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1 A MODERNIDADE EM WALTER BENJAMIN E OUTROS: PERCEPÇÕES POR ENTRE JANELAS E VITRINES Paulo Henrique Tôrres Valgas UDESC (aluno) / IFC (professor) Resumo: Esse artigo parte dos aforismas, textos e citações escolhidas e/ou escritas por Walter Benjamin, compilados na sua inacabada obra O livro das Passagens, tendo como protagonista as janelas e as vitrines, com o objetivo de utilizar a imagem desta peça arquitetônica como ferramenta para a percepção da modernidade. Sob dois vieses, da rua para o interior e do interior para a rua, a vida moderna será abordada não apenas pelos escritos de Benjamin, mas também relacionando diversas áreas de conhecimento: a teoria de Marshall Berman, a poesia de Charles Baudelaire, Hoffman e Edgar Allan Poe, a pintura de Edward Hopper e Umberto Boccioni, entre outros modernos relacionados ao espírito urbano. Numa tentativa de conectar História cultural e História da Arte, palavras, notas, percepções e pinceladas são montadas de acordo com suas conversações, entrosando produção artística e literária e os alguns vetores morais, sociais e políticos desde o século XIX no que diz respeito à história das grandes cidades. As galerias parisienses, as ruas alargadas das metrópoles, o trem e o ajuntamento de estranhos num mesmo lugar, assim como a velocidade e as multidões são capazes de possibilitar ferramentas para a interpretação dos fenômenos da cidade moderna. Conclui-se que o abalo das fronteiras é um fenômeno moderno, sendo que a janela torna-se um objeto simbólico de uma divisão que já não existe mais e sua representação revela estilos de vida que processam os efeitos da modernidade. Palavras-chave: Modernidade; cidade; urbana; janelas. A janela sempre foi, mais que uma peça arquitetônica, um símbolo intrigante. Vitrine, lugar de espera, apoio para conversas e observatório, é também um portal da rua para o interior e vice-versa. Na modernidade, sobretudo no século XIX, inaugurado pelas revoluções Industrial e Francesa, que alteraram a estrutura de produção europeia, as cidades cresceram muito, ruelas se encheram de casebres e surgiram cortiços em todo o canto. Novo momento da história, econômico e político, era também cultural e social, e personagens despontaram, como o burguês industrial, o proletário, ambulantes como o flâneur, a prostituta, o jogador viciado, o transeunte sem rumo, enquanto o trabalhador corria lá-e-cá, as senhoras detinham os olhos nas vitrines, as carruagens transportavam homens de negócio. Como afirma o filósofo Marshall Berman (1940-2013), “esse público partilha o sentimento

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A MODERNIDADE EM WALTER BENJAMIN E OUTROS: PERCEPÇÕES POR ENTRE JANELAS E VITRINES

Paulo Henrique Tôrres Valgas

UDESC (aluno) / IFC (professor) Resumo: Esse artigo parte dos aforismas, textos e citações escolhidas e/ou escritas por Walter Benjamin, compilados na sua inacabada obra O livro das Passagens, tendo como protagonista as janelas e as vitrines, com o objetivo de utilizar a imagem desta peça arquitetônica como ferramenta para a percepção da modernidade. Sob dois vieses, da rua para o interior e do interior para a rua, a vida moderna será abordada não apenas pelos escritos de Benjamin, mas também relacionando diversas áreas de conhecimento: a teoria de Marshall Berman, a poesia de Charles Baudelaire, Hoffman e Edgar Allan Poe, a pintura de Edward Hopper e Umberto Boccioni, entre outros modernos relacionados ao espírito urbano. Numa tentativa de conectar História cultural e História da Arte, palavras, notas, percepções e pinceladas são montadas de acordo com suas conversações, entrosando produção artística e literária e os alguns vetores morais, sociais e políticos desde o século XIX no que diz respeito à história das grandes cidades. As galerias parisienses, as ruas alargadas das metrópoles, o trem e o ajuntamento de estranhos num mesmo lugar, assim como a velocidade e as multidões são capazes de possibilitar ferramentas para a interpretação dos fenômenos da cidade moderna. Conclui-se que o abalo das fronteiras é um fenômeno moderno, sendo que a janela torna-se um objeto simbólico de uma divisão que já não existe mais e sua representação revela estilos de vida que processam os efeitos da modernidade. Palavras-chave: Modernidade; cidade; urbana; janelas.

A janela sempre foi, mais que uma peça arquitetônica, um símbolo

intrigante. Vitrine, lugar de espera, apoio para conversas e observatório, é também

um portal da rua para o interior e vice-versa. Na modernidade, sobretudo no século

XIX, inaugurado pelas revoluções Industrial e Francesa, que alteraram a estrutura de

produção europeia, as cidades cresceram muito, ruelas se encheram de casebres e

surgiram cortiços em todo o canto. Novo momento da história, econômico e político,

era também cultural e social, e personagens despontaram, como o burguês

industrial, o proletário, ambulantes como o flâneur, a prostituta, o jogador viciado, o

transeunte sem rumo, enquanto o trabalhador corria lá-e-cá, as senhoras detinham

os olhos nas vitrines, as carruagens transportavam homens de negócio. Como

afirma o filósofo Marshall Berman (1940-2013), “esse público partilha o sentimento

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de viver em uma era revolucionária, uma era que desencadeia explosivas

convulsões em todos os níveis de vida pessoal, social e política.” (1986, p. 17).

Esse texto tomará como referência a janela e a vitrine, tão presentes no

contexto acima caracterizado, como objetos que tornam possível um diálogo entre

artistas, poetas, escritores e filósofos, do século XIX até nós, de forma a revelar a

modernidade. Através de dois vieses, do interior para a rua e da rua para o interior,

essas percepções são entrelaçadas, enriquecendo nossa ideia sobre este

fenômeno. Esses dois mundos diferentes encontram-se, finalmente, afirmando que a

troca e o abalo das fronteiras é um fato típico da modernidade. A principal referência

teórica será a obra do filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940), estudioso que

se debruçou sobre a modernidade e que com seu olhar minucioso realizou uma

fecunda pesquisa sobre aquilo que era pequeno, imperceptível, talvez até

insignificante diante do que se interessava à época. Dentre seu legado está a

incompleta obra “O livro das Passagens”, um conjunto de aforismas, ideias e

percepções dele mesmo e de citações de modernos como Charles Baudelaire,

Edgar Allan Poe, Friedrich Engels, Honoré de Balzac, Edmond Jaloux e muitos

outros. Ele investigou e escreveu sobre os personagens urbanos, sobre novas

tecnologias como o uso do ferro e do vidro, sobre as transformações urbanas que

são reflexo de atos políticos e sociais, tendo sempre como protagonista a

modernidade. “A metrópole moderna fundamenta uma nova mitologia,” diz Willi Bolle

sobre a nova maneira de ver e viver o mundo: “construções em ferro, como as

estações rodoviárias e os pavilhões de exposições, ou as passagens como

precursoras das lojas de departamento – repercutem fortemente no imaginário

coletivo.” (1994, p. 65). As cidades tornaram-se palco de uma vida ideal e épica, no

qual o homem moderno é o herói.

O título O livro das Passagens se refere, além da organização da obra, às

passagens parisienses, galerias surgidas no século XIX, “uma nova invenção do

luxo industrial, […] cobertas de vidro e com o piso de mármore, passando por

blocos de prédios;” onde “exibem-se as lojas mais elegantes, de modo tal que uma

dessas passagens é uma cidade em miniatura” (BENJAMIN, 1985, p. 31). Essas

galerias chamaram a atenção de Benjamin pelo trânsito intenso e pelas novas

experiências sociais que delas emergiram. O livro das Passagens é referido como

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“uma constelação de fragmentos: citações avulsas, descontextualizadas de qualquer

sucessão, trechos de livros “arbitrariamente” escolhidos, 'curiosidades', relatos,

glosas filosóficas, 'teses' […]” (MATOS, 1998, p.7-8).O historiador da arte francês

Didi-Huberman (1953-) afirma que “o historiador deve se tornar trapeiro da memória

das coisas” (2015, p. 117). Memórias não daquilo cuja hierarquia nos faz selecionar

– fatos importantes e fatos não importantes, mas detalhes, pequenos detalhes,

continua, citando a “boca de metrô, vitrine do comerciante, soleira da prostituta […]

os leques fetichistas de Grandville, o caráter 'visceral' de certa rua parisiense, os

mostruários como rebus, as salas de jogos [...]” (idem). Tendo como fundamento

essa descrição, o trabalho de Benjamin pode considerá-lo esse trapeiro, prolífico

mesmo não podendo concluir seu trabalho devido às mazelas do momento histórico

em que viveu. Nesta linha, para a realização do texto, buscou-se criar uma rede,

uma constelação, ligações entre as diversas áreas e a figura da janela.

Além do “Livro das Passagens” e de autores e poetas do século XIX, o

século XX será abordado neste texto através de Marshall Bermnan, que teorizou

sobre a modernidade no livro “Tudo que é sólido desmancha no ar”, título

emprestado de Karl Marx. Na pintura, duas referências serão Edward Hopper e

Umberto Boccioni, pintores não só de países, mas de realidades diferentes, além de

outros menos conhecidos. Na contemporaneidade, a fotógrafa Gail Albert Halaban

retrata janelas de apartamentos e atualiza o tema.

Benjamin destacou o interior da casa afirmando que desde o rei Luís

Felipe (1830-48), “a burguesia se empenha em buscar uma compensação pelo

desaparecimento de vestígios da vida privada na cidade grande.” (1989, p. 43).

Assim, “[o intérieur] representa para o burguês o universo. Ali, ele reúne o longínquo

e o passado. Seu salon é para ele o camarote no teatro do mundo” (Benjamin apud

BOLLE, 1994, p. 67). Deste local íntimo, onde as janelas separam o particular do

público, pode-se assistir ao mundo moderno, seus personagens e o crescimento da

cidade e suas histórias repetidas cotidianamente: “o burguês assiste ao “espetáculo”

dos acontecimentos históricos, como se fosse seu distante espectador” (idem).

Alguém diante da janela sempre suscita nossa curiosidade. O que se observa? O

que se espera? O que há de atraente nesta peça que é um intermediário entre a rua

e a casa? O pintor francês Gustave Caillebotte (1848-94) se debruçou sobre esse

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tema. Nesta sala confortável (imagem 1), está seu irmão olhando para o Boulevard

de Malesherbes com suas carruagens e passantes em meio aos prédios. O jovem

burguês está no limiar do interior-exterior e parece pertencer aos dois, este na alma,

aquele na matéria. Além da sua janela, aproximadamente outras trinta. Quantas

histórias estão ali? Quantos olhares ao observar a mesma cena e pensar tão

distintos pensamentos? O que é a modernidade senão essa multiplicidade? Por que

ele olha pela janela, se o interior é seu universo? Com tantos atrativos, por que seus

pensamentos extravasam para o exterior? Ou então, por que ficar dentro de casa se

lá fora parece melhor? Essas são boas questões.

Imagem 1: Gustave Cailebotte. Um jovem à sua janela. 1875. Óleo sobre tela. Localização desconhecida. Fonte:

http://artesteves.blogspot.com.br/2010/10/gustave-caillebotte-homem-jovem-janela.html

O conto “O Homem da Multidão”, do poeta inglês Edgar Allan Poe (1809-

49) inicia-se a partir da curiosidade do homem sentado num café, ora “observando a

promíscua companhia reunida no salão, ora espreitando a rua através das vidraças

esfumaçadas [...]”. Uma das mais movimentadas ruas de Londres, vista pela janela

de um bar, causou-lhe um “calmo mas inquisitivo interesse por tudo” e “o mar

tumultuoso de cabeças humanas” que enchia-lhe “de uma emoção deliciosamente

inédita”(1993), inspirando-o a dirigir-se a multidão, que aumenta o número e o ritmo

conforme vai caindo a tarde. Já o último conto escrito pelo alemão Ernst Hoffmann

(1776-1822), “A Janela de Esquina do Primo”, mostra como o homem privado vê a

multidão, e é comparado por Benjamin com o conto de Poe, este que “foi escrito

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quinze anos após o conto de Poe e talvez seja uma das primeiras tentativas para

captar a cena de rua de uma cidade grande.” (1989, p. 122). Enquanto “o

observador de Poe sofre uma atração que, finalmente, o arrasta no turbilhão da

multidão […] o primo de Hoffmann na janela de esquina é paralítico” e, da janela,

“está, antes, acima desta multidão, como sugere seu posto de observação no

apartamento. Dali ele examina a multidão [...]”, (idem), tal como o irmão de

Cailebotte.

As janelas também estão presentes no trem, importante inovação

tecnológica moderna, que revolucionou a configuração e a maneira de viver dos

centros urbanos. Pela janela, pode-se espreitar e espiar a paisagem. Estabelecendo

conexões, Benjamin Gastineau (1823-1903) compara “a vida ferroviária” como uma

“epopeia da vida moderna, sempre arrebatadora e turbulenta, o panorama de alegria

e lágrimas passando como a poeira dos trilhos perto das cortinas do vagão” (apud

BENJAMIN, 2007, p. 147). Poucas vezes na história de até então, multidões de

desconhecidos haviam compartilhado o mesmo espaço, ouvindo histórias, choros e

sorrisos. Georg Simmel (1858-1918) é citado por Benjamin:

As relações recíprocas dos seres humanos nas cidades se distinguem por uma notória preponderância da atividade visual sobre a auditiva. Suas causas principais são os meios públicos de transporte. Antes do desenvolvimento dos ônibus, dos trens, dos bondes no século XIX, as pessoas não conheciam a situação de terem de se olhar reciprocamente por minutos, ou mesmo por horas a fio, sem dirigir a palavra umas às outras! (1989, p. 36)

Imagem 2: Honoré Daumier. O vagão de terceira classe. 1862-1866. Óleo sobre tela. Museu Metropolitano de Nova Iorque. Fonte:

http://elpais.com/diario/2006/01/22/cultura/1137884403_740215.html

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No trem pode ser percebida também a diferença social, seja quando se

une burguês e populacho, seja quando os separam. Honoré Daumier (1808-79)

produziu uma série de pinturas de vagões em que mostra essa mesma realidade

relatada por Simmel (imagem 2). Pessoas diferentes sentadas lado a lado, uma

mulher idosa junta as mãos, pensativa, braços encostam-se ao vizinho, outra mulher

amamenta, alguns dormem, inclusive a criança, e um curioso olha pela janela. O

filósofo Allan de Botton (1969-) destaca também as belezas e benefícios da viagem

de trem. Ele relata uma situação que lhe chamou atenção numa viagem à Madri.

Certa noite, no escuro, um trem longo e elegante quase vazio passou muitos metros acima do telhado do posto e seguiu seu caminho entre os andares intermediários dos prédios. Com o viaduto visualmente perdido na noite, o trem dava a impressão de flutuar acima da terra, uma proeza tecnológica que parecia mais plausível em virtude de sua forma futurista e da luz verde e pálida, algo fantasmagórica, emanada de suas janelas. No interior dos apartamentos, as pessoas assistiam à televisão ou se movimentavam pela cozinha; ao mesmo tempo, dispersos pelos vagões, os poucos passageiros observavam a cidade ou liam jornais. (2012, p. 258)

Se em Caillebote, Poe e Hoffmann o olhar é da janela para a rua, nos

trens vemos de uma janela à outra. Em Edward Hopper (1882-1967), temos um caso

semelhante. Ele estava interessado na controversa solidão metropolitana, fenômeno

que acontece em meio às multidões. Em “Casa no crepúsculo”1, vê-se um

condomínio com algumas janelas; numa delas, uma mulher apoiada sobre a borda.

Benjamin escreve sobre essa banalidade do cotidiano questionando “por que o olhar

para uma janela desconhecida sempre encontra uma família em uma refeição, ou

então um homem solitário, sentado em uma mesa sob uma lâmpada pendurada,

ocupado com alguma coisa obscura e miúda?” (2007, p. 218). Benjamin trata

também dos limites do interior, esse local de isolamento e, consequentemente,

privado do olhar externo, que se torna público. O uso do vidro tem nisso sua parcela

de responsabilidade- ele vem do século XV, em resposta ao comando “mais luz”,

sobretudo na Holanda. O escritor Alfred G. Meyer afirma que “este desenvolvimento

resultou na abertura de janelas que (…) ocupam em média a metade das superfícies

1 Imagem não incluída para satisfazer as normas de submissão quanto ao número de páginas

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das fachadas até mesmo das casas burguesas” (apud BENJAMIN, 2007, p. 196).

Nos prédios modernos e na paisagem contemporânea, se veem tão claro as janelas

a brilhar, e em cada uma delas, uma história diferente. Baudelaire já dizia: "Não há

objeto mais profundo, mais misterioso, mais fecundo, mais deslumbrante do que

uma janela iluminada por uma candeia" (idem, p. 481).

O interesse pela janela está também na fotógrafa contemporânea Gail

Albert Halaban (1970-), estadunidense que produziu séries como Hopper redux, em

que fotografou locais em Massachussets pintados por Hopper e Out my window, em

que fotografou janelas novaiorquinas, destacando a arquitetura da cidade, mas,

sobretudo, a intimidade que as janelas abertas revelavam. Ela continuou a série

morando em Paris por um ano, com o mesmo propósito e ação (imagem 3). Vê-se a

diversidade que há em um único prédio. O vazio, a mulher só, a mãe com filhos, o

senhor assentado de costas, a mulher atarefada. Quantas vidas e histórias, quanto a

se pensar, estudar, descobrir numa mesma fotografia! O público parisiense chamou

a atenção da fotógrafa pelo fato de pessoas tão próximas viverem tão

diferentemente. Botton refere-se a isso dizendo que “os passageiros e os moradores

dos apartamentos prestavam pouca atenção uns nos outros; suas vidas seguiam

rumos que jamais se encontrariam” (2012, p. 259) e o poeta inglês Willian

Wordsworth (1770-1850) ficava perplexo com Londres, onde “os homens viviam

como vizinhos de porta (…) e ainda assim eram desconhecidos, sem sequer saber

os nomes uns dos outros” (apud BERMAN, 1986, p. 136).

Imagem 3: Gail Albert Halaban. Série fotográfica Out my window, Paris. 2012. Col. particular. Fonte: http://www.gailalberthalaban.com/OUT-MY-WINDOW/-VIS-%C3%A0-VIS,-PARIS/1

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Vidros que transparecem o interior já faziam sucesso na Paris do século

XIX. As galerias eram repletas de vitrines que brilhavam ante o consumidor e,

obviamente, nem todos podiam consumir os seus produtos nem frequentar locais

onde as condições socioeconômicas definiam o público. Antes, porém, podia-se

sonhar. Baudelaire escreveu “Os olhos dos pobres”, conto sobre jovens amantes

que se encontram num café, olhos nos olhos, e, de repente, são surpreendidos por

três olhares famintos e fascinados do outro lado do vidro. O homem sente afinidade

pela família, mas a mulher logo o surpreende: “Essas pessoas de olhos

esbugalhados são insuportáveis! Você não poderia pedir ao gerente que os

afastasse daqui?”. (apud BERMAN, 1986, p. 170). Vemos então que a janela serve

de portal do interior burguês para a rua, para encantar com o externo, com a

multidão, com a outra janela, que é outro mundo, e por fim como divisora de classes,

como um convite para entrar.

As ruas oitocentistas já não são mais as mesmas de um século atrás:

mais largas e movimentadas devido às reformas do barão de Haussmann (1809-91),

prefeito de Paris entre 1853 e 1870. Esse crescimento e modernização urbana

oitocentista é citado por Berman como a criação de novas bases econômicas,

sociais, estéticas — para reunir um enorme contingente de pessoas” e que os

monumentos e novas perspectivas fizeram com que “cada passeio conduzisse a um

clímax dramático” e transformaram Paris em um espetáculo particularmente

sedutor, uma festa para os olhos e para os sentidos. (1986, p. 172-3) Essas

novidades foram percebidas e absorvidas por artistas e intelectuais deste tempo.

Berman ainda afirma que “cinco gerações de pintores, escritores e fotógrafos

modernos (e, um pouco mais tarde, de cineastas), (…) nutrir-se-iam da vida e da

energia que escoavam ao longo dos bulevares.” (idem, p. 173). A cidade moderna é

repleta de tudo isso: poetas versaram-na, solitários sentiram-na, andando pelas ruas

e divagando sobre possíveis descobertas e histórias que se passam nas janelas

iluminadas, à vista ou cobertas por persianas e tecidos. Das ruas veem-se também

as janelas das carruagens e dos trens. E, no famoso conto de Poe:

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(…) duas densas correntes de transeuntes passavam se empurrando pelo café. Nunca antes me sentira em condições semelhantes, como àquela hora da tarde; e saboreava a nova excitação, que me sobreviera ante o espetáculo de um oceano de cabeças, encapelado. Pouco a pouco deixei de observar o que acontecia no recinto onde me achava. Perdi-me na contemplação da cena de rua. (apud BENJAMIN, 1989, p. 119)

Em meio às multidões, a luz que saía das janelas iluminava as faces,

tirando suas homogeneidades. “Os fantásticos efeitos de luz levaram-me ao exame

das faces individuais”, diz ele, ainda que “a rapidez com que o mundo iluminado

desfilava diante da janela me proibisse lançar mais que uma olhadela furtiva a cada

rosto.” Ele ainda destaca a possibilidade de ler histórias: “Eu podia ler

frequentemente, mesmo no breve intervalo de um olhar, a história de longos anos.”

(idem). Botton relata em “A arte de viajar”: “tenho obsessão de inventar histórias a

respeito das pessoas com que cruzo [...]” (2012, p. 90). Pergunta a si mesmo sobre

suas vidas, “(...) o que fazem, onde viveram, seus nomes, no que estão pensando,

quais são seus arrependimentos, suas esperanças, seus amores passados, seus

sonhos atuais.” (idem). Friedrich Engels (1820-1895) também relata, com menos

entusiasmo e paixão, as ruas londrinas, questionando-se se

essas centenas de milhares de pessoas de todas as classes e situações, que se empurram umas às outras, não são todas seres humanos com as mesmas qualidades e aptidões e com o mesmo interesse em serem felizes? ... E, no entanto, passam correndo uns pelos outros, como se não tivessem absolutamente nada em comum, nada a ver uns com os outros. (apud BENJAMIN, 1989, p. 54)

Imagem 4: Floris Arntzenius. Uma vista da Spuistraat, Haia. Óleo sobre tela. Coleção particular. Fonte: http://www.artnet.com/artists/floris-arntzenius/past-auction-results/3

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Multidões que encantam, rostos iluminados por janelas, multiplicidade de

histórias e encontros e desencontros estão presentes na pintura do holandês Floris

Arntzenius (1864-1925) (imagem 4). Assim como em Paris, em Haia, na Holanda, a

rua estreita está espreitando ainda mais os passantes, que se misturam indiferente

de classes. Pai e filho olham a vitrine, uma senhora de aparência nobre levanta a

barra do vestido. O chão reluzente faz parecer que chovera há pouco. Um moço

com uma cesta, um cão, muitos transeuntes preenchem quase todo o espaço. Se

há, nas multidões, sensação de homogeneidade, quando paramos nos detalhes,

vemos diversos personagens deste fabuloso mundo urbano. Honoré de Balzac

(1799-1850) fala do “delírio e vigor na alma de um homem que espera com

impaciência a abertura de um antro de jogo […]” e compara com “o amante

arrebatado sob a janela de sua adorada” (apud BENJAMIN, 2007, p. 555). Esse

mesmo amante é aquele que usa da persiana para esconder sua intimidade, como

Baudelaire cita n'As Flores do Mal: “Ao longo dos subúrbios, onde nos

pardieiros/persianas acobertam beijos sorrateiros [...]” (idem, 1989, p. 112).

Berman afirma que em “O Pintor da Vida Moderna”, Baudelaire mostra

que “a vida moderna surge como um grande show de moda, um sistema de

aparições deslumbrantes, brilhantes fachadas, espetaculares triunfos de decoração

e estilo” num mundo onde o espectador está diante da “esfuziante harmonia da vida

nas grandes cidades, (...) providencialmente preservada em meio ao tumulto da

liberdade humana” (1986, p. 156). Em meio ao turbilhão, vemos trabalhadoras em

grande número na Maison Donnier, onde “são avistadas pelas janelas” (BENJAMIN,

2007, p. 90), ou então a jovem de pele clara que, através das janelas, como num

jardim campestre, é vista cantando e tecendo seda (idem, p. 126). Não é somente a

mulher jovem e bela ou a proletária que chama a atenção de Benjamin, mas também

a prostituta, figura recorrente nas metrópoles. Ele refere-se a elas quando fala das

“passagens, que são ao mesmo tempo casa e rua; e também a prostituta, que é ao

mesmo tempo vendedora e mercadoria”. (apud Bolle, 1994, p. 67). Há, nas

Passagens, uma advertência aos empregadores feita por F.F.A. Béraud em 1839:

Proíbo também a abertura de lojas e boutiques nas quais as mulheres públicas se instalam como modistas, costureiras de roupa íntima, vendedoras de perfume etc. As mulheres que ocupam essas lojas ou

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boutiques mantêm portas ou janelas abertas, para fazer sinais para os transeuntes... Há outras, mais astutas, que fecham suas portas e janelas, mas fazem sinais através das vidraças sem cortinas; ou essas cortinas ficam entreabertas, deixando uma fresta que permite uma comunicação fácil entre o exterior e o interior. Algumas batem na vitrine da boutique toda vez que um homem passa, o que o faz se voltar para o lado de onde vem o ruído, e então os sinais se sucedem de uma maneira tão escandalosa que ninguém pode deixar de percebê-los. Todas essas boutiques se encontram nas passagens. (2007, p. 540-541)

No livro “História Moral Ilustrada desde a Idade Média até o presente”,

publicado por Eduard Fuchs em 1909, há uma gravura que remete ao

comportamento da prostituta registrado por Béraud2. Uma sedutora mulher está

postada ante a janela, lançando olhares e convites no ar ao senhor cavaleiro que

passa na rua. Ela aponta o dedo para dentro da casa enquanto outra mulher já abre

a porta, esperando para a consumação dos seus desejos. Elas estão habituadas

com o público, com as ruas, o frio e a inconstância e embora existam aos olhos de

todos, poucos tiveram coragem ou interesse de escrever sobre elas.

Imagem 5: Umberto Boccioni. O ruído da rua entra na casa. 1911. Óleo sobre tela. Sprengel Museum, Hanôver. Fonte: http://historiaeartee.blogspot.com.br/2010/11/futurismo.html

Na modernidade nada é lento, tudo é rápido, efêmero, fugidio. No início

do século XX, sobretudo na Itália, surgiu o movimento futurista, adepto da

modernização da vida, da tecnologia, da rapidez em detrimento da tradição e do

passado. Umberto Boccioni (1882-1916), um dos seus representantes, pintou O

2 Imagem não incluída para satisfazer as normas de submissão quanto ao número de páginas

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Ruído da Rua Entra em Casa (imagem 5), onde uma pessoa observa a rua pela

varanda/janela. Os prédios estão representados tortos, assim como a rua e as

pessoas parecem estar uma por cima das outras. O movimento captado, típico do

futurismo, é uma característica do que Boccioni celebrara. O nome da tela também

chama atenção, pois se o ruído da rua entra em casa, seja talvez porque as

fronteiras já se desmancharam e o interior e o exterior já não são tão opostos.

Desde então, o privado torna-se cada vez mais público. As portas estão abertas, e

as ruas tornam-se cada vez mais palco de manifestações sociais. Essa

representação do ser moderno lembra a descrição de Berman: “ser moderno é fazer

parte de um universo no qual, como disse Marx, tudo o que é sólido desmancha no

ar”. (1986, p. 15)

A troca entre interior e exterior não é esquecida por Benjamin, pois “(...)

as galerias são um meio-termo entre a rua e o interior da casa” (2007, p. 35). O

historiador francês Jacques Le Goff afirma que “a cidade, mesmo a medieval, e

depois a moderna e contemporânea, sempre teve como função essencial “a troca, a

informação, a vida cultural e o poder” (1998, p. 29). Desde o século XIX, essas

trocas vêm acontecendo cada vez mais, e das janelas é possível perceber os efeitos

da modernidade, como eles são percebidos e como a troca é comum – desde a

cotidiana situação onde vizinhos de condomínio trocam xícaras de açúcar pelas

janelas aos olhares das vidraças das grandes galeiras comerciais. A janela, por fim,

esse objeto arquitetônico tão singular, hoje parece simbolizar apenas uma divisão

que já não existe mais e sua representação é a revelação de estilos de vida que

processam os efeitos da modernidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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