de de dizer “sim” ou “não”, é derivada. Até ondesei, Heidegger deixou-nos famintos aqui. Trintaanos após sua morte, uma referência a esta ediçãopermanece na primeira ordem de importância.

IHU On-Line – Por que os membros do Círcu-lo de Viena receberam mal a filosofia de Hei-degger? Quais foram os aspectos criticados?William Richardson – O Círculo de Viena foium grupo de pensadores de diferentes disciplinasque se organizaram em torno de Moritz Schlick56

após ele se tornar professor da Filosofia das Ciên-cias Indutivas na Universidade de Viena, em1922, e sobreviveu até a sua morte prematura em1936. Eles se encontravam regularmente (normal-mente nas noites de quinta-feira) no Instituto deMatemática para discutir questões filosóficas. Ogrupo era mantido unido pelo seu objetivo e mé-todo comum: com a exclusão do que eles chama-vam de metafísica e examinando uma série depseudo-especulações realizadas com sentenças malformuladas logicamente (ou seja, sem sentido),eles desejavam encontrar uma base filosófica co-mum para todas as ciências especiais, enquantofaziam a própria filosofia cientificamente sustentá-vel através de análises lógicas. Assim, eles presta-vam atenção principalmente ao sentido das sen-tenças (proposições), tentando esclarecer os con-ceitos e métodos das próprias ciências e esperan-do mostrar que todo o conhecimento humano éconstruído de sentido-dados, isto é, do que eles

chamaram “experiência”. Lógica e experiênciasão as palavras-chave para caracterizar esse grupoque propôs o positivismo lógico na sua forma maispura.

O que um grupo como esse tem a ver com asquestões de Heidegger sobre o Ser na sua diferen-ça dos seres? Obviamente, tal questão não surgeda experiência sensível, portanto sem sentido des-de o começo. Além disso, o método escolhido porHeidegger, fenomenologia (o deixar aparecer deseres cuja natureza é aparecer) tinha pouco tempopara a análise lógica do significado de sentençasnas quais os resultados de tal análise são expressa-dos. Finalmente, a invenção de Heidegger de no-vas formas de linguagem para expressar os resul-tados dos seus insights deixou os membros do Cír-culo horrorizados. Rudolf Carnap57, em particular,ficou ofendido com frases como “o Nada não énada” (das Nichts nichtet). Para Heidegger, o fe-nomenologista, o sentido é bastante simples: omundo, como horizonte de grande significância,não é uma coisa como as outras coisas, mas, dife-rente delas, funciona antes como uma não-coisa(“nadas”) que dá em nada precisamente como aárea na qual os seres humanos podem encontraroutros seres como significantes. Para uma lógicapositivista, porém, isso é um absurdo total. Enunca os dois se encontrariam.

IHU On-Line – Por que Deus para Heideggersó pode ser explicado pela linguagem poética?O Deus de Heidegger é um Homem-Deus?William Richardson – O problema de Heideg-ger com o falar sobre Deus de qualquer maneira éque, no que lhe diz respeito, o Deus sobre o qualse fala é finalmente reduzido ao Deus da metafísi-ca: um ser supremo (höchste Seiendes), mas ain-da assim um ser. Tal concepção ignora a questãode Ser na sua diferença de todos os seres, mesmoum ser supremo. O problema não é que um deuspara a mente questionadora de Heidegger é divi-no demais, mas que não é divino o suficiente. Elenão é o Deus perante o qual Davi dançou, o Deus

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56 Moritz Schlick (1882-1936): filósofo alemão, figura central do positivismo lógico e do Círculo de Viena. (Nota da IHU On-Line)57 Rudolf Carnap (1891-1970): filósofo alemão que trabalhou na Europa Central antes de 1935 e nos Estados Unidos após esse

período. Foi um dos principais membros do Círculo de Viena e um eminente defensor do positivismo lógico. (Nota da IHUOn-Line)

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da experiência religiosa genuína. Para ter certeza,a reflexão sobre o sentido do Ser diferente dos se-res não revela tal Deus, para Ser é necessárionada mais do que um processo finito (semprecomportando sua lethe) que deixa o fenômeno fi-nito se manifestar. Quando muito, permite umareflexão no significado de Sagrado, como Hölder-lin nos ajuda a fazer, e a consciência do Sagradopode nos ajudar a reconhecer Deus como divinose ele se revela, em primeiro lugar.

A pergunta sobre Deus estava escondida nasbarbas do pensamento de Heidegger durante vá-rios anos, às vezes, de forma benevolente, às ve-zes, não, mas nunca mais intensamente, pareceque nos anos de 1937 a 1939, quando, nas conse-qüências da experiência nazista e na privacidadedos seus aposentos, ele se entregou àquelas espe-culações que foram eventualmente publicadas sobo título Beiträge zur Philosophie: vom Ereig-nis, 50 anos após sua composição, em 1989. Nes-se trabalho, ele fala sobre Deus, deuses, os deusesfluidos e até sobre o “Último Deus”. Comentaris-tas pensaram muito sobre estas reflexões desde asua publicação, mas, até onde eu sei, não chega-ram a um consenso sobre o seu significado – alémdo fato, talvez, de que a pergunta sobre Deus paraHeidegger permaneceu endereçada até o fim. Oque mais pode ser dito?

Eu acho esclarecedor o relato de BernardWelte (filósofo, padre da Arquidiocese de Frei-burg, antigo estudante que se tornou amigo do ve-lho Heidegger) que narra o que eu tomo por ser apalavra final de Heidegger sobre o assunto. Em fe-vereiro de 1976, Heidegger, ciente de que estavamorrendo, pediu a Welte para que proferisse umcurto sermão no seu funeral. Desconcertado, Wel-te protestou que durante o passar dos anos, Hei-

degger deixou claro não ser uma pessoa crente,que seu pensamento, quando muito, seria ateísta(isto é, sobre Ser, e não sobre Deus) em essência.“Mas eu nunca deixei {formalmente} a Igreja”,respondeu Heidegger. Finalmente consentindo,Welte perguntou ao velho Mestre sobre o que elegostaria que ele falasse – qual texto da escritura,por exemplo, ele pensava ser apropriado para semeditar sobre ele. Heidegger respondeu: “Peça ereceberá, procure e encontrará, bata, e a porta seabrirá para você” (Lucas 11:9).

HU On-Line – Quais foram os principais tó-picos da carta de Heidegger que serviram deprefácio ao seu livro Heidegger: da fenome-nologia ao pensamento. 4. ed. New York:Fordham University Press, 2003?William Richardson – Heidegger concordouem escrever um curto prefácio para esse livro, e eupoderia responder a uma ou duas questões espe-cíficas que ofereceriam foco às suas observações.As perguntas pediam por esclarecimento no quedizia respeito a duas questões que foram muitodiscutidas como boato entre estudantes gradua-dos no Departamento de Filosofia da Universida-de de Freiburg na época: uma sobre a origem dabusca filosófica de Heidegger, a outra sobre a as-sim chamada “volta” (Kehre) no seu pensamentoapós 1930. As questões foram:

1. “Como estamos apropriados para enten-der sua primeira experiência da questão sobre oSer em Brentano?”

2. “Garantido que uma ‘volta’ ocorreu noseu pensamento, como isso ocorreu? Em outraspalavras, como nós estamos para pensar sobre aprópria ocorrência?”

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A desconstrução em Heidegger, Lévinas e Derrida

Entrevista com Rafael Haddock-Lobo

“Heidegger como Lévinas têm seus pensa-mentos balizados em um fundamento: o Ser, parao primeiro, e o Outro, para o lituano. Já em Derri-da, a différance – este princípio de diferencialida-de – não pode ser tomado como fundamento, poisela não tem substância, ela apenas é e causa efei-tos”. A afirmação é do filósofo Rafael Haddock-Lobo, em entrevista concedida por e-mail à IHUOn-Line, em 3 de julho de 2006, na qual traça al-gumas relações entre os filósofos Heideggger, Lé-vinas e Derrida.

Haddock-Lobo é bacharel em Filosofia pelaUFRJ, licenciado em Letras pela Universidade Sal-gado de Oliveira, mestre e doutor em Filosofiapela PUC-Rio. Sua dissertação intitula-se Da exis-tência ao infinito: a redução ética o pensamentode Emmanuel Lévinas e sua tese, Sobre a hospita-lidade: Derrida leitor de Lévinas. Sobre este as-sunto o professor concedeu uma entrevista à IHUOn-Line em 12-12-2005. É autor do livro Daexistência ao infinito. Ensaios sobre Emma-nuel Lévinas. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; SãoPaulo: Loyola, 2006.

IHU On-Line – Quais seriam os principaispontos de diálogo entre Lévinas, Heideggere Derrida?Rafael Haddock-Lobo – Em primeiro lugar, to-dos os três autores em questão partem da leitura(e também de uma crítica) da fenomenologia deEdmund Husserl. Além disso, Heidegger é um fi-lósofo fundamental para os pensamentos de Lévi-nas e Derrida. Para o primeiro, seja com a enormeinfluência do filósofo alemão em suas leituras deHusserl ou no posterior ataque à ontologia, emque Lévinas parece querer inverter a importânciadada ao Ser em detrimento dos entes na diferença

ôntico-ontológica, Heidegger sempre esteve pre-sente em sua ética. Assim, ainda que, embora as-sombrado, pode-se dizer que Lévinas nunca se li-bertou da sombra heideggeriana. Já Derrida não,pois nunca quis ou pretendeu se libertar desta(nem de nenhuma outra) sombra. Derrida sempreassumiu sua herança heideggeriana – o que erabem complicado em uma França que pretendia seafastar ao máximo deste pensamento desde o fimda Segunda Guerra. Então, para resumir, se Lévi-nas se mantém em uma constante relação com adiferença ontológica, no intuito de invertê-la eapostar no primado dos entes, Derrida vê nesta di-ferença a possibilidade de pensar uma diferençaradical, um princípio de diferencialidade, à qualele chama de différance. E a própria tarefa heideg-geriana anunciada em Ser e Tempo como uma“destruição da Metafísica” vai ser o que, em fran-cês, Derrida traduz por “desconstrução” – e nãodestruição – sendo esta a palavra que, posterior-mente, nomeia seu pensamento.

IHU On-Line – E os pontos de ruptura?Rafael Haddock-Lobo – Como antecipei, emLévinas, vemos muito mais as rupturas que pro-priamente afinidades com Heidegger. Lévinas que-ria “limpar” sua filosofia de qualquer ontologia –que, para o filósofo, seria uma das formas mais vio-lentas e perigosas de pensamento, devido justa-mente ao esquecimento do Outro. Então, podería-mos simplificar dizendo que, quando toca Heideg-ger, o pensamento levinasiano visa mais ainda aum abandono, a um corte e a uma denúncia deHeidegger. Tudo por uma “simples” razão: a Onto-logia é, por excelência, um pensamento do Mesmoe da Totalidade – e não uma ética do Outro e do in-finito. As críticas de Derrida são muito mais refina-

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das que as de Lévinas – e, por isso, muito maiscontestadas. Derrida tem por princípio nunca daruma resposta do tipo “sim ou não” a uma questão.Por essa razão, Derrida não é heideggeriano nemanti-heideggeriano, o que acaba desagradando aambos os lados. Derrida vê aspectos importantíssi-mos e perigosíssimos em Heidegger. Entretanto, eupoderia aqui arriscar que o principal ponto de afas-tamento destes dois filósofos é uma insistência napresença que Derrida vê em Heidegger. O Ser, sen-do aquilo que dá sentido a tudo, como uma precisae obrigatória orientação, por mais que não sejauma coisa, um ente, acaba por ser o que há demais presente. Isso colocaria Heidegger, segundoDerrida, como a forma mais sutil e refinada (e porisso a mais perigosa) de “metafísica da presença”.

IHU On-Line – Como podemos entender adesconstrução de Derrida centrada na filo-sofia de Lévinas e Heidegger? A que conclu-sões essa desconstrução nos faz chegar so-bre a sociedade fragmentária do século XXI?Rafael Haddock-Lobo – Não poderia dizer quea desconstrução está centrada nas filosofias de Hei-degger e Lévinas. Em primeiro lugar, por não ha-ver uma centralidade em seu pensamento e, em se-gundo, por estarmos esquecendo de tantos outrosautores que poderiam, ao lado destes dois, serconsiderados centrais em seu pensamento, comoNietzsche, Freud, Lacan e o próprio Husserl. Entre-tanto, com isso em mente, podemos entender queestes dois pensadores anteciparam algo fundamen-tal para Derrida: a diferença. Em Heidegger, suaontologia parte de uma diferença, a do Ser e dosentes; em Lévinas o princípio da filosofia é a ética,não uma ética nos moldes da moral, mas uma éticado Outro, que tem como princípio a alteridade. Noentanto, temos que guardar em mente que, dessemodo, tanto Heidegger como Lévinas têm seuspensamentos balizados em um fundamento: o Ser,para o primeiro, e o Outro, para o lituano. Já emDerrida, a différance – este princípio de diferenciali-dade – não pode ser tomado como fundamento,pois ela não tem substância, ela apenas é e causa

efeitos. O problema de chegarmos a conclusões tal-vez seja um dos impasses mais importantes com osquais a desconstrução se confronta. Isso porque elanão oferece – e nem pode oferecer – conclusões.Um pensamento em tempos fragmentados, emtempos dilacerados como os que vivemos, nãopode mais oferecer verdades, mas apenas mostrara fragilidade e a desconstrução inerente às estrutu-ras de nossos tempos (seja na filosofia, seja na polí-tica, seja nas relações pessoais, seja na Lei etc.).Arrisco aqui dizer que Derrida talvez seja um dospensadores mais atuais da filosofia, mais contem-porâneo. A desconstrução é mais um efeito de nos-sos tempos – a diferença de outros pensamentos éque ela assume esta fragilidade e o caráter descons-truído de todo discurso, ao invés de pretender ofe-recer verdades, tapar os buracos e pretender-se só-lida ou certa.

IHU On-Line – Em que sentido o conceito dealteridade em Lévinas propõe uma viradaética em relação a Heidegger?Rafael Haddock-Lobo – A ética, em Heidegger,ocupa um lugar secundário com relação à Ontolo-gia. Esta sim, seria o pensamento original. Comisso, o Ser é o que deve ser pensado, o que é dig-no de ser pensado, e a tarefa do filósofo, então,passa a ser pensar o Ser de modo próprio e autên-tico. Lévinas inverte este esquema e diz que a filo-sofia primeira é a Ética: que devemos, antes dequalquer coisa, pensar o Outro, pois este é o fun-damento e o princípio, antecedendo, sobretudo, aeste “eu” que cremos tão seguro, certo e funda-mental. Com isso, Lévinas diz que passam a ser –e somente assim – dignas de serem pensadasquestões, como a fome, a orfandade, as vítimasda guerra etc...

IHU On-Line – Qual é a importância dessavirada na construção do respeito à alterida-de na pós-modernidade?Rafael Haddock-Lobo – Alain Badiou58, emseu Ética: ensaios sobre a consciência domal. Rio: Relume Dumará, 1995, diz – em tom

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58 Alain Badiou (1937): filósofo, dramaturgo e romancista, leciona Filosofia na Universidade de Paris-VII Vincennes e no CollègeInternational de Philosophie. É autor, entre muitos outros, do livro Saint Paul. La fondation de l’universalisme. Paris: PUF,1997, várias vezes reeditado na França e traduzido em diferentes línguas como o inglês e o italiano. (Nota da IHU On-Line)

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bastante crítico – que Lévinas seria o grande res-ponsável por esta onda de discursos sobre os di-reitos humanos no século XX. Em parte, isso podeestar correto, porque Lévinas vai, sim, trazer o Ou-tro e a humanidade do outro como temas para afilosofia, mas isso sem cair, de modo algum, emum humanismo, pois se há algo a ser pensado éum humanismo que leve em conta a própria alte-ridade, e não um modelo ou um ideal de Homem– e sim o sentido do Outro, que ele chama de“Rosto”. Derrida, por sua vez, radicaliza bastanteesta tentativa de Lévinas – e que devo frisar quefoi inaugurada por Nietzsche e Heidegger – de su-perar o humanismo. Não, porém, em nome deum “super-homem”, de um “ser-aí” ou de um“outro homem”, pois Nietzsche, Heidegger e Lé-vinas ainda estariam presos a uma certa figura,sombra ou fantasma de humanidade, mas em di-reção a um pensamento de uma alteridade radi-cal, que incluiria os próprios textos, pensadores,animais, línguas e também homens.

IHU On-Line – Em que medida a alteridadeem Lévinas ainda guarda traços da ontolo-gia heideggeriana?Rafael Haddock-Lobo – Como disse, o Ser, emHeidegger, surge como aquilo que não é nempode ser pensado de modo algum como ente.Surge como diferença e passa a ser o que deve serpensado propriamente. Lévinas aposta no outrolado da moeda, no existente, e não na existência,nos entes e não no ser, na ética e não na ontologiaetc. Por isso, pode-se dizer, com Derrida, que Lé-vinas mantém o pensamento heideggeriano ao in-vertê-lo. O que Derrida afirma também, e comisso concordo plenamente, é que, nesta inversão,Lévinas insere algo sutil, que é o Outro como temana filosofia, como tarefa do pensamento e, comisso, promove uma grande e forte mudança noseixos da filosofia. Ele não apenas inverte, masdesloca o problema para uma outra maneira depensar.

IHU On-Line – Como se insere o pensamentode Heidegger na pós-modernidade? Até queponto ajuda na sua consolidação? Em algumsentido ele é crítico à razão moderna?

Rafael Haddock-Lobo – Heidegger certamentepode ser considerado um autor pós-moderno, dei-xando de lado aqui todas as prevenções que eu te-nho com este termo. Ele é pós-moderno no senti-do que ele não aposta mais, de modo algum, narazão moderna, nem no sujeito, nem na consciên-cia. É por essa razão que, em Ser e Tempo, eleevita, a todo o custo, utilizar-se de um léxico tradi-cional como homem, sujeito etc. e aposta em seuDasein ou ser-aí. Heidegger crê que a filosofia tra-dicional nunca pensou propriamente o Ser, e sem-pre o entificou. Desse modo, apenas uma “des-truição da metafísica” poderia dar lugar a estanova forma de pensar. Devemos, contudo, ter emmente que, desde Husserl, a consciência subjetivajá vinha sendo posta em questão, que a herme-nêutica e a fenomenologia das quais Heidegger éherdeiro já iniciavam este movimento que Hei-degger, a seu modo, radicalizou.

IHU On-Line – O nazismo, cenário históricode Heidegger e tantos outros autores quehoje relemos, pode ser considerado umaanomalia ou uma radicalização da própriarazão moderna?Rafael Haddock-Lobo – Se pensarmos fria-mente, Hitler nada mais foi que, dentre tantos,mais um humanista: ele acreditava, tanto como osfranceses da revolução de 1789, em um ideal dehomem que deve ser preservado a qualquer cus-to. E, de fato, isso custou muito. Creio, e não sei seisso foi suficientemente pensado ainda, que o na-zismo põe em questão o quanto um ideal de hu-manidade é perigoso, pois ele acaba por suporque tudo que está fora deste ideal é desumano, ousubumano. Assim foi o nazismo, mas também ohumanismo francês, o ideal bolchevique e mesmoum discurso tosco e distorcido como encontramosno Bush filho. O ideal é o que deve ser mantido in-dene, e assim surgem os tantos inimigos da huma-nidade... Eu gostaria de fazer duas observaçõespara pensarmos: primeiro, no que diz respeito aohumanismo do tipo marxista – um ideal, certa-mente, muito mais nobre que os do terceiro Reich– podemos ver o risco deste ideal, que ainda porcima está ligado a um pensamento dialético e auma certa noção de progresso, não apenas em um

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stalinismo ou trotskismo ou mesmo sua versãomais leve, o leninismo, mas já no próprio Marxque, à sua maneira, aceitava quase tranqüilamen-te, para tomarmos como exemplo, o extermíniodas tribos latino-americanas pelos colonizadores,pois, assim, estes povos estariam sendo colocadosna marcha histórica que rumaria, enfim, ao socia-lismo. Outra questão é sobre Nüremberg. Pensoem Derrida e em Jankélevitch59. Este último dizque não há punição para o que se fez para os ju-deus, que isso foi imperdoável. Então, pratica-mente, como punir estes criminosos? A questão éque não há como puni-los. Crimes desta espécienão têm medida, extrapolam qualquer possibili-dade de julgamento. Isso porque, para encerrar aquestão, não dizem respeito à razão humana. E,assim, a razão humana não dá nem nunca vai darconta de problemas como esse que o nazismocometeu.

IHU On-Line – Ao reler Heidegger, seu pen-samento e sua época, o que devemos levarem conta na constituição de nossa cons-ciência histórica?Rafael Haddock-Lobo – Primeiro, e antes detudo, nós devemos ler Heidegger. Não, como mui-to se fez ou muito se faz, evitar lê-lo. Querendo ounão, Heidegger foi um dos maiores, senão o maiorpensador do século XX, e Ser e Tempo é indubi-tavelmente o livro mais importante de sua época.Heidegger traz problemas fundamentais para opensamento e, mais que isso, traz o pensamentopara a existência e exige da filosofia uma atençãoà nossa cotidianidade. Nosso modo de ser cotidia-no, nossa vivência com os outros, com os objetos,com o mundo, são expressões da verdade do Sere, por isso, não podem nem devem ser evitadas.Com isso, o autor coloca a filosofia, na esteira deHusserl, Nietzsche e Kierkegaard60, na vida. Isso é,na minha opinião, algo que devemos ter sempreem mente – ao invés de pensarmos que a filosofiadeve ater-se às esferas singulares e especiais denossa existência. Há um outro fator que não posso

deixar de enfatizar: a já tão citada crítica ao huma-nismo, que Heidegger, contra o existencialismo deSartre, desenvolve em carta sobre o Humanismo.A meu ver, a crítica de Heidegger aponta todo hu-manismo como metafísico, desde o grego ao con-temporâneo, passando pelo cristão. Entretanto,podemos ainda fazer reservas a ele. Sobretudo noque concerne ao tema da historicidade. Se a histo-ricidade se desprende de toda cronologia e passaa ser vista como a Historicidade do Ser, um acon-tecimento da época, então este acontecimentonão pode ser mensurável por nenhuma valora-ção. O que acontece não é bom nem mau, simples-mente acontece: assim foi com o tempo grego, coma técnica moderna etc... Então, um acontecimentocomo o nacional-socialismo, que por muitos, mui-tos mesmo, foi visto como o porvir de uma época,pode ser de tal modo privado de valoração? Maisuma questão para mantermos em mente.

IHU On-Line – Como o senhor avalia a in-fluência intelectual de Heidegger sobre opensamento de Arendt e vice-versa? Qual osignificado de eles terem cortado relaçõesem plena época nazista?Rafael Haddock-Lobo – Apesar de não ser umconhecedor de Hannah Arendt, venho, ao longodos últimos anos, me incomodando muito com asleituras que a aproximam demais de Heidegger. Éinegável o fato da ligação intelectual – e não ape-nas intelectual – entre os dois. Ele foi, sem dúvida,um mestre, mas aqueles que lêem o pensamentode Arendt como quase uma “aplicação política”da filosofia de Heidegger estão cometendo um cri-me com a pensadora. E talvez até mesmo comHeidegger. Ela dá um passo muito além de Hei-degger, por pensar politicamente, coisa que paraHeidegger era menor, menos digna de ser pensa-da que uma Ontologia. Arendt enfatiza um pensa-mento político e da política, coisa que, em Hei-degger, é inconcebível. Além disso, ao que sesabe, Heidegger nunca deu nenhuma atenção aopensamento dela. Quanto à questão pessoal, ela

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59 Wladimir Jankélévitch: filósofo e musicólogo judeu do século XX, especialista em Debussy, biógrafo e crítico. (Nota da IHUOn-Line)

60 Søren Aabye Kierkegaard (1813-1855) foi um teólogo e um filósofo dinamarquês do século XX, que é conhecido como o “pai”do existencialismo. (Nota da IHU On-Line)

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foi mais uma dentre muitos que se decepcionaramcom Heidegger. Antes foi Husserl, que teve suadedicatória retirada de Ser e Tempo. Além disso,nos anos que assumira o reitorado de Freiburg,Heidegger nada fizera para evitar o afastamentodo mestre. Depois, Lévinas, prisioneiro de umcampo de trabalhos forçados, começou a pensarnos problemas do pensamento de Heidegger... E,

por fim, Arendt. Creio que o problema afetivo nãodeve ser levado tanto em consideração. É claroque isso agrava, e muito, o problema, mas todosos autores citados apresentaram reservas quantoao pensamento de Heidegger, e não apenas aoser humano Heidegger.

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“A filosofia heideggeriana é destrutiva e construtiva”

Entrevista com Écio Elvis Pisetta

Pensar é pensar contra si mesmo, argumentao filósofo Écio Elvis Pisetta, analisando o legado fi-losófico heideggeriano. Em entrevista por e-mail àIHU On-Line, em 3 de julho de 2006, ele compa-ra aspectos do pensamento nietzschiano com o deHeidegger, pois “destruição e construção são osdois lados da mesma moeda”. Sobre a vinculaçãodo nazismo à filosofia de Heidegger, “como se umse prolongasse ou se espelhasse no outro”, Pisettadiz que isso é um golpe baixo, porque foge do diá-logo. Essas e outras reflexões, como sobre o senti-do do ser-para-a-morte, são trazidas por Pisetta àdiscussão na entrevista que segue.

Graduado em Filosofia pela UniversidadeSão Francisco (USF), Pisetta é mestre e doutor emFilosofia pela UFRJ. Sua dissertação intitula-se Oconceito existencial de ciência em Martin Heideg-ger e sua tese, Morte e totalidade: um estudo acer-ca do ser-para-a-morte e suas remissões para acompreensão da totalidade em Martin Heidegger.Pisetta leciona Filosofia na rede pública de ensinodo Estado do Rio de Janeiro, a adolescentes eadultos do nível médio.

IHU On-Line – Quais seriam as maiores con-tribuições e limitações de Martin Heidegger?Écio Pisetta – Para muitos, Heidegger é conside-rado o pensador mais significativo do século XX, eisso por alguns motivos: como poucos, foi alguémque, durante toda a sua vida, dialogou com a tra-dição filosófica e seus grandes expoentes, desdeos pré-socráticos até os pensadores mais recentes;ocupou-se com as temáticas centrais de cada pen-sador, com as discussões e conceitos forjados pelafilosofia grega – e que orientam grandemente todaa nossa vida atual – e até com a preponderância

da ciência e da tecnologia em nossos dias. A tec-nologia, por exemplo, deve ser pensada como oacabamento da metafísica. Heidegger é um pen-sador atual, não porque discute temas que estãona ordem do dia, mas porque busca dizer aquiloque é o essencial em todas as questões e tentativasde respostas que o ser humano experimenta. Tra-ta-se do ser. Assim, Heidegger pensa o ser e inter-preta a tradição metafísica, em suas diversas va-riantes, como a história do esquecimento do ser.Em Ser e Tempo, ele pergunta-se sobre o ser.Entretanto, para poder formular legitimamenteesta pergunta, ele necessita fazer uma analítica doDasein (do ser humano, da pre-sença), colocar aquestão pelo ser de quem questiona, isto é, pensara “essência” daquele ente (do ser humano): quemé este que questiona? “O como” é o ser humanomostra-se mais significativo na filosofia heidegge-riana do que “o que” é o ser humano. Surge, en-tão, o conflito, sempre presente no pensamentoheideggeriano, sobre qual a melhor maneira dedeterminação do ente.

Existenciais no lugar das categorias oupropriedades

Em oposição às categorias ou propriedades,Heidegger propõe os existenciais: estes são com-preendidos como modos de ser. Antes de tudo e,na maioria das vezes, nós estamos naquilo que oautor denomina cotidianidade. As estruturas maisfreqüentes da cotidianidade correspondem aosexistenciais, que são destacados e desdobradospara uma compreensão do humano. A partir dis-so, podemos dizer que, pelo menos, uma das maio-

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res contribuições de Heidegger à filosofia foi aocupação com o ser, nos mais diversos autores etemas, bem como a necessidade de sempre denovo pensar os fundamentos ontológicos do serhumano. O que importa não é dizer o que os filó-sofos pensaram, mas pensar junto com eles. A fi-losofia heideggeriana é destrutiva e construtiva:pensar é pensar contra si mesmo. Pensar consisteantes numa tarefa, num a-se-fazer cada vez, maisdo que uma faculdade racional já resolvida. Equal a maior limitação? Se entendermos “limite”como alguma deficiência, algo que não foi ade-quadamente trabalhado por algum pensador, édifícil responder.

Diz-se, por exemplo, que Heidegger deveriater fornecido, em sua obra, uma ética... Mas quan-do lemos a carta Sobre o Humanismo e Ser eTempo somos levados a questionar se tal “falta”constitui “de fato” uma carência. Essa crítica deve-seantes a um problema de compreensão do pensa-mento de Heidegger. No entanto, todo pensa-mento concretiza-se, sempre e necessariamente,nos limites de sua história, vinculado aos proble-mas que lhe servem como pano de fundo. Se opensamento visa a uma certa transcendência, aomesmo tempo, ele é sempre imanência, chão, li-mite. O ser é sempre tematizado com base no serhumano existente, isto é, sempre localizado ou si-tuado, ocupando-se com os outros, com as coisase consigo mesmo, dotado de um sentido. Mais doque uma deficiência, a limitação é fundamentalpara todo pensamento essencial. O que não temlimite, não tem também consistência, e não estásintonizado com seu tempo.

IHU On-Line – Como o filósofo entende oSer-para-a-morte e como o conceito contri-bui para a compreensão da totalidade emHeidegger?Écio Pisetta – A temática da morte aparece demaneira especial, mas não exclusiva, no início dasegunda parte de Ser e Tempo. As reflexões alirealizadas têm por objetivo conquistar uma novacompreensão da morte. Em geral, fazemos umaoposição entre vida e morte. Com base nessacompreensão, quando a morte é, nós não somos,e enquanto nós somos, ela não é. Assim sendo, a

morte nada teria a ver conosco. A morte, para Hei-degger, é experimentada pelo ser humano emvida, isto é, a morte é problema enquanto nós esta-mos vivos. Desse modo, o ser humano é ser-para-a-morte. Sua vida está sempre remetida paraesta experiência extrema, a cada momento. Nãopodemos desdobrar agora esta noção, mas pode-mos acrescentar que, em Heidegger, trata-se deuma noção privilegiada, ímpar, e não no mesmopatamar de outras vivências. O ser-para-a-morte éum existencial privilegiado porque ele só pode servivido antecipadamente e como “possibilidade”,nunca como alguma “realidade”, que possa serefetivada, isto é, é sempre antes que vivemos nos-sa morte. E, sucintamente, retomando a segundaparte da pergunta, a temática da totalidade podeser assim colocada: se mantivermos a compreen-são de que vida e morte se excluem, então a morteé algo que se acrescenta ao ser do homem quandoele morre. Então, ele já não será mais. Disso seconcluiria que ele viveria sempre de uma maneiraincompleta, pois nunca incorporaria a morte àvida. Entretanto, esta argumentação, criticada porHeidegger, separa morte de vida. Contra isso, acunhagem do ser do homem como ser-para-a-mor-te, visa a compreender a morte e a vida na simul-taneidade da existência, no ser aqui e agora emcada atividade. A interpretação existencial inclui atemática da morte na vida humana, enquanto oser humano é e, retroativamente, o ser humanopode adquirir uma distinta compreensão de simesmo, dos outros e das coisas, com quem vive,convive, ocupa-se, fundamentado no ser- para-a-morte. A morte não está num “fim”, mas o ser hu-mano, é para o fim.

IHU On-Line – De que forma a certeza coti-diana da morte influencia o cotidiano davida pós-moderna?Écio Pisetta – De que forma nós, em nossa coti-dianidade, estamos certos de nossa morte? Poistodos dizem em alto e bom tom que a coisa maiscerta da vida é a morte. Qual a qualidade destacerteza? Por certo, é estranha, porque não sabe-mos nem o dia nem a hora. Curiosamente, em to-das as nossas atividades corriqueiras, o que nósmais fazemos não é determinar com precisão a

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nossa morte, pois isso é impossível, mas é fugir detoda a determinação da morte. Assim, a certeza éprincipalmente uma indeterminação do aqui eagora de nossa morte. Percebemos isso nos diver-sos comportamentos diante dos moribundos, quan-do consolamos, estimulamos, falamos que tudovai melhorar etc.; também nas mil e uma ocupa-ções em que sempre estamos envolvidos. Se umadas características da vida pós-moderna é o fim detodas as certezas, seguranças, fundamentos dametafísica, podemos ver na certeza cotidiana damorte a exposição da pós-modernidade: a morteé certa, porém, indeterminada, por isso, possível atodo o momento, mas por ora, ainda não... Dessaforma, em todas as nossas ocupações nós nos des-viamos de um encontro com o ser-para-a-morteque somos, preenchendo o nosso tempo das maisdiversas formas, inclusive fugindo para ideologiasas mais diversas, religiosas, filosóficas, psicológi-cas, científicas etc. Em todos esses posicionamen-tos, o ser humano esquiva-se de viver no aqui eagora o seu ser como ser- para-a-morte.

IHU On-Line – Quais as relações que se es-tabelecem entre morte e decisão, segundoHeidegger?Écio Pisetta – Com esta pergunta, chama-se aatenção para o aspecto ontológico do ser-para-a-morte, dentro de uma análise existencial do serhumano. O fenômeno da decisão (Entschlosse-nheit), em Ser e Tempo, leva o ser humano a ex-perimentar-se de modo mais próprio. A decisão,pensada existencialmente, opõe-se ao modo deser do homem tal como ele o vive em geral, isto é,ao modo de ser impessoal. Como, em geral, é oser humano? Como todo o mundo é, e raramenteapenas como só ele pode ser. Heidegger concebea idéia de uma experiência própria da existênciaem oposição a uma imprópria. Apesar de nós, emgeral, vivermos impropriamente, perdidos nas teiasdo impessoal, isso não significa que esta seja aúnica possibilidade de nosso ser. Assim, decisãopode ser vista como “destrancamento”, liberaçãoou libertação. O ser-para-a-morte, genuinamenteassumido pelo ser humano como possibilidadeprivilegiada de ser e existir, é também decisão para

a morte (não como o suicídio corriqueiramentecompreendido).

Na decisão para a morte, acontece um des-trancamento, uma libertação. Do quê? Da exis-tência como possibilidade, isto é, se vivemos emgeral como todo o mundo vive, tendo em vista apossibilidade da morte, como nossa intransferívelpossibilidade, podemos balizar de forma própria,isto é, singular, cada atividade ou ocupação denossa existência. A “propriedade” não é algo forada existência que nós vivemos, mas é uma trans-mutação que ocorre no seio da impropriedade:vê-se com novos olhos o que sempre já se viu.Uma existência transmudada. Por isso, Heideggerfala que o ser-para-a-morte deve ser concebidocomo liberdade para a morte, numa recordação à“morte livre” de Nietzsche.

IHU On-Line – A filiação ao nazismo porparte de Heidegger pode ser entendidacomo uma conseqüência de seu pensamen-to filosófico?Écio Pisetta – Como li outro dia num jornal, vin-cular o pensamento heideggeriano ao nazismo,como se um se prolongasse ou se espelhasse nooutro, é um “golpe baixo”. E isso por uma simplesrazão: é o caminho mais fácil para fugirmos dodiálogo. É conhecida e muito discutida a partici-pação heideggeriana no partido nazista, mas re-duzir uma à outra é não pensar, nem em uma,nem em outra, é não dispor-se a questionar nem oque é filosofia nem o que é nazismo e, sobretudo,é não deixar-se provocar pelas questões levanta-das pela filosofia heideggeriana. Seria mais dignoaprender a ouvir o obscuro filósofo Heidegger doque soterrá-lo no chavão impensado de “nazista”.

IHU On-Line – Alguns autores associam Hei-degger ao projeto nietzschiano de descons-trução da semântica ocidental. O que o se-nhor pensa disso?Écio Pisetta – Ser e Tempo fala da necessidadede destruição da história da metafísica. Como jádissemos, não podemos ver na noção de destrui-ção um mero aniquilamento do que nos foi legadopela tradição filosófica. Destruir é, de certa forma,

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assumir ou reconquistar a gênese da tradição, istoé, não meramente aceitar e passar adiante os con-ceitos herdados, mas investigar suas origens, pen-sar desde os princípios. Por isso, não podemos es-quecer que, segundo Nietzsche, todo construtordeve ser antes um destruidor. Destruição e cons-

trução são os dois lados da mesma moeda. Combase nessa concepção, podemos ver uma certa uni-dade nos projetos nietzscheano e heideggeriano.

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