a missão da filosofia hoje - mac dowell

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Um dos maiores especialistas em Heidegger do Brasil.

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    A MISSO DA FILOSOFIA HOJE*

    Prof. Dr. Joo Augusto A. A. Mac Dowell SJ**

    RESUMO

    A determinao da misso da filosofia hoje depende do que se compreende por filosofia. Entretanto, o trabalho no discute sistematicamente esta questo, antes parte de certos aspectos problemticos da prtica filosfica atual no Brasil para por contraste pr em evidncia o autntico sentido de filosofar e a misso do filsofo hoje. A filosofia poder cumprir sua misso institucional de promoo da razo crtica na sociedade na medida em que como atividade pessoal e estilo de vida no se deixar aprisionar nas malhas da civilizao da eficcia tcnica, mas for exercida como pensar gratuito e questionamento radical da verdade que leva ao senso do mistrio.

    Palavras-chave: filosofar, civilizao da tcnica, gratuidade, questionamento, mistrio

    ABSTRACT

    The definition of the mission of philosophy today depends upon a certain understanding of philosophy. The paper however does not discuss directly this question. It starts from certain problematic features of the contemporary philosophical practice in order to bring to light the proper sense of philosophizing and of the philosophers mission today. Philosophy will perform its institutional mission to promote critical reason in the society as far as it, taken up as a personal task and lifestyle, instead of being entangled in the meshes of the technological civilization, is carried out as gratuitous thinking and radical quest for truth, which leads to a sense of mystery.

    Keywords: philosophize, technological civilization, gratuity, radical question, mystery

    Usamos hoje a torto e a direito o termo misso, sem ter em conta a sua origem crist. Misso significa literalmente envio e refere-se na linguagem bblica quele que enviado por Deus para colaborar na realizao de seu plano de amor em favor de seu povo ou de toda a humanidade. A palavra foi usada como termo tcnico em primeiro lugar no mbito da teologia trinitria para designar as misses de Jesus ________________________

    * Verso ligeiramente modificada da Aula Inaugural do Curso de Filosofia da PUC-Minas, proferida em 13/02/2008. ** Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia -FAJE/BH E-mail: [email protected]

    Sapere Aude ISSN: 2176-2708 Belo Horizonte v.1 - n.1 1 sem. 2010 p.10- 29

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    Cristo, o Filho de Deus, feito homem, e do Esprito Santo, enviados ao mundo por Deus Pai para a salvao da humanidade. Mas j no Novo Testamento, inspirado, alis, no Antigo, o termo aplicado aos apstolos a palavra de origem grega tem exatamente este significado enviados por Cristo, para agir em seu nome como colaboradores de sua misso. Mais tarde, por influncia, alis, dos textos fundadores da Companhia de Jesus, que assumiu a misso apostlica como marca de sua identidade, o uso do termo foi estendido a todos os que recebiam um encargo missionrio no mbito da Igreja para o anncio do Evangelho.1

    E foi nesta acepo que misso, veio a significar, o que hoje entendemos pelo termo, como reza o Aurlio: Funo ou poder que se confere a algum para fazer algo; encargo, incumbncia (Aurlio, 1975). Embora tenha perdido a conotao original de envio, o encargo conserva de algum modo, alm, do para, ou seja, da idia de finalidade, a noo de algo recebido de outro, que encarrega algum, confere-lhe determinado cargo ou carga. Mas esta definio no cobre perfeitamente o sentido, ainda mais geral, que misso adquire quando falamos p. ex. de identidade e misso de uma instituio, digamos da PUC Minas. Neste caso, trata-se propriamente de um puro para que ela existe, de seus objetivos, embora revestidos de certa aura de dignidade, no sentido de uma mstica, derivada, creio, do significado religioso original, que o termo objetivos, puramente racionalizado, no comporta.

    Ser ento que se pode falar com propriedade de misso da filosofia, de seus objetivos, por mais nobres que sejam? Para responder a tal interrogao deveremos tentar esclarecer de antemo que filosofia?. Com efeito, a partir de determinada concepo da natureza da filosofia que possvel perguntar para que ela serve?, se que serve para algo.

    Quem fala de filosofia, identificando com este termo certa realidade de nosso mundo, possui certamente uma pr-compreenso da mesma. Todos os que esto aqui a me ouvir tm uma idia do que filosofia. Caso contrrio, no poderiam ter escolhido o curso de filosofia como alunos ou dedicar-se atividade de ensinar esta matria. Ser ento dispensvel explicar o que se entende por filosofia? Certamente no; porque se perguntarmos a cada um que filosofia?, como fazia Scrates com seus interlocutores a respeito de outras realidades (coragem, religiosidade, justia, etc.), obteremos as mais

    1 Cf. The Oxford English Dictionary, art. Mission, vol. VI, 531. Oxford: Clarendon Press, 1933; HENRY,

    A.-M. Missions, in: Encyclopaedia Universalis. Paris, 1968, 95c-96a.

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    diversas respostas, talvez contraditrias entre si ou em si mesmas, quando no um verdadeiro embarao em responder e explicar a sua idia. Na verdade, mesmo entre aqueles que so reconhecidos como filsofos no h consenso a este respeito. Contam que Nikolai Hartmann, um dos mais respeitados filsofos universitrios da Alemanha na primeira metade do sculo XX, perguntou certa vez a um estudante que queria doutorar-se sob sua orientao: Onde voc estudou filosofia?. Com Heidegger, respondeu o candidato. O professor insistiu: Eu perguntei onde voc estudou f i l o s o f i a. (SPAEMANN, 1978, p.91-92) Evidentemente, para ele o que Heidegger ensinava no era filosofia! E no foi o nico a pensar assim. O prprio Heidegger falar do fim da filosofia, entendendo com isso certo tipo de pensar, que pretendia ter superado, de modo que mais do que filsofo se considerava um pensador (HEIDEGGER, 1969).

    Diante de tal diversidade de opinies, valer a pena tentar definir filosofia? A resposta agora, a meu ver, sim. Tanto mais que com a mesma situao se depara qualquer pergunta filosfica. O dissenso a respeito de todas as questes, j podemos antecipar e vocs mesmos certamente j experimentaram, pertence prpria natureza da filosofia. Se as respostas contrastantes justificassem a renncia pergunta filosfica, no haveria lugar para a filosofia. O filsofo aquele que cr que suas afirmaes so

    verdadeiras, mesmo sabendo que outros no as aceitam. A discordncia no deve lev-lo simplesmente a recuar, tampouco a fechar-se aos questionamentos, mas a aprofundar a sua investigao. neste esprito que apresentarei a minha posio sobre o que filosofia.

    Entretanto, mais do que oferecer uma reflexo mais ou menos sistemtica sobre o que filosofia, gostaria de chamar a ateno para alguns aspectos, que me parecem problemticos, da prtica filosfica no Brasil atual. Na verdade, as situaes que analisarei no so exclusivas de nosso pas. Caracterizam de certo modo o panorama filosfico mundial. Evidentemente, a preocupao com tais tendncias surge a partir de determinada idia de filosofia. Ela ir se esclarecendo medida que forem apontadas e discutidas as lacunas mencionadas.

    No mundo atual a filosofia apresenta-se, em primeiro lugar, como uma prtica social, uma atividade profissional, ao lado de outras, prpria daqueles que se dedicam ao estudo e ao ensino neste campo especfico do saber. Embora no se exera exclusivamente no mbito universitrio, ela se encarna preferentemente na pessoa do professor, com sua rotina docente, suas preocupaes acadmicas, seus livros, suas bibliotecas, suas pesquisas. A imagem do filsofo como um sbio, venervel, mas

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    distante das preocupaes quotidianas, pode ainda sobreviver no imaginrio popular, mas no tem qualquer incidncia em nossa realidade. A profissionalizao da atividade filosfica de certo modo inelutvel. No se trata, alis, de um fenmeno indito.

    J na Idade Mdia, certamente desde o sculo XIII, os cursos de filosofia foram institucionalizados nas Faculdades de Artes das Universidades, que monopolizaram praticamente o pensamento filosfico da poca. Esta organizao implicava exames, ttulos, programas e um corpo docente relativamente hierarquizado e certamente remunerado por seus servios.2 Alis, tambm na antiguidade, se, ao contrrio dos sofistas, os filsofos da estirpe de Scrates no cobravam os seus ensinamentos, com o tempo tornou-se inevitvel que os grupos de discpulos reunidos em torno de seus mestres se submetessem a algum tipo de organizao acadmica. Foi o que ocorreu nas escolas de diferentes correntes filosficas, que subsistiam s vezes por vrias geraes em Atenas, Alexandria, Roma e outras cidades do Imprio romano.3

    Na modernidade, entre os sculos XVI e a primeira metade do sculo XVIII deparamos com um fenmeno curioso, cujas causas no possvel discutir aqui, um hiato na tradio universitria do pensamento filosfico, j que as figuras mais representativas da filosofia da poca, Montaigne, Descartes, Pascal, Francis Bacon, Hobbes, Hume, Spinoza e Leibniz, para dar apenas alguns exemplos mais significativos, no foram professores universitrios. Contudo, a partir dos fins do sculo XVIII, especialmente na Alemanha, - com excees brilhantes que s confirmam a regra a Universidade voltou a ser o lugar por excelncia da atividade filosfica, como acontece at hoje. Mas, at meados do sculo XX a insero acadmica, longe de perturbar o desenvolvimento vigoroso do pensar, oferecia aos cultores da filosofia condies privilegiadas para dedicar-se ao estudo da tradio filosfica e meditao sobre a realidade.

    De l para c, contudo, as caractersticas da modernidade avanada burocratizao, tecnicizao, culto da eficcia, primado do econmico, massificao da informao, ritmo alucinante do tempo tm incidido, cada vez mais pesadamente, sobre a liberdade do pensar filosfico, ameaando sufoc-lo. O professor universitrio est continuamente ocupado com mil atividades prescritas: aulas a preparar e ministrar, trabalhos a corrigir, alunos a orientar, formulrios a preencher, relatrios a redigir,

    2 Para uma breve apresentao da Universidade medieval, veja-se REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario.

    Storia della filosofia. Vol.1: Dall`Antichit al Medioevo. Brescia: La Scuola, 1997, 505-511. 3 Cf. HADOT, Pierre: O que a filosofia antiga? Col. Leituras Filosficas. So Paulo: Loyola, 1999, 213-

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    reunies a assistir. Mais ainda. Ele precisa fazer conferncias, participar de congressos, publicar anualmente pelo menos um artigo significativo, para obter pontos em vista das avaliaes da CAPES e de sua prpria instituio. Sem produo, no h reconhecimento, nem promoo. Publish or perish, dizem os norte-americanos: Publicar ou perecer, perder as esperanas de qualquer avano na carreira. Tambm os estudantes esto sujeitos a semelhante disperso. Divididos entre o trabalho e o estudo, quando no cativados por mil atraes mais ou menos fteis vivendo, assim, o divertissement pascaliano - , dificilmente encontram condies de fazer a nica coisa que importa deveras: pensar sobre o sentido da prpria vida, para viver de acordo com a sua verdade.

    Nestas circunstncias, volta-se a entender o significado profundo da afirmao, aparentemente irrisria, de Aristteles: o cio a condio do filosofar. cio ou lazer, em grego schol, donde a nossa palavra escola, o tempo prprio para o pensar, enquanto livre das ocupaes e preocupaes quotidianas.4 Com efeito, para os gregos era evidente que a ocupao, ou seja, o trabalho, no sentido de uma atividade til, no um fim em si mesmo e, portanto, no pode ser absolutizado. Em linguagem corriqueira poderamos dizer: no vlido viver para trabalhar, mas sim trabalhar para viver, no somente para sobreviver, mas para viver uma vida plenamente humana. O fim do trabalho, das mltiplas ocupaes indispensveis que assumimos abrir espao para a atividade gratuita, aquela que, no sendo ordenada para outra coisa, fim em si mesma, porque, por sua prpria natureza, enriquece e realiza o ser humano.

    Fica claro, portanto, que a schol grega nada tem a ver com ociosidade, como inrcia e inatividade, tampouco com lazer no sentido atual de tempo livre, para distrao e divertimento, nem mesmo com o repouso como pausa no trabalho a fim de recuperar foras para voltar a trabalhar. Todas estas mudanas do significado original dos termos refletem uma nova maneira, moderna, de encarar o sentido da vida humana.5 A prpria linguagem manifesta a diferena da viso clssica, que d primazia ao gratuito sobre o utilitrio, ao fim sobre os meios, de modo que a atividade instrumental e utilitria considerada como a carncia daquilo que a perfeio e plenitude do ser

    4 ARISTTELES, Metafsica, A 918b 20-24.

    5 A compreenso do cio como meta do trabalho, ou seja, como a verdadeira realizao do ser humano, foi

    expressa por Aristteles numa frase da tica a Nicmaco (X, c.7, 1177 b 4-5) que traduzida literalmente diz: Ficamos ocupados para ficarmos desocupados (ascholometha gar ina scholzomen). Mas, ao contrrio das lnguas modernas, em grego, como, alis, tambm em latim, o termo, gramaticalmente, primrio e positivo (schol, otium) o equivalente a des-ocupao. Para exprimir a idia de ocupao, ou seja, da atividade utilitria, rentvel, estas lnguas servem-se de um termo negativo, falta de desocupao, em grego, a-scholia, com o alfa privativo, em latim nec-otium, negcio, falta de cio (Cf. PIEPER, 1969, p.93-113).

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    humano. verdade que esta realizao plena no se consubstancia apenas no pensar filosfico. Tambm a criao artstica, o valor moral e a atitude religiosa, entendidos, como se deve, a partir da perspectiva de gratuidade, so atuaes plenificantes das potencialidades humanas. Todavia, o pensar adquire certa prioridade sobre as outras dimenses completivas da existncia, enquanto elas no valem, seno medida que se fundam na verdade.

    Evidentemente, uma vida filosfica ser tanto mais autntica quanto mais fecunda. Mas a fecundidade do pensar nada tem a ver com a produtividade quase mecnica de textos mais ou menos repetitivos e andinos. Ela no se mede pela quantidade das pginas escritas, mas pela qualidade do pensamento. E para pensar e pensar bem preciso de sossego, recolhimento, concentrao. A presso que pe em movimento e s vezes em efervescncia o pensamento no a presso dos compromissos imediatos, mas das experincias profundamente humanas, quando tm a oportunidade de vir tona e despertar o compromisso com a verdade.

    No se trata de escapar s contingncias da vida real. No estou sugerindo que algum procure a solido do monte Etna, como se conta de Empdocles, ou se afaste do pblico, como Descartes no seu refgio da Holanda. Tampouco necessrio seguir Scrates na renncia a seu ofcio de escultor, a qualquer profisso definida, para dedicar-se inteiramente a ajudar seus concidados a pensar, vagando pelas ruas e praas de Atenas, a procura de quem interrogar. Cada um de ns tem seus deveres a cumprir. Mas jamais chegaremos a pensar de verdade, a ser filsofos, sem ter a lucidez de no nos deixar submergir pela avalanche de tarefas impostas pelas circunstncias. Tarefas vlidas, necessrias mesmo, mas que no se compaginam com o pensar, o meditar. Para chegar a tanto, requer-se deciso e disciplina. preciso mudar hbitos inveterados no prprio mbito do estudo de filosofia. preciso mesmo repensar o que significa estudar. Cabe aqui o belo testemunho de Marcel Conche, professor emrito da Sorbonne, em seu livro O Sentido da Filosofia:

    Minha atividade livre de filsofo, na qual o que conta apenas a meditao, longe de todo rebulio, s se desenvolveu nas margens e nos intervalos de minhas atividades obrigatrias. Mesmo cumprindo escrupulosamente meus deveres profissionais e sociais, nunca deixei de procurar entender. (CONCHE, 2006, p.75)

    Para ser filsofo, o que conta apenas a meditao, diz-nos Conche. Nada mais oportuno que esta recomendao diante do quadro atual do estudo de filosofia. Que entende ele por meditao? Eis a resposta: A meditao uma espcie de escuta, de

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    auscultao de si mesmo. Trata-se de perguntar a si mesmo, na prpria alma e conscincia, em que se acredita realmente. (CONCHE, 2006, p.23) Filosofar no seno pode-se acrescentar prestar ateno s experincias humanas fundamentais a fim de traduzi-las adequadamente no discurso. Esta tarefa estritamente pessoal, no porque mergulhe solipsisticamente no meu interior como um eu isolado de todo o resto da realidade. Sou essencialmente ser-no-mundo. No posso entender-me sem levar em conta o conjunto de relaes diretas e indiretas com inmeras pessoas e coisas que constituem o meu mundo. E meu mundo, embora tenha muito em comum com o seu, , em ltima anlise, exclusivamente meu. A minha experincia da realidade tem sua tonalidade prpria, seus elementos insubstituveis, e a partir dela que surgem as questes propriamente filosficas.

    Trata-se da explicitao do sentido daquilo que j pr-compreendido na minha experincia de vida. A pergunta filosfica se situa na tenso entre a experincia subjacente e o saber explcito; ela provocada pela distncia entre o que j sei implicitamente e aquilo do qual ainda no tomei posse em um discurso refletido. Todo o processo de compreenso do mundo est fundado nesta experincia radical de seu ser. No parte do nada, nem de um no-saber absoluto diga-se de passagem como quer o ceticismo que vem se alastrando ultimamente nos meios acadmicos nacionais. A filosofia consiste, pois, na interpretao das estruturas constitutivas da realidade, tal qual se manifestam nas experincias humanas fundamentais.

    Ora, que espetculo nos oferece o cenrio acadmico atual? A atividade filosfica reduzida praticamente interpretao de textos, discusso do que disseram ou no disseram diferentes autores. Tocamos aqui um segundo ponto nevrlgico do organismo filosfico nacional. Certamente, o carter pessoal do pensar no exclui, muito pelo contrrio, o contato indispensvel com o que outros pensam, com o pensamento que nos foi legado por grandes figuras do passado. O discurso racional no pode ser construdo por uma razo desconectada de sua histria, que pretenda descobrir por si s o sentido das coisas. A reflexo sobre a prpria experincia j est condicionada previamente por categorias interpretativas inseridas de longa data na trama da cultura atual. fundamental para a lucidez do pensar tomar conscincia desta herana incontornvel, a fim de explorar os veios que patenteiam a riqueza recndita no mago do real, ou, pelo contrrio, desvencilhar-se das capas interpretativas que recobrem os fenmenos, impedindo que se manifestem na sua verdade. Com efeito, as perguntas de nosso tempo no so seno, o mais das vezes, a atualizao, em nova

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    situao e em diferentes nveis de profundidade, das interrogaes j formuladas ao longo da histria do Ocidente. Para respond-las indispensvel confrontar-se com os elementos de soluo j apresentados por diferentes autores. Somente sobre a base do patrimnio filosfico acumulado atravs dos sculos possvel desenvolver um pensamento slido e criativo.

    Dito isto, fica de p que filosofar no equivale a conhecer a histria do pensamento filosfico. Trata-se sim de compreender as opinies de outros pensadores, mas apenas tanto quanto ajudam a formar uma idia pessoal da prpria realidade. O contato com os textos filosficos assume ento a forma de um autntico dilogo, no qual o meu prprio pensamento provocado pelas questes que levantam e pelas respostas que propem. Como diz Heidegger:

    Comeamos a filosofar quando entramos em dilogo com os filsofos. Isto implica que discutamos com eles sobre aquilo do qual eles falam. (...) Uma coisa averiguar as opinies dos filsofos. Outra, inteiramente diferente, discutir com eles o que dizem, i.e. aquilo sobre que eles dizem. (HEIDEGGER, 1956, p.31).

    O objetivo final , pois, tomar posio no em relao s interpretaes do pensamento de cada filsofo, mas em relao verdade das coisas. Na frase lapidar de Toms de Aquino: O estudo de filosofia no consiste em conhecer as opinies dos filsofos, mas qual seja o verdadeiro sentido das coisas.6

    Mas quem se atreve a dizer o que pensa, quando pensa, a tomar posio no debate de idias, a procurar respostas para os problemas bsicos da sociedade e cultura contemporneas? Tomem uma revista brasileira de filosofia, p.ex. Sntese, publicada pelo Departamento ao qual perteno. 90% dos artigos so comentrios do pensamento de diferentes autores. Quando muito aparece uma interpretao efetivamente pessoal. O mais das vezes tem-se apenas um apanhado mais ou menos seletivo e crtico do que dizem outros comentaristas. No melhor dos casos o artigo reflete uma erudio slida e julgamentos fundamentados. Algo semelhante vale dos cursos de filosofia. Expe-se o pensamento de Kant ou Hegel, Heidegger ou Habermas, sobre determinados assuntos. A realidade em si mesma no focalizada. Sem desmerecer o valor de todo este trabalho, preciso confessar que ele tem pouco de filosofia propriamente dita.

    Como diz Robert Spaemann, o que distingue o discurso filosfico do no-filosfico seu carter monolgico, enquanto auto-pensamento. (1978, p.94) Com isso

    6 Studium philosophiae non est ad hoc quod sciatur quid homines senserint, sed qualiter se habeat veritas rerum. (In

    De Caelo, lib.1 l.22 n.8).

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    no est negando o que se afirmou h pouco sobre o dilogo com a tradio filosfica. Pelo contrrio. Pensar por si mesmo implica a tentativa de entender o que dito pelo parceiro, ou seja, de transportar as afirmaes dele para o prprio universo mental, reconstru-las, repens-las, de modo, ou a propor uma interpretao de tais posies, que as torne aceitveis, ou a dar razes pelas quais no possvel concordar com elas. O alvo do debate filosfico no convencer imediatamente o outro ou o pblico da prpria opinio, mas refletir sobre o desafio que consiste em reconhecer que afirmo algo com a pretenso de que todos concordem comigo, constatando, ao mesmo tempo, que de fato nem todos concordam (SPAEMANN, 1978, p.95). A evidncia pressuposto de nosso discurso. Mas a convico de que o que afirmo evidente questionada pelo fato de algum no julg-lo tal. A sada filosfica de tal impasse a tentativa de entender por que o outro no est de acordo. Isto no significa, porm, a disposio de simplesmente abrir mo de minha posio diante das objees. A evidncia pode certamente mostrar-se enganosa. O importante, porm, que ela s pode ser substituda por outras evidncias, sempre pessoais, evidentemente, e incomunicveis. (BRAND, Gerd, 1978, p.352). Neste sentido, o pensar filosfico se desenvolve medida que algum procura a tal ponto entender as razes da discordncia dos outros, que esta retomada pessoal da problemtica modifica o seu prprio horizonte interpretativo, sem necessariamente levar a abandon-lo.

    Ora, justamente esta interlocuo que est em falta entre ns. Tem-se a impresso que os escritos de brasileiros no so, em geral, levados a srio, sobretudo por quem tem acesso fcil bibliografia em outras lnguas. Em todo caso, poucos se do ao trabalho de pronunciar-se sobre eles e de apresentar suas crticas. claro que o mais das vezes no se trata de obras primas. Mas a ausncia da discusso que impede o aperfeioamento do pensar. Pode ser mais interessante escrever sobre autores estrangeiros que dificilmente tomaro conhecimento de nossa opinio. Tambm nas apresentaes pblicas sob a forma de conferncias ou mesmo mesas redondas o debate costuma ser mnimo. Ningum quer expor-se contradio. Esta situao fatal para o desenvolvimento de um autntico pensamento filosfico brasileiro.

    Permitam-me acrescentar mais um ponto de estrangulamento no processo de consolidao de uma filosofia nacional. Refiro-me tendncia especializao precoce. Com freqncia as disciplinas do currculo de graduao, mesmo que ostentem ttulos de tratados sistemticos, Antropologia Filosfica, Metafsica ou tica, so ministradas de forma monogrfica, focalizando um ou outro autor ou um aspecto limitado da

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    problemtica respectiva. Vai na mesma linha o papel determinante da monografia j nos primeiros perodos do currculo de graduao. Esta preponderncia dos estudos monogrficos determinada por razes tanto pragmticas como tericas. Por um lado, atravs da especializao rpida, o estudante torna-se capaz de publicar e de falar desde cedo com certa pertinncia sobre o pensador de sua escolha, com todas as vantagens profissionais que isto implica. Por outro lado, o trabalho monogrfico sobre determinados autores est aparentado com o vis j indigitado de converter a atividade filosfica em interpretao de textos. No pretendo, evidentemente, negar a importncia de alcanar o domnio das tcnicas de pesquisa cientfica no campo da filosofia, bem como da metodologia adequada para a elaborao e comunicao dos resultados da investigao. Mas, como os prprios termos esto a indicar, tal treinamento certamente louvvel e til tambm para o filsofo no passa, afinal de contas, de cincia, ou melhor, de tcnica. No ainda filosofia, nem o caminho mais certeiro de iniciao ao pensar filosfico. Para tanto, mister ajudar o estudante a confrontar-se com a problemtica filosfica no seu conjunto.

    Da o imperativo de abordar expressamente os problemas fundamentais com que se depara nossa razo, especialmente, em nossos dias, no campo da compreenso do ser humano, de seu saber e agir, do significado da cultura e da sociedade, bem como do fundamento ltimo da realidade. a partir desta abordagem temtica, proposta existencialmente e informada, sem dvida, por uma viso histrica tambm abrangente, que o iniciante na arte de refletir ter condies de situar-se no mundo do pensamento filosfico e de aprofundar, em seguida, por si mesmo, a compreenso do real no seu todo. Caso contrrio, estaremos preparando apenas especialistas, que tendero a saber tudo a respeito de determinado autor, sem, contudo, serem capazes de refletir pessoalmente sobre qualquer aspecto da prpria realidade. A especializao atualmente indispensvel. A escolha deste ou daquele pensador e a preferncia por certas reas do campo filosfico se impem, j que no possvel familiarizar-se com todos os expoentes do pensamento filosfico, nem aprofundar-se em cada uma das questes hoje debatidas. Mas, para que fecunde efetivamente o pensar, a especializao precisa ser construda sobre a base de uma viso ampla, quanto possvel, da problemtica filosfica e da cultura contempornea nas suas razes histricas.

    Ao apontar as limitaes do pensamento filosfico atual em nosso pas e no s nele com cores talvez demasiado carregadas, no tenciono desconhecer os mritos e mesmo os progressos recentes, sob certos aspectos, da atividade filosfica promovida

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    no Brasil e em nossas instituies universitrias. Tampouco se trata de responsabilizar pelas falhas indicadas meus colegas de profisso e companheiros de caminhada na busca da verdade. Muito menos pretendo eximir a mim mesmo e a instituio qual perteno do envolvimento nas mazelas que denuncio. Minha inteno apenas chamar a ateno para tais distores em vista da determinao positiva da misso da filosofia em nossa situao concreta.

    Na verdade, os pontos enumerados representam apenas epifenmenos de um movimento muito mais profundo que nos arrasta a todos na sua marcha incontrolvel. o que, em termos heideggerianos, se denomina de tcnica ou civilizao da tcnica, que assume hoje dimenses planetrias. No se trata propriamente da tecnologia moderna, com suas mquinas, aparelhos, dispositivos e instrumentos ou como sistema de organizao do trabalho e da vida social. O termo visa antes o esprito que gerou e alimenta o mundo atual, a cultura moderna em todas as suas dimenses. O termo esprito, que no de Heidegger, significa aqui o que chama de essncia (Wesen) da tcnica, definida por um vocbulo por ele excogitado, Ge-stell, que traduzimos, falta de melhor, por controle (HEIDEGGER, 1967, 19ss). A essncia da tcnica o controle global que sua realidade exerce sobre o ser humano e seu mundo, determinando a sua relao com a realidade no seu todo, o seu modo de sentir, pensar e agir. Controlar tudo a manifestao tcnica da vontade de dominao que caracteriza o homem moderno. Colocar inteiramente sob controle as foras da natureza e as potencialidades humanas em um sistema fechado e auto-regulado a ambio que permeia os seus projetos e esforos. O controle tem, todavia, o carter de um destino. o destino da humanidade na era da tcnica. Na sua pretenso de tudo controlar, o ser humano que cai sob o controle da tcnica. ela que dita suas atitudes e comportamentos.

    Neste contexto, ele propriamente o trabalhador, que produz e consome. No se trata de trabalhador numa acepo meramente sociolgica, como a classe dos assalariados, o proletariado, em contraposio ao burgus ou ao capitalista. O termo trabalhador empregado aqui em sentido antropolgico, enquanto pretende designar o modelo de humanidade, que se vem delineando ao longo da modernidade, a prpria essncia do ser humano na sua configurao atual. O sentido de sua existncia, individual e coletiva, consiste em transformar a natureza e a sociedade no seu conjunto, para adapt-las a seus objetivos, como o trabalhador manual modela a matria prima, produzindo objetos para sua utilidade e consumo. Enquanto trabalhador, o ser humano produz um mundo novo, segundo os projetos de sua razo e os interesses de sua vontade

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    de poder. Em outras palavras ele recria a natureza e a sociedade sua imagem e semelhana. o que j vira com argcia Marx, sem perceber, porm, que esta no poderia ser a ltima palavra sobre o sentido de nossa vida e que a mera desalienao do trabalho no capaz de restaurar a dignidade da pessoa humana.

    medida que o trabalho considerado como valor supremo, tambm o pensar entendido como trabalho intelectual. O conhecimento, ento, nada mais do que o resultado de uma atividade produtiva, orientada para um fim distinto dele mesmo, i.e. para fornecer ao consumidor meios para uma vida melhor. Nestas condies, no h lugar para a autntica filosofia, no s de fato, mas tambm de direito. O pensar filosfico no s no estimado, mas sequer pode medrar. Ao converter-se em uma espcie de trabalho intelectual, a filosofia perde sua prpria identidade, deixa de ser autntico pensar, busca da verdade por si mesma, para tornar-se mera pea de um sistema produtivo, subordinada a interesses extrnsecos. A tecnocincia a substitui na sua vocao original de oferecer a interpretao da realidade no seu conjunto.

    Por mais que queiramos, no depende simplesmente de uma deciso nossa mudar de repente o curso da histria, o horizonte interpretativo que condiciona a nossa viso do mundo. S um Deus, diz Heidegger misteriosamente, pode ainda salvar-nos.7 Entretanto, se, na sua finitude, o ser humano no tem o poder de reverter por si s a situao atual, nem por isso ela pode ser superada sem seu consentimento e colaborao. Se no o senhor absoluto da histria, tampouco mero escravo de seus condicionamentos. No dinamismo ilimitado de seu esprito, aberto para o ser no seu todo, ele capaz de transcender, de certo modo, os limites da prpria cultura e situao e assim avali-las na sua verdade e consistncia. Nisso reside a possibilidade que nos oferecida de tomar conscincia da desumanizao provocada pela civilizao da tcnica e de suas conseqncias funestas para o autntico pensar. Cabe-nos, ento, a responsabilidade de reagir nas brechas do sistema dominante, em vista da restaurao da dignidade do pensar filosfico.

    Talvez esteja empregando uma linguagem demasiado solene para exprimir algo, afinal de contas, bastante modesto. Trata-se, na verdade, de nossa misso como filsofos. Disse, de incio, que misso no significado corrente designa propriamente os objetivos ou a funo de uma instituio. A filosofia, como instituio social possui

    7 Nur noch ein Gott kann uns retten. Frase tomada pelos editores como ttulo da entrevista dada por Heidegger

    revista Der Spiegel em 23/09/1966 e, de acordo com sua vontade, publicada s depois de sua morte (vol.30 n.23, 31/05/1976, 193-219) [GA v.16]

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    sem dvida uma funo no interior do sistema vigente. Seu papel exercer institucionalmente a crtica das instituies da sociedade (GETHMANN, 1978, p.306). Esta funo crtica indispensvel numa sociedade, a fim de que suas instituies no se tornem auto-destrutivas, mas, ao contrrio, contribuam para a conservao e desenvolvimento da vida social. Neste sentido, a atitude crtica da filosofia no consiste, em princpio, na desestabilizao do sistema social. Ela contribuir para a desestabilizao das instituies, apenas quando sua estabilidade j no puder ser justificada (GETHMANN, 1978, p.307). Tal funo exclusiva da filosofia. No pode ser exercida p. ex. pela cincia. De fato, mesmo as cincias sociais, economia, sociologia, cincia poltica, cincia jurdica, no emitem juzos de valor a respeito dos objetivos de cada instituio e da sociedade como um todo. Como expresses da razo instrumental, podem avaliar apenas a coerncia entre os meios empregados e os objetivos visados, ou seja, a eficcia do funcionamento do sistema. P. ex. se se trata de alcanar a liberdade poltica, a cincia indica o estado democrtico como meio mais eficaz que o totalitrio. Mas, por que promover a liberdade? A esta pergunta a cincia no tem resposta. Estamos diante de uma questo filosfica, que implica toda uma concepo do ser humano (SEVERINO, 1982, p.64-65). por isso, que, no mbito da civilizao ocidental, na medida em que se caracteriza como cultura da razo, a sociedade delega implcita ou explicitamente filosofia, como organizao social, este papel de instncia crtica do sistema social. Com efeito, a crtica filosfica tem em vista a racionalidade das instituies. Sua funo consiste em desenvolver esta cultura da razo, mais especificamente, da argumentao.

    Ora, justamente o que a filosofia institucionalizada em nossas Universidades no est desempenhando a contento, como procurei mostrar. A presso pela produtividade e eficcia, a prevalncia da interpretao de textos e da especializao, em vez da ateno aos problemas substanciais de nossa realidade, a omisso da discusso e do confronto de opinies, impedem a filosofia como instituio social de cumprir adequadamente a sua funo. Na verdade, ela s poder faz-lo medida que assumir as caractersticas do autntico pensar. quando no se subordina a objetivos pr-fixados, no pretende oferecer contribuies para a soluo dos problemas da sociedade, que ela se torna relevante e cumpre seu papel social. Este paradoxo se explica a partir da clara distino entre a filosofia como instituio e a filosofia como atividade pessoal, ainda que exercida comunitariamente atravs do debate e do dilogo.

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    Trata-se neste caso de um modo de vida, de uma atitude frente realidade no seu todo.8 Neste sentido, o filosofar a expresso mais elevada do desejo espontneo de saber, prprio do ser humano. O amor verdade a mola propulsora da atividade filosfica. No h verdadeiro filosofar sem paixo pela descoberta do sentido das coisas.

    A busca filosfica da verdade no se restringe, porm, a um aspecto particular da realidade, nem se contenta com as respostas parciais, prprias das cincias.9 Ela interroga qualquer ente no horizonte transcendente do ser e procura compreender o sentido e fundamento ltimo da realidade no seu todo. Nada escapa ao questionamento filosfico. Ao contrrio do que pretenderam Descartes e outros, ele no visa estabelecer um princpio absoluto, um fundamento inabalvel, sobre o qual construir o edifcio do saber. Na verdade, a razo humana no pode deixar de pressupor. A certeza do cogito ergo sum como resposta dvida cartesiana, p.ex., implica muitas outras certezas que no foram questionadas. Enquanto questionamento universal, o filosofar, ainda que no possa eliminar todo pressuposto, procura submeter cada suposio ao exame da razo. Trata-se, neste sentido, de uma tarefa sem fim. H questes que visam a respostas completas e definitivas, justamente porque so postas em um horizonte limitado. A resposta que demandam, uma vez alcanada, satisfaz plenamente, implicando assim a extino da prpria pergunta. No o caso da interrogao filosfica. Isto no significa que ela no leve a respostas verdadeiras, sob determinado aspecto, ou que no campo da filosofia no haja evidncias. Toda pergunta autntica pretende chegar a uma resposta. Mas a pergunta pelo fundamento, enquanto se desenvolve no horizonte ilimitado do ser, no se satisfaz plenamente com nenhuma resposta. O seu dinamismo impele-a a abrir-se mais e mais manifestao do ser, a aprofundar incessantemente a busca do sentido ltimo da realidade, sem jamais ser capaz de abarc-lo totalmente. prprio da razo humana procurar articular o conjunto de seus conhecimentos em uma unidade suprema. Seria, porm, contrrio sua mesma ndole encerrar a sua interpretao da realidade em um sistema fechado. Eliminar a pergunta equivale a renunciar ao filosofar, mais ainda, a renegar a prpria verdade e dignidade do ser humano, que , por essncia, pergunta.

    8 Esta viso da filosofia como um saber viver ou pensar melhor para viver melhor tem sido promovida

    ultimamente por uma srie de pensadores franceses, como Andr Comte-Sponville [p. ex. em Apresentao da Filosofia. So Paulo: Martins Fontes, 2002, 136] e os j citados Marcel Conche e Pierre Hadot. Embora plenamente de acordo com a revalorizao existencial do filosofar, no julgamos, como se ver mais adiante, que a filosofia, enquanto pensamento discursivo, oferea por si s a resposta ao enigma da existncia. nas experincias fundamentais do ser humano, sobre as quais se debrua a razo filosfica, que se encontra a chave da compreenso da existncia e de sua realizao. Trata-se de evidncias intuitivas que esto na base do pensamento filosfico, mas tambm da atitude religiosa. Estes dois modos de ser aberto verdade no se excluem. 9 A tarefa da filosofia pr perguntas (...) e fazer entender que para alm das respostas da cincia h sempre uma

    pergunta ulterior. (BOBBIO, 1982, p.68)

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    Por outro lado, a evidncia filosfica, ao contrrio da comprovao experimental das cincias positivas, em si mesma incomunicvel. O filsofo pode, por seu discurso, tentar conduzir outros a verem o mesmo que ele est vendo. Mas a sua a afirmao no a concluso de um raciocnio que se impe por necessidade lgica. Estes procedimentos so vlidos para estabelecer as relaes entre coisas e acontecimentos intramundanos, que aparecem no horizonte do ser. Mas quando se trata de evidenciar os princpios de qualquer discurso lgico, no h caminho predefinido, que todos devam percorrer, na observncia das leis formais da razo. Ao contrrio, quando se abre para o todo, para o horizonte ilimitado do ser, a razo no tem parmetros rgidos para sua orientao. A explorao deste solo original no pode acontecer a partir de uma perspectiva absoluta. So inmeros os pontos de vista sob os quais o discurso que explicita as experincias fundamentais pode ser elaborado. A adoo de um ou outro desses ngulos de viso nem sempre corresponde a uma escolha consciente. Depende de fatores contingentes, ligados s disposies naturais de cada um, sua histria, educao, convices espontneas, experincias significativas, encontros casuais com este ou aquele mestre, oportunidade de determinadas leituras (SPAEMANN, 1978, p.93-94).

    Evidentemente, nenhum desses pontos de partida esgota as possibilidades de interpretao da realidade. Nem indiferente tomar qualquer um deles. H perspectivas hermenuticas mais reveladoras do que outras. Nem por isso, o que se descobre em cada um desses caminhos de investigao do sentido do todo deixa de ser verdadeiro. Com efeito, a verdade no seu sentido original a manifestao do ente em seu ser. O que se manifesta, o fenmeno, bem entendido, sempre algo do prprio ente. Trata-se de diferentes aspectos em funo das perspectivas adotadas na abordagem do real, aspectos diferentes e complementares nos quais o que se mostra sempre o que . verdade que o discurso interpretativo nem sempre consegue expor adequadamente o que se oferece na experincia original. Ele pode false-la, empregando na sua explicitao categorias e conceitos extrados de outros fenmenos, que no revelam, antes escondem o sentido do que , a sua verdade. Pode tambm faz-lo, ao absolutizar o prprio ponto de vista.

    As falhas do discurso podem eventualmente ser identificadas e superadas pela discusso e dilogo. Contudo, em virtude do carter essencialmente limitado de cada ponto de partida, um consenso definitivo entre os filsofos no de se esperar. Tal situao no pode, porm, ser legitimamente invocada pelo ctico para justificar a sua posio. Pelo contrrio, prprio do filosofar, enquanto contribui efetivamente para o

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    aprofundamento da verdade, enxergar na divergncia dos outros um desafio e procurar integrar este novo aspecto na estrutura da prpria interpretao do mundo, avanando deste modo na compreenso da verdade (Ib. p.94-95).

    Fica de p, em todo caso, que o autntico pensar, como servio verdade, fiel realidade. No se compagina com construes arbitrrias nem com preferncias subjetivas. No se subordina a interesses pessoais, nem a objetivos polticos e ideolgicos. O pensar discursivo um caminho, tem sua meta. Esta, contudo, no extrnseca, antes imanente ao prprio processo: a compreenso progressiva da verdade. Enquanto atitude puramente gratuita e desinteressada, o filosofar no pode ser concebido como meio p. ex. para alcanar a felicidade, ou mesmo para ajudar os outros, muito menos para obter vantagens corriqueiras. A compreenso da verdade , sem dvida, fonte das mais puras alegrias. Do mesmo modo, o pensamento lcido e profundo contribui decisivamente para a humanizao de nossa raa. O filosofar no se presta, porm, a servir de comprovao de algo j afirmado de antemo. Tenho certamente minhas convices pr-filosficas, valores e objetivos em minha vida. Mas no posso isent-los do escrutnio da razo, sem trair a ndole prpria do filosofar como pergunta radical.

    Exclui-se, portanto, qualquer concepo meramente pragmtica do estudo de filosofia. No interior do sistema social ao qual pertencemos, somos, sem dvida, profissionais da filosofia. No entanto, a filosofia como instituio social s cumprir a sua misso de crtica das instituies da sociedade, se exercermos a nossa profisso como amadores da verdade. O pensar no algo puramente terico que, a seguir, se ordena prxis. Ele j plenitude de atividade, j que pensando que o ser humano se realiza como tal. A filosofia transforma o mundo, no enquanto visa a transformao das estruturas da sociedade, mas sim porque o ser humano, pensando, transforma-se, alcana o seu verdadeiro ser. E deste modo contribui para o verdadeiro desenvolvimento de toda a humanidade. Neste contexto, Heidegger pergunta: Se ns nada podemos fazer com a filosofia, acaso ela no poder afinal fazer alguma coisa conosco, contanto que nos abandonemos a ela? (HEIDEGGER, 1953, p.9-10; 1966, p.48). De fato, o pensar filosfico enquanto livre e gratuito, intil, no serve para resolver qualquer

    problema socio-poltico-econmico. Mas procurando o que bom e verdadeiro em si mesmo que o filsofo ajuda a construir um mundo melhor. Nem se deve temer que um pensar to desinteressado e, aparentemente, to desinteressante, se torne alienado. Na verdade, de sua plenitude todas as outras dimenses da existncia se beneficiam.

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    o que declara Nietzsche no Prefcio de Ecce Homo (n.4) : As palavras mais silenciosas so as que desatam a tempestade. Pensamentos que chegam com ps de pomba, so os que governam o mundo. (NIETZSCHE, 1955, p.1067)10 E Heidegger explica e completa:

    A Filosofia se acha necessariamente fora de seu tempo por pertencer quelas poucas coisas, cujo destino consiste em nunca poder nem dever encontrar ressonncia imediata na atualidade. Onde tal parece ocorrer, onde uma filosofia se transforma em moda, porque ou no h verdadeira filosofia ou uma verdadeira filosofia foi desvirtuada e abusada segundo propsitos alheios, para satisfazer s necessidades do tempo. (...) Todavia, o que intil pode, e com maior razo, ser uma fora. O que desconhece toda ressonncia imediata na prtica de todos os dias, pode estar em profunda consonncia com o que propriamente acontece na histria de um povo. Pode at mesmo ser a sua pre-sonncia e prenncio. O que se acha fora do tempo, ter seu prprio tempo. o que vale da filosofia. E essa a razo de no se poder estatuir de per si e em geral a tarefa da filosofia e, por conseguinte, tambm o que dela se deve esperar. Cada estdio e cada princpio de seu desenvolvimento traz consigo a sua lei. Somente se pode dizer o que a filosofia no pode ser nem prestar. (Heidegger, 1953, p.6-7; 1966,p. 45-46)

    Em suma. A filosofia como instituio social tem uma misso, ou seja, uma funo e objetivo em nossa sociedade: exercer institucionalmente a crtica das instituies. Desta primeira concluso decorre uma segunda. A filosofia como instituio s exercer adequadamente a sua funo social medida que o filosofar, como atividade pessoal, for um autntico pensar, sem qualquer objetivo exterior a ele mesmo. A validade da filosofia como instituio social depende paradoxalmente do carter gratuito e, neste sentido, intil do pensar, que no tem como fim a transformao da sociedade, nem pretende justificar idias pr-concebidas, mas se entende como busca incondicional da verdade por si mesma. Destarte, se no legtimo atribuir ao pensar qualquer objetivo, ns, enquanto nos sentimos chamados a ser filsofos, recebemos certamente uma misso. Que misso? Justamente a de filosofar autenticamente. Para tanto, mister que o filsofo saiba resistir s presses da sociedade moderna, ao imprio da tcnica, injuno da eficcia, abrindo, no meio de suas ocupaes, um espao para a meditao, para o pensar livre e gratuito.

    Trata-se, em particular, de entender a nossa dedicao filosofia, no como mera atividade profissional, mas como um estilo de vida. E, neste sentido, a primeira contribuio que prestamos sociedade, a de promover, com nossa prpria atitude e testemunho, a cultura da razo. Com essa expresso, no tenho em vista qualquer racionalismo estreito. A verdadeira racionalidade no consiste em estabelecer critrios

    10 Die stillste Worte sind es, welche den Sturm bringen, Gedanken, die mit Taubenfssen kommen, lenken die Welt.

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    objetivos para determinar o que cai ou no no mbito da razo, nem em definir procedimentos normativos para o pensar. Consiste antes em uma atitude do prprio sujeito, no compromisso com um pensar que procura justificar-se, na prontido a dar razes das prprias afirmaes (SPAEMANN, 1978, p.103). Ela se traduz, portanto, no hbito de questionar e de aceitar ser questionado, de refletir sobre o sentido da existncia e de suas vrias dimenses, de examinar criticamente as propostas que se apresentam como explicao de tal sentido e como linhas de ao, enfim, de argumentar de maneira honesta e coerente, sem se deixar levar por arroubos ideolgicos e propagandsticos ou pelo prurido de vencer o debate a qualquer custo.

    Condio para tanto a conscincia da particularidade do prprio ponto de vista. O verdadeiro filosofar tentativa, no propriamente de libertar-se de tal condicionamento, mas de compreend-lo e nesta compreenso super-lo, abrindo-se a perspectivas complementares e integrando-as, se for o caso, na busca da compreenso ltima do sentido total, algo, porm, definitivamente inatingvel. Com efeito, nossa pretenso como filsofos no deve ser a de incutir nos outros as nossas idias. Tal atitude equivaleria de novo a renegar a gratuidade do filosofar. Teremos sempre nossas convices e devemos defend-las, enquanto podem ser justificadas. Mas no cabe ao filsofo oferecer uma resposta pronta aos problemas da existncia.11 Pelo contrrio, a sua fidelidade misso de promover a racionalidade lev-lo- a reconhecer os limites da razo. Ao levar ao extremo, na busca da verdade, os esforos de compreenso do ente no seu todo, ele se depara finalmente com o mistrio, que envolve toda a nossa existncia. Confessar este mistrio a verdadeira misso do filsofo.12

    Trata-se de revelar o ser humano a si mesmo como pergunta radical, como quem no possui por si mesmo a resposta para o enigma de sua existncia. Se esta interrogao tem ou no resposta, se a existncia tem ou no sentido e, se tem, qual seria tal sentido, j no compete ao discurso filosfico diz-lo em primeira mo. na experincia constitutiva de nosso esprito, entendida no sentido radical como a compreenso implcita que todos possuem do sentido da prpria existncia, que cada um encontra a sua resposta questo fundamental. A evidncia desta compreenso

    11 o que reconhece p. ex. N. Bobbio quando diz: A filosofia no pode dar respostas definitivas justamente porque o

    seu horizonte a totalidade e nenhuma mente humana pode abraar a totalidade. (199 p.169). 12

    Esta tambm a posio de Marcel Conche: O papel da filosofia , para alm do racional, nos fazer tomar conscincia (...) do mistrio que envolve todas as coisas, e revela o homem a si mesmo como enigma: enigma do qual resulta a liberdade radical da escolha filosfica. (2006, p.71). No chamaria, porm, a experincia do mistrio de irracional (ib. 70), nem o reduzo a um sagrado imanente, como faz este autor (ib.). Por outro lado, a meu ver, a liberdade radical da escolha filosfica no equivale a opo arbitrria. Trata-se da abertura ao que se mostra na experincia fundamental da existncia.

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    intuitiva implica a liberdade, no sentido da maior ou menor abertura da pessoa realidade que se manifesta no mago de seu esprito. Em minha opinio, possvel discutir racionalmente a verdade destas respostas, ou seja, dar razes para justificar uma de preferncia a outras. Embora no possa captar por si mesma o sentido ltimo da existncia, a razo, fiel prpria experincia de seu dinamismo ilimitado, capaz de acolher tal sentido como um dom. Entretanto, a justificao racional desta afirmao no seno o desdobramento da prpria experincia e como tal no acessvel seno a quem a faz. por isso que no considero misso do filsofo na nossa sociedade oferecer esta ou qualquer outra resposta ao enigma da existncia. Cabe-lhe sim, como expresso suprema de sua busca da verdade, promover o senso do mistrio.13

    13 A expresso cara a N. Bobbio: A nica coisa da qual estou seguro, permanecendo sempre dentro dos limites de

    minha razo (...) que vivo o senso do mistrio, que evidentemente comum tanto ao homem de razo como ao homem de f. (2000, p.7).

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