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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS A MIGRAÇÃO PÓS-COLONIAL E AS IDENTIDADES NACIONAIS DE ARGÉLIA E FRANÇA: NATION- BUILDING E SECURITIZAÇÃO TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO Filipe Seefeldt de Césaro Santa Maria, RS, Brasil. 2015

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Page 1: A MIGRAÇÃO PÓS-COLONIAL E AS IDENTIDADES NACIONAIS DE ... · Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ... (UFSM, RS) como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS

CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS

A MIGRAÇÃO PÓS-COLONIAL E AS IDENTIDADES

NACIONAIS DE ARGÉLIA E FRANÇA: NATION-

BUILDING E SECURITIZAÇÃO

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

Filipe Seefeldt de Césaro

Santa Maria, RS, Brasil.

2015

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A MIGRAÇÃO PÓS-COLONIAL E AS IDENTIDADES

NACIONAIS DE ARGÉLIA E FRANÇA:

NATION-BUILDING E SECURITIZAÇÃO

Filipe Seefeldt de Césaro

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Relações

Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS) como

requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Relações

Internacionais.

Orientador: Prof. Dr. Igor Castellano da Silva

Santa Maria, RS, Brasil

2015

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AGRADECIMENTOS

A trajetória percorrida até essa pesquisa, sua viabilização e desenvolvimento não

teriam sido possíveis sem o intenso apoio externo o qual sou incapaz de expressar, em sua

totalidade, nos limites deste espaço. Ainda assim, cabe o destaque de algumas pessoas que em

muito contribuíram com o que aqui foi desenvolvido.

Em primeiro lugar, agradeço a meus pais, Luciara Beatriz Seefeldt de Césaro e Glacir

de Césaro, por me disponibilizarem os meios materiais de estudar em Santa Maria e,

especialmente, pelo amor e carinho comigo compartilhados em todas as situações já vividas.

Pelo apoio e afeto dispensados em prol de um aprendizado constante, expresso a mesma

gratidão ao restante de minha família, de Alegrete a Chopinzinho, e às “famílias estendidas”

dos Rodrigues Martins e dos Missio Pinheiro. Sou muito grato também a meu orientador, Igor

Castellano da Silva, por ter confiado desde o início nesta pesquisa e pela paciência e

dedicação relegadas a seu suporte. De especial importância foi a convivência com minha

namorada, Luana da Silva Missio Pinheiro, cujo carinho e companheirismo constantes foram

associados à compreensão de minhas ausências e à atenção a monólogos instantâneos sobre a

Argélia. Além disso, agradeço, no âmbito do curso de Relações Internacionais da UFSM: ao

coordenador José Renato Ferraz da Silveira, pela dedicação e persistência na construção de

uma graduação de melhor qualidade; aos docentes, por seus ensinamentos e, acima de tudo,

pelo fomento à reflexão; aos colegas, pela associação entre amizade e discussão que para mim

tornaram o ambiente acadêmico mais descontraído e produtivo. Em específico, destaco minha

gratidão às professoras Giuliana Redin e Maria Catarina Chitolina Zanini, assim como aos

colegas do Núcleo de Pesquisa, Ensino e Extensão Direitos Humanos e Mobilidade Humana

Internacional (MIGRAIDH) e do Núcleo de Estudos Contemporâneos (NECON), pelas

oportunidades fornecidas, pelo debate sempre fértil e pela atração que em mim despertaram

em relação ao fenômeno da migração. Ademais, agradeço a Alex Da Silva Rodrigues e a

Douglas Felipe Gerhardt pela grande amizade, pelos ensinamentos e pelas jams que tantas

vezes aliviaram meu estado de espírito.

Por fim, expresso minha gratidão à União, à Universidade Federal de Santa Maria

(UFSM) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela

oportunidade de completar um curso de ensino superior e pelo incentivo constante à pesquisa.

A todos que direta ou indiretamente fizeram parte de minha formação até aqui, о meu muito

obrigado.

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O que ele se tornará, então? O que é o colonizado, de fato? Eu não acredito nem na essência

metafísica nem na essência psicológica. Pode-se descrever o colonizado no presente. Eu tentei

mostrar que ele sofre, julga e se comporta de uma determinada maneira. Se ele cessar em ser

colonizado, vai se tornar alguma outra coisa. A geografia e a tradição são obviamente forças

permanentes. Mas talvez, até lá, haverá menos diferenças entre um argelino e um marselhês

do que entre um argelino e um libanês. (Albert Memmi, 1957)

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RESUMO

Trabalho de Conclusão de Curso

Curso de Relações Internacionais

Universidade Federal de Santa Maria

A MIGRAÇÃO PÓS-COLONIAL E AS IDENTIDADES NACIONAIS DE

ARGÉLIA E FRANÇA: NATION-BUILDING E SECURITIZAÇÃO

AUTOR: Filipe Seefeldt de Césaro

ORIENTADOR: Igor Castellano da Silva

Data e Local da Defesa: Santa Maria, 02 de Dezembro de 2015

Esta pesquisa trata, em termos gerais, da vinculação explicativa entre a emigração argelina

pós-colonial e as identidades nacionais de Argélia e França exercitadas pelos Estados

paralelamente. Estuda-se como a gestão estatal de ambos os lados sobre o fluxo migratório é

capaz de revelar traços fundamentais de identidades nacionais conforme estruturadas no pós-

independência. Dessa forma, o problema que norteia a pesquisa é: de que forma as

identidades nacionais de Argélia e França são expressas pela migração pós-colonial?. A

hipótese proposta é a de que, representando uma fonte de contato transnacional inserida nos

vínculos estabelecidos pela colonialidade, o fluxo de argelinos à França despertou nos Estados

reações que registram um crescente conteúdo identitário. Duas categorias referenciais são

empregadas como guia à análise dessa progressão: nation-building para a Argélia e

securitização societal para a França. No primeiro caso, verifica-se cada vez mais a

aproximação institucional em relação à emigração como forma de legitimação de um projeto

identitário inclusivo e plural, ainda sendo construído. No segundo, a imigração tem sido

abordada de uma forma defensiva direcionada à autoafirmação nostálgica de um projeto

identitário já consolidado historicamente. Portanto, é pela crescente intensificação de políticas

de nation-building e securitização societal sobre si pelo fluxo migratório que se faz possível a

apropriação de duas lógicas de identidade nacional exercitadas no período pós-colonial: o

existencialismo argelino e o essencialismo francês. Sobreviventes em diferentes conjunturas

desde 1962, apenas nos períodos mais recentes tais estruturas de identidade encontram-se

amadurecidas nas práticas estatais tomadas frente à diáspora argelina. Os processos

envolvidos nessa evolução e como essa contribuiu à maior expressão das duas identidades

nacionais são o objeto de análise principal da estrutura deste trabalho.

Palavras-Chave: Migração pós-colonial, identidade nacional, Argélia, França.

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ABSTRACT

Senior Thesis

International Relations Major

Universidade Federal de Santa Maria

POSTCOLONIAL MIGRATION AND THE NATIONAL IDENTITIES

OF ALGERIA AND FRANCE: NATION-BUILDING AND

SECURITIZATION

AUTHOR: Filipe Seefeldt de Césaro

ADVISOR: Igor Castellano da Silva

Presentation‟s Date and Place: Santa Maria, December 2

This research deals, in general terms, with the explanatory link between the postcolonial

algerian emigration and the national identities of Algeria and France exercised by the States in

parallel. It explores how the state management of the migratory flux by both sides is capable

of revealing fundamental aspects of national identities as structured in the post-independence

context. Therefore, the question that guides the research is: in which ways the national

identities of Argélia and France are expressed by postcolonial migration?. The hypothesis

proposed is that, representing a source of transnational contact involved in the linkages

established by coloniality, the flux of algerians to France sparked in the States reactions that

involve a growing identitary content. Two referential categories are used as a guide to the

analysis of this progression: nation-building for Algeria and societal securitization for France.

In the first case, the institutional approach in relation to emigration is increasingly verified as

a form of legitimation of an inclusive and plural identitary project, still being constructed. In

the second one, immigration has been treated by a defensive approach directed to a nostalgic

self-affirmation of na identitary project already historically consolidated. Thus, it is by the

increasing intensification of nation-building and societal securitization policies on the

migratory flux that the appropriation of two logics of national identity exercised in the

postcolonial period is made possible: the algerian existencialism and the french essentialism.

Permanent in different conjunctures since 1962, only in the most recent periods these

identitary structures found themselves matured in the state practices in relation to the algerian

diaspora. The processes involved in this evolution and how it contributed to the major

expression of the two national identities are the main object of this research.

Key-Words: Postcolonial migration, national identity, Algeria, France.

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RÉSUMÉ

Travail pour la Conclusion du Cours

Cour de Rélations Internationales

Universidade Federal de Santa Maria

LA MIGRATION POST-COLONIALE ET LES IDENTITÉS

NATIONALES DE L’ALGÉRIE ET DE LA FRANCE: NATION-

BUILDING ET LA SÉCURITISATION

AUTEUR: Filipe Seefeldt de Césaro

DIRECTEUR DE RECHERCHE: Igor Castellano da Silva

LIEU ET DATE DU SOUTIEN DE LA RECHERHE: Santa Maria, 2 Décembre

2015

Cette recherche traite, en termes généraux, de la liaison explicative entre l‟émigration

algérienne post-coloniale et les identités nationales de l‟Algérie et de la France exercées par

les États en parallèle. Nous étudions comment la gestion de l‟État de ces deux côtés sur le

flux migratoire est capable de révéler les traits fondamentaux des identités nationales

structurées dans la post-indépendance. De cette façon, le problème qui guide la recherche est

celui: comment l‟identité nationale de l‟ Algérie et celle de la France sont exprimées par la

migration post-coloniale?. L‟hypothèse est que cette flux migratoire, qui represente une

source de contact transnational inserée dans les liens établis par la colonialité, a réveillé dans

les Ètats Algérien et Français des réactions qui enregistrent un contenu identitaire qui croît.

Deux catégories de référence sont employées comme guide à l‟analyse de cette progression:

nation-building (édification de la nation) pour l‟Algérie et la sécuritisation sociétal pour la

France. Dans le premier cas, il y a de plus en plus l‟approche institutionelle en ce qui

concerne l‟émigration comme un moyen de légitimer un projet identitaire inclusif et pluriel

qui est encore en train de s‟affirmer. Dans la deuxième, l‟immigration a été abordée d‟une

façon défénsive, adressée à auto-affirmation nostalgique d‟un projet identitaire déjá consolidé

historiquement. Donc, c‟est par l‟intensification croissante des politiques de nation-building

et sécuritisation sociétal sur le flux migratoire qui se rend possible la prise de deux logiques

d‟identité nationale exercées dans la période post-coloniale: l‟existencialisme algérien et

l‟essencialisme français. Survivantes dans des différentes conjonctures depuis 1962, c‟est

uniquement pour les périodes le plus recentes que telles structures d‟identité sont devenues

mûres dans les actions de l‟État adoptées face à la diaspora algérienne. Les processus

impliqués dans cette évolution sont l‟objet principal de notre recherche.

Mots-clès: Migration post-coloniale, identité nationale, Algérie, France.

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LISTA DE FIGURAS

Quadro 1 – Análises em migração realizadas nos capítulos 1 e 2………...........84

Quadro 2 – Análises realizadas nos capítulos 2 e 3…………………………….86

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO GERAL .......................................................................................... 10

2 A MIGRAÇÃO ENQUANTO FENÔMENO DE AGÊNCIA E

EXPRESSÃO ...................................................................................................................... 17

2.1 Introdução ao capítulo .................................................................................................... 17

2.2 Colonialidade: o migrante, a dominação e a resistência ......................................... 17

2.3 Nation-building, segurança e a expressão identitária da migração ...................... 22

2.4 A diáspora argelina para a França .............................................................................. 30

2.5 Conclusão do capítulo ..................................................................................................... 36

3 A EMIGRAÇÃO E O PROCESSO DE NATION-BUILDING NA

ARGÉLIA ............................................................................................................................. 37

3.1 Introdução ao capítulo .................................................................................................... 37

3.2 Revolução e state-building (1962-1973) ...................................................................... 38

3.3 Liberalização, crise e ativismo (1973-1999) ............................................................... 44

3.4 Paz, transpolítica e inflexão (1999- atualidade) ........................................................ 50

3.5 Conclusão do capítulo ..................................................................................................... 57

4 A IMIGRAÇÃO E O PROCESSO SECURITÁRIO NA FRANÇA .. 58

4.1 Introdução ao capítulo .................................................................................................... 58

4.2 A racionalização econômica da imigração (1962-1974) .......................................... 59

4.3 A construção política da imigração (1974-1986) ....................................................... 64

4.4 A materialização do consenso (1986-atualidade) ...................................................... 71

4.5 Conclusão do capítulo ..................................................................................................... 80

5 CONCLUSÃO GERAL ............................................................................................. 81

6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................... 88

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1 INTRODUÇÃO GERAL

Os fluxos migratórios estão dentre os fenômenos sociais, políticos e econômicos mais

correntes da história da humanidade. Seu impacto esteve ligado às diferentes conjunturas

estabelecidas, algo que se torna marcante especialmente a partir da ascensão da ordem

moderna estruturada por Estados nacionais. No entanto, dos processos históricos que

constantemente reconfiguraram as rotas migratórias internacionais, o neocolonialismo talvez

tenha sido um dos que implicou em maior impacto quantitativo e qualitativo. Isso porque

além de ter envolvido a desestruturação de organizações sociais e padrões de mobilidade das

populações dominadas, construiu globalmente uma articulação europeia de poder. Esse

processo fundamentalmente determinou as condições dos deslocamentos humanos e

concepções identitárias mesmo após os processos de descolonização.

Os contextos de libertação nacional revelaram, em conjunção com o intenso avanço

das tecnologias da comunicação e informação, novas características das migrações

internacionais e dos seus padrões de governança. Na medida em que emergiu uma verdadeira

revolução tecnológica nos campos da informação e da comunicação, esse processo projetou

impactos tanto sobre os novos Estados libertos da dominação colonial quanto sobre os

Estados antes colonizadores, e em vários casos a migração desenvolveu de forma autônoma

potencialidades políticas conectadas à relação entre ex-colônia e ex-metrópole. Nesse

contexto, o engajamento que cada Estado desenvolve sobre essa força transnacional estaria

relacionado não apenas a externalidades, necessidades e demais aspectos conjunturais: teria

um vínculo fundamental com os processos de construção de identidades nacionais enraizados

na experiência colonial e em sua posição frente aos desenvolvimentos atuais do capitalismo.

O objeto desta pesquisa, ao estar centrado em um caso emblemático de relacionamento pós-

colonial tal qual o estabelecido entre Argélia e França, permite que estas possibilidades

analíticas sejam exploradas.

Para tal, a base referencial utilizada está relacionada a seis conceitos que guiam a

apropriação teórica realizada pelo trabalho. Parte-se da contribuições clássicas e

contemporâneas dos estudos do nacionalismo em nation-building e identidade (como em

Hosbawn, 1990; Anderson, 2006; Kedourie, 1961; Edensor, 2002) para debater postulados

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básicos estabelecidos aos estudos em pertencimento nacional, de forma a perceber como a

construção de identidades coletivas está atrelada tanto a estruturas determinantes e quanto à

prática social do indivíduo. Em suma, a noção de nation-building possibilita a apropriação de

mecanismos simbólicos propagados pelo Estado sobre a realidade social e cuja eficácia é

manipulada pelas especificidades de ação individual conforme tratadas pelo conceito de

identidade. Também em estudos migratórios é debatido um conjunto de contribuições

clássicas e mais recentes (como Thomas e Znaniecki, 1918; Park, 1928; Schiller, Basch e

Blanc, 1995), e que são direcionadas à exploração de processos inerentes e maleáveis do

fenômeno migração. Em termos gerais, procura-se refletir quais os significados e padrões de

ação/percepção são carregados pelas migrações internacionais, nesse sentido entendidas como

deslocamentos humanos envolvidos na manipulação de laços transnacionais mantidos entre as

sociedades de origem e destino. No campo de segurança em Relações Internacionais, o

mesmo padrão de consulta bibliográfica é seguido (Wolfers, 1962; Jervis, 1978; Buzan, 1983;

Huysmans e Squire, 2009, por exemplo), porém com o objetivo de atingir o debate em torno

da securitização em setor societal conforme proposta por Buzan, Weaver e Wilde (1998, p.

119-128). Em geral, busca-se entender como a agenda em segurança internacional possui

dinâmicas de construção discursiva e que dizem respeito a interesses políticos articulados por

agentes para determinadas audiências legitimadoras, definição que assim possibilita perceber

quais os fundamentos simbólicos da percepção de ameaças existenciais. São utilizados

também estudos em pós-colonialismo (como em Fanon, 1997; Memmi, 2003; Elayyadi, 2004;

Quijano, 2007), especialmente de modo a refletir sobre os laços subjetivos de conexão que se

mantêm após os processos de libertação nacional e sobre quais efeitos imprimem os processos

de construção sócio-histórica das figuras do colonizado e do colonizador. Destaca-se, além

disso, a utilização de contribuições relacionadas ao estudo do poder simbólico (como em

Engels, 2002; Mannheim, 1954; Lukács, 2003; Bourdieu, 1989), conceito explorado aqui para

o entendimento de sistemas estruturantes e estruturados cujo funcionamento imprime

dominação por meio de um consenso subjetivado.

Em suma, esses seis conceitos e os debates contemporâneos que os desenvolveram

com melhor precisão representam o refencial teórico consultado pela presente pesquisa.

Importam na medida em que possibilitam a análise de como identidades nacionais, que em

conjunção a nation-building e securitização societal são movidas por dinâmicas simbólicas,

podem ser narradas por um fluxo migratório constituído enquanto processo histórico no seio

de relações pós-coloniais Além disso, a existência de alguns temas pouco ou não abordados

pelas contribuições consultadas ensejam o debate aqui realizado.

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Nesse sentido, pode-se inferir a justificativa para a pesquisa proposta. Primeiramente,

destaca-se a atenção dada ao processo historicamente incorporado às lógicas capitalistas de

descolamento de pessoas e que atualmente assume importância crescente ao Brasil, sendo

capaz de remeter a características das relações de poder entre sociedades e Estados. Nesse

contexto, o processo migratório é abarcado como capaz de não apenas fornecer um mapa

sócio-político daqueles oprimidos pelo padrão de mobilidade humana consolidado, mas

também de (em conjunto com análise de identidades) prover características gerais do processo

de construção e reinvenção da identidade em países pós-coloniais. Em segundo lugar, a

pesquisa também é justificada pela crescente importância tomada recentemente pelo diálogo

disciplinar entre os campos de Relações Internacionais, Antropologia e Sociologia, algo que

tem permitido o emprego de debates mais amplos sobre identidade, por exemplo. Enquanto

que internacionalmente vários estudos já buscam estruturar análises preocupadas com a

renovação das contribuições clássicas em nacionalismo para a sua aplicação interdisciplinar

(como em Hogan, 2009; Wodak et al 2009), no Brasil é mais comum o estudo de identidade

nacional e nation-building em áreas consolidadas (especialmente a Ciência Política). Ainda

que existam trabalhos importantes que empreguem visão mais sistêmica (Reis, 1997; Mahlke,

2005; Scanhola, 2013, por exemplo), destaca-se a pouca atenção no Brasil dispensada a casos

específicos como o da França e Argélia. Além disso, o contexto atual vivido tanto nas

dimensões da política internacional quanto dos debates acadêmico-sociais sobre migração

torna necessários esforços em pesquisa que promovam o maior entendimento acerca do

background subjetivo envolvido na relação entre Europa e Magreb à luz de sua influência na

atual crise humanitária verificada no Mediterrâneo1.

Nessas bases é que se justifica o problema formulado por esta pesquisa: de que forma

as identidades nacionais de Argélia e França são expressas pela migração pós-colonial?,

busca-se a apropriação do histórico fluxo migratório como ferramenta analítica de expressão

das identidades nacionais contemporâneas de Argélia e França conforme exercitadas no

período pós-colonial. A hipótese a ser testada é representada pela noção de que a emigração

argelina, por meio da apropriação estatal que recebe por Argélia e França, expressa

especialmente nos períodos recentes os projetos identitários assumidos por ambos os Estados

pós-coloniais. Nesse sentido, a emigração argelina para a França, ao representar um fato

___________ 1 Ao longo dos anos de 2014 e 2015, os níveis já intensos de migração não documentada à Europa registraram

um salto quantitativo bastante forte. As condições precárias das travessias realizadas pelo mar Mediterrâneo

vincularam a esse quadro o crescimento do número de mortos aos milhares e a atenção público-midiática do

mundo todo ao processo. Efeito especialmente de conflitos civis e precariedade socioeconômica, as novas ondas

migratórias pressionaram posicionamento europeu que, até o período de produção do presente trabalho, manteve-

se na maioria das vezes enrijecido a debates afastados da dimensão humanitária.

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histórico, cultural, político e econômico entre duas nações e duas instituições ligadas por um

passado colonial, põe em expressão a relação identitária consolidada na pós-colonialidade.

Destaca-se que isso pode ser percebido em dois padrões de gestão migratória desenvolvidos

recentemente: a abordagem da diáspora como ferramenta de nation-building pelo Estado

argelino e a recepção da mesma com preocupações em segurança societal pelo Estado francês.

Destacam-se, a partir dessa análise, formas identitárias cujo caráter conectado constitui

de objeto de estudo comum às abordagens envolvidas pelo pós-colonialismo. É nesse espectro

teórico que estão posicionados os conceitos aqui utilizados para a apropriação das identidades

nacionais pós-coloniais. São eles os de existencialismo e essencialismo conforme propostos

por Naylor (2000), tendo duas vantagens centrais aos objetivos desta pesquisa: adequam-se

com maior clareza ao caso de Argélia e França e permitem um tipo amplo de abordagem

identitária, ligada mais a lógicas de funcionamento do que a traços específicos de

constituição. Em outras palavras, são noções que, mesmo assentadas nas contribuições gerais

do pós-colonialismo, permitem notar como políticas sobre a migração pós-colonial, ao

lidarem com um objeto de conteúdo identitário intrínseco, denotam o exercício de estruturas

de nacionalidade pelos Estados.

De um lado, existencialismo (NAYLOR, 2000, p. 2) parte do dilema pós-colonial

argelino entre o fim da ordem política de dominação e a continuidade da dependência para

representar uma situação de indefinição identitária: “de acordo com uma publicação oficial: „a

independência real continua incompleta se ela não liberar tanto a terra quanto a alma do povo.

A Argélia recuperada pelos argelinos não basta. Os argelinos devem tornar-se e manter-se si

mesmos novamente‟. Isso constituiu o engajamento existencial”2. Nesse sentido, a constante

luta social e política do novo Estado por uma identificação nacional autêntica e coexistente à

desestruturação social causada pelo colonialismo é o elemento central do conceito proposto

pelo autor. De outro, essencialismo (NAYLOR, 2000, p.1) ilustra o mecanismo político de

funcionamento da transformação identitária passada pela França a partir da independência

argelina de 1962. Em termos gerais, está centrado em uma simbologia constantemente

evocada em diferentes conjunturas e direcionada a um retorno subjetivo ao passado de

sucessos e hegemonia global. Em termos concretos, verifica-se a tendência à nostalgia sobre o

papel do país no mundo enquanto modelo de nação historicamente consolidado: “com uma

gloriosa história de grandeur (i.e., grandeza política, cultural e moral) e independência, o seu

___________ 2 Todas as citações do presente trabalho se encontram em língua portuguesa e foram traduzidas livremente pelo

autor. Sua versão original não pôde ser adicionada ao texto final por conta das limitações espaciais

características ao tipo de produção aqui proposto.

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espírito único ou essência havia sido expresso por séculos enquanto uma identidade imperial

poderosa, como um atavismo gratificante”. O conceito propõe, então, a construção pós-

colonial de uma nacionalidade centrada em noções de atemporalidade e glória, reemergidas

pelos paradoxos entre o desejo de “ver na Argélia o reflexo da grandeza da França” e a não

aceitação das potencialidades nacionais perdidas em termos de poder mundial.

Ao propor os dois conceitos, o autor busca demonstrar como as relações bilaterais

foram uma das vias de expressão das duas identidades nacionais em exercício, porém dando

pouca atenção à migração e aos constrangimentos pós-coloniais que enseja ao exercício das

mesmas identidades nacionais. Nesse sentido, a pesquisa busca contribuir à análise já

realizada ao demonstrar como ambas as estruturas identitárias, historicamente ligadas por

dinâmicas de comparação, cooperação e conflito, tornam-se visíveis pelos processos de

nation-building e securitização a um dos laços pós-coloniais mais claros: a migração.

Em termos metodológicos, este trabalho adota o método de procedimento de estudo de

caso, além de utilizar o método de abordagem hipotético dedutivo e a técnica de pesquisa

bibliográfica sobre fontes secundárias. O recorte temporal focado no pós-independência

(desde 1962) se justifica tanto por sua natureza emblemática à relação entre Argélia e França

(e, portanto, à posição dos dois lados sobre o fluxo migratório) quanto pelo fato de que os

processos envolvidos em nation-building e securitização têm natureza contextual. Por serem

fenômenos de fundo simbólico (especialmente em sua relação com identidade), podem ser

mais bem apreendidos por análises de médio a longo prazo capazes de identificar sua variação

por condicionamentos históricos. Da mesma forma, migração e identidade apresentam uma

constante mutação que exige atenção ao contexto em que estão inseridos. Portanto, ao tomar

por ponto de partida a independência argelina, a pesquisa torna possível não só uma análise

mais clara das variações quantitativas e qualitativas em emigração argelina, mas também a

explicação da relação entre essas e os projetos identitários dos dois Estados (que passavam

naquele momento por uma inflexão). Além disso, e em vistas do não acesso a fontes primárias

e da ausência de possibilidades etnográficas, prioriza-se o uso de contribuições secundárias já

bem documentadas acerca de nation-building e securitização. A análise tende a tratar cada

uma das categorias referenciais sob dois aspectos gerais e que recebem atenção bibliográfica

consolidada: prática e discurso. Esses elementos, sempre que aludidos no texto, então, são

tratados a partir de seu conteúdo teórico estabelecido. O mesmo modelo aplica-se à análise

qualitativa do fluxo migratório, guiada então por duas categorias gerais igualmente bem

informadas: geração e tipo de atividade política.

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Quanto à estrutura textual, a análise está dividida em três capítulos. O primeiro

capítulo ocupa-se com a análise de elementos que tornam a migração uma potencial

ferramenta de expressão de processos sociais, políticos e econômicos mais amplos, então

relacionados com as dimensões de colonialidade e identidade. Nesse sentido, as primeiras

duas seções do capítulo 1 realizam um debate a partir de revisão teórica dos estudos da área e

apresentam o modelo analítico proposto, que basicamente envolve, então, a utilização do

fenômeno migratório para a explicação de aspectos pertencentes aos campos da colonialidade

e da identidade nacional. Em auxílio a tal tarefa e a título de contextualização aos próximos

capítulos, a última seção realiza breve análise dos padrões quantitativos da emigração argelina

à França.

Os dois capítulos subsequentes (segundo e terceiro) tratam da verificação do modelo

analítico nos casos de Argélia e França. O segundo capítulo é dedicado à Argélia, e busca, de

maneira geral, analisar de que forma a emigração é capaz de expressar a identidade nacional

do país. Tal expressão se daria, desde a independência nacional, pela variação da gestão

emigratória do Estado a partir da categoria referencial de nation-building. Em vistas da

verificação desse processo desde 1962, a estrutura textual do capítulo é dividida em três

períodos históricos que contêm diferentes características de variação da gestão emigratória

argelina: 1962-1973, 1973-1999, 1999-atualidade. No primeiro período, percebe-se a

emigração enquanto fonte de possível ameaça à construção do Estado argelino e, portanto,

não são desenvolvidas políticas de nation-building para tal. No segundo, passa-se a uma

posição de proteção retórica permeada pela indiferença, o que mantém na ausência de nation-

building pela emigração a aproximação pragmática apenas momentânea. No período mais

recente, mudam as concepções identitárias hegemônicas dentre as elites e o Estado passa a

desenvolver esforços permanentes em nation-building sobre a emigração. Tal demarcação

temporal permite não apenas a análise da variação do objeto principal (nation-building) de

acordo com os contextos conjunturais, mas também sua progressão enquanto expressivo da

identidade nacional argelina à luz de variáveis externas influentes em cada período. Em

adição, cada seção contém inicialmente uma análise qualitativa da variação do movimento

migratório enquanto agente transnacional, de forma a expô-lo como diretamente vinculado à

construção do Estado argelino e fornecendo base contextual ao debate do capítulo seguinte.

O terceiro capítulo é dedicado à França e, de maneira geral, busca analisar como o

mesmo fluxo considerado anteriormente constitui de uma ferramenta expressiva da identidade

nacional francesa. A proposição feita é a de que essa expressão se daria pela variação da

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gestão imigratória empregada pelo Estado em termos de esforços em securitização societal.

Em lógica semelhante, o capítulo é estruturado em torno de três períodos históricos que

contêm diferentes dinâmicas de variação, nesse caso, da gestão imigratória francesa em

termos de securitização societal: 1962-1974, 1974-1986, 1986-atualidade. No primeiro

período, há o incentivo economicista da imigração com sua adequação ao quadro de

necessidades em mão de obra de forma a não desenvolver securitização sobre os fluxos. No

segundo, dão-se os primeiros esforços concretos em securitização do tema em torno de um

consenso político, processo que ainda assim ocorre apenas em âmbito econômico e de

segurança pública. No terceiro, o consenso político se torna simbólico na medida em que

padroniza a concepção de ações, atores e justificativas em torno da temática identitária,

momento que inaugura a securitização societal da imigração. Partido da análise qualitativa do

fluxo migratório realizada no capítulo anterior, a demarcação temporal novamente é

determinada pela variação do objeto principal (securitização), o que possibilita uma análise

tanto de variáveis externas influentes quanto da estrutura identitária nacional que se sobressai

de formas diferentes nas ações de Estado sobre a imigração.

As conclusões, por fim, retomarão os temas tratados ao longo dos capítulos, avaliando

a aplicação do modelo analítico, apontando aspectos de relativização do mesmo e procurando

demonstrar como as duas análises estiveram relacionadas à exploração de dois projetos

identitários que, mesmo maleáveis às conjunturas de ação, mantiveram-se permanentes até

sua plena constituição em políticas argelinas de nation-building para a emigração e francesas

de securitização societal para a imigração.

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17

2 A MIGRAÇÃO ENQUANTO FENÔMENO DE EXPRESSÃO

2.1 Introdução ao capítulo

Este capítulo busca, como base à análise do objeto, uma abordagem que trate a

migração enquanto processo de destaque a processos políticos, econômicos e sociais mais

amplos. A partir disso, e para que o modelo analítico seja clarificado, este capítulo possui três

desenvolvimentos. Primeiramente, são apresentadas duas formas de potencial expressão da

colonialidade pelo fenômeno migratório, de forma a introduzir uma das dialéticas

características à relação pós-colonial. Em um segundo momento, o enfoque é dado a duas

potenciais formas de expressão (securitização em setor societal e nation-building) de

identidade nacional pela migração e sua apropriação estatal. Por fim, e a título de

contextualização, é feita breve revisão histórica quantitativa da emigração argelina para a

França.

2.2 Colonialidade: o migrante, a dominação e a resistência

As migrações contemporâneas, além de envolverem a expressão de projetos de

identidade nacional (tema tratado na seção seguinte), também são capazes de representar

relações de dominação. Isso é particularmente expressivo em contextos pós-coloniais, nos

quais o monopólio do Estado sobre a mobilidade humana internacional (Reis, 2004, p. 150)

assume traços remanescentes de interdependência que atuam em constante contato com os

projetos de identidade nacional. Isso pode ser analisado com clareza pela noção de

colonialidade.

O conceito de colonialidade tem seu desenvolvimento ligado às evoluções teóricas do

pós-colonialismo. Esse, emergido especialmente durante e após os processos de libertação

nacional da metade do século XX, tinha por essência a proposição de uma “resistência teórica

à mistificadora amnésia do resultado colonial” (GANDHI, 1998, p. 4). De forma geral, então,

suas diferentes correntes de interpretação buscam um retorno ao que, nas mentes colonizadas,

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o fim da ordem colonial aparentemente teria terminado: os vestígios da dominação

multidimensional mantida pelo Ocidente colonizador. Disso também se depreende a temática

da identidade pós-colonial, paralelamente antagônica a um passado de sofrimento e vinculada

a um presente de subordinação e atração pelo poder emanado daquele que domina. As formas

pelas quais essa dialética se estabelece em suas várias expressões são o objeto de estudo do

pós-colonialismo, e sua representação pela modernidade é dada pelo que chamamos de

colonialidade: “a expressão „colonialidade do poder‟ designa um processo fundamental de

estruturação do sistema-mundo moderno/colonial” (BALLESTRIN, 2013, p. 100).

Todos esses processos, especialmente aqueles que têm por objeto a identidade dos

colonizados, estabelecem diálogo fundamental com a noção de poder simbólico, desenvolvida

por teóricos como Engels (2002, p. 34-35), Mannheim (1954, p. 45) e Lukács (2003, p. 143) e

consolidada por Bourdieu (1991). O conceito ilustra como o exercício de poder pode ser

articulado por meio de instrumentos de dominação que paralelamente estruturam e são

estruturados. Nesse sentido, para que desempenhe sua função política, o símbolo deve ser

adequado à sua apropriação social por aqueles que “não querem saber que são objetos dele ou

até mesmo que eles mesmos o exercitam” (BOURDIEU, 1991, p. 163-164). Como veremos, a

colonialidade possui dinâmicas de hierarquização ligadas a esse tipo de poder, entendimento

presente desde os debates precursores.

Os estudos clássicos do pensamento pós-colonial envolvem trabalhos que

consolidaram a tentativa de pensar a realidade dos colonizados a partir de uma visão

representativa dos mesmos. Nesse sentido, foram desenvolvidas desde análises do sistema

colonial em funcionamento, dos traumas da guerra de independência e das formas pelas quais

se daria a descolonização até interpretações sobre a relação entre colonialismo e identidade,

como as que primam pela formação de uma relação intersubjetiva desse tipo entre colonizador

e colonizado e aquelas que buscam uma formulação emancipatória para o nascente

movimento da Negritude ao longo da primeira metade do século XX. De forma geral,

forneceram ferramentas iniciais do pensamento pós-colonial, essencialmente preocupado não

apenas com uma profunda análise crítica do colonialismo como sistema de exploração, mas

também em seu soerguimento como conjunto de elementos simbólicos que, enraizados nas

sociedades dominadas, mantêm um tipo de poder subjetivo3.

___________ 3 As contribuições clássicas podem ser ilustradas pelas análises de alguns autores. Said (1979, p. 3) analisou o

processo histórico de construção simbólica do Oriente pelo Ocidente enquanto um objeto de reflexão

condicionado a determinados valores eurocêntricos. Césaire (2000, p. 32) refletiu sobre a construção discursiva

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Partindo de muitos desses temas analisados pelos clássicos, estudos pós-coloniais que

complexificaram o nível de análise desenvolveram-se especialmente ao longo dos anos 1980 e

1990, com frequência por meio da criação de núcleos epistêmicos dedicados ao tema.

Exemplos desses são o Grupo Latino-Americano de Estudos Subalternos e o Grupo

Modernidade/Colonialidade. Foi no âmbito desse último que o conceito de colonialidade foi

desenvolvido e aprimorado por uma série de autores, sendo o principal deles Quijano (2010,

p. 170). Para o autor, colonialidade refere-se a uma série de aspectos de poder com laços

remanescentes nas sociedades colonizadas que mantêm especialmente o aspecto

subjetivo/simbólico do colonialismo – isso foi possibilitado pela articulação a nível global de

um padrão de racionalidade considerado universal, paralelamente a uma categorização racial e

geoidentitária. Assim, a colonialidade se expressa não apenas numa dimensão política, mas

também (e talvez principalmente) nas arenas culturais e de construção de conhecimento, como

demonstra Ballestrin (2013, p. 100). O movimento teórico aqui representado permite então

uma expansão do conceito que torna mais clara a multidimensionalidade da relação entre

colonialidade e projetos de identidade nacional enraizados nas apropriações estatais da

migração.

Duas das tendências mais destacadas dentre os estudos recentes em colonialidade

envolvem justamente essa ampla aplicabilidade do conceito para várias relações de poder

assimétricas. São elas as análises da colonialidade em seus reinos sociais, com destaque para

questões de gênero, autoridade e educação; e as análises em decolonização, ou seja, focadas

na desconstrução de padrões de saber considerados eurocêntricos. Tais contribuições4 revelam

o funcionamento da colonialidade como estrutural e variável em intensidade, podendo ser

do colonialismo como científico e civilizador, pensando tal processo a partir de uma auto-dissimulação pela

Europa, de uma naturalização de elementos fundamentais para a dominação colonial. Nkrumah (1964) buscou

entender como deveria se dar o exercício do que chama de “consciencismo”, um fundamento filosófico que

lideraria a formação de uma consciência revolucionária e que, especialmente, forneceria um mapa da “disposição

das forças que vão possibilitar a sociedade africana a digerir o Ocidente e os elementos Islâmicos e Euro-

Cristãos na África, e a desenvolvê-los de tal forma que vão se adaptar à personalidade Africana” (p. 79). Fanon

(1997, p. 212) procurou entender o cerne da dominação colonial francesa sobre a Argélia, refletindo tanto sobre

as implicações socialmente patológicas da guerra de libertação quanto, em especial, sobre a especificidade que

uma relação de poder colonial no que concerne à consciência nacional. Por fim, Memmi (2003, p. 64) analisou

as condições emancipatórias do indivíduo colonizado, e como são essencialmente influenciadas por uma relação

de atração em relação ao “modelo do colonizador” – que, para o autor, resulta de uma introjeção por parte do

colonizado daquela imagem de si concebida pela dominação colonial. 4 Os debates correntes nessas duas tendências identificadas podem ser notados em alguns trabalhos. Elayyadi

(2004, p. 3) analisa a relação entre memória social do colonialismo e identidade nacional, buscando entender no

caso francês como o manejo da colonialidade, em conjunção com a memória do “lado obscuro da história”,

influencia a relação do país com a imigração. Ndlovu-Gatsheni (2013, p. 180) busca também entender como a

colonialidade influenciou o processo da construção do Estado nacional africano (p. 218). Já Salhi (2003, p. 17)

utiliza o conceito de “híbrido cultural” para analisar as dinâmicas pós-coloniais de construção de identidades

entre Argélia e França.

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apropriada por diversas dimensões de análise. A migração, enquanto um movimento social

em constante demanda e contato com os Estados envolvidos (MEZZADRA, 2005, p. 94),

fornece um mapa de duas dinâmicas ambivalentes envolvidas na manutenção de laços pós-

coloniais e notáveis na dimensão da identidade: dominação e resistência. Ambas se

relacionam com conjunturas características ao colonialismo e com os diferentes projetos

identitários assumidos pelos Estados posteriormente, sendo encarnadas na figura daquele que

emigra do país antes colonizado.

A dimensão hegemônica dessa encarnação, já apontavam os clássicos, está em seu

poder de gerar interdependência. Essa vinculação entre colonizador e colonizado funciona

essencialmente no reino imaginativo, e herda algumas das categorias de dominação

construídas discursivamente ao longo do período colonial para se estruturar globalmente

enquanto processo de empoderamento assimétrico de populações, como interpreta Quijano

(2007, p. 171). Nesse sentido, o Orientalismo de Said (1979, p. 7) enquanto sistema de ideias

expresso/naturalizado por poder e a “civilização do colonialismo”/”brutalização” do

colonizado de Césaire (2000, p. 34) destacam uma dupla categorização necessária ao tipo

colonial de dominação:

Como pode uma elite de usurpadores, consciente de sua mediocridade, estabelecer

seus privilégios? Apenas por um meio: rebaixando o colonizado para exaltarem-se,

negando o título de humanidade aos nativos, e definindo-os como simples ausências

de qualidades - animais, não humanos (MEMMI, 2003, p. 22).

A introjeção desse quadro simbólico de imagens é característica da prolongada relação

de dominação (ELIAS, 2000, p. 20), e talvez uma das formas mais destacadas de expressão de

colonialidade na migração para a antiga metrópole. É marcado nesse processo um sentido de

aspiração identitária por parte do povo colonizado, pois, ao herdar traços profundos da

desestruturação social consolidada pelo colonialismo, passa a ver-se inferior e, como afirma

Memmi (2003), a apegar-se a um “modelo tentador muito próximo” (p. 164), ainda

representado pela figura do antigo colonizador. A migração à antiga metrópole materializa

isso na medida em que é, com frequência, reproduzida socialmente enquanto um projeto de

vida estabelecido.

No caso argelino, Sayad (1998, p. 41) identifica em etnografia que a diáspora como

tradição determina inclusive posições de grupos e famílias na estrutura social cabília, como

visível em depoimento de emigrado: “e como és desejada, ó França, antes que te conheçamos!

Tudo isso porque nossa aldeia só pensa na França. As pessoas só têm a França na boca” (p.

30). Nota-se, portanto, que a idealização do destino está relacionada não apenas a um senso de

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pertencimento ou necessidade econômica, mas também a uma dimensão subjetiva da

dominação, visto que “o colonialismo é também um estado psicológico enraizado em formas

anteriores de consciência social tanto nos colonizados quanto nos colonizadores” (NANDY,

1983, p. 2). A manutenção da emigração enquanto prática culturalmente consolidada em

determinados países representa a constância de um tipo de dominação velada e estruturada

globalmente a partir de um modelo eurocêntrico. Entretanto, os mesmos fluxos migratórios

podem também apresentar movimentos divergentes a esse processo, algo que demonstra a

dualidade das heranças sociais representadas pela colonialidade.

Tais movimentos divergentes à dominação e que mantêm expressão nas emigrações

pós-coloniais contêm um elemento de resistência, que toma forma especialmente nas novas

dinâmicas de agência política que a mobilidade humana contemporânea inaugura. Como

aponta Vertovec (2009, p. 14), dentre essas podem ser destacadas a produção de mídia

independente, organização de movimentos sociais, prática de lobby e formação de redes

intercomunitárias de contato entre migrantes. A isso se deve adicionar que, apesar de o

direcionamento estatal ser uma constância, as comunidades migratórias transnacionais detêm

certo grau de autonomia para articulação política: “a transpolítica então implica que questões

de migração e identidade não apenas atravessem fronteiras geográficas, mas também que

transcendam as instituições políticas formais de burocracias estatais, partidos políticos e

sindicatos” (SILVERSTEIN, 2004, p. 8). Exemplos dessa agência política são encontrados

nos mais diversos contextos, como nas diásporas haitiana (SCHILLER e FOURON, 1997, p.

33) e venezuelana (SHUMOW, 2012, p. 815), e em conjunturas pós-coloniais que expressam

parte da situação identitária estruturada ao longo da dominação.

Como já apontado, a desestruturação econômica, política e cultural, o conflituoso

contexto de independência e a continuada colonização das mentes são todos elementos que

enquadram o povo dominado a constantes tentativas de autodefinição. Nesse mesmo sentido,

a debilidade da nascente burguesia nacional, como aponta Fanon (1997, p. 123), representa

mais uma das dimensões dessa série de momentos em que o país se debate ao tentar achar um

senso de existência enquanto coletividade. Em um momento, isso significou a tomada de

armas para a revolução, em outro, a agitação social e eventuais golpes de Estado – a análise

de Lawless (1995, p. 29) torna clara a evolução de tais rupturas no caso argelino. A crescente

construção de espaços transnacionais de agência política por fluxos de emigração para a

antiga metrópole representa parte de mais um tipo de articulação social envolvida nesse

constante movimento subjetivo de resistência.

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É partindo das mesmas contribuições teóricas debatidas aqui que a análise dos

próximos capítulos se utiliza das noções de existencialismo e essencialismo conforme

propostas por Naylor (2000, p. 45) e definidas na introdução a este trabalho. O autor

subscreve às influências do pós-colonialismo clássico ao mesmo tempo em que as adequa à

relação contemporânea entre Argélia e França, demonstrando como as identidades nacionais

de ambos estão conectadas por lógicas de funcionamento construídas desde 1962. Como

debatido anteriormente, seu respectivo significado de busca por si mesmo e de reafirmação de

si mesmo encontra precedentes fundamentais no período colonial, mas é destacado apenas

quando a situação histórica exige que as duas nações se relacionem constantemente. Um dos

focos irremediáveis desse contato é a migração, na medida em que, como visto, representa

uma fonte de agência política permanente capaz de produzir e despertar memórias

sobreviventes.

As duas dimensões da colonialidade expressas na migração, uma relacionada à atração

pelo modelo europeu de poder e identidade e a outra à resistência a essa sedução, mantêm-se

vivas mesmo nas inovadas formas de construção de identidades características dos processos

de globalização. Ainda assim, representam dinâmicas ambivalentes que marcam uma luta

constante e comum aos povos libertos do colonialismo, a de descobrirem-se por si mesmos.

Tendo em vista tais dinâmicas da colonialidade representadas pela migração, importa agora

breve análise das formas pelas quais a última, no contexto considerado, pode servir de

ferramenta de expressão para identidades nacionais.

2.3 Nation-building, securitização societal e a expressão identitária da migração

Os processos de globalização, descolonização e desenvolvimento da tecnologia, em

conjunção com a emergência de novas entidades políticas, agregaram mudanças fundamentais

às migrações internacionais. O enfoque analítico sobre essas inflexões evoluiu paralelamente

aos aportes clássicos5, economicistas

6, em redes sociais

7 e em transnacionalismo

8, e

___________ 5 Como pioneiros desse movimento estão Thomas e Znaniecki (1918, p. 103), que delegaram à migração a

agência sobre mudanças sociais, algo que em sua análise está claro nos efeitos do processo sobre o núcleo

familiar que migra. Paralelamente, crescia o interesse acadêmico pelo pressuposto da assimilação e do melting

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demonstra como as mesmas se dão, nos tempos atuais, de forma tanto qualitativa quanto

quantitativa (VERTOVEC, 2009, p. 54). É nesse contexto que a ambivalência identitária

característica da migração, antes melhor notada a um nível micro, passa a assumir então uma

dimensão coletiva política, econômica e social9.

Disso se depreende que a apropriação estatal de fluxos migratórios é constantemente

expandida para além da agenda econômica e assume um caráter político intensificado pela

articulação das comunidades transnacionais. Entender essa relação é fundamental para uma

análise mais clara das dimensões identitárias do Estado nacional moderno, algo a ser tratado

mais à frente. Nesse momento, é necessário destacar dois dos processos envolvidos na gestão

contemporânea das migrações: nation-building e securitização societal.

O termo nation-building é primeiramente encontrado nos emergentes debates na área

do nacionalismo dos anos 1960, e é comumente referido como introduzido por Karl Deutsch,

num momento em que a crença intelectual nos estágios evolucionistas da mudança social

perdia força e era substituída por um enfoque mais direcionado ao contexto e ao estudo

pot como resoluções naturais à imigração, posição expressa pela nascente Escola de Chicago. Expoente disso

está a interpretação de Park (1928, p. 887) sobre a relação entre a migração e a marginalidade. 6 A análise economicista e quantitativa teria sua ascensão pela interpretação neoclássica da migração, posta então

em termos de uma escolha racional do indivíduo. Assim, a migração internacional seria uma forma de

remanejamento de mão de obra baseada na escolha individual em relação ao diferencial de renda, numa lógica

“push and pull”. Contraposta a essa corrente estão os novos economistas, que criticam a negligência cometida

pelos neoclássicos ao não perceberem as demais variáveis sociais, políticas e culturais envolvidas na escolha de

migrar. Além dessa corrente, uma terceira tendência teórica economicista é a mercadológica, que se divide em

duas perspectivas: teóricos da segmentação e do capital humano. A primeira tem por enfoque a análise dos

setores secundários do mercado de trabalho e da influência desses na função social do imigrante, como em

Rodriguez e Piore (1979). Já a segunda perspectiva envolve a análise crítica das consequências econômicas da

imigração para a economia formal e para os serviços prestados pelo Estado, algo que deveria ser corrigido por

políticas de fronteira mais preocupadas com a absorção de mão de obra qualificada, como aponta Borjas (2014,

p. 2). 7 Esse movimento teórico deriva parte de sua influência das análises feitas pelos novos economistas, que

agregaram a seu estudo a importância das relações sociais do migrante em espaço paralelo ao da economia.

Nesse sentido, tornou-se fundamental considerar que não apenas o indivíduo migra, mas também um conjunto de

conexões multidirecionadas estabelecidas por suas relações sociais com os grupos de origem: “as relações

sociais, como os laços que conectam as pessoas em grupos, constituem o esqueleto da rede social. É por meio

destas relações que os atores ligam seus recursos e necessidades a estruturas de oportunidades” (FUSCO, 2007,

p. 17). 8 Essa abordagem procura explorar as novas formas, expressões e impactos que tomam os deslocamentos

humanos contemporâneos. Portanto, estendem a análise a externalidades que, em períodos anteriores, pareciam

desvinculadas. Esse contexto, e suas promovidas novas formas de sociabilidade, estariam incorporadas e

claramente destacadas na migração internacional pelas mais diversas formas (VERTOVEC, 2009, p. 2). Dentre

os conceitos desenvolvidos para a ilustração dessa nova realidade estão o de “transmigrante”, de Schiller, Basch

e Blanc (1995, p. 48), e o de “translocalidade”, de Appadurai (1997, p. 35). 9 Al-ali e Koser (2004, p. 157) afirmam que “as identidades e interesses políticos das comunidades migrantes

são, portanto, parcialmente desterritorializados e desincorporados de seus contextos locais e nacionais, e

reincorporados no interior das estruturas de uma economia global crescentemente integrada. Esses processos

contribuem para a formação de densos campos políticas transnacionais que se alargam dentre Estados de

emigração e de imigração” (AL-ALI e KOSER, 2004, p. 157).

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comparativo da modernização político-econômica. Nesse período, e especialmente até os anos

1980, os estudos do nacionalismo passavam a dominar o debate conceitual em nation-

building, primando por um viés historicista focado nas origens da responsividade entre a

identidade individual e os mecanismos simbólicos de homogeneização cultural propagados

pelo Estado. Teóricos importantes nesse contexto são Reinhard Bendix e Hans Kohn. Bendix

(1964, p. 3) destaca, por meio de análise historiográfica, como as identificações culturais pré-

modernas davam-se em relação a um tipo de autoridade não estatal. Já Kohn (1965) define o

nacionalismo como um “estado de espírito, no qual a lealdade suprema do individual é sentida

como sendo pertencente ao Estado-nação” (p. 9).

Portanto, o conceito esteve ligado ao processo de alcance de integração política de tipo

nacional por meio de mecanismos criados por um Estado já estabelecido. Nessa integração

estão incluídos elementos de etnicidade, língua, religião, história e cultura, ou seja, de

identidade; e nesses mecanismos estão os meios encontrados pelo Estado para reinventar a

integração, propagando e homogeneizando um senso de unicidade. Como aponta Bloom

(1990), ainda que o debate10

entre primordialistas e modernistas continue presente na área, é

nesse sentido que considerar o processo de nation-building como anterior ao Estado tornaria o

conceito obsoleto e não aplicável às formas pelas quais o Estado maneja a heterogeneidade de

sua população, num processo que busca estabelecer socialmente o ideal de que “a unidade

política e a nacional deveriam ser congruentes” (GELLNER, 1984, p. 1). O entendimento de

que o nacionalismo não foi um fenômeno concreto até os fins do século XVIII é, portanto,

pressuposto fundamental entre os debates clássicos em torno do conceito de nation-building.

Os estudos contemporâneos da área, ainda que na maioria das vezes mantenham os

mesmos elementos acima expostos, revelam-se menos historicistas e mais preocupados com

elementos específicos da construção e reinvenção social de nações. Bloom (1990, p. 54)

procura entender sob que condições e interesses estatais articulados uma identificação

psicológica da população com determinada simbologia nacional ocorre. Já Scanhola (2013, p.

46) e Edensor (2002, p. 17) procuram respectivamente analisar o papel da literatura no

___________ 10

O debate emergiu dos estudos clássicos em nacionalismo e legou duas tendências gerais especialmente às

pesquisas relacionadas à identidade nacional. As interpretações primordialistas entendem a identidade nacional

como um elemento pré-moderno e envolvido por aspectos de vinculação política coletiva horizontal (de lógica

bottom-up), tais como etnia, memórias, mitos, história e cultura. Já as análises modernistas entendem que a

identidade nacional é um fenômeno essencialmente moderno, ligado à difusão global do capitalismo e às novas

dinâmicas por ele postas em movimento – portanto, primando por aspectos econômicos, administrativos e

ideológicos de vinculação coletiva (de lógica top-down).

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processo de narração cotidiana e rotineira da nação, então responsável por parte da articulação

das heterogeneidades do corpo nacional11

.

Portanto, os estudos dedicados ao processo de nation-building herdam o debate

característico da área do nacionalismo, porém, o resolvem de forma mais clara, pois disso

depende seu principal objeto de estudo: o da construção da nação pelo Estado. Não se

afastam, ainda assim, do entendimento de que a dimensão social é tão importante em nation-

building quanto a atuação do Estado: é possível entender que a emergência de novos campos

políticos de articulação são passíveis de serem voltados a esse âmbito identitário, e é nessa

direção para a qual majoritariamente se encaminham os novos espaços de sociabilidade

desenvolvidos pela migração transnacional:

Comunidades transnacionais estão fisicamente removidas dos poderes coercivos e

jurídicos do Estado de emigração, e – ao menos em casos onde os Estados de

imigração são democracias liberais – estão relativamente livres para se engajar em

práticas políticas e culturais que partem daqueles que são oficialmente sancionados

no Estado-lar. Isso pode levar ao reforço de identidades que são reprimidas dentro

do Estado de emigração ou até à facilitação da criação de novas identidades

políticas, que são então reimportadas para o Estado de origem da diáspora externa

(AL-ALI e KOSER, 2004, p. 162).

Outro processo geral ligado à relação entre a emergência desses novos tipos de

migração e a gestão estatal da mobilidade humana é o de consolidação de padrões securitários

de manejo da migração. Enquanto o processo de nation-building está relacionado tanto a

realidades de emigração quanto de imigração, posicionamentos de segurança em relação à

mobilidade humana podem ser notados com maior frequência em países de maioria

imigratória, algo que apontam Schiller e Levitt (2004, p. 1019). Isso está relacionado às

diversas dimensões do impacto que cada movimento populacional implica, e no caso da

relação entre segurança e migrações transnacionais o principal ferido é o frequentemente

defendido ideal de assimilação: isso porque, como antes exposto, comunidades mantenedoras

de múltiplos laços políticos, econômicos e sociais tendem a expressá-los por organização

cultural para fins de articulação política em relação a tanto o Estado de recebimento quanto ao

Estado de origem (SILVERSTEIN, 2004, p. 71). Antes de explorar de forma mais profunda o

___________ 11

Outros autores relevantes para o tema podem ser destacados. Thomas (2002, p. 1) fala em uma “engenharia da

nação” realizada por estruturas estatais propagandistas, capazes de negociar em diferentes níveis de poder e agir

sobre a realidade do coletivo populacional. Focado no papel da língua como elemento de construção de um

pertencimento nacional, Simpson (2008, p. 24) procura analisar o contexto africano de nation-building e

especialmente de que forma a multiplicidade de línguas unida à pós-colonialidade se relaciona com os esforços

estatais para propagar maior unidade identitária. Com a mesma atenção para o elemento linguístico, Wodak et al

(2009, p. 33) e Vertovec (2011, p. 248) analisam detalhadamente as estratégias discursivas e padrões

argumentativos comumente empregados pelo Estado para a construção e renovação de uma identidade nacional.

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posicionamento de securitização em relação a populações imigratórias (análise análoga será

feita em relação a nation-building para a emigração), é necessário destacar alguns pontos do

debate teórico em segurança.

Os estudos de segurança estiveram, em sua vertente clássica, posicionados como uma

área da disciplina de Relações Internacionais. Diferentemente do tratamento mais técnico do

termo pela Sociologia, os teóricos em RI comumente trabalham com uma definição geral que

fundamenta um “alívio de ameaças a valores desejados” (WILLIAMS, 2008, p. 1). De forma

geral, o conceito de segurança esteve englobado por uma lógica estatocêntrica e, portanto,

preocupada com as relações de poder (especialmente militar) no meio político internacional.

Majoritariamente, a área de pesquisa em segurança emergiu no pós-Segunda Guerra, e

inaugurou a gradual consolidação das diferentes variantes das clássicas12

abordagens realista e

liberal para a análise de segurança em um sistema internacional bipolar, paralelamente ao

surgimento (ao longo dos anos 1980 e 1990) de correntes ligadas ao construtivismo e à teoria

crítica, por exemplo.

As duas correntes tradicionais em Relações Internacionais dominaram as interpretação

e o uso conceitual do termo segurança ao longo da maior parte da Guerra Fria e especialmente

durante os anos 1950 e 1960. Apenas a partir dos anos 1980 é que o conceito passaria por uma

complexificação, em movimento teórico que buscava agregar maiores variáveis às análises

em voga até então. Tais análises a serem alteradas possuíam quatro características principais,

segundo Williams (2008, p. 3): enfoque no Estado, na estratégia, na preocupação em serem

científicas e na necessidade de manutenção de um status quo13

.

___________ 12

De maneira geral, a abordagem realista prima por analisar segurança como um derivativo de poder (RUDZIT,

2005, p. 299), ou seja, como uma meta a ser alcançada por vias da utilização do poder nas suas variantes. Nesse

sentido, o ator internacional que obtiver a capacidade política de estrategicamente manter um status quo,

disfrutará de uma segurança fundamentalmente referencial, em relação aos “concorrentes” - algo visível nas

análises de Morgenthau (1948, p. 22) e Waltz (1979, p. 126). Já a abordagem liberal, de maneira geral, busca

definir segurança a partir de um enfoque menos estatocêntrico, e centrado no fato de que o sistema internacional

estaria interligado em diferentes níveis quando da redução de ameaças a cada unidade. Nesses termos, e como

aponta Rudzit (2005, p. 299), entende-se a segurança (o alívio de ameaças) como uma consequência da paz. Há,

então, uma rede internacional que envolve os atores internacionais num padrão de interdependência,

necessariamente relacionado às margens de interação de cada entidade e, portanto, à sua segurança - isso é

notável nas análises de Keohane (2012, p. 8) e Axelrod (1997, p. 15). Ayoob (1995, p. 11-12) propõe a

impossibilidade da aplicação desses conceitos tradicionais de segurança à realidade política dos países de

Terceiro Mundo. 13

Alguns autores principais destacam-se na gradual mudança desse panorama de uso do conceito. Arnold

Wolfers (1962, p. 149) propõe que “segurança” é por definição um símbolo ambíguo, pois além de poder

envolver uma ampla variedade de políticas nacionais diferentes, pode ser entendido tanto em termos objetivos

(falta de ameaças para adquirir valores) quanto subjetivos (falta do medo de que tais valores sejam atacados).

Robert Jervis (1978, p. 171) analisa a possibilidade de cooperação sob o dilema de segurança, com a

problematização das variáveis consideradas pelos agentes para tal. Barry Buzan (1983, p. 20) busca a expansão

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Enquanto os chamados estudos da paz e a teoria dos jogos mantiveram em suas

análises de segurança a tradição clássica de estatocentrismo e afastamento entre as dimensões

interna e a internacional, as correntes construtivista, feminista e da sociologia política

internacional buscaram desafiar tais pressupostos construídos em Relações Internacionais,

diversificando as ferramentas consideradas necessárias para uma análise em segurança

internacional – como aponta análise de Williams (2008, p. 118). As novas interpretações

sobre a utilização do conceito em RI emergentes especialmente nos anos 1980 e 1990 e o

contexto internacional de maior preocupação com questões de fundo ambiental e societal

trariam à cena acadêmica da área um novo debate14

: wideners vs. tradicionalistas.

Dentre os autores contemporâneos que tomam a perspectiva widener, pode-se destacar

a preocupação em demonstrar como “o conceito de segurança liga indivíduos, Estados e o

sistema internacional tão estritamente que demanda ser tratado em uma perspectiva holística”

(BUZAN, 1983, p. 245), e como noções de segurança, anarquia e auto-ajuda são uma

instituição socialmente construída (WENDT, 1992, p. 399)15

. A abordagem teórica fornecida

pelas contribuições da Escola de Copenhage, representando uma das correntes da sociologia

política internacional, expande o campo de aplicação do conceito a áreas até então

inexploradas por tal. É nesse âmbito que Buzan, Weaver e de Wilde (1998, p. 119-120),

defendendo a construção de temas em segurança como objeto de articulação político-

discursiva, propõem a existência de um setor societal passível a esforços em securitização.

Referente a “grupos de identidade grandes e autossustentados”, tal setor é proposto pelos

autores em sua construção de um framework analítico capaz de captar atores, meios e objetos

envolvidos no alcance de uma condição livre de ameaças a dado sentimento coletivo de

pertença. Em outras palavras, o setor societal em segurança refere-se a temas ligados a

identidades coletivas.

do conceito em termos de escopo – o autor sugeria análises de segurança em RI que considerassem a relação

entre segurança nacional e segurança individual. 14

Os primeiros englobam aqueles teóricos que defendem que a utilização clássica de “segurança” em RI tem um

enfoque excessivamente vinculado à sobrevivência do Estado, algo que negligenciaria as demais dimensões do

conceito. Já os tradicionalistas defendem que uma expansão do conceito para além do campo militar tiraria sua

significância para a área de RI (numa potencial “invasão por outras disciplinas”), além de conter uma carga de

implicações ao âmbito de policy-making. 15

Algumas contribuições ilustram bem esse posicionamento teórico. Huysmans e Squire (2009) analisam

segurança menos como uma condição a ser aspirada e mais como um “mediador constitutivo da relação entre a

mobilidade humana e a política” (p. 11). E Bigo (2008, p. 2) analisa o padrão de governança em questões

construídas como de segurança, focando no que chama de “excepcionalismo dentro do liberalismo” para

caracterizar um padrão de securitização do setor societal.

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Portanto, o campo dos estudos de segurança em RI possui, ao longo de seu

desenvolvimento teórico, variados debates de ordem conceitual que protagonizam a

dificuldade de limitação de um termo multidimensional a uma área que prima pelo externo,

pelo interestatal. As tendências de estudos mais recentes aqui revisadas caracterizam esse

desafio, dando continuidade à aplicação das análises widener emergentes especialmente nos

anos 1990 e ao mesmo tempo dando atenção aos perigos políticos e metodológicos de uma

expansão excessiva do conceito. A partir desse movimento teórico, e como se pôde perceber

quanto a nation-building, é possibilitada maior clareza analítica sobre alguns padrões

contemporâneos de governança estatal de populações, relacionando-os a processos políticos

amplos e graduais. Nesse sentido, fluxos migratórios são capazes de despertar reações

diversas e que podem envolver tanto políticas de segurança societal quanto de nation-

building. Como centro do modelo analítico a ser utilizado (e melhor apresentado ao fim dessa

seção), importa entender que dinâmicas subjetivas levam o Estado a tomar um desses

posicionamentos.

A apropriação de fluxos migratórios transnacionais pelos Estados envolvidos depende

de uma série de fatores contextuais emergidos não apenas de especificidades econômicas,

políticas e sociais internas, mas também de dimensões sistêmicas parcialmente determinantes.

Em um debate teórico recente, Schiller e Levitt (2004, p. 1023-1024), assim como Vertovec

(2009, p. 94-95), categorizam alguns dos posicionamentos mais comuns de Estados de

emigração em relação às suas diásporas, propondo um continuum que vai desde políticas de

dupla cidadania/nacionalidade e de fomento à manutenção de laços transnacionais até a

condenação da emigração como um ato de traição e/ou como producente de inflexões

perigosas ao país. Mesmo que se entenda o evidente caráter fluido e mutante de tantos tipos

de engajamento político, é possível identificar no aspecto cíclico dos mesmos um elemento

historicamente construído e que, ao lado de dinâmicas conjunturais, influencia

permanentemente a relação Estado-população: a identidade.

É majoritariamente estabelecida, até mesmo nos debates mais dicotômicos de

primordialistas e modernistas, a ideia de que a nação tem a característica fundamental de ser

projetada segundo um imaginário consolidado. Ainda que isso esteja ligado ao complexo

campo dos processos horizontalizados e/ou verticalizados, é possível denotar que “a nação

veio a misturar dois conjuntos de dimensões, uma cívica e territorial, e outra étnica e

genealógica, em proporções variadas e em casos particulares” (SMITH, 1991, p. 15). Há

grande variedade nesses processos, determinados pela história social e política de cada

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entidade, e disso decorrem as especificidades na governança de movimentos separatistas, por

exemplo. Hobsbawm (1990, p. 33) e Kedourie (1961, p. 11) corroboram isso ao analisar como

a ideia de nação era concebida, ao menos até o século XIX, como um projeto econômico, não

relacionado a categorias como a etnicidade – a nação de então era pensada para objetivos

articulados para o contexto, que via ainda nascente a noção de autodeterminação. Anderson

(2006, p. 40) e Kohn (1965, p. 10) interpretam da mesma forma a modernidade do capitalismo

de impressão como processo que permitiria evocar, nas massas populares, um senso de

temporalidade e coletividade até então não existente – como promovido pela difusão de

vernáculos oficiais pelas novas administrações monárquicas.

Portanto, nações foram historicamente concebidas pela construção de diferentes

esquemas intersubjetivos para o atendimento de interesses articulados. Independente das

plataformas populares acentuadas para tal (história comum, cultura, etnia, religião, etc), a

identificação nacional esteve sempre ligada a um senso de “querer ser”, tornado guia para as

transformações futuras consideradas ideais. É nesse sentido que a identidade nacional tem

uma dimensão essencial de funcionamento, que é a de agir enquanto um projeto. O

nacionalismo, afirma Connor (1984), refere-se a um tipo de lealdade individual a um “grupo

humano cujos membros compartilham de um senso intuitivo de semelhança, situado sobre um

mito de descendência comum” (p. 14) – é a plataforma de intermediação entre um passado de

glórias e prosperidade e um presente de expectativas e desejos. Smith (1991, p. 20) capta bem

esse simbolismo característico a partir do que destaca como as origens étnicas da nação,

constituídas por significações identitárias pré-modernas e que envolvem memórias,

convergências culturais e mitos de ancestralidade.

Esses elementos presentes na realidade do Estado nacional não agem de forma

essencialista, ou seja, não são um fim em si mesmos. Ao invés disso, atuam como meios

dinâmicos numa estrutura histórica de longa duração, e que na modernidade entra em contato

de negociação, como sugere Hutchinson (2005, p. 4) ao interpretar a nação enquanto zona de

conflito, e Renan (1882, p. 19) ao defini-la como um “plebiscito de todos os dias”. É nos

aspectos mundanos da vida social e cultura popular que isso se torna destacado, pois são as

expressões mais claras da “constante junção de fragmentos de discurso e imagens, enacções,

espaços e tempos, coisas e pessoas numa vasta matriz” (EDENSOR, 2002, p. 30), num

projeto de identidade nacional. A dialética da identidade nacional é, então, relacionada à sua

lógica paralelamente dinâmica e fixa, mutável mas relacionada a uma estrutura limitante.

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30

Portanto, o Estado exercita, absorve e oficializa um núcleo específico de símbolos

nacionais a serem constantemente representados em seu relacionamento com a população.

Paralelamente, a existência política das massas manipula esse conjunto de prescrições, valores

e significados de acordo com as dinâmicas culturais e sociais em movimento. Dessa relação

decorre que Estado e população formam um complexo de contínua agência e reinvenção na

constituição política de um senso de nacionalidade.

A maneira pela qual o Estado consolida uma relação de apropriação recíproca com a

migração transnacional clarifica características essenciais de sua identidade nacional na

medida em que revela o simbolismo de anseios, expectativas e padrões de ação constituídos

historicamente com a população. Nesse sentido, o modelo analítico proposto trata nation-

building e securitização societal como diferentes apropriações estatais das populações

migrantes, servindo assim de mecanismos que remetem a diferentes projetos de identidade

nacional em funcionamento. De forma alguma a utilização analítica desses processos deva

essencializar o posicionamento dos Estados, delegando aos países de imigração o destino de

reações securitárias e aos países de emigração o de reações de nation-building (já que,

especialmente para o contexto da década de 70, é também possível falar de emigração

enquanto questão de segurança para o governo argelino, por exemplo). Entretanto, apenas a

consolidação histórica de longa duração desses tipos de posicionamento político é capaz de

fornecer um mapa em identidade nacional. O capítulo seguinte explorará tais dinâmicas para o

caso da Argélia, algo que demanda antes breve análise histórica quantitativa do fluxo

migratório a ser considerado.

2.4 A diáspora argelina para a França

As invasões árabes do século VII, a ascensão e queda dos impérios Almorávida e

Almóada entre os séculos XI e XIII, o controle pelo império Turco-Otomano a partir do

século XVI e sua derrocada para a emergência do colonialismo ao longo do século XIX, estão

entre as conjunturas históricas mais importantes para o desenvolvimento da Argélia enquanto

entidade política e social. Ao longo desses processos o deslocamento populacional, em

diferentes níveis, manteve-se uma constância, e assentou raízes de longa duração na estrutura

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social argelina (LAWLESS, 1995, p. 20-25). A expressão contemporânea disso pode ser

apropriada partindo das consequências da penetração colonial francesa consolidada a partir de

1830 e que, ao imprimir uma reconfiguração permanente da sociedade colonizada, anexa

novos elementos de significância ao já presente fenômeno da migração. Importa, assim, breve

revisão dos padrões de deslocamento humano à França durante o período colonial.

A invasão francesa de Argel em 1830, além de antecipar um processo de declínio do

poderio marítimo turco-otomano frente à expansão europeia e gradualmente consolidar o

avanço da dominação colonial, determina os padrões quantitativos e qualitativos de migração

na região pelo menos até o fim do século. Esses estiveram relacionados, especialmente após a

subjugação das últimas repúblicas berberes ao longo da década de 1850, à intensa repressão

militar seguida de expropriação de terras, como frisam Lawless (1995, p. 21) e Ajayi (2010, p.

528). Nesse contexto, predominou o deslocamento das populações nativas em direção às áreas

menos cultiváveis e às cidades, na medida em que o implemento da viticultura a partir da

década de 1880 era consolidado como parte de um processo de complementação entre

subordinação econômica, política e identitária (Naylor, 2000, p. 7). Os padrões de migração

estiveram, assim, diretamente ligados à forma pela qual o projeto colonial francês foi

concebido, de forma a produzir vastos danos às estruturas sociais tradicionais para facilitar a

dominação:

Por razão de sua interconexão fundamental, as estruturas sociais e econômicas

estavam fadadas a uma desintegração similar e paralela: a emigração do

desenraizado e indigente proletariado às vilas e cidades, a destruição da unidade

econômica da família, o enfraquecimento das antigas solidariedades e restrições que

foram impostas pelo grupo e que protegiam a ordem agrária, a ascensão do

individual e do individualismo econômico que destruíram o quadro comunitário,

foram todas tantas violações na coerente fábrica de estruturas sociais (BOURDIEU,

1962, p. 139).

É nas décadas finais do século XIX que a emigração internacional emerge com maior

força, estabelecendo destinos como Espanha, Marrocos e França, e registrando números

crescentes de 48.886 em 1893 para 101.100 em 1911 no caso da metrópole (Willcox, 1929, p.

1029). A predominância, nesses movimentos, de populações de trabalhadores regulamentados

às necessidades conjunturais da economia francesa constitui de um elemento constante na

gestão estatal da emigração argelina ao longo de grande parte do século XX. Mahlke (2005, p.

82) demonstra como já o fluxo de 1905 representava a inserção planejada de trabalhadores

argelinos em setores específicos da economia francesa em necessidade de mão de obra barata.

Eram os primeiros traços de uma tradição política a ser confirmada no pós-independência e

expressa pela figura do emigrante envolvido pelo mesmo dilema existencial de seu país:

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É necessário que a relação de forças que separa os parceiros que fazem assim um

„contrato‟ aproveitando-se do fenômeno migratório - contrato esse que, neste caso,

acaba sempre e necessariamente dando vantagens para uns em detrimentos de outros

- funcione plenamente e funcione ao longo da relação contratual (durante a

negociação propriamente dita, ou seja, durante todo o processo de imigração), para

que os países de emigração cheguem a se convencer de que não estão fazendo um

„contrato‟ negativo ou que, demasiado conscientes de sua fraqueza e crentes de que

não podem mudar nada na relação de poder, preferem fingir que não sabem que é

contra seu bem (SAYAD, 1998, p. 239).

Tal modelo de governança do fluxo migratório a ser consolidado pelos Estados foi

assentado historicamente por uma inflexão qualitativa nas emigrações argelinas para a França,

especialmente ao longo das duas guerras mundiais. Além do crescente caráter de permanência

que a população migrante passava a assumir (em vistas da inserção em massa de argelinos aos

regimentos militares e aos setores da indústria de defesa), emergia em meio a essa, junto ao

nascimento dos primeiros movimentos nacionalistas argelinos a partir dos anos 1920, uma

comunidade politicamente articulada. A população de 350 mil argelinos na França ao fim da

Segunda Guerra Mundial consolidaria gradualmente um espaço transnacional de atuação

política, manejando identidades e demandas sociais fruto da dominação colonial – bom

exemplo disso é dado por Silverstein (2004, p. 72) quanto à reprodução do “mito cabílio”

(construção simbólica francesa para opor árabes e berberes) por comunidades transnacionais

no pós-independência.

A atividade política na comunidade franco-argelina apenas se fortaleceria no intervalo

entre o fim da Segunda Guerra e o início da guerra de independência, numa conjuntura em

que ocorria “uma dramática explosão de sentimento nacionalista na Argélia” (LAWLESS,

1995, p. 24) e o soerguimento africano, pela primeira vez de forma unívoca, de movimentos

expressos pela consolidação de uma consciência continental (MAZRUI, 2010, p. 29). A

criação do Mouvement pour les Triomphe Démocratiques, e sua articulação armada

representada pela Organisation Secrete, mais tarde a formar o Comité Révolutionnaire

d'Unité et d'Action (a ser renomeado para Front de la Libération Nationale), como os demais

movimentos insurgentes dos anos 1940 e 1950, possuía dinâmicas fundamentais de

articulação com a comunidade migrante. Essa característica é igualmente destacada por

Mahlke (2005, p. 86) em relação ao partido de oposição à FLN, o Mouvement Nationale

Algerién, que por meio da Union Syndicale des Travailleurs Algériens mantinha grupos de

pressão dentre os emigrados, num contexto em que o declínio da Quarta República anunciava

a radicalização do conflito pelos militares e a posterior instauração de um governo provisório

pela FLN.

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33

A independência introduziria circunstâncias de mudança quantitativa ao fluxo

emigratório, enquanto os deslocamentos internos mantinham a histórica intensidade: ao longo

da guerra, a metrópole empregou extensivamente políticas de reassentamento forçado

(estimativas apontam para 3 milhões de pessoas) com o objetivo de manter a população longe

da influência de grupos insurgentes, num processo que também envolveu uma “convicção de

que para quebrar a resistência que essa sociedade opunha à ordem francesa e ao mundo

moderno, era necessário destruir suas estruturas sociais” (BOURDIEU, 1962, p. 166). Desde

o século XIX, com a emergência das primeiras políticas de expropriação de terras e definição

de direitos (destaca-se a Lei Warnier, de 1873) seriam mantidas medidas direcionadas à

destruição dos laços subjetivos entre o argelino, a família, o campo e o sistema tradicional de

valores. É por meio dessa destituição social consolidada ao longo da colonização que a

migração, ao representar um resultado e uma experiência material coletiva, ascende enquanto

força social paralela ao senso de revolta. A constante significância da emigração para a França

no pós-independência e a evolução de uma comunidade transnacional articulada representam

a ambivalência entre atração e repulsa forjada pelo colonialismo.

Os primeiros anos de independência, sob a presidência de Ben Bella, marcam um

boom emigratório para a França que registra estimativas de 180 mil pessoas em 1962 e 220

mil em 1963. O governo argelino assumiria, ao menos até o início da década de 70, uma

posição favorável à exportação de mão de obra em face das altas taxas de desemprego,

postura tomada ao encontro da livre circulação de pessoas instituída pelos Acordos de Evian

(que formalizaram a independência). Entretanto, logo ressurgiriam as tendências regulatórias

da França em relação à imigração, apoiadas pelo governo argelino em vistas do modelo de

cooperação estruturado com a descolonização.

Tal modelo de gestão se agravaria ao longo da década de 70, já que o governo de

Houari Boumediène proibiu a emigração em 1973 em vistas da necessidade de mão de obra

gerada pelo intenso programa de planificação econômica posto em ação, envolvendo rápida

modernização e nacionalização das principais companhias petrolíferas do país (LAWLESS,

1995, p. 30; MAZRUI, 2010, p. 439) – o processo marcava o elemento distributivo das

transformações econômicas pós-independência, o que Werenfelds (2007) interpreta como a

“cola ideológica” (p. 32) do sistema político argelino. Além disso, o padrão de emigração ao

longo dos anos 1970 foi fortemente influenciado pelo contexto da crise do petróleo e de

recessão econômica europeia, como aponta Ennaji (2010, p. 8), e manteve estagnadas as taxas

anuais (entre 20 e 40 mil pessoas) e as estimativas da comunidade argelina (cerca de 1 milhão

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e 500 mil pessoas) residente nos países da OCDE ao longo dos anos 1970 e 1980. A ascensão

do presidente Chadli Bendjedid em 1979, que marcaria uma gestão de abertura econômica por

meio de reformas liberalizantes, pouco mudaria o discurso de desencorajamento à emigração

(NATTER, 2014, p. 12).

A queda dos preços do petróleo em 1986 e a subsequente crise econômica, paralela à

crescente instabilidade política e às altas taxas de desemprego, apenas consolidou a gradual

legalização da emigração corrente ao longo dos anos 1980. Os estratos sociais mais

vulneráveis e a militância islamita liderariam uma série de levantes populares que

crescentemente assumiam características violentas a partir de 1988, com destaque para a

agência de novos atores políticos como a Union Générale des Travailleurs Algériens, o Ahl el

Da'wa e o Front Islamique du Salut (LAWLESS, 1995, p. 35-38). A ampla transformação

realizada a partir das reformas político-econômicas introduzidas por Bendjedid, sua quebra

pelo golpe militar de 1992 e os 10 anos seguintes de intensa guerra civil expressam, além do

fundo histórico autoritário pelo qual foi concebido o Estado argelino, uma restruturação do

perfil emigratório do país. Enquanto o aumento quantitativo não foi intenso (manteve-se na

faixa de 10 mil pessoas por ano), a antes prevalecente migração de mão de obra pouco

qualificada agora daria lugar a populações de refugiados e trabalhadores com maior nível de

qualificação e destinação variada, mudança comum, de modo geral, aos países do Magreb

(ENNAJI, 2010, p. 28).

Os anos 2000 consolidariam tais tendências, agora envolvidas com maior interesse

pelo Estado argelino, que passou a perseguir políticas de amparo à comunidade emigrada e à

manutenção de vínculos identitários com essa (tratadas com maior profundidade no capítulo

seguinte). Esse maior engajamento político em relação à comunidade extraterritorial tem

contribuído para o crescimento do fluxo, que desde 2002 se mantém na faixa de 20 a 30 mil

pessoas anualmente (OCDE, 2013)16

. A comunidade de 721.726 argelinos residentes na

França até 2012 (FARGUES, 2013, p. 12), por meio da quebra de uma tradição de

inconstância no tratamento da emigração pelo Estado, obtém então de forma plena uma

capacidade de articulação política autônoma e já em construção desde os tempos coloniais.

Por seu lado, a França parece manter o caráter securitário de sua gestão imigratória, também

historicamente enraizado.

___________ 16

Disponível em: <http://stats.oecd.org/Index.aspx?DataSetCode=MIG#>.

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35

O fardo existencialista, carregado pelo argelino a partir da dominação sofrida,

gradualmente inseriu a migração num campo cultural híbrido, no qual se encontra tanto um

conjunto de elementos restantes da estrutura social tradicional quanto uma série de novas

ideias, aspirações e necessidades geradas pelo contato com a civilização ocidental. É em

convivência com tais dinâmicas de resistência/adesão que são criados mecanismos de

reprodução social da emigração, fundamentais para o seu enraizamento identitário na

sociedade argelina contemporânea:

A própria experiência da migração é organizada e relatada segundo os esquemas

tradicionais, e é pelo recurso ao vocabulário do sistema mítico-ritual que o

informante fala da „França‟. A descrição das condições de existência dos emigrantes

remete às grandes oposições míticas da tradição: interior-exterior, cheio-vazio,

claro-escuro, etc. Quer seja descrita como o oposto estrito à terra natal (quando lhe

são atribuídas todas as qualidades que são negadas à terra natal ou quando,

inversamente, lhe são imputados muitos dos males desconhecidos naquela), ou, ao

contrário, como seu equivalente, pelo menos em alguns de seus aspectos (a forte

presença dos parentes), a França é, a cada vez, caracterizada por uma série de

atributos que constitui, com a série antitética que seria aplicada à terra natal, um

conjunto de oposições homólogas (SAYAD, 1998, p. 43).

Portanto, ainda que o engajamento político do Estado argelino em relação à

comunidade de expatriados tenha sido relativamente tardio e inconsistente (na medida em que

apenas é institucionalizado nos anos 2000), o fluxo emigratório manteve-se uma constância

mesmo ao longo da retórica estatal de desencorajamento dos anos 1970 e 1980. Além disso, e

talvez mais marcante, está o forte direcionamento à França, envolvido por um caráter político

de atração e resistência ligado à colonialidade. Esses dados, além de diferenciarem a

experiência de emigração argelina daquelas das demais ex-colônias francesas (Marrocos e

Tunísia, por exemplo, onde a migração cuja comunidade se formou tardiamente assumiu

aspectos de maior diversificação de destino), corroboram a fixidez da força social da

emigração à França para os argelinos. Tais aspectos permitem que seja explorada de forma

mais clara a relação especial mantida entre os dois projetos de identidade nacional, já que

possuem representação tanto na dimensão sociocultural quanto nos posicionamentos estatais

contemporâneos (por nation-building e securitização societal). É nesse sentido que o caso de

Argélia e França se mostra fértil à análise segundo o modelo analítico proposto, algo a ser

realizado nos próximos capítulos.

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36

2.5 Conclusão do capítulo

À luz de revisão teórica dos estudos em colonialidade, poder simbólico, migração,

nation-building, segurança e identidade, este capítulo procurou explorar as formas pelas quais

o fenômeno migratório, envolvido pela conjuntura subjetiva da colonialidade, serve de

ferramenta de expressão para a dimensão identitária nacional. A discussão feita destaca a

viabilidade de análises em migração para o fornecimento de informações relevantes acerca do

aspecto estrutural de identidades nacionais, ou seja, para a clarificação dos diferentes

caráteres de projetos historicamente consolidados nos países de origem e recebimento.

Quando envolvida por aspectos de colonialidade, essa dinâmica tende a produzir

nacionalidades oficiais paralelamente interdependentes (vinculadas por laços de atração) e

antagônicas (opostas em essência). A revisão histórica da evolução quantitativa da emigração

argelina para a França revela convergências importantes com o modelo analítico apresentado,

que a seguir tratará as políticas argelinas de nation-building em relação à comunidade de

emigrantes como mecanismos de expressão de um projeto de identidade existencialista.

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37

3 A EMIGRAÇÃO E O PROCESSO DE NATION-BUILDING NA

ARGÉLIA

3.1 Introdução ao capítulo

Este capítulo analisará a primeira parte da hipótese de trabalho sugerida,

correspondente à expressão migratória da identidade argelina. Estabelecendo como tal o

processo de nation-building a partir do debate realizado no capítulo anterior, a estrutura do

texto a seguir está dividida em três seções. Cada uma delas revisa os desenvolvimentos

históricos envolvidos na relação entre migração e nation-building na Argélia, partindo da base

contextual e quantitativa fornecida pela última seção do primeiro capítulo. O objetivo central

é o de avaliar os padrões de variação de ambos os fenômenos à luz de aspectos conjunturais

influentes em cada período (1962-1973, 1973-1999, 1999-atualidade), de modo a identificar

quais condições permitiram uma mudança de posicionamento estatal frente à comunidade

expatriada e como tal processo expressa, dentre as especificidades de cada período, um

projeto existencialista17

de identidade nacional. Dessa forma, cada seção mantém a análise

ordenada dos seguintes temas: padrão qualitativo de emigração argelina, seu grau de

instrumentalização estatal para nation-building e a expressão, por tais variáveis, da identidade

nacional argelina. As conclusões podem ser resumidas da seguinte forma: o primeiro período

marca a ausência de nation-building por meio da emigração, que já estava envolvida pelo

germe do transnacionalismo; o segundo período revela a continuidade da posição estatal,

agora em face de uma emigração consolidada enquanto movimento político transnacional; o

terceiro período destaca a inauguração de amplo aparato institucional de aproximação à

emigração e sua vinculação a uma nova atitude em nation-building. Argumenta-se, portanto,

que a expressão de uma concepção existencialista de identidade nacional por meio do

processo de nation-building com a emigração apenas se deu no período mais recente, porém

não sem responder aos lastros históricos de desenvolvimentos característicos dos contextos

anteriores.

___________ 17

Conforme debatido anteriormente, vincula-se o conceito à noção de identidade nacional para que seja possível

a apropriação da constante “busca por si mesmo” como uma forte necessidade de autoafirmação tanto pelo

Estado quanto pela sociedade. Nessa “tarefa” revolucionária, diferentes projetos de nação são evocados para a

ênfase de determinadas características imaginadas como autênticas e, portanto, expressivas de uma única

nacionalidade. No caso argelino, o conceito é especificamente apropriado em circunstâncias sócio-políticas cuja

formação contemporânea tem fortes influências da experiência colonial e de suas implicações subjetivas ao

contexto pós-independência. Ao longo das seções, o conceito será melhor explorado em suas variantes de cada

período.

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3.2 Revolução e state-building (1962-1973)

A formação de uma comunidade emigrante politicamente engajada não é mero

fenômeno histórico novo para a Argélia, e está diretamente relacionada com o surgimento dos

primeiros movimentos nacionalistas durante os anos 192018

. É no seio da criação de

movimentos como o Jeunes Algériens (1927) e a Fédération des Élus Musulmans (1930) que

diferentes agendas políticas evoluíram entre a moderação e o radicalismo, num processo

particularmente encarnado pelo movimento messalista19

. A constante rearticulação desses

movimentos em relação à comunidade franco-argelina tornou-se uma constante, algo que

pode ser apropriado pelas características qualitativas da emigração argelina no imediato pós-

independência. Estas estão relacionadas às variáveis da geração, tipo de atividade política,

teor de demandas e discurso20

.

Ainda que de forma esparsa, pode-se afirmar que o germe da capacidade transnacional

na migração argelina se desenvolveu ao longo dos anos 1960 mesmo com o bloqueio

representado por dois processos conectados: a racionalização econômica do fluxo por meio de

tratados bilaterais e legislação interna (como será destacado a seguir) e a ênfase geracional

(apoiada socialmente e pelo Estado) no deslocamento provisório. Como aponta Fargues

(2013, p. 11), a predominância da migração temporária e pendular marcava a gestão das

necessidades de mão de obra na França e, paralelamente, adequava-se à primeira geração de

___________ 18

A tradição política iniciada nesse período e de grande influência ao contexto dos anos 1960 está presente não

apenas na consolidação de um vínculo de apoio com partidos e representações internacionais socialistas (algo a

ser reproduzido, ao menos em retórica, por aqueles que assumiram o governo independente), mas também na

padronização de certas categorias de articulação, demanda e pertencimento a serem reproduzidas por uma

variedade de movimentos políticos. 19

Iniciado em 1926 com a criação da Etoile Nord Africaine, o movimento estabelecido por Messali Hadj

construiu um programa nacionalista radical e estreitamente vinculado à realidade da comunidade expatriada na

França e ao Partido Comunista Francês. Nessa primeira fase do nacionalismo argelino, a repressão policial a

migrantes institucionalizou-se, e, como aponta Lustick (1985, p. 66), a interiorização dos interesses da elite pied-

noir mantinha a ausência de reformas, mantendo férteis medidas como o fechamento do Parti du peuple algérien

em 1939 (segundo partido messalista). O movimento teria sua reorganização realizada com a criação de um

terceiro partido em 1946, o Mouvement pour les triomphe des libertés democratiques, que, mesmo frente a

constantes fraudes nas eleições parlamentares e municipais para a manutenção do status quo colonial, continuou

a fomentar a vinculação entre os núcleos políticos da metrópole e da colônia. 20

De modo geral, o elemento geracional guia não apenas as características do projeto de descolamento humano,

mas também a subjetivação do mesmo em termos culturais, étnicos e políticos. Nesse sentido, a relação entre as

diferentes gerações reproduz um extrato de processos ligados a variáveis mais amplas, como a da globalização,

por exemplo. Paralelas e conectadas aos aspectos geracionais de análise, estão as variáveis do tipo de atividade

política e do teor de demandas e discurso. Conforme aqui utilizadas, referem-se respectivamente à forma de

articulação enquanto movimento social (assim como à intensidade de tal) e ao padrão de construção de

subjetividades materiais ou não (em suma, podem envolver demandas e/ou concepções tanto em identidade

étnica quanto em direitos civis).

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expatriados, caracterizada por maioria masculina designada por meio de laços sociais

tradicionais ao grupo de origem à missão específica de prover recursos às necessidades

materiais do lar (SAYAD, 1977, p. 61; SILVERSTEIN, p. 155). Majoritariamente, as

demandas se relacionavam a temas específicos da dimensão trabalhista, algo que

frequentemente ultrapassava os limites territoriais, assim criando um “campo fértil”21

à

consolidação de movimentos transnacionais engajados na política argelina (AISSAIOUI,

2009, p. 157). Disso decorrem as contínuas construções identitárias a partir de categorias que

exprimem semelhanças e divergências em relação ao universo francês, mas que se movem em

direção a uma conscientização política herdada do movimento nacionalista:

A visão do movimento nacionalista sobre a emigração conjura noções de exílio,

separação e opressão, assim como uma consciência do racismo e da hostilidade aos

quais os norte-africanos foram sujeitos, não apenas nas colônias, mas também na

França metropolitana. Está imbuído com sentimentos de perda, memória e

esperanças de que a emancipação e a liberdade irão marcar seu eventual retorno ao

lar. Os imperativos econômicos que motivaram sua migração estavam ligados à sua

marginalização social, política e econômica na África do Norte (AISSAOUI, 2009,

p. 42).

Dessa posição privilegiada entre dois mundos sociais diferentes, conflitantes e

cooperativos decorre o desenvolvimento histórico de um potencial de agência política na

migração argelina. Duas dinâmicas sobrepostas explicam o pouco interesse estatal nesse

fenômeno para o período: a construção das elites governantes e o lastro ideológico

revolucionário. De forma paralela, e em constante diálogo com esses dois elementos, estão as

variáveis relacionadas à abordagem interna em nation-building, às relações bilaterais com a

França e à economia argelina.

Os acordos de Evian de 1962, que marcam a “última saída metropolitana” após falhos

planos reformistas (destaca-se o Plan de Constantine, iniciado em 1959), consolidaram a

independência argelina de uma forma negociada e direcionada ao atendimento de interesses

franceses a serem geridos pelo que a metrópole designava como “la coopération” (CHAZAN,

1999, p. 424). Entretanto, o caminho tomado pela independência não era objeto de

unanimidade entre as elites envolvidas nas negociações. Isso teve clara expressão na ascensão

de Ahmed Ben Bella à primeira presidência, já que resultou de lutas por poder22

entre facções

___________ 21

Era comum a organização de protestos, eventos culturais, congressos e periódicos (como o nacionalista El

Ouma) que possibilitaram a formação de redes de contato por meio de encontros em cafés, áreas de trabalho,

hostels e mercados. Esse modo de organização não apenas manteve coesas as demandas da comunidade argelina,

mas também a convencionou enquanto grupo social (algo impresso na organização urbana francesa pelos cités e

banlieues, subúrbios tradicionalmente relacionados aos argelinos). 22

As decisões tomadas nas conferências internas de Tripoli e Tlemcen deixaram claros os rompimentos inerentes

ao governo independente e, ao buscarem uma “opção revolucionária” de melhor acesso, representaram um

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interiores à FLN (LAWLESS, 1995, p. 27; AGERON, 1991, p. 114). A aparente estabilidade

política inicial, alcançada após um período de terrorismo pela Organisation Armée Secrète e

de sucessivas tentativas de golpe em Argel, não apagou a fragmentação interna. Nesse

contexto, vinculou-se o socialismo unipartidário a um tipo de autoritarismo considerado

necessário para os fins legítimos da revolução, numa mentalidade política que King (2009, p.

32) nomeia de “etos corporativista” 23

.

Revestido por uma retórica socialista e patriótica (diretamente vinculada ao exército,

formado por integrantes do Armée Nationale Populaire responsáveis pela guerra de

libertação), o novo governo apropriou-se da construção do Estado a partir de um modelo

burocrático-administrativo patrimonialista. Mesmo ao ter sua função deslocada rapidamente

para fins nacionalistas, tal modelo permaneceu incapaz de filtrar as demandas materiais e

subjetivas da população24

: “a estrutura social e seus reflexos ideológicos não são

necessariamente congruentes com o sistema político” (ANDERSON, 2014, p. 13). Como se

verá a seguir, essa desvinculação foi estruturada nas dimensões da nacionalidade e da

economia e, além de explicar a relação entre o Estado e a emigração, permite maior

entendimento sobre as estratégias de controle do poder pelas elites de primeira geração25

.

movimento político que “assimilou até mesmo as raízes mais podres do pensamento colonialista” (FANON,

1997, p. 134). 23

Para o autor, tal paradigma de ação política está relacionado ao tipo de autoritarismo instaurado em repúblicas

como a argelina, a síria e a egípcia. Em termos gerais, pode ser resumido a partir da primazia ideológica ao

paternalismo, à noção de que a liderança política centralizada (mesmo que de forma violenta e impositiva) é

mais eficaz em gerar unicidade nos interesses sociais conflitantes de um Estado nacional recém-constituído do

que um tipo de abordagem pluralista poderia o ser. 24

Aissaoui (2009, p. 95) aponta para o fato de que os diversos programas nacionalistas argelinos, mesmo os mais

inclusivos e/ou baseados em princípios universalizantes por vezes adeptos dos valores da “França de 1789”, não

conseguiram interpretar a complexidade das estruturas sociais do país. Nesse sentido, e em convergência ao

caminho traçado pela FLN, se houvessem ascendido ao poder acabariam por consolidar a mesma interpretação

parcializada da nação ao terreno da política. 25

Tais elites foram formadas majoritariamente a partir dos diferentes pólos de poder internos à FLN quando da

independência, o que eventualmente gerou um sistema político no qual a cooptação de atores paralelos foi

atingida pelo grau de legitimidade imediata daqueles que participaram da guerra de libertação nacional. Nesse

sentido, a maioria dos membros das elites de primeira geração fazia parte das divisões militares envolvidas na

guerra ou era vinculada ao amplo alcance ideológico do partido: “o forte papel – tanto simbólico como real – do

exército na era pós-independência retoma o papel central de seu predecessor, o Armée de Libération Nationale

(ALN), o braço militar do Front de Libération Nationale (FLN), durante os oito anos da guerra de libertação

(1954-1962). Ambos o FLN e o sucessor do ALN, o ANP, se tornaram dois dos principais pilares do sistema

unipartidário pós-colonial, e ambos se mantiveram principais constituintes do sistema unipartidário. Um terceiro

e quarto pilar do sistema político pós-colonial argelino eram a burocracia civil e a economia dirigida pelo

Estado, que eram estreitamente vinculados tanto formalmente quanto na prática. Esses quatro pilares não

poderiam ser facilmente distinguidos já que eles se tornaram crescentemente interligados, tanto no nível de

pessoal quanto em suas competências e funções dentro do sistema como um todo. Além disso, o balanço de

poder dentre esses pilares e dentre suas respectivas elites era de forma alguma estático. Ao invés disso, havia

uma contínua competição dentre e dentro dessas instituições [...]” (WERENFELDS, 2007, p. 32).

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No centro da temática de políticas em nacionalidade está o fato de que, no sistema

político argelino, pouco se distinguia a ação política da prática social, regulada por laços de

solidariedade como aqueles ligados aos membros da chamada famille révolutionnaire. Isso

potencializava a imposição de uma identidade nacional árabe-muçulmana26

(como a

constituição de 1963 o fazia) sobre uma estrutura social complexa formada por um

“mecanismo caleidoscópico” (BOURDIEU, 1962, p. 94). Nesse sentido, as políticas relativas

à temática na Argélia pós-independência não apenas denotaram um distanciamento entre

Estado e sociedade, mas também se consolidaram enquanto ferramenta de exclusão27

, como

interpreta Werenfelds (2007, p. 86).

A orientação política apresentada manteve prioritárias as relações bilaterais com a

França, já que até certo ponto foram marcadas por uma contínua dependência econômica

guiada pelo tiermondisme28

de Charles de Gaulle e Georges Pompidou. Nesse contexto, os

contornos de uma relação privilegiada29

foram consolidados e evoluíram até o seu

enfraquecimento nos primeiros anos da década de 1970. A mesma trajetória dessa cooperação

é perceptível no tema migratório, objeto de três protocolos assinados em 1963, 1964 e 1968

respectivamente referentes ao contingenciamento anual, ao controle médico e ao

encerramento do regime de livre circulação estabelecido em Evian (MAHLKE, 2005, p. 90;

BOUKLIA-HASSANE, 2010, p. 41). O aparato institucional mobilizado para a emigração era

limitado ao Ofício Nacional de Mão de Obra (ONAMO), criado em 1962. Este procurava

___________ 26

Silverstein (2004, p. 70) destaca como os governos de Ben Bella e Boumèdiene demonizaram identidades

regionais (como a berbere) enquanto “sobrevivências feudais” ou “obstáculos à integração nacional”. 27

O processo de arabização da educação (iniciado em 1965 e mantido pela “Revolução Cultural” de

Boumediène, com implicações políticas essenciais aos períodos subsequentes) manteve baixa a capacidade de

mobilidade de maior parte da população em direção às elites, constituídas por uma minoria francófona. 28

Como aponta Naylor (2000, p. 50), a nova orientação em política externa do governo francês era realizada a

partir de uma reinvenção discursiva que buscava, paralelamente, legitimar a descolonização e manter a imagem

do país enquanto ator fundamental no cenário internacional. Dessa forma, a aproximação aos países libertos

procurava manter a projeção francesa sobre o mundo e adequar a nação ao novo contexto internacional sem a

perda da aspiração à liderança. Esse processo envolveu necessariamente uma reformulação identitária, tema

tratado no capítulo seguinte. 29

Com a própria descolonização tendo sido legitimada na França pela perspectiva de manutenção dos interesses

franceses sobre a Argélia, os dois países não apenas mantiveram a interdependência em assuntos pragmáticos

(nas dimensões comercial, militar, financeira e geopolítica, especialmente), mas também a partir do legado

histórico que inevitavelmente manteria as relações num grau de importância (seja pelo confronto ou pela

colaboração). Como Naylor (2000, p. 58) destaca, até 1965, de Gaulle e Ben Bella negociaram a revisão de

algumas disposições de Evian (a presença militar francesa e os direitos de extração e transferência garantidos às

companhias petrolíferas francesas pelo Code Pétrolier, especialmente), a manutenção de ajuda financeira, a

exclusividade comercial (acordo de 1964 regulava o mercado da viticultura) e a cooperação técnico-cultural

(pelos cooperánts, com o objetivo de revitalizar a administração pública após a massiva emigração pied-noir).

Em conferência realizada em 1965, de Gaulle encontrou Ben Bella para restaurar as relações por meio da

aceitação da relativização dos acordos de Evian (Argélia já havia realizado nacionalizações no setor da

agricultura, encaminhava uma política semelhante para os hidrocarbonetos com a criação da estatal

SONATRACH e diversificava parceiros internacionais), porém a manutenção dessa perspectiva não seria

permanente em vistas da intensidade das reformas revolucionárias de Boumediène.

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instrumentalizar o fluxo de expatriados no marco das necessidades econômicas francesas e,

portanto, na garantia de uma vazão ao desemprego argelino30

. Esse tipo limitado de interesse

estatal na comunidade emigrante foi intensificado com as escolhas econômicas realizadas e a

subsequente normalização31

das relações bilaterais frente à “crise dos hidrocarbonetos” de

1970 e 1971.

As prioridades de ação do regime argelino, cuja legitimidade estava estritamente

vinculada à “tarefa revolucionária”, vieram à tona com a escolha de uma orientação

econômica rentista32

a partir do golpe de Estado33

de Houari Boumediène em 1965. Belaïd

Abdessalam, primeiro ministro desde o governo Ben Bella, assegurou a estruturação de um

modelo de fomento às “indústrias industrializantes” e, por meio de dois planos quadrienais,

inaugurou um dos períodos de maior aceleração do crescimento argelino (LE SUEUR, 2010,

p. 21). Entretanto, a negligência ao setor agropecuário gerou, em longo prazo, dificuldades no

atendimento a condições básicas de segurança humana e na diversificação da economia

(ADAMSON et al, 2004, p. 43). Além disso, o modelo de planificação econômica então em

prática priorizou uma industrialização pouco dependente em capital humano (NAYLOR,

2000, p. 65). Nesse contexto, o distanciamento entre o Estado e a emigração em termos de

___________ 30

O acordo de 1968, por exemplo, estipulava o recrutamento de 35 mil trabalhadores argelinos ao longo de três

anos e os redirecionava (inclusive com a possessão de certificados de residência) aos setores da economia com

maior necessidade de mão de obra. O migrante tinha o prazo de nove meses para ser empregado (caso não bem

sucedido, era repatriado) e o governo francês tinha total autonomia, segundo o acordo, para alternar as cotas

anuais de admissão. 31

Como destaca Naylor (2000, p. 76), os acordos de Argel de 1965 marcam o início de uma percepção recíproca

de “parceria”, ou seja, de um tipo de cooperação temperada e ainda especial (mesmo que isso tenha significado,

para os franceses, o compartilhamento da extração petrolífera com a nova estatal argelina). Os anos subsequentes

marcam a redefinição da cooperação na medida em que a parceria financeira e comercial minguava e a

estabilidade política francesa era desafiada pelos eventos de maio de 1968 (uma das causas para a renúncia por

de Gaulle). Assumindo em 1969, Pompidou reorienta a política externa para um enfoque mediterrâneo e procura

manter a relação especial: entretanto, tal estratégia é entravada pelas novas intenções argelinas que, ao

precisarem assentar em legitimidade o novo regime internacionalmente ativo na causa terceiro-mundista e dar

suporte aos novos planos de desenvolvimento, buscavam a nacionalização do setor petrolífero (quebrando com o

período “transitório” manejado até então). Esse passo foi tomado em 1971 e, segundo Naylor (2000, p. 100),

completou a descolonização econômica. 32

O rentismo é caracterizado, em termos gerais, pela captação de recursos oriundos de atividades não produtivas

(no caso argelino, a exportação de petróleo) como prioridade à manutenção de um nível mínimo de bem-estar

social. No contexto de Boumediène, constituiu de um instrumento de bloqueio a possíveis forças políticas

desafiadoras e, paralelamente, de legitimação de seu “reajuste revolucionário”. A orientação rentista constituiu, a

partir de então, de um dos elementos mais sólidos do sistema político argelino e da perpetuação de elites (tema

será debatido novamente na terceira seção). 33

Como interpreta Le Sueur (2010, p. 20), o golpe de Estado ocorreu de forma pacífica e em decorrência de

discordâncias internas quanto às políticas econômicas de Ben Bella, de sua ineficiência em gerir de forma bem

sucedida as organizações de massa e, especialmente, do autoritarismo inaugurado pelo presidente (expresso, por

exemplo, no banimento do partido de maioria cabília de Hocine Aït Ahmed, o FFS). Foi a partir disso que a

“correção revolucionária” de Boumediène recebeu amplo apoio. Ainda assim, para manter as divisões políticas

controláveis, o presidente (da república e do Conselho Revolucionário) e ministro da defesa utilizou o mesmo

tipo de autoritarismo contra o qual dizia lutar – era o “benbellismo sem Ben Bella”.

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nation-building manteve-se constante mesmo na dimensão econômica (exceto em relação ao

interesse das remessas34

, que ainda assim não recebiam grande incentivo). Além disso, mesmo

que o tema tenha sido favoravelmente adicionado à agenda bilateral, continuou dependente da

evolução da mesma. Enquanto a emigração argelina apresentou mudanças qualitativas iniciais

importantes à politização da comunidade franco-argelina, o nível de engajamento estatal junto

a essa para fins de nation-building permaneceu praticamente nulo35

.

A gestão emigratória argelina limitou-se, como demonstrado, às formalidades

estabelecidas pela reinventada relação com a França e ao atendimento mínimo das

necessidades econômicas oriundas do modelo de Estado a ser construído. Em especial, o

período ilustra como a elite formada assumiu o poder em dissintonia com as primeiras

tendências do nacionalismo argelino (enraizadas em movimentos sociais na comunidade

emigrada). O engajamento que se desenhava então era paralelo e conectado àquele

desenvolvido na relação com a sociedade, assumindo traços de autoritarismo e suspeição

sobre quaisquer possibilidades políticas emergentes que não as que detinham o poder. Nesse

contexto, da mesma forma pela qual a emigração foi reduzida de uma força política a uma

fonte de ganhos econômicos, a complexa sociedade argelina foi limitada a uma nacionalidade

oficial cuja estreita representatividade era controlada por uma legitimidade fortemente

ideológica. Portanto, o afastamento político do Estado em relação à emigração expressa o

exercício de uma identidade nacional parcializada quanto à realidade sociocultural do país e

que, mesmo envolvida por numa lógica existencialista, não gerou práticas de aproximação à

diáspora. A negligência à comunidade emigrada seria reinventada frente aos novos

constrangimentos históricos, ainda assim não deixando de expressar a mesma lógica

identitária de constante autodefinição e ênfase em um modelo de nação pouco responsivo.

Vários processos históricos ainda ocorreriam de forma a possibilitar políticas em nation-

building tomadas em direção à emigração.

___________ 34

As remessas constituem de meio com importante influência sobre a balança de pagamentos do Estado de

origem, com o potencial paralelo de acelerar a movimentação da economia por meio do incremento do consumo.

Brand (2006, p. 8) e Bouklia-Hassane (2010, p. 59) discutem possíveis formas de aproximação estatal em

relação à comunidade emigrada como forma de remanejo e intensificação de remessas, com destaque para a

articulação, por meio de embaixadas, de serviços bancários direcionados à facilitação da transferência de fundos.

Para o período considerado nessa primeira seção, o governo argelino não desenvolveu esse tipo de esforço. 35

Apesar dos bloqueios (a serem mais tarde fortalecidos) apresentados à imigração argelina pelo governo

francês desde 1964, o governo argelino limitou-se a reforçar sua legitimidade discursiva (centralizada no ideário

da revolução socialista) por meio de medidas securitárias. Essas apresentavam a emigração como um perigo

subversivo que exigia constante vigilância: "militantes magrebinos na França eram largamente vistos como um

meio a um fim, como um instrumento em processos políticos que objetivavam a emergência de mudança política

no país de origem e sua influência rapidamente declinou" (AISSAOUI, 2009, p. 154).

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3.3 Liberalização, crise e ativismo (1973-1999)

A partir da crise nas relações bilaterais, da proibição argelina da emigração (1973) e

do banimento francês dos regimes de recrutamento de trabalhadores imigrantes (1974), duas

tendências principais conectadas influenciaram a comunidade de expatriados argelinos: a

reavaliação das políticas francesas com a inflexão no tipo de deslocamento e a catalisação de

dinâmicas políticas herdadas da década anterior. Temáticas em consideração nesse contexto

de mudanças envolvem as relações bilaterais e a segunda geração de migrantes.

Os efeitos da “batalha do petróleo” entre Argélia e França geraram, como notado

anteriormente, um declínio na parceria forjada desde os acordos de Argel de 1965. Mesmo

que as relações tenham alcançado um status descontínuo de relançamento36

a partir da posse

de Valéry Giscard d'Estaing em 1974, as políticas de imigração francesas precisaram ser

reavaliadas em vistas da nova realidade econômica do país frente não apenas à crise do

petróleo de 1973 e à recessão econômica (NATTER, 2014, p. 9), mas também à onda de

ataques violentos a argelinos que varreu o país durante o período. Dessa forma, uma série de

medidas restritivas, designadas a sustentar a proibição de 1974 por meio do incentivo à

repatriação, foi tomada nos anos 1970. Gradualmente, a “reunificação familiar se tornou o

único veículo para os norte-africanos que desejavam migrar” (ENNAJI, 2010, p. 8).

Houve, portanto, a transição de um fluxo pendular-laboral a outro limitado às exceções

de uma legislação que, apesar da liberalização de François Miterrand37

, tornou necessária uma

___________ 36

Como destaca Naylor (2000, p. 101-116), as relações bilaterais franco-argelinas do período entre 1972 e 1980

passaram por um processo de reexame por meio de constante balanço, cálculo e concertação política para a

resolução das frequentes tensões diplomáticas. Enquanto o mondialisme de Giscard reviu a transformação

iniciada por de Gaulle e buscou uma cooperação a atender interesses pragmáticos (como forma de manter a

França num nível de liderança mundial e de interlocução das relações norte-sul), a política externa argelina

apreciava uma posição privilegiada no MNAL e na OPEP enquanto porta-voz do terceiro-mundismo. Ainda que

Giscard expressasse uma preferência pela banalização das relações, o espaço ocupado pela Argélia em seu plano

de projeção mundial seria privilegiado. Ao lado dos temas dos hidrocarbonetos, do gás natural, e do imbróglio

diplomático com a questão do Saara Ocidental, a dimensão humana assumiu uma posição prioritária e simbólica

expressa pela conferência de Argel em 1975 (especialmente em vistas da agitação política de emigrantes, harkis,

pied-noirs e coopérants). 37

Durante a gestão Miterrand (1981-1995), as relações bilaterais passariam por esforços mais efetivos de

melhoramento, mas que foram bloqueados pela desestabilização político-econômica da Argélia a partir da

metade dos anos 1980. A posição do presidente francês buscava certo rompimento com aquela de seus

antecessores Pompidou e Giscard, já que o desafio principal afirmado era o de manter o “codesenvolvimento” na

dimensão das ações e não apenas na do discurso. A posição de Bendjedid, também diferenciada em comparação

ao período anterior, possibilitou um redirecionamento efetivo das relações a partir de conferência realizada em

Argel em 1981. Dois acordos na dimensão migratória em tal contexto, de 1980 e 1984, ilustram o ciclo de

melhoramento-declínio da bilateralidade durante o período (NAYLOR, 2000, p. 127, 148): o primeiro inseriu o

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45

relação estreita entre a presença não nacional e a produtividade econômica. Ao lado das

motivações econômicas para essa mudança, tornaram-se comuns debates que “começaram a

questionar a lógica por trás das políticas de imigração do governo francês e a habilidade da

sociedade em assimilar migrantes de países islâmicos, particularmente do Magreb” (ENNAJI,

2010, p. 25). Esse processo foi catalisado pelo falseamento do “mito do retorno” na medida

em que a maior parte da comunidade expatriada permaneceu e foi complementada pelo

crescimento dos fluxos não documentados. Isso revelou, gradualmente, a “presença inegável

na sociedade de uma imigração que até então havia sido considerada como temporária e um

fenômeno marginal” (VERTOVEC e WESSENDORF, 2010, p. 94) e, acima de tudo,

sinalizou o declínio do modelo assimilacionista de integração.

Ao lado desse processo e das novas formas de expansão social possibilitadas pela

crescente globalização38

, a emergência de uma nova juventude educada e exposta às novas

aspirações do auge do crescimento econômico argelino (duradouro até meados dos anos 1980)

gerou mudanças na comunidade emigrada e desafios políticos inéditos ao Estado da FLN: “já

que as lutas de descolonização haviam passado há tempos, a juventude queria mudança, não

um ensaio de retórica nacionalista” (LE SUEUR, 2010, p. 50). Uma das forças político-

culturais mais expressivas dessa mudança no ambiente emigratório é aquela representada pelo

movimento beur.

Desenvolvendo uma série de rupturas com os mecanismos tradicionais de reprodução

da emigração argelina, os beurs (uma inversão silábica de arabes para designar os migrantes

de segunda geração) atingiram a juventude ao longo de um período39

marcado por explosões

tema em um âmbito de cooperação técnica por meio de medidas para treinamento e profissionalização, subsídios

a novos empreendimentos, concessões fiscais e melhorias em habitação; o segundo seguiu o espírito dos acordos

contratualistas dos anos 1960, restringindo o acesso às cartas de residência (as exigências incluíam “capacidade

financeira” e “respeito à ordem pública“) e apoiando novas condições de deportação. Essa mudança, embora

pudesse ser superada por novos exercícios de concertação política, foi complementada por tensões geopolíticas

(especialmente no que diz respeito à intervenção francesa nos conflitos no Chade e Saara Ocidental) e pela

escalada da crise argelina a partir de 1985. Apesar de breve melhoria nas relações até 1988 no setor

petroquímico, a cooperação logo voltaria ao declínio em vistas das mudanças profundas a ocorrerem na Argélia

– a gestão bilateral da migração tomaria o mesmo rumo. 38

Deve-se destacar a revolução dos meios de transporte e comunicação (de forma associada à ampliação da

eletricidade para praticamente todas as cidades argelinas, até 1979), como condição necessária ao fácil

estabelecimento de contatos transnacionais, algo que consolidou um processo nascente nos anos 1960. Boa

ilustração das novas perspectivas de transnacionalismo abertas pela globalização nos anos 1970, 1980 e 1990 é

dada por Vertovec (2009, p. 59), que destaca o advento das chamadas telefônicas internacionais baratas como

uma das forças globalizantes mais importantes à migração contemporânea. 39

Nesse contexto, no qual a segunda geração passou assumir um posicionamento claro de contraposição às

instituições sociais e governamentais fonte de legislações restritivas e de repressão, a subjetividade construída

assumiu percepções de “defensores e intermediários de seus pais” e advogou uma autoimagem de “maior

liberdade em relação aos valores tradicionais e à sua passividade”. Um dos espaços de maior atuação política

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46

de violência anti-imigrante perpetuada mesmo pelas forças policiais francesas. Como destaca

Silverstein (2004, p. 164), tal contexto fez surgir uma série de organizações (como a SOS

Racisme) cujo objetivo era o de rearticular a comunidade em torno de temas relacionados às

condições socioeconômicas da comunidade imigrante, buscando o ativismo sobre problemas

relacionados ao racismo e ao trabalho. Nesse sentido, a relação marcada pela coexistência

entre a ruptura e a reconciliação (SAYAD, 1977, p. 65) foi desenvolvida tanto com os

emigrados de primeira geração quanto com a Argélia.

Assim como os pais eram vistos pelos beurs como paralelamente passivos na luta por

direitos, mas indivíduos exemplares na consciência política, a nação de origem era percebida

em termos dialéticos. Assim, verificava-se tanto uma desvinculação com a retórica

nacionalista-revolucionária propagada pelo Estado (a União Nacional da Juventude Argelina

buscava, por exemplo, cooptar a comunidade expatriada para apoio ao regime)40

quanto o

interesse ao pertencimento como forma de ocupar uma “posição intermediária entre a África

do Norte e a França” (SILVERSTEIN, 2004, p. 153). Nesse sentido, o movimento beur

atingiu um nível de autonomia que o permitiu formular uma agenda direcionada à realidade

da imigração na França.

Contrastante com o desenvolvimento de tal potencialidade política estava o

posicionamento do Estado argelino, que ainda não havia desenvolvido uma estrutura

institucional destinada a engajar a parcela argelina do novo processo transnacional para fins

de nation-building. Além dos já debatidos padrões das dinâmicas migratórias e bilaterais, dois

elementos conectados se destacam na explicação da continuidade de posicionamento do

Estado argelino: as políticas internas em nacionalidade e a estabilidade político-econômica.

Amparada no suporte ideológico das chamadas três revoluções (industrial, agrária e

cultural), a gestão Boumediène embarcou, ao longo dos anos 1970, em um empreendimento

dirigido à correção de rumos proposta. Na dimensão cultural, o historicismo continuava a ser

utilizado de forma central na construção discursiva da nação, na medida em que quaisquer

políticas para o tema eram legitimadas pela prerrogativa de um novo estágio revolucionário

para a libertação nacional ou para a construção de um novo argelino (NAYLOR, 2000, p.

nesse sentido foi o das mídias independentes, como demonstra bem a análise de Chabal (2015, p. 118) sobre o

Sans Frontière (periódico criado por comunidade de franco-argelinos de Paris em 1979). 40

Esses tipos de arranjo institucional para relacionamento com a comunidade emigrante ficaram conhecidos

como amicales e também foram estruturados no Marrocos e na Tunísia no mesmo período. Como aponta Ennaji

(2010, p. 28), no caso da Argélia os diretores do órgão eram selecionados diretamente de Argel e tinham por

função principal a de “observar as atividades dos emigrantes”.

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47

104). Uma mudança gradual, entretanto, marcou o período: enquanto os anos 1970

representaram a adesão a um pan-arabismo que apresentava a arabização41

da população

como condição necessária ao socialismo, os anos 1980 marcaram o esgotamento de tal

modelo especialmente por conta de seu uso estratégico. Como aponta Le Sueur (2010, p. 29),

o governo de Chadli Bendjedid passou a empregar em meio às condições econômicas

deteriorantes não apenas uma série de reformas de liberalização (melhor tratadas a seguir),

mas também medidas42

de cooptação política sobre a ala islamita43

. Essas foram

instrumentalizadas para o contraponto entre o Islã político e as diversas variações dos

movimentos secularistas (que, naquele contexto, eram tidos como excessivamente

beneficiados pela gestão anterior e opositores com potencial). Por mais que esse

posicionamento fosse motivado por um contexto diferenciado, mantinha a mesma abordagem

interna em nation-building, pois propagava um projeto identitário que “implicava na redução

de uma sociedade multiétnica, multilinguística e culturalmente diversa em uma árabe-

islâmica, com o Islã enquanto religião de Estado e o árabe enquanto língua oficial”

(WERENFELDS, 2007, p. 33). Ao fim da década, a curta experimentação democrática

ocorrida entre 1989 e 1992 e seu bloqueio posterior impediram a mudança desse panorama,

mas abriram condições necessárias a uma nova consciência acerca do tema (a concretização

disso é aprofundada na seção seguinte).

___________ 41

O modelo de políticas identitárias de Boumèdiene é bem ilustrado pela Carta Nacional de 1976, que em termos

gerais acentuava a ênfase no socialismo e reafirmava o Islã como religião de Estado. Em suma, “reiterava o

objetivo de „consolidar a independência nacional‟ pela „liquidação de todas as formas de influência imperialista

ou neocolonialista‟, destacava o tema familiar de que o „socialismo, na Argélia, é um movimento irreversível‟, e

ligava a construção do Estado socialista aos „valores islâmicos que são elemento constitutivo fundamental da

personalidade do povo argelino‟” (NAYLOR, 2000, p. 123). Assim, o discurso revolucionário vinculado ao Islã

era posto numa posição de fonte para legitimidade ao projeto socialista em movimento. Como aponta Le Sueur

(2010, p. 15), as medidas educativas envolvidas na arabização difundiam uma variação do árabe não compatível

com os dialetos argelinos, na medida em que esses não possuíam forma escrita. Portanto, o objetivo de vincular a

população a uma ampla ideologia pan-arabista falhou tanto em forma quanto em substância. 42

Algumas das medidas mais proeminentes nesse sentido foram: o Código da Família de 1984, que representava

ampla concessão aos islamitas (pois deteriorava os direitos das mulheres reconhecidos pela constituição), mas

acabou encorajando-os a formar um lobby ainda mais agressivo para a instituição da sharia; a Carta Nacional de

1986 que, em termos gerais, representou uma reafirmação dos princípios estabelecidos em 1976 (definia a

Argélia como “popular em essência, islâmica em religião, socialista em orientação, democrática em instituições e

moderna em vocação”); e a nova lei de arabização de 1990, que objetivava a completa arabização da

administração oficial até 1992 e da educação superior ate 1997. A negligência que essa “versão oficial” da nação

argelina comete foi expressa na chamada Primavera Berbere de 1980, quando a tomada estudantil do campus da

Universidade de Tizi-Ouzou por conta da proibição de uma palestra sobre o tamazigh (idioma berbere) foi

violentamente reprimida. 43

O movimento islamita emergido na década de 80 tem raízes diretamente ligadas ao salafismo político e ao Al-

Qyiam dos anos 1960, que após a independência foram negligenciados pelo poder central como nacionalistas de

oposição remanescentes dos movimentos dos ulemas dos anos 1930. Nesse sentido, até os anos 1990, o Estado

argelino descartou o reconhecimento do Islã enquanto força política, apenas utilizando-o como ferramenta para

legitimação da nação a ser construída (BOUBEKEUR, 2008, p. 1-18).

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Tal tentativa de manipulação sobre a balança de poder das forças sociais argelinas foi

ineficaz em seu propósito e esteve entre os fatores que catalisou, ao fim da década, uma crise

política paralela à recessão econômica. Enquanto a era Boumediène havia protagonizado

considerável grau de estabilidade44

, a gestão Bendjedid encarou grandes desafios ainda na

primeira metade da década de 80. O lançamento de um plano quatrienal de reformas (1980-

1984) anunciou a inflexão ocorrida com o novo presidente, que buscava a “adaptação da

Argélia ao novo contexto internacional” (NAYLOR, 2000, p. 123). Esse processo deveria

ocorrer, para o novo governo, por meio de medidas liberalizantes incluídas no plano citado e

que, de maneira geral, promoveram um desmonte do aparato industrial até então construído

para que gradualmente a alta dependência no setor petroquímico fosse eliminada. Ainda que a

mudança de rumos buscasse lidar com problemas econômicos antigos, o modelo de

liberalização proposto envolveu a sobreposição ineficaz de nova estrutura econômica sobre

outra já consolidada (LAWLESS, 1995, p. 34).

Na medida em que a situação se deteriorou com o segundo choque do petróleo de

1986, a emergência de uma grande variedade de novos atores políticos que se expressavam

desde o início da década era consolidada. Como aponta Werenfelds (2007, p. 40), a expressão

mais clara desse processo foi a emancipação da juventude argelina, que vinculou as

decadentes condições econômicas à gestão estatal pouco inclusiva em termos socioculturais

numa onda de protestos violentamente reprimidos em outubro de 1988. Foi com tal evento

que a politização do Islã, então representada principalmente pelo Front Islamique du Salut,

recebeu uma janela de ação ampliada pela reeleição de Bendjedid ao fim do mesmo ano sob a

promessa de posteriores eleições multipartidárias. Quando o processo de democratização45

___________ 44

Em comparação a seu antecessor, Ben Bella, Boumediène foi mais eficaz na centralização do poder e,

principalmente, na formação de uma coalizão de apoio: “o papel da FLN foi reduzido ao de um instrumento de

liderança de Estado” (WERENFELDS, 2007, p. 35), especialmente pelas organizações de massa que visavam

maior controle civil. A isso, adiciona-se o papel essencial desempenhado pela Sécurité Militaire (a ser

transformada no Département du Renseignement et de la Sécurité em 1990) e seus serviços secretos no

enfraquecimento e cooptação de opositores políticos. Além disso, destaca-se o auge da política externa argelina

por meio da diversificação de parcerias e do ativismo de Abdelaziz Bouteflika nas causas de libertação nacional

como forma de projeção internacional do país. Todos esses elementos, aliados à orientação econômica já rentista

(como introduzida na seção anterior), angariaram grande apoio popular a Boumediène, algo expresso nas

eleições de 1976 (mesmo que o presidente fosse o único candidato). 45

A abertura política foi mantida, primariamente, como forma de recuperação de legitimidade para o

afastamento da crise corrente. Numa conjuntura em que a “ampliação dos direitos políticos e das liberdades civis

completamente transformou o cenário político da Argélia praticamente da noite ao dia” (WERENFELDS, 2007,

p. 43), os serviços secretos (especificamente, o Département du Renseignement et de la Sécurité) esperavam um

alcance máximo de 30% dos votos pela FIS. Tal resultado manteria a FLN no poder em vistas do baixo

eleitorado dos demais partidos recém-criados e pouco organizados. Dessa forma, o cálculo político das elites

consistia em manter a ala islamita na legalidade e continuar o processo democrático, já que seu banimento

poderia ocasionar em radicalização imediata.

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atingiu seu momento decisivo, o sucesso da FIS nas eleições presidenciais de 1991 fez

emergir o círculo de influência militar das elites argelinas.

O resultado imediato foi a renúncia inesperada de Bendjedid no início de 1992 e o

cancelamento46

do segundo turno das eleições, algo que conformou o estopim das reações

violentas pelo movimento islamita e a escalada das respostas pelas forças de repressão. A

partir da instauração do Alto Comitê de Estado, a ser presidido por Mohamed Boudiaf (herói

da libertação nacional trazido ao cargo como uma figura moderada capaz de atrair

legitimidade), e do Alto Conselho de Segurança, o generalato assumiu o controle do poder

agora de forma não velada e com o difícil desafio de manter a paz (LE SUEUR, 2010, p. 54).

O banimento da FIS e a prisão de vários líderes falhou em desestabilizar o já constituído

braço armado do grupo, o Armée Islamique du Salut, que em conjunto com a oposição do

Groupe Islamique Armé iniciou uma lógica de guerra total ao regime. Esse processo resultou

no assassinato de Boudiaf em meados de 1992 e se intensificou durante as gestões de Ali Kafi

e Liamine Zéroual, apenas sendo amenizado a partir da eleição de Abdelaziz Bouteflika em

199947

.

Com a instabilidade política permanente ao longo da década, o engajamento estatal

sobre a comunidade emigrada continuou comprometido e não desenvolveu estruturas

institucionais consideráveis. Isso significou que o discurso oficial sobre a comunidade

expatriada continuou determinado por conjunturas de interesse político, ou seja, de pouca

definição em posicionamento48

. Ainda que a constituição de 1989 tenha estipulado a

___________ 46

O pretexto oficial para a renúncia de Bendjedid e especialmente para a nova estrutura governamental

organizada foi o da defesa das instituições republicanas contra a emergência de um Estado regulado pela sharia,

já que isso reduziria as disposições democráticas da constituição de 1989. Como afirma Le Sueur (2010, p. 53), o

discurso envolvia a noção de que “era melhor ser a Turquia do que o Irã”. 47

O cenário político argelino a partir da morte de Boudiaf, que acabou envolvida por conspirações (não se sabia

se o atentado fora cometido a mando dos islamitas ou dos militares), constituiu de uma intensa polarização entre

Estado e grupos insurgentes e, especialmente, de uma atualização das dinâmicas de reprodução das elites. Ainda

que as clássicas lutas por poder não estivessem extintas, um campo fértil para o relativo retorno à paz no fim da

década foi condicionado. Os governos de Ali Kafi (1992-1994) e Liamine Zéroual (1994-1999) priorizaram o

alcance de um duplo programa direcionado à ordem pública e à restauração da economia, como afirma Le Sueur

(2010, p. 62). Apesar dos esforços dessas gestões para a retomada do crescimento econômico, no âmbito

bilateral as relações com a França eram entravadas por um dilema político apontado por Naylor (2000, p. 196):

enquanto o secularismo das elites no poder era visto como benéfico, sua ascensão não democrática e orientação

autoritária não poderiam ser objetos de defesa. Portanto, a crise político-econômica argelina determinou as

relações bilaterais da mesma forma pela qual influenciou as novas percepções e paradigmas de ação

governamentais para o tratamento do fluxo migratório. 48

Isso fica claro na diferença entre as eleições presidenciais de 1991 (nas quais a participação foi vetada em

vistas da prospecção de que a comunidade apoiaria os islamitas) e de 1995 (quando cerca de 630 mil emigrados

tiveram o direito ao voto assegurado devido à expectativa de apoio ao regime). Em resumo, “na Argélia o

conflito dos anos 1990 prolongou esse período de suspeita sobre os emigrantes e a relação entre o Estado

argelino e a comunidade emigrante continuou tensa” (NATTER, 2014, p. 28).

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50

responsabilidade do Estado na proteção da comunidade expatriada (algo inédito nesse

sentido), as dimensões nacional e bilateral mantiveram clara a contínua negligência da

emigração enquanto fonte de potencial político para nation-building. Por outro lado, a

emergência de tal potencial representou uma variação importante para o período, na medida

em que ampliou a capacidade de ação transnacional dos franco-argelinos. Em termos gerais, o

contexto representou o agravamento da desvinculação entre o Estado e a comunidade

emigrante, mais uma vez paralelamente à imposição de uma nacionalidade oficial pouco

representativa à população argelina (algo que assume, como notado, interesses políticos de

cooptação e repressão de oposições). Isso esteve no centro da grave crise ocorrida e fez

emergir, como condição à retenção de poder pelas elites revolucionárias, a readequação

conjuntural do exercício identitário já consolidado. Novamente, a gestão estatal da emigração,

marcada agora por descontinuidades e indiferença, é despercebida pelo Estado como objeto de

nation-building, marca da posição destoante assumida pelos dois atores. Nesse sentido, as

ações tomadas apenas representam reflexos da posição assumida em âmbito doméstico frente

ao pluralismo da sociedade como a argelina: o existencialismo figurava nesse projeto de

nação excludente, mas não foi vinculado a políticas de nation-building sobre a emigração. O

turbulento contexto dos anos 1990, além de ter inaugurado um novo tipo de governança

militar que posicionou a paz como prioridade de agenda política, despertou nas elites a

percepção da urgência que temas de identidade haviam assumido no país. Em suma, tal

fenômeno abriu o caminho para a construção de políticas emigratórias mais sólidas e de

aproximação permanente. Como será notável a seguir, a identidade existencialista agora era

envolvida por uma nova configuração contextual e, com isso, pôde ser remodelada e expressa

de uma forma inédita pela gestão estatal da emigração.

3.4 Paz, transpolítica e inflexão (1999-atualidade)

Quando da decisão do establishment político argelino de manter a democratização em

1991, os militares já haviam deixado clara a sua intenção de continuar no poder a qualquer

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51

custo49

. O agravamento da situação securitária foi permeado por momentos de conciliação

com as alas moderadas dos islamitas que, desde Bendjedid, ignoraram berberes, sindicalistas e

feministas (LE SUEUR, 2010, p. 36) tanto em tentativas de negociação quanto em medidas

governamentais de concessão50

. Ao limitar a representação da população argelina à oposição

com maior força política (a FIS) mesmo em períodos de conciliação ou violência51

, o governo

atraiu maior atenção da comunidade emigrada não apenas para os efeitos do conflito aos

grupos sociais de origem, mas também para os temas da política nacional que comumente

relacionavam-se a questões identitárias de interesse. Nesse sentido, os anos conflituosos aos

poucos construíram um verdadeiro campo transpolítico entre a população nacional e a

emigração, numa matriz de relacionamento formada entre movimentos sociais da Argélia,

diferentes comunidades migratórias e grupos regionalistas franceses. Esse novo fenômeno é

notado, em pesquisa etnográfica, por Silverstein (2004, p. 228) na dimensão da memória

histórica evocada quando dos atentados de 1995 orquestrados pelo GIA:

Por exemplo, enquanto discutia os bombardeios de 1995 com amigos e conhecidos,

três categorias de memória histórica e referência foram mobilizadas: primeiro, os

paralelos com a primeira guerra argelina de libertação nacional, durante a qual a

FLN revolucionária utilizou técnicas de combate de guerrilha, incluindo

bombardeios urbanos; segundo, o mais próximo conjunto de ataques de 1986 em

Paris por grupos libaneses militantes; e finalmente a campanha de bombardeios de

1968 por separatistas bretões contra alvos do governo na Bretanha e em Paris.

As novas categorias migratórias que gradualmente crescem no fluxo e foram

envolvidas por esse processo são, principalmente, aquelas relacionadas à reunificação familiar

oriunda do deslocamento de refugiados durante a guerra e ao aumento geral na qualificação

profissional e na diversificação de destino (NATTER, 2014, p. 13). Junto a essa constituição

mista, emergiu uma terceira geração de emigrantes argelinos pós-beurs, responsável pela

efetivação, nos anos 1990 e 2000, do transnacionalismo introduzido na década de 80.

Frequentemente autointitulada rabeu (numa nova inversão silábica, mas agora da palavra

beur), a nova juventude da emigração argelina esteve envolvida por uma rejeição ao modelo

de assimilação construído entre a geração passada e o governo Miterrand. Em meio a essa

mudança, foi dada prioridade a tipos de pertencimento mais associados a formas culturais

híbridas suspensas entre as origens argelinas e a vivência francesa. Nesse cenário, destaca-se

o ativismo berbere recente como o mais ilustrativo das mudanças geracionais observadas. Isso

___________ 49

Em jornal oficial do exército, lia-se em editorial: “O Exército Popular Nacional nunca entregará o país àqueles

que nos levariam de volta à Idade Média”. 50

Destaca-se que os islamitas não foram os responsáveis pelo início dos protestos nos anos 1980 (foram os

únicos, entretanto, a serem beneficiados por medidas de concessão ao longo do conflito). 51

Além das estimativas que apontam para 200 mil mortos ao fim do conflito, milícias populares, formadas pelos

chamados patriotes, eram frequentemente organizadas pelo exército para apoiar a resistência aos islamitas.

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porque o movimento prioriza a superação das divisões criadas nos anos 1990 por partidos

como o RCD e o FFS (de origem cabília) e retoma a percepção, oriunda da primeira geração,

da experiência migratória enquanto um exílio temporário acompanhado por um desejo de

manter os laços com a nação de origem:

[...] emigrantes cabílios recentes têm experimentado uma distância emotiva e

política similar em relação à geração dos banlieues. Em primeiro lugar, enquanto

largamente apoiadores dos princípios franceses de laicidade, eles veem seu futuro

dentro de uma Argélia secular e multicultural a qual eles esperam ajudar a forjar

(SILVERSTEIN, 2004, p. 182).

Ainda que esse nível de potencial político da comunidade emigrada tenha se

estruturado a partir de desenvolvimentos históricos pertencentes às gerações anteriores e ao

tumultuado contexto de guerra (e toda a sua repercussão na França), o seu impacto nas

políticas argelinas de nation-building apenas se faz visível com o melhoramento das

condições securitárias do país. Isso ocorre a partir da eleição presidencial de Bouteflika em

1999 e de uma série de medidas da gestão inaugurada cujo objetivo era a reestruturação do

poder político por um tipo de “autoritarismo temperado” e consciente das condições mínimas

de manutenção da legitimidade. Dois elementos centrais explicam a alteração de

posicionamento frente à comunidade emigrada: novo tipo de reprodução das elites e

abordagem interna em nation-building.

O apoio informal das elites militares à candidatura independente de Bouteflika

expressou uma manobra política similar àquela ocorrida quando do retorno de Boudiaf ao país

para a gestão imediata ao golpe de 1992: buscava-se sustentar a prioridade em estabelecer a

paz pelo resgate de um middle-man supostamente capaz de exercer um diálogo unificado pela

legitimidade de sua liderança. No caso de Bouteflika52

, esse processo foi construído desde o

cessar-fogo negociado em 1997 e formalizado por duas medidas principais tomadas em 1999

(Lei de Concordância Civil) e em 2005 (Carta para a Paz e Reconciliação Nacional)53

. Como

aponta Le Sueur (2010, p. 80-82, 90-91), as duas medidas em favor do retorno à ordem

pública (com grandes apelos à aceitação popular) foram manejadas por Bouteflika de forma a

neutralizar as pressões éradicateur. Dentro do possível, buscou-se negociar o afastamento

___________ 52

Ministro das Relações Exteriores entre 1963 e 1979 e figura essencial tanto ao golpe de Boumediène de 1965

quanto ao sucesso do ativismo argelino no cenário internacional dos anos 1970. 53

Apesar de muito criticado (especialmente por não deixar explícito o papel do exército na violência da guerra),

o modelo de anistias utilizado teve ampla aprovação pelos dois referendos nacionais realizados e foi eficaz na

absolvição de milhares de membros do GIA e do AIS. Aqueles que se recusaram a participar do esquema

conciliador proposto pelo governo foram reagrupados, de forma geral, no Groupe Salafiste pour la Prédication

et le Combat (GSPC), e continuaram a organizar atentados esporádicos.

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53

militar dos círculos de poder por meio da barganha de mantê-los protegidos de

investigações54

.

Especialmente no período entre 2004 e 2006, uma ampla atualização do generalato em

posições-chave foi realizada. Apesar do criticismo direcionado ao caráter brando das anistias,

a estabilidade política e a legitimidade da figura presidencial (vista como responsável pelo fim

da violência e pelo alívio do isolamento do país no cenário internacional durante os anos

199055

) foram asseguradas por novas dinâmicas de projeção política. Isso foi possível, como

aponta Werenfelds (2007, p. 62-63), pela expansão de um segundo e terceiro círculo de

influência56

. Além de manter os núcleos decisórios presidencial e militar, a nova configuração

política argelina expandiu as redes a uma série de novos atores atraídos por cooptação57

ou

elevados pela conjuntura nacional e internacional58

. Esse processo, ao ser guiado por um

centro de poder construído em torno da lógica “unir para governar”, permitiu o alongamento

das relações de clientelismo e patronagem (como debatidas na primeira seção) às forças

sociais de potencial enfrentamento, ainda assim não alterando certos traços autoritários da

governança: “o regime se acomodou em um autoritarismo caracterizado por uma fachada de

política multipartidária, dominado por um partido de Estado e organizações corporativistas

afiliadas lançadas para conter trabalhadores e camponeses descontentes” (KING, 2009, p.

146).

___________ 54

Em decreto de 2006, estipulava-se: “Qualquer um que, em discurso, escrita, ou qualquer outro ato, usar ou

explorar as feridas da Tragédia Nacional para ameaçar as instituições da República Democrática e Popular da

Argélia, para enfraquecer o Estado, ou para minar a boa reputação de seus agentes que honoravelmente o

serviram, ou para embaçar a imagem da Argélia internacionalmente, deverá ser punido por três a cinco anos de

prisão e uma multa de 250,000 a 500,000 dinares”. 55

Como aponta Boubekeur (2008, p. 11), desde os ataques de 11 de setembro de 2001 os Estados Unidos têm

considerado a Argélia um importante parceiro na “guerra ao terror”, promovendo a coordenação militar para a

resistência às ações de grupos islamitas remanescentes (especialmente aqueles articulados internacionalmente,

como o Al Qaeda au Maghreb Islamique, formado por ex-membros do GSPC em 2007). 56

Segundo Werenfelds (2007, p. 62-77), o segundo círculo era composto majoritariamente de grupos próximos a

ministros, ativistas de organizações civis, lobbies do setor privado e membros de organizações de massa. Já o

terceiro círculo, para a autora, era formado por atores mais dinamicamente posicionados e vulneráveis a

substituições, como o parlamento, partidos esquerdistas e islamitas de oposição (como o cooptado Mouvement de

la société pour la paix, representante dos moderados) e demais forças temporárias de pressão (como o

movimento cabílio, ativistas dos direitos humanos, sindicalistas independentes e imprensa em geral). 57

Nessa dinâmica, destaca-se a atração de muitos atores a partir das tentativas do governo (e frequentemente dos

próprios militares) de propagar uma nova imagem do exército como afastado da dimensão política, num “esforço

para desenhar fronteiras claras entre questões civis e questões militares” (LE SUEUR, 2010, p. 92). 58

Desde a liberalização econômica realizada pela gestão Bendjedid (como debatida na seção anterior), as elites

do setor privado (especialmente aquelas relacionadas às atividades petroquímicas) emergiram como poderosas

fontes de lobby. Werenfelds (2007, p. 64-65) destaca a criação, em 2000, do Forum des Chefs d’Enterprise, que

desde então reúne os maiores empreendedores do país com o autoreferido objetivo de “configurar a agenda

econômica do país”. Além disso, deve-se destacar que a abertura do setor energético em específico (1986) e a

consequente criação de novas oportunidades rentistas ao Estado também ampliou a margem para a aproximação

a novas elites.

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54

Mesmo que as novidades políticas59

tenham se dado em convivência com a

manutenção das mesmas elites no poder, o resultado verificado aponta para um avanço na

manutenção da paz (especialmente em comparação ao contexto árabe e magrebino) e na

cessão de direitos civis. A dimensão que melhor expressa isso é a da nacionalidade e,

especificamente, a questão da identidade berbere. Em 2001, como aponta Le Sueur (2010, p.

83), uma série de protestos e levantes se espalhou pela Cabília e atingiu Argel após dois

episódios de brutalidade policial em Tizi Ouzou. As demandas uniam a falta de reformas

político-econômicas e o continuado enfoque estatal no pertencimento árabe, situação que

começou a mudar a partir da liderança do primeiro ministro Ali Benflis. Foram iniciadas

negociações com os envolvidos nos protestos e compensações financeiras foram fornecidas às

vítimas de violência policial, ao mesmo tempo em que era estipulada a punição dos agentes

envolvidos. Em 2002, a constituição foi alterada para finalmente reconhecer o Tamazight

como língua nacional, numa medida que além de representar um movimento inédito (e

impensável a gestões como a de Boumediène e Bendjedid) nas políticas internas de nation-

building na Argélia, expressou a nova disposição do Estado em realizar concessões60

em

termos identitários. Essa conscientização das elites sobre a necessidade de uma gestão

inclusiva em nacionalidade não poderia ter ocorrido em momento mais oportuno, visto que a

já debatida capacidade transnacional dos emigrantes na França mantinha interesse no tema e,

até que novas medidas fossem tomadas, pressionou as autoridades:

Imigrantes cabílios e suas crianças se engajaram em demonstrações públicas de

solidariedade com os protestos cabílios de 1994, 1998 e 2001, desacreditando o

pouvoir argelino como um „assassino‟ da cultura berbere em demonstrações em

massa em Paris e afora (SILVERSTEIN, 2004, p. 217).

Em continuidade a esse processo, a gestão Bouteflika tomou uma série de medidas

legislativas e institucionais para melhor aproximar o Estado da comunidade franco-argelina de

emigrantes e assim engajá-los politicamente na arena nacional. Na base desse novo

posicionamento está uma ruptura com o modelo anterior de políticas migratórias e, como

interpreta Labdelaoui (2005, p. 2-3), uma redefinição de discurso (torna-se rara a utilização de

termos como “emigrantes”, sendo mais comum o enfoque em expressões como “comunidade

___________ 59

O novo padrão de governo, mesmo ao reinventar a forma e a ação mantendo a substância intacta, foi bem

sucedido em reduzir os efeitos da Primavera Árabe a uma série de protestos esporádicos equilibradamente

manejados pelas forças de segurança e reduzidos em intensidade. Como aponta Del Panta (2014, p. 12-20), isso

foi possibilitado pelo rentismo estatal gerido de forma estratégica, pela memória recente da guerra, pela falta de

uma oposição coesa e pela existência de uma coalizão dominante cujas fragmentações são amenizadas por

princípios comuns de ação estabelecidos desde as transformações políticas debatidas. 60

Outra medida importante a ser destacada e que representou uma interpretação mais inclusiva e apurada das

complexidades da sociedade argelina é a reforma, em 2005, do Código da Família de 1984 (que retirava grande

parte dos direitos da mulher), suprimindo qualquer tipo de descriminação legislativa contra a mulher.

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nacional estabelecida no exterior”) e prática (trata-se a temática emigratória como uma

potencial fonte de benefícios, como o desenvolvimento econômico, a segurança e a

cooperação com países de destino61

). Como demonstra Bouklia-Hassane (2010, p. 43-44), a

ratificação argelina da Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os

Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias em 2004 marcou não apenas o

ponto culminante da interiorização jurídica, desde 1990, de uma série de convenções relativas

aos direitos fundamentais do homem, mas um turning point para as novas atitudes sobre a

emigração.

Em 2005, foi realizada a reforma da lei em nacionalidade, a partir de então regulada

pelo critério jus sanguinis de transmissão agora efetivado também por meio da maternidade.

Além disso, a medida também resultou na reafirmação da dupla cidadania e de demais

disposições sobre a constitucional liberdade de saída e, como interpreta Fargues (2013, p. 5),

representa uma das legislações mais igualitárias para o tema na região magrebina. Desde

então, foi priorizada a vinculação entre a ação diplomática e a mobilização de diferentes

ministérios (especialmente o das relações exteriores) para medidas sobre a comunidade

expatriada (LABDELAOUI, 2011, p. 1-2), algo mantido pelo Conselho Consultivo da

Comunidade Nacional Estrangeira62

criado em 2009. No mesmo processo, foi criado em 2010

o Secretariado de Estado Responsável pela Comunidade Nacional Externa, sendo estruturado

como o nível institucional de representação direta das demandas dos emigrados, tendo por

objetivo o melhoramento permanente dos subsídios de serviço público e a promoção da

participação de competências e capacidades nacionais expatriadas na política interna63

. Deve-

se destacar a operacionalidade dos programas já desenvolvidos:

___________ 61

O governo Bouteflika tem primado pelo tratamento cooperativo da migração (tornando de pouca possibilidade

as decisões unilaterais comuns durante os anos 1970) por meio da participação em várias esferas do sistema

internacional. Deve-se destacar o processo de reaproximação com os EUA no pós-11 de setembro, pois, como

afirma Le Sueur (2010, p. 85), “interesses mútuos no setor energético aproximaram Bush e Bouteflika, mas a

chamada „Guerra ao Terror‟ cimentou o casamento ideológico”. Paralelamente, a Argélia engajou-se, junto à UE

e à França, no combate à migração não documentada. Dentre as ações tomadas nesse sentido, Fargues (2013, p.

5-9) destaca a reforma do código penal argelino em 2009 para adicionar o delito de saída irregular do território e

demais problemas relacionados (como o tráfico humano), a assinatura de seis acordos entre 1994 e 1997 para a

repatriação de argelinos em situação irregular e a proposição de compromissos com a UE (2002) e França (2008)

sobre a intenção de diminuir a migração indocumentada. A gestão bilateral franco-argelina em temas migratórios

atingiu novos patamares com os governos Chirac, Sarkozy e Holland, podendo desenvolver vínculos maiores

com a comunidade expatriada em detrimento do fechamento de fronteiras à migração “ilegal” (esse tema é

melhor tratado no capítulo seguinte). 62

A função principal desse órgão é a de proteger a comunidade (com manutenção da autonomia e fomento à

participação no desenvolvimento da Argélia) e a de articular os diferentes níveis de contribuição dos nacionais

instalados no exterior (um dos objetivos, por exemplo, é o de amenizar os efeitos da “fuga de cérebros”). 63

Destaca-se nova legislação de 2012 que permite o direito ao voto em eleições municipais e parlamentares (não

apenas presidenciais, como ocorria até então) e à representação de oito assentos na Assembleia Nacional Popular

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56

[...] a questão do ensino de sua língua de origem a crianças de emigrados evolui

significativamente com o ensino da língua tamazight, além do árabe. De fato, em

continuação ao contexto de uma reunião interministerial no mês de janeiro de 2011

sobre a comunidade nacional no estrangeiro, Benatallah anunciou a adoção do

projeto de ensino das línguas árabe e tamazight nos três ciclos de ensino em

benefício dos membros da comunidade nacional estabelecida no estrangeiro.

Algumas medidas igualmente têm sido tomadas para assegurar mais vantagens a

alunos da Escola Internacional de Paris e permitir a abertura, no futuro, de outras

escolas fora de Paris e de um centro cultural argelino em Londres (LABDELAOUI,

2011, p. 4).

Portanto, a gestão Bouteflika marcou a introdução de um novo período para a gestão

emigratória argelina, rompendo com os posicionamentos que, até então, foram

majoritariamente oportunistas ou indiferentes em relação à histórica capacidade transnacional

da comunidade expatriada. As novas lógicas do exercício de poder geradas pela guerra civil e

a sua conexão com a temática identitária foram condições que possibilitaram a inserção da

emigração na agenda política nacional. Nesse sentido, a recente aproximação institucional não

pode ser apropriada pela noção de que um resgate foi realizado, ou seja, não pode ser

entendida como a “descoberta de uma fonte de agência política” na emigração pelo Estado.

Como a análise em migração demonstrou, a comunidade franco-argelina sempre foi

politicamente visível e esteve, com frequência, na pauta das relações bilaterais. Portanto, o

potencial político da emigração nunca foi desconhecido pelo Estado argelino, mas sim

reavaliado em vistas das condições de ação do contexto pós-guerra civil.

O diferencial desse relacionamento desde 1999 se dá pelo fato de que os atores

considerados (Estado e emigração) encontraram-se cercados por uma conjuntura favorável

(envolvida pelas consequências da guerra à constituição de ambos) e uma estrutura histórica

sempre influente (envolvida pelas atrações/repulsas da colonialidade e pela cultura política de

ambos). Em suma, e como introduzido pelo debate teórico do capítulo anterior, a identidade

nacional argelina desde a independência foi posta em movimento por dinâmicas tanto fluídas

quanto fixas: ao longo dos períodos, o existencialismo esteve a cargo de diferentes percepções

acerca da nação e, em termos de gestão migratória, apenas na conjuntura mais recente foi

expressa por meio de nation-building. A história de sua descolonização pode até envolver

(metade dos quais é reservada a mulheres). Ademais, é possível identificar uma nova mentalidade de ação

distante do oportunismo e indiferença das políticas unilaterais marcantes de períodos anteriores: "as primeiras

concertações dos encontros com os representantes da comunidade nacional no estrangeiro confirmam que o

objetivo não é o de pedir a adesão dessa comunidade a uma política elaborada sem sua participação, mas o de

gerar participação de seus representantes para a elaboração da estratégia governamental em direção dos argelinos

no estrangeiro" (LABDELAOUI, 2011, p. 3). Em movimento convergente está a multiplicação de organizações

civis para o diálogo acerca da política emigratória, sendo de destaque a Associação das Competências Argelinas,

a Associação Argelina para a Transferência de Tecnologia, a Rede de Graduados Argelinos das Grand Écoles e

das Universidades Francesas e a Rede para o Investimento no Mediterrâneo.

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57

mudanças abruptas e descontinuidades regulares, mas esses elementos sempre foram

evocados por meio de um senso constante de “redescoberta” ou “reafirmação” nacional como

condições necessárias à estabilidade. A inédita aproximação do Estado sobre a emigração,

além de provar fundamental o papel da conjuntura de ação, representa mais uma vez o caráter

cíclico da identidade argelina pós-colonial e permanente do existencialismo como

enquadramento simbólico à imaginação da mesma. Em suma, passou-se a imaginar a Argélia

também pela via daqueles que a deixaram, mas que a ela continuam ligados.

3.5 Conclusão do capítulo

Por meio de uma revisão de três períodos históricos demarcados a partir da variação

nos padrões em migração e nation-building, este capítulo procurou demonstrar como a relação

entre o Estado e a comunidade emigrada, mesmo em suas descontinuidades, funciona como

ferramenta de acesso ao exercício existencialista identitário conforme praticado em cada

conjuntura. Cada seção destaca variáveis primárias e secundárias que determinaram a relação

Estado-emigração, por fim as relacionando a uma estrutura de identidade nacional mais ampla

e remodelada pelo contexto considerado. Nesse sentido, ainda que tanto a negligência (dada

de diferentes formas de 1962 a 1973 e de então a 1999) quanto a aproximação (desde 1999)

do Estado sobre a comunidade expatriada expressem uma estrutura identidade existencialista,

esta apenas encontra-se amadurecida em práticas de nation-building sobre a emigração

durante o período mais recente.

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58

4 A IMIGRAÇÃO E O PROCESSO SECURITÁRIO NA FRANÇA

4.1 Introdução ao capítulo

Este capítulo analisará a expressão migratória da identidade nacional francesa por

meio de posicionamentos de securitização em setor societal tomados em diferentes períodos

desde a independência argelina de 1962 e que atingiram tanto a comunidade argelina

estabelecida quanto seu crescimento pelos novos fluxos de entrada. Em estrutura semelhante à

do capítulo anterior, são selecionados três períodos históricos que marcam desenvolvimentos

específicos em securitização e em sua expressão identitária. Primeiramente, os processos

marcados na conjuntura entre 1962 e 1974 apontam para uma gestão economicista da

imigração que não envolveu quaisquer tentativas concretas de securitização do tema.

Posteriormente, o período entre 1974 e 1986 marca a efetivação de políticas securitárias

calcadas na padronização de atores, procedimentos e objetos centrados em um estágio inicial

da securitização da imigração, porém limitado ao setor econômico e de segurança pública. Por

fim, entre 1986 e a atualidade destaca-se a ampla expansão dos atores e meios para a

securitização da imigração, agora concreta em seus termos societais expressos em discurso e

prática de uma forma inédita. Em cada seção, são debatidos processos distintos cuja

exploração parte da base quantitativa e qualitativa em migração fornecida pelos capítulos

anteriores. Por meio da atenção a variáveis externas influentes, objetiva-se a análise do

posicionamento estatal francês sobre a imigração argelina (de modo a atingir os padrões de

variação da relação migração-securitização) e das formas pelas quais seu desenvolvimento

expressou, dentro das especificidades de cada conjuntura, um projeto identitário

essencialista64

. De modo análogo, argumenta-se tal projeto passa por uma progressão histórica

em gestão migratória que parte de um caráter apenas reflexivo até uma ordem explicita e

consolidada na qual a securitização é diretamente expressiva do essencialismo conforme

exercito pela identidade francesa.

___________ 64

Como debatido anteriormente, o conceito refere-se à longa tentativa de concepção de uma nação “livre” dos

traumas pós-coloniais. Nesse sentido, o essencialismo representa lógica estrutural predominante durante a

reconstrução da identidade nacional após o declínio do império e, como se tornará claro ao longo das seções,

manteve-se consolidado de diferentes formas no que se refere à gestão imigratória francesa.

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59

4.2 A racionalização econômica da imigração (1962-1974)

Ao longo do período de reconstrução nacional pós-Segunda Guerra, uma reinvenção

material e subjetiva atingiu o Estado francês em seu percebido papel doméstico e

internacional. A independência argelina em 1962 representou mais uma dessas rupturas

históricas e influenciou a gestão imigratória francesa tanto pela contribuição à percepção

social xenófoba quanto pela limitação, a pouco mais de uma década, das possibilidades de

uma governança isolada e economista do Estado sobre a imigração. A variação desse

posicionamento estava ligada a dois elementos sobrepostos: a conjuntura econômica nacional

e a relação entre o Estado e os setores sindicalistas e empresariais empregatícios. Em diálogo

com essas duas variáveis, destacam-se as mudanças envolvidas na transição para a Quinta

República e a ascensão do neoliberalismo enquanto paradigma econômico.

Em primeiro lugar, os processos econômicos iniciados pela liberação nacional e pela

ascensão da Quarta República em 1946 envolveram profundas transformações65

influentes

junto à descolonização argelina em 1962. Apesar dos ciclos de desemprego e desequilíbrio no

balanço de pagamentos, o ritmo permanente de crescimento (STATE, 2011, p. 292) e as

consequências demográficas imediatas da guerra intensificaram as necessidades em mão de

obra naturais à conjuntura de reconstrução nacional. Esse processo, interiorizado pelas elites

(MAHLKE, 2005, p. 97), teve por resposta institucional imediata uma série66

de medidas em

facilitação do recrutamento de trabalhadores não nacionais. Com a criação do Office National

d’Immigration (1945) em substituição ao Société Générale d’Immigration (conglomerado de

agências privadas de recrutamento formado em 1926), o Estado francês empregou o laissez-

faire na imigração de forma inédita. Afastando o Parlamento e os centros privados da tomada

___________ 65

Em sequência às nacionalizações consolidadas por de Gaulle até 1946 e à acomodação do arranjo de

reconstrução europeia com a criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço em 1951, a modernização

econômica francesa envolveu um novo ritmo de mecanização do setor rural e a reconstituição da cadeia

produtiva especialmente em sua distribuição urbana (TOGMAN, 2011, p. 79). Como aponta State (2011, p. 299-

300), a amplitude da transformação ocorrida gerou o embate político, nos anos 1950, entre poujadistas liderados

por Pierre Poujade e representantes dos interesses do pequeno empresariado rural, e os seguidores de Pierre

Mendès-France interessados no maior incentivo às grandes corporações e à racionalização econômica. 66

Tais medidas estavam circunscritas no chamado “modelo francês de integração”, que impunha um padrão de

tratamento social e político do imigrante baseado no pressuposto do melting pot. De acordo com tal tese

(brevemente debatida no primeiro capítulo), a posição ideal do Estado seria a de passividade em relação à

comunidade imigrante estabelecida, agindo apenas sobre sua inserção econômica na medida em que a

assimilação automática a desproveria de laços à sociedade de origem. Na França, diferentes escolas de

pensamento orientaram a tomada de decisão em imigração segundo os pressupostos assimilacionistas, porém

sempre partindo da redução dos fluxos a um objeto de racionalização (TOGMAN, 2001, p. 81).

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60

de decisão sobre o tema, o modelo desenvolvido legou a orientação estatal predominante

durante a década de 60: “o braço executivo francês „publicava‟ políticas via decretos e

circulares que nunca eram considerados na Assembleia Nacional” (TOGMAN, 2011, p. 98).

Esse posicionamento, especialmente durante os primeiros anos da década de 1970,

sofreu a pressão de setores específicos da economia atraídos pelo tema imigratório em face do

findar dos anos dourados de crescimento e das mudanças registradas no âmbito da

Comunidade Econômica Europeia. Nesse contexto, destacam-se dois atores que contribuíram

a uma rearticulação do Estado para a manutenção da gestão unilateral ao menos até 1974: o

sindicalista e o empresarial empregatício. Para fins de legitimação das medidas nos círculos

de influência da elite econômica, a gestão tornou-se sensitiva às demandas do lobby de um

dos dois grupos de acordo com a conjuntura de ação: “um padrão começou a se formar no

qual o governo geralmente perseguia políticas que tinham o suporte de pelo menos um dos

dois maiores interesses de classe” (TOGMAN, 2011, p. 84). Essa estratégia permitia não

apenas a ampliação do campo de manobra político para a priorização das necessidades

econômicas pulsantes do país, mas também o tangenciamento das oposições sociais ao

incentivo à imigração. Duas dinâmicas políticas correntes desde a independência argelina

também desempenharam papel importante às condições de manutenção dessa estratégia

assumida pelo Estado.

Primeiramente, destaca-se a centralização política levada a cabo durante a gestão de

Gaulle. Ancorada pelo apoio de interesses conservadores contrários à descolonização

argelina, a ascensão de Charles de Gaulle ao poder67

em maio de 1958 alimentou a esperança

de uma reversão das negociações com a FLN e, assim, tornou a rápida reestruturação do

sistema político possível. Uma série de medidas68

“gaullistas” foi tomada para o aumento do

___________ 67

Especialmente dentre os círculos militares de influência política na época, o novo presidente emergiu como

uma figura intermediária capaz de superar as dificuldades enfrentadas pela bipolarização inicial entre a direita e

a esquerda dos anos 1950: “como tanto um símbolo e um salvador quanto a pessoa sob cuja liderança o governo

poderia ser reordenado e as forças armadas reforçadas” (STATE, 2011, p. 302). A oportunidade de controlar o

poder por de Gaulle surgiu a partir de levantes organizados por militares franceses em Argel que culminaram na

profunda fragmentação entre governo central e exército no que diz respeito ao tipo de descolonização

perseguido. Cercado pelo alto escalão militar e requisitado pelos setores mais conservados da coalizão

governante, de Gaulle retornou ao poder com o preenchimento de suas ideias constitucionais e a fundação da

Quinta República (HOWARTH e VAROUXAKIS, 2014, p. 39). 68

Dentre tais medidas, como apontam State (2011, p. 303-205), Howarth e Varouxakis (2014, p. 40), destacam-

se a adoção de sistema eleitoral de dois turnos, de um Parlamento bicameral reorganizado (constituído por

Senado e Assembleia Nacional), e do poder presidencial de apontar o cargo de primeiro ministro, de dissolver a

Assembleia Nacional e de nominar o presidente do Conselho Constitucional. Em termos gerais, tais mudanças

encorajavam a formação de alianças polarizadas atuantes além dos períodos eleitorais e que, em longo prazo,

legaram a bipolarização do sistema política francês e a estabilidade dos governos da Quinta República.

Importante também nesse âmbito foi terceiro-mundismo de política externa vinculado à manutenção do

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poder decisório do Estado em termos econômicos domésticos e internacionais (NAYLOR,

2000, p. 48). Apesar de terem sido parte causal da agitação política verificada ao fim da

década, essas mudanças possibilitaram a retenção do poder decisório almejado no campo

imigratório principalmente na medida em que não foram revisadas no governo seguinte.

Em segundo lugar, importa a nova configuração partidária e sua relação com a

imigração. Central nesse sentido está a recuperação de força política pelos partidos

esquerdistas (especialmente a ala moderada, até então relacionada à falha da Quarta

República) e uma resultante bipolarização do poder político nacional (STATE, 2011, p. 305).

De um lado, a Fédération de la Gauche Democrate et Socialiste reunia as forças socialistas e,

de outro, os gaullistas formavam uma coalizão com as forças liberais por meio da Union des

Démocrates pour la République. Como expressam as dificuldades de reeleição em 1965, os

protestos massivos de 1968 e a rejeição popular de uma série de reformas limitadas em uma

“última saída” para de Gaulle em 1969, a ampliação dessa configuração política tornou mais

difícil a ação unilateral do Estado em imigração.

A renúncia por de Gaulle em 1969 em face da escalada da crise política69

e a

consagração de Georges Pompidou à sucessão gaullista anunciou uma “normalização”70

das

relações entre governo e oposição, mas não impediu pressões sobre o tema da imigração. A

despeito do fato de que “o Partido Comunista e o maior sindicato, a Confédération Générale

du Travail, apresentaram uma atitude ambivalente em relação aos imigrantes”

(SILVERMAN, 1992, p. 45), os interesses da comunidade franco-argelina começaram a ser

interiorizados às agendas do operariado francês e de seus braços partidários de oposição. As

desenvolvimento econômico pós-guerra esteve e na busca por uma posição pragmática frente à bipolarização da

política internacional: “o gaullismo via uma necessidade ampliada de uma França forte e independente: a

necessidade de oferecer ao mundo em desenvolvimento uma „terceira via‟, uma alternativa em relação às

superpotências, na condução das relações externas” (NAYLOR, 2000, p. 48). 69

Como demonstra State (2011, p. 310-311), a crise teve origem nos levantes ocorridos no ano anterior e

assumiram grande amplitude nacional por meio de greves e demonstrações públicas especialmente em fábricas e

universidades: “a França parecia estar à beira de outra revolução”. Uma série de concessões foi realizada sob a

liderança do novo ministro de educação Edgar Faure e do então primeiro ministro Georges Pompidou, porém as

principais medidas reformistas foram reprovadas em referendo nacional de 1969. A manutenção dos gaullistas

no poder foi possibilitada pela fragmentação da esquerda e, como interpretam Howarth e Varouxakis (2014, p.

38-39), pela disposição dos socialistas em conviver com as estruturas políticas da Quinta República (a nível

local, sua ala moderada recobrava força eleitoral). 70

A expressão mais direta de tal normalização foi a difusão de uma direita moderada não gaullista equivalente

em força à UNR (eventualmente fazendo parte de sua coalizão no governo, como é o caso de Giscard, a ser

eleito presidente em 1974). É nesse contexto que a criação da Union des Démocrates pour la République em

1971 une elementos do ascendente neoliberalismo com o gabinete formado pelo governo Pompidou vitorioso nas

eleições legislativas de 1973 (STATE, 2011, p. 312). Apesar das bem sucedidas reformas educacionais e

administrativas (com transferência de poderes a assembleia regionais, por exemplo), a crise econômica

anunciada pela guerra de Yom Kipur (1973) tornou inevitável a derrota eleitoral em 1974.

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62

medidas de restrição assumiram nesse momento um caráter brando que visava manter a ainda

necessária recepção de trabalhadores enquanto satisfazia a pressões políticas envolvidas na

vinculação entre imigração e problemas de ordem pública, por exemplo. Não ameaçando a

posição unilateral do Estado e nem securitizando os fluxos, esse processo foi paralelo ao

direcionamento a uma agenda mais moderada (próxima ao Républicains-Indépendents,

liderado pelo posterior presidente Valéry Giscard d‟Estaing) e à reavaliação da incipiente

integração europeia71

e da orientação interna em política econômica (STATE, 2011, p. 312-

313).

Essa última mudança ocorreu em paralelo à ascensão do neoliberalismo e também

condicionou a gestão imigratória objetivada pelo governo. A unilateralidade decisória do

Estado72

, inequívoca em sua constante rearticulação, agora lidava também com a expansão do

espaço ocupado pelo liberalismo na intelectualidade francesa A ascensão do neoliberalismo

em meios acadêmico-empresariais (HOWARTH e VAROUXAKIS, 2014, p. 22), algo

expresso pelo suporte aos benefícios da globalização e ao não intervencionismo estatal, foi

claramente representada pela Association pour la Liberté Économique et le Progrès Social73

.

Com suas discussões muito disseminadas à época, a associação e demais elites neoliberal

encontram voz pública no fato de que “muitos empregadores que dependiam do trabalho

imigrante estavam infelizes com o novo sistema. Líderes empresariais desejavam uma mão

mais livre no recrutamento de trabalhadores estrangeiros, tal qual a que tinham antes da

guerra” (TOGMAN, 2011, p. 87). Como debatido para outras instâncias, o Estado novamente

manipulava os interesses de diferentes atores de forma a evitar a politização do tema e a

continuar atraindo uma mão de obra suficiente para as necessidades econômicas. Apenas a

crise econômica posteriormente deflagrada formaria um consenso político nacional em torno

de medidas restritivas à imigração.

___________ 71

Como apontam Howarth e Varouxakis (2014, p. 194-195), os primeiros três anos da década de 1970 marcam a

ascensão da França enquanto pivô do aprofundamento da integração pelas negociações da União Econômica e

Monetária, com a priorização da intergovernamentabilidade e dos interesses em manter a moeda nacional forte

em comparação à alemã. Tal inflexão de posicionamento francês é uma das primeiras expressões do que, nos

períodos subsequentes, consolida-se como a europeização das políticas imigratórias nacionais. Esse tema será

aprofundado na penúltima seção. 72

Como aponta Togman (2011, p. 92), destacam-se três circulares emitidas em 1956, 1962 e 1964 cujo objetivo

era o maior fornecimento de subsídios à contratação irregular de trabalhadores imigrantes. Essas medidas foram

tomadas de forma administrativa, sem qualquer envolvimento parlamentar ou dos setores interessados no

emprego planejado dos fluxos de entrada. 73

Constituída enquanto comunidade epistêmica a partir de 1969, representou o surgimento de um arranjo

argumentativo inédito para a “justificação” das dinâmicas do capitalismo contemporâneo. O público-alvo era

especialmente a juventude envolvida nos levantes de maio de 1968 excluída da divisão das prosperidades

oriundas dos trente glorieuses (CHABAL et al, 2015, p. 181).

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63

A gestão estatal da imigração argelina pela França durante o período entre 1962 e

1974 esteve situada, portanto, dentro da ampla conjuntura de reconstrução econômica

nacional e de redefinição das dinâmicas políticas envolvidas na perseguição de princípios

democráticos consolidados em longo prazo. À luz desse processo, a regulação dos fluxos de

entrada segundo uma lógica de demanda e oferta remeteu à acomodação identitária pela qual

passava a França dos anos 1960 em face da descolonização, porém não a relevou de forma

explícita em seu conteúdo. A posição majoritariamente isolada do Estado no tratamento dos

fluxos foi possibilitada pela sempre latente associação com um dos “parceiros sociais”

interessados na livre circulação de trabalhadores. Essa disposição de forças foi traduzida em

legislações pontuais comumente afastadas do debate parlamentar e das agendas eleitorais, de

forma a sujeitar quaisquer oposições à necessidade de mão de obra. As poucas políticas

públicas restritivas registradas ao fim da gestão Pompidou estiveram envolvidas no choque

inicial entre a presença imigrante e os crescentes problemas de habitação, desemprego e

ordem pública, comumente representando medidas de cessão às pressões de oposição e pouco

geradoras de mudanças na gestão em geral. Expressão clara disso é o caráter paliativo das

circulares Marcellin-Fontanet (1972) e Gorse (1973), geradas pela esparsa politização do tema

e, em seu caráter paradoxal74

, mantenedoras do status quo assegurado pelo Estado sobre a

imigração. Verifica-se assim uma ausência tanto de processos concretos de securitização do

tema quanto de uma expressão da estrutura identitária nacional de forma prática na gestão da

imigração. A imigração não foi construída enquanto ameaça à identidade nacional, cujo

caráter essencialista apenas pode ser apreendido por interpretação que leve em conta o

significado da racionalização econômica dos fluxos humanos em uma sociedade já avessa aos

mesmos. Em outras palavras, o essencialismo ainda não havia sido vinculado sob aspecto

algum à gestão das imigrações.

Ainda próxima a um passado que a consolidou enquanto um centro mundial de

grandeza militar, cultural, política e econômica, a nação francesa reemergiu da turbulenta

década de 30 guiada pela necessidade de retorno à “normalidade imperial” (STATE, 2011, p.

296). Nesse contexto, durante as décadas de 40 e 50 as forças institucionais do Estado foram

direcionadas para o preenchimento da tarefa de recriação administrativa da Terceira

República apenas para que, entre 1956 e 1962, a descolonização trouxesse a independência de

___________ 74

A primeira tinha por objetivo a restrição à regularização dos não documentados e a segunda promovia a

realização de anistias que se direcionavam em sentido contrário. A estratégia de lógica give and take frente aos

grupos políticos de pressão apoiou-se na atuação posterior do Secretaire d'Etat chargé des travailleurs imigres,

também criado sob o pretexto de que uma nova política imigratória estava sendo formulada quando, de fato, o

modelo já consolidado era mantido.

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64

17 países e a queda simultânea de um ideário simbólico até então inquestionável. Se por um

lado a percepção atemporal da nação passou a conviver com a solução da cooperação pós-

colonial e da autonomia em meio à bipolarização das superpotências, por outro a legitimação

das mudanças ocorridas se deu em uma plataforma de autoafirmação. Buscava-se o destaque

da França enquanto entidade paralelamente maleável à ação do tempo e permanente em sua

função (contribuição à cultura e à civilização) e potencial (influência político-econômica) no

mundo. Na medida em que “ideias perpetuadas como a de que a glória e a grandeza da

França, acompanhadas pelo auto imposto dever de difundir a genialidade de sua cultura,

afetavam mentalidades e especialmente as „mentes oficias‟ pós-coloniais” (NAYLOR, 2000,

p. 49), mesmo o caráter racionalista da gestão imigratória no período apresentou uma relação

de poder assimétrica sobrevivente à renovação identitária realizada. Representada

consensualmente como objeto econômico, a imigração argelina nessa conjuntura demonstra

como o “mascaramento do caráter intrinsecamente político do fenômeno efetuado, enquanto

abundantemente carregado de implicações políticas, constitui uma das malícias que a lógica

propriamente simbólica, a lógica da ordem simbólica, exige” (SAYAD, 1998, p. 67). É nesse

sentido que as práticas liberais do Estado em relação aos fluxos de entrada e a sua

racionalização econômica escondiam, até o início da crise, a profunda oposição social à

estadia prolongada do imigrante. Portanto, a dimensão do essencialismo francês expressa pela

gestão imigratória nesse período é aquela ligada à incipiente percepção de uma capacidade

remanescente de dominação, ainda vinculada estreitamente às demandas da economia

nacional. A partir de 1974, a gestão imigratória traduziria essas percepções na adoção de

políticas propriamente securitárias contrapostas à articulação política da comunidade franco-

argelina. Pela primeira vez, o senso da imigração enquanto indesejável atingiria amplamente

os tomadores de decisão e seria efetivado de forma mais concreta em políticas de Estado –

ainda que exclusivamente nos setores econômico e de segurança pública.

4.3 A construção política da imigração (1974-1986)

O fim de uma sequência de décadas marcadas pela prosperidade econômica e o

rearranjo das capacidades do Estado de agir unilateralmente sobre a mesma devem ser

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65

destacados não apenas como processos retroativos, mas como catalisadores de novas

percepções políticas e sociais sobre a imigração. É nesse sentido que, no contexto da gestão

de Valéry Giscard d‟Estaing (1974-1981) e de parte do primeiro mandato de François

Mitterrand (1981-1988), constrói-se um consenso político inicial acerca do tratamento da

imigração, algo instrumentalizado pela securitização do tema especialmente no setor

econômico. Dois elementos centrais contribuíram a esse processo: a inflexão discursiva do

modelo francês de integração imigratória e a chamada “crise do republicanismo”75

.

Paralelalmente, as variáveis externas relacionadas à economia francesa e às novas dinâmicas

do sistema político tiveram papéis importantes no condicionamento dos padrões de gestão

securitária da imigração argelina.

A proibição da imigração laboral em 1974, além de resultado direto do choque

econômico causado pela crise do petróleo de 1973, foi imediatamente legitimada pelo

crescimento de ataques violentos racialmente motivados. Na medida em que a confluência da

crise petrolífera e do crescente desemprego lançava a economia francesa em um recesso de

grandes proporções (TOGMAN, 2011, p. 108), inaugurou-se a priorização tanto do

fechamento de fronteiras à imigração indocumentada quanto de um posicionamento que

permitisse a redução dos choques sociais em decorrência. Como interpreta Silverman (1992,

p. 70), a essa tarefa coube a reinvenção do assimilacionismo já consolidado desde o período

anterior76

. Sob os auspícios dos ministros Jacques Chirac (1974-1976) e Raymond Barre

(1976-1981), a gestão Giscard permeou a retórica republicana circunscrita em tal modelo com

construções discursivas direcionadas à definição de categorias como “problema”, “novo”,

“solução” e “política imigratória”. A nova concepção da memória francesa em imigração

envolveu, nesse sentido, a diferenciação entre os fluxos anteriores e os que estavam em

ascendência. Foi possibilitada, assim, a justificação da necessidade de restringir os últimos: “a

„novidade‟ da „nova política‟ então reside não tanto nas medidas em si, mas na reformulação

da história da imigração passada que ela implica. É a reconstrução retrospectiva da ideia de

assimilação que é a mais significante aqui” (SILVERMAN, 1992, p. 81). Nesse sentido, foi

realizada a apresentação da imigração corrente como “nova” ou de “povoamento” em

___________ 75

Como debate Reis (1997, p. 70), o republicanismo, ao ser socialmente percebido na França como uma

invenção genuinamente nacional, historicamente figurou enquanto preceito filosófico e moral de força constante.

A noção de que a nação é fundada pelo contrato social com o suporte da adesão voluntária e do respeito

humanitário, portanto, sempre se manteve influente na política nacional – em outras palavras, sempre foi “um

ponto a ser satisfeito” na legitimação de políticas. 76

Em sua definição clássica, tal modelo de integração envolve três pressupostos acerca do processo de

integração de não nacionais (VERTOVEC e WESSENDORF, 2010, p. 93): sua natureza individual (instituições

apenas arbitram seu funcionamento), sua priorização do vínculo criado pela cidadania (sobreposição sobre fontes

paralelas de pertencimento) e sua objetivação de uma igualdade idealmente “cega” às diferenças.

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66

contraste com a de “mão de obra” antes verificada, o que permitiu uma categorização crítica

de fluxos enquanto “temporários” ou “permanentes”, como demonstra Sayad (2000, p. 24).

Com a reconstrução dos fluxos enquanto maléficos, emergiu a legitimação da

necessidade de uma nova intervenção estatal. Essa foi materializada especialmente pela

criação do Secretaire d'Etat Chargé des Travailleurs Imigrés (1974) e pela tomada de várias

medidas que, além de posicionadas em dissintonia com a retórica oficial pluralista, revelavam

o que Howarth e Varouxakis (2014, p. 159) interpretam como a “fraqueza do neoliberalismo

econômico francês”. A despeito da inicial relativização do dirigismo gaullista em busca da

recuperação da competitividade global aliada a reformas sociais77

, a emergência de medidas

de austeridade revelou as fragmentações existentes em termos de política econômica no

gabinete governante78

(STATE, 2011, p. 314). Bloqueadas as possibilidades de consenso em

tomada de decisão econômica, e em vistas do contínuo crescimento do desemprego79

, as elites

das grand écoles80

atingiram nova convergência política acerca da imigração. Agora

desvinculada do programa de crescimento nacional, a discussão sobre o tema tornava-se então

desejável tanto para Estado quanto para os grupos de pressão envolvidos.

Em um movimento inédito, verificaram-se os primeiros esforços de racialização da

gestão imigratória no debate público durante o governo Giscard, em um estágio inicial de

padronização discursiva (SAYAD, 2000, p. 22). Ainda assim, essa convergência de forças

pôde ser concretizada na securitização apenas em um espectro econômico e de segurança

pública, posto que além de pouco amplo, o consenso político formado não era centralmente

vinculado ao tipo de discurso identitário exposto. Os anos 1980 e sua absorção inicial do

libertarianismo soixante-huitard81

ainda intensificaram o ativismo imigrante, dificultando a

___________ 77

Como destaca State (2011, p. 313), a amplitude das reformas envolveu a redução da idade eleitoral, a extensão

dos programas de segurança social e facilitação do acesso à educação básica. De particular significância,

entretanto, foi a legalização do aborto, que de imediato acirrou as oposições por parte da direita gaullista e

conservadora em geral. 78

Além do desmembramento partidário de Chirac, a vitória nas eleições legislativas de 1978 não impediu um

declínio em popularidade de Giscard frente ao gaullismo econômico assumido por Barre. É nesse contexto que

se torna clara a divergência entre a adoção do modelo econômico alemão pelo primeiro ministro e o fomento,

pelo presidente, de uma posição menos intervencionista envolvida no debate dos periódicos neoliberais

Contrepoint e Commentaire (CHABAL, 2015, p. 207). 79

Conforme expostas por Togman (2001, p. 108), as taxas de desemprego do fim da década de 70 ultrapassam

os 5% e, em relação ao início da década, registram um crescimento de 229,4%. 80

O termo refere-se às instituições de educação que historicamente acumulam a formação das elites políticas

nacionais, algo incorporado especialmente pela École Nationale d’Administration e seus énarques. Como

destacam Howarth e Varouxakis (2014, p. 30-31; 52-58), mesmo que tal configuração seja comumente criticada

por desconectar a população da alta política, desempenha um papel importante na estabilidade da Quinta

República ao gerar elites coesas e contribuir para as dinâmicas cíclicas de poder verificados na França

contemporânea. 81

A expressão tornou-se comum no vocabulário de correntes da direita crítica às formas radicalizadas de

liberalismo político oriundas dos levantes de 1968, pois defendiam um ritmo acelerado às mudanças vistas como

necessárias ao país. A formação desse movimento marcou a constância de tensões sociais ao longo da década de

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concretização de uma securitização da imigração no setor societal. Importante em tal contexto

é a ascensão de Mitterrand ao poder e a chamada “crise do republicanismo” ligada às ações de

governo desempenhadas.

A herança política de Charles de Gaulle foi um dos elementos fundamentais às

alterações na balança de poder nacional dos anos 1970 que permitiram o sucesso eleitoral

socialista em 1981 (HOWARTH e VAROUXAKIS, 2014, p. 18). Isso porque o peso do

paradigma de ação gaullista contribuiu para a reestruturação partidária da direita e da

esquerda82

na medida em que perdurou nos elementos dissidentes da coalizão de governo com

Giscard, e sob a liderança de Chirac representou a única força com potencial de oposição ao

Parti Socialiste. Esse, em vistas do fraco desempenho econômico de governo nos últimos

anos da década de 1970, procurou uma agenda moderada afastada do Parti Comuniste

Française e pragmática quanto à oportunidade gerada pela fragmentação de direita. Ao

marcarem o atendimento oficial da demanda de minorias pelo “direito à diferença” e a

perseguição de um programa muito mais doutrinário do que o prometido em campanha

(STATE, 2011, p. 315)83

, os três primeiros anos de Mitterrand acabaram encorajando a

ascensão posterior tanto do extremista Front National quanto do moderado Rassemblement

pour la République como geradores de um debate inédito.

Esse processo envolveu, por um lado, a retomada de princípios republicanos

tradicionais em resposta à prática estatal do que era taxado como “comunitarismo”84

e, por

70 e em vários momentos convergiu com a agência politica desenvolvida no seio da imigração (CHABAL, 2015,

p. 117). 82

De um lado, a não adesão de Giscard ao modelo de governança gaullista rapidamente entrou em conflito com

a posição pró-centralização do primeiro ministro Chirac, que em 1976 cria o Rassemblement pour la République

para reencarnar o programa da UNR. De outro, a derrota de Mitterrand no segundo turno das eleições de 1974

acelerou o declínio das tentativas de formação de uma coalizão em conjunto ao Parti Comuniste Français

(STATE, 2011, p. 314). Expressão disso foi o posicionamento do PS como único representante de esquerda

capaz de desafiar a gestão Giscard e, especialmente, a gradual ascensão do RPR como ator de confrontação

capaz de assumir posições elevadas no gabinete central. 83

Como aponta Togman (2001, p. 118-121), aumento do salário mínimo, tributação de grandes fortunas,

nacionalizações, abolição da pena de morte, legalização de associações civis para imigrantes e financiamento de

mídias a elas associadas estão dentre as medidas tomadas em um primeiro momento que, por terem sido

articuladas em uma posição mais aberta à comunidade de imigrantes e à defesa dos direitos humanos, soaram

como “música aos ouvidos da extrema-direita” (FAVELL, 2001, p. 57). A lógica paternalista de defesa do

multiculturalismo inserida em parte dessas práticas acabou por negligenciar as forças de oposição, como aquela

representada pela emergente comunidade intelectual crítica aos direitos humanos enquanto guia ao campo de

manobra estatal (CHABAL, 2015, p. 225-240). 84

Referente ao percebido crescimento de forças políticas categorizadas segundo laços paralelos ao da

nacionalidade francesa, o uso do termo no discurso público foi reforçado tanto pelo baixo desempenho

econômico dos primeiros anos de Mitterrand quanto pelas práticas de descentralização política já nascidas na

gestão Giscard. Sob a liderança do ministro do interior Geston Defferre (1982-1986), as regiões e départements

tornaram-se autoridades locais (como as comunas e municipalidades) com autonomia orçamentária para lidar

com os novos cargos administrativos afastados do poder executivo do prefeito (HOWARTH e VAROUXAKIS,

2014, p. 59-63; STATE, 2011, p. 316). Em pouco tempo, tais reformas figuravam no centro das críticas ao

“comunitarismo” incentivado pelo governo.

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outro, a interiorização de tal posição reacionária por parte até mesmo de ativistas imigrantes.

Como aponta Silverman (1992, p. 6), “em oposição ao anterior slogan antirracista „o direito à

diferença‟ („le droit à la difference‟), os maiores slogans da France Plus têm sido „o direito à

semelhança‟ („le droit à la ressemblance‟) e „o direito à indiferença‟ („le droit à la

indifférence‟)”85

. É nesse sentido que a crise republicana do início dos anos 1980 teve

expressões em uma ampla quantidade de atores divididos entre as políticas afirmativas de

Estado e a reação a elas. O período entre as reformas de Mitterrand e as eleições legislativas

de 1986 representou, assim, uma prova de resistência passada pela filosofia republicana

francesa. Sua dominância na política nacional foi testada e comprovada pelo fato de que

mesmo as elites responsáveis pela tentativa de mudança em políticas públicas para imigração

em pouco tempo cederam às pressões de oposição:

Entretanto, até 1983, quando ataques racistas estavam em crescimento e a Frente

Nacional havia quebrado a barreira dos 10% nas eleições municipais, o governo

respondeu da forma o mais pragmática possível pelo fortalecimento de seus

controles e reforçando sua campanha contra os “clandestins” (SILVERMAN, 1992,

p. 59).

Na medida em que registra-se ao fim desse processo de embate um ressurgimento do

tradicionalismo” (REIS, 1997, p. 92), o governo socialista foi submetido a uma inflexão de

posicionamento eleitoralmente representada pela primeira cohabitation (1986-1988)86

, que

tornou claras as contradições e dificuldades envolvidas em um tratamento aberto da imigração

na França. O dilema da gestão de uma identidade nacional posicionada entre a defesa dos

particularismos étnicos, culturais e religiosos (e seu aspecto humanitário, universalista e

libertário) e a manutenção da indivisibilidade coletiva (e seu aspecto republicano,

tradicionalista e igualitário) rearranja a “significância peculiar do passado” (HOWARTH e

VAROUXAKIS, 2014, p. 2) à nação. A renovação de seu essencialismo identitário manteve a

busca pela manutenção pós-colonial de relações de poder assimétricas e culturalmente

definidas, porém agora legitimada tanto pela corroboração das teses republicanas da unidade

nacional quanto pelo ponderamento dos princípios humanistas do universalismo. A

ambivalência desse processo, como debatido, teve dois efeitos direitos que deram à

conjuntura um papel transicional. Se, por um lado, consolidou-se um tipo de posicionamento

___________ 85

Outro exemplo a destacar nesse processo é ativismo da Associação de Cultura Berbere, que passou a envolver

a afirmação do “vínculo a princípios republicanos de laicité” (SILVERSTEIN, 2004, p. 180) 86

Definido pela disposição em governo de um presidente e um primeiro-ministro pertencentes a filiações

partidárias distintas, esse fenômeno é comum ao sistema semipresidencialista francês. Isso porque as eleições

legislativas possuem grande peso na constituição da coalizão governante, pois definem quê lideranças políticas

podem emergir ao cargo de primeiro-ministro (HOWARTH e VAROUXAKIS, 2014, p. 44). No caso de 1986,

Mitterrand foi obrigado a apontar Chirac para o cargo e a “encarar” as críticas recorrentes aos primeiros

momentos de seu mandato. A significância desse processo para o novo caráter em gestão imigratória, a ser

repetido nos anos 1990, será brevemente debatido na próxima seção.

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político sobre a imigração “explicitamente assentado em termos referentes às fundações

teóricas da unidade e coesão política francesa” (FAVELL, 2001, p. 40), por outro foram

bloqueadas as perspectivas herdadas dos 70 de uma securitização da imigração em âmbito

societal. Essa apenas se faria possível a partir de 1986 com o fim dos debates conflitantes e a

formação de um novo tipo de consenso sobre a imigração (SILVERMAN, 1992. p. 69).

A análise realizada destaca como as novas dificuldades cíclicas do welfare state

francês, cujos benefícios passaram a gerar constantes rupturas sociais, contribuíram para a

formação de um consenso inicial em política imigratória. Dando suporte justificativo às bases

econômicas do fechamento de fronteiras à imigração laboral, essa convergência resultou nos

primeiros esforços diretos para a securitização da imigração em geral. Pela primeira vez de

forma unívoca, o Estado, as elites de interesse econômico e grande parte dos partidos de

oposição entraram em convergência com a sociedade no apoio à existência de uma relação

causal entre a presença de imigrantes e os problemas crônicos que agora impactavam a

economia. As duas medidas que melhor expressam esse desenvolvimento são as leis Stoléru

(1977) e Bonnet (1979), responsáveis respectivamente pela redução dos direitos à

reunificação familiar e à residência, e pela extensão dos poderes e condições à deportação

(ADAMSON et al, 2004, p. 242). Justificadas pela ligação entre imigração, desemprego,

desordem e cortes nos gastos públicos, ambas as legislações não possuíam um conteúdo

identitário concreto e representam os limites econômicos sob os quais a securitização da

imigração ocorreu naquele momento. Isso se torna claro com a falha de dois processos de

cunho diferenciado, mas que objetivavam uma securitização da imigração no setor societal.

De um lado está o chamado aide au retour, um conjunto de financiamentos à

repatriação voluntária posto em movimento pelo ministro Raymond Barre. De outro, a

disseminação da tese do seuil de tolerance por André Postel-Vinay e Lionel Stoléru durante

seus mandatos no Secretaire d'Etat Chargé des Travailleurs Imigrés e segundo a qual a

França estaria ultrapassando o número máximo de não nacionais sustentáveis pela fábrica

social da nação. Ambos os eventos, o primeiro prático e o segundo discursivo, foram

abandonados em pouco tempo pelo fato de não terem alcançado as comunidades de

imigrantes magrebinos (TOGMAN, 2001, p. 112). O fato de que sua transferência aos

âmbitos do Parlamento e do Conselho de Estado era inevitável em vistas da relevância

assumida pelo tema no debate econômico nacional também agiu no sentido de um bloqueio a

práticas justificadas pela tese identitária do “balanço étnico-cultural”. O consenso político

atuou sobre a atitude geral defensiva em relação à imigração especialmente em bases

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econômicas, mas não possibilitou, por seu escopo limitado em vistas da “crise republicana”, a

instrumentalização do processo de securitização no âmbito societal.

A percepção da imigração enquanto ameaça à identidade nacional ficou, portanto,

limitada ao uso discursivo ocasional e não figurou em conteúdo nas atitudes de Estado. Como

debatido, os primeiros anos do mandato de Mitterrand e seu esforço em desenvolver políticas

afirmativas à comunidade imigrante geraram reações que expressaram até que ponto a

securitização do tema poderia continuar relegada à área da economia e segurança pública. Em

suma, desenvolveram as condições de debate nacional que no período seguinte resultariam em

um tratamento diretamente identitário da imigração. Os padrões franceses de securitização da

imigração de 1974 a 1986 podem ser resumidos, em sua constituição limitada, em três

instâncias. Em primeiro lugar, mantiveram os objetos de atenção na imigração e comunidade

estabelecida como herança dos ensaios restritivos do período anterior. Em segundo,

expandiram de forma quantitativa os atores envolvidos a partir do consenso político formado

acerca da problemática entre imigração e recessão econômica. Por último, representaram um

avanço qualitativo e quantitativo dos meios utilizados com a concretização de legislações

incisivas sobre o tema. Essa configuração representou um estágio intermediário da prática

identitária essencialista, no qual mesmo a existência de certas retóricas etnocêntricas não pôde

ser instrumentalizada politicamente – não pôde, nesse sentido, ser concretizada em um

processo de securitização no setor societal.

A expressão da identidade nacional francesa pela gestão imigratória desse período,

como no caso das contínuas demandas por compensação financeira pela comunidade pied-

noir interpretadas por Chabal (2015, p. 111), diz respeito aos novos níveis de materialização

do mesmo tipo de dominação e engrandecimento verificados na conjuntura anterior de forma

exclusivamente velada. Em suma, era mantido o mesmo “sistema baseado na firme

superioridade não negociável” (VERTOVEC e WESSENDORF, 2010, p. 95), mas agora seu

funcionamento arcava com os custos inéditos do “enfretamento do tema” por sua politização.

Ilustrativo nesse sentido é o grau de criticismo público recebido por Mitterrand quando de sua

decisão saudosista de participar das comemorações argelinas do aniversário do início da

guerra de libertação nacional (NAYLOR, 2000, p. 153). A segunda metade dos anos 80 e a

virada à década seguinte concretizariam um novo potencial de expressão identitária pela

securitização da imigração. Centrada agora no setor societal, essa foi concebida de forma

condicionada a processos como o neorrepublicanismo e a escalada do tema migratório no

âmbito integracionista europeu.

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71

4.4 A materialização do consenso (1986-atualidade)

A partir do fim da “crise republicana” debatida anteriormente, o espectro de oposição

e confronto ideológico entre os atores nacionais sobre o tratamento da imigração tornou-se

mais estreito. Ao contrário do registrado no período anterior, prática e discurso em imigração

estavam agora situados em um tipo de consenso político que posicionava a identidade no

centro de seu tratamento. Tal processo limitou o campo de manobra em migração tanto às

novas instituições criadas para tal quanto às teses de um republicanismo renovado. Dessa

maneira, foi possível a expansão de procedimentos e normas subjetivas percebidas como

mínimas para a concepção de políticas públicas e de fronteiras sobre o deslocamento humano.

Dois elementos principais possibilitaram essa configuração mista verificada a partir de 1986:

a politização do Islã e a ascensão do neorrepublicanismo. As variáveis paralelas relacionadas

à ascensão da Frente Nacional e à interiorização do tema migratório pelo quadro institucional

da União Europeia também contribuíram para os padrões securitários de tratamento

imigratório na França desse período.

Entre as eleições legislativas de 1986 e as presidenciais de 1995, um processo de

fragmentação dos pólos políticos clássicos ao sistema francês se tornou claro. O resultado

direto foi a retomada das forças neoliberais sobreviventes, agora permeadas pelo gaullismo do

Rassemblement pour la République e materializadas pelos sucessos eleitorais subsequentes.

Até o decorrer da gestão presidencial de Nicolas Sarkozy (2007-2012) sob a coalizão da

Union pour un Mouvement Populaire criada em 2002, a esquerda francesa teria pouco

sucesso em ascender amplamente enquanto força eleitoral87

. As duas experiências econômicas

sucessivas pós-crise, representadas pela orientação neoliberal de Giscard nos anos 1970 e

___________ 87

As eleições legislativas de 1993, que se mostraram desastrosas para os socialistas e inauguraram mais um

período de coabitação com Édouard Balladur (UDF) no posto de primeiro ministro, abriram os precedentes

necessários à ascensão do RPR de Chirac enquanto força com potencial. Desde as primeiras dificuldades

econômicas sofridas por Mitterrand, o partido havia sido bem sucedido na articulação de pressões à coalizão

central e na configuração da agenda política direitista (STATE, 2011, p. 318). A realização de reformas

ministeriais imediatas e a redução dos gastos públicos por decretos tangenciais ao debate parlamentar aliados ao

desenvolvimento de um novo padrão deteriorante de desemprego (HOWARTH e VAROUXAKIS, 2014, p. 29)

falharam em apagar os problemas econômicos correntes e reduziram a popularidade da gestão. A flutuação

política do período é bem expressa pela emergência de um terceiro período de coabitação com Lionel Jospin

(PS), entre 1997 e 2002. O encerramento do primeiro mandato marcaria a reavaliação de alianças políticas por

direita e esquerda frente à nova realidade eleitoral e aos problemas econômicos não resolvidos durante a década

de 90.

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dirigista de Mitterrand nos anos 1980, falharam em sanar os problemas cíclicos88

. Esse

resultado inevitavelmente erodiu a percepção social sobre a bivalência das “soluções

convencionais” (HOWARTH e VAROUXAKIS, 2014, p. 26-27). Entretanto, não foi

totalizante ou exclusivamente econômico o desenvolvimento histórico que, naquela

conjuntura, anunciou o declínio da esquerda e a escalada eleitoral da direita centrista. A

ascensão da FN desempenhou papel fundamental no rearranjo da política francesa sobre a

imigração.

O radicalismo do partido já consolidado desde sua criação (1972) sobre questões como

a independência argelina e a integração europeia não teve apelo popular forte o suficiente

tornar-se autêntico no campo da imigração frente o posicionamento restritivo da gestão

Giscard nos anos 1970 (TOGMAN, 2011, p. 124). Entretanto, as falhas da prática

multiculturalista de Mitterrand, a continuidade de problemas econômicos recorrentes e a

adoção do sistema proporcional de representação nas eleições legislativas de 1986

(HOWARTH e VAROXAKIS, 2014, p. 72) abriram a janela de oportunidade que faltava à

extrema-direita. Agora, o partido estava capacitado a configurar, com frequência, não apenas

a agenda política nacional em questões migratórias, mas a clareza do posicionamento dos

centrismos de direita e de esquerda:

Atingido pelo clarão do racismo nacional de Le Pen, o antirracismo (e a esquerda

organizada em geral) não apenas faltou com a visão e a estratégia necessárias para

lidar com a crise social mais ampla, mas frequentemente perpetuou um discurso que

contribuía para a confusão entre racismo e antirracismo (SILVERMAN, 1992, p.

69).

Com a consolidação do decréscimo em popularidade pela esquerda ao longo dos anos

1990, essa capacidade da FN de influir no campo das ideias sobre imigração cada vez mais

passou de uma estratégia eleitoral de conjuntura a um modelo discursivo de pressão sobre as

gestões subsequentes. Essa mudança envolveu tanto a atualização geracional das lideranças

partidárias, como demonstra a normalização da retórica xenofóbica pela figura de Marine Le

Pen89

, quanto a manutenção de um populismo dono da “coragem de confrontar tabus, quebrar

o silêncio, intervir e expor a verdade sobre problemas societais” (VERTOVEC e

WESSENDORF, 2010, p. 13). Com essa estratégia de “respeito às regras do jogo” no campo

___________ 88

Dentre as heranças econômicas dos anos 1970, destaca-se a persistência do desemprego. Como aponta

Togman (2001, p. 122), as taxas de crescimento comparativo do desemprego de 1989 em relação a 1980

atingiram os 50%, dispensando aos anos 1990 taxas absolutas constantemente tocantes aos 10%. 89

Em suma, a nova líder eleita presidente do partido em 2011 procurou afastar-se do racismo, do revisionismo

histórico e mesmo da homofobia que comumente eram orientações de seu pai, Jean-Marie Le Pen. O tratamento

de questões políticas se dá de maneira mais incisiva e menos doutrinária, de forma a conciliar a popularidade

crescente com a autenticidade do programa do partido em comparação ao resto do cenário direitista francês.

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do discurso e o resultante sucesso eleitoral mais recente90

, a FN pôde alçar-se ao nível de

debate dos “partidos de governo” da UMP e do PS durante as gestões de Nicolas Sarkozy e

François Hollande91

. Desde as eleições de 2007, isso significou a adequação da alternância de

poder característica da Quinta República à chamada “lepénisation” do pensamento político

(TOGMAN, 2001, p. 132). De maneira geral, ascendia o neorrepublicanismo pela passagem

de “nós somos contra muçulmanos” a “apenas queremos defender a laicidade”, mantendo no

caso francês o fato de que “promulgações de noções universalistas de cidadania são sempre já

culturalmente particulares” (SILVERSTEIN, 2004, p. 32).

Enquanto a fundamental submissão do pertencimento nacional à cidadania republicana

baseada na voluntariedade de adesão continuou a figurar na ordem da lei, sua possibilidade de

aplicação foi permeada pela permanente presença discursiva do ideal tradicionalista de

conformidade cultural92

. Como aponta Silverman (1992, p. 140), para que a imigração

continuasse a ser legitimamente vinculada a problemas sociais e econômicos, a construção de

sua “novidade” precisava ser refeita, mas agora em caráter político-identitário. Em termos

gerais, isso assumiu paralelamente a expressão normativa da ideal divisão entre o

individual/religioso/privado e o coletivo/secularista/público, e o rechaço a quaisquer grupos

sociais não subscritos a traços genuínos da cultura nacional. Permitia-se, assim, a legitimação

___________ 90

Como destaca análise de Chabal (2015, p. 47-51), o partido tem representado desde sua ascensão uma força

tanto de fragmentação quanto de bipolarização do sistema político: o sucesso nas urnas possibilita tanto a

posição de “kingmaker” (determina o vencedor) nas eleições presidenciais quanto o manejo pragmático de um

programa partidário autêntico frente à formação de um novo tipo de lealdade eleitoral (não mais ancorada no

tradicional esquema direita/esquerda). O autor demonstra também como os números corroboram tal processo:

em eleições à Assembleia Nacional, o número de votos subiu de 2,703,442 em 1986 a 3,528,663 em 2012; em

eleições presidências, cresceu de 4,376,742 em 1988 a 6,421,426 em 2012. 91

A criação da Union pour um Mouvement Populaire quando da campanha de Chirac para 2002, reunindo as

maiores as forças de direita (RPR, UDF e DL) em um só veículo político, possibilitou forte coalizão de direita no

poder. Como aponta State (2011, p. 331-333), o presidente pôde disfrutar de bom campo de manobra em

conjunto com os primeiros-ministros Jean-Pierre Raffarin e Dominique de Villepin. Assim foi possível a

reeleição de 2007 e a vitória da direita nas eleições legislativas, ao custo da acentuação da polarização com os

socialistas. Tal processo, inédito desde o declínio de Mitterrand, foi intensificado pela persistência do

desemprego (HOWARTH e VAROUXAKIS, 2014, p. 28-29). Em meio à recessão econômica e aos esforços

falhos em revertê-la, fez-se possível a eleição de François Hollande (PS) em 2012, que busca a manutenção da

austeridade com maior “fidelidade ideológica” à esquerda a partir de concessões, por exemplo, à comunidade

LGBT. Ainda assim, “o partido socialista tem visto seu suporte da classe trabalhadora colapsar e, mesmo na

época da vitória de Hollande em 2012, ele estava longe do apoio de dois terços da classe trabalhadora do qual

Mitterrand disfrutava nos anos 1980” (CHABAL, 2015, p. 34). Como analisado, a constância pode ser verificada

também em gestão imigratória. A significância da bipolaridade política na França dos dias de hoje está ainda por

ser revelada pelas perspectivas de sucesso da extrema-direita nas próximas eleições e pela crescente “confusão”

centrista já verificada. 92

Esse ideal mantém a interdependência entre a coesão do corpo social e a seguridade de suas unidades quanto

aos direitos do homem, porém a exime de qualquer descontinuidade histórica que possa “manchar” a

reconstrução republicana (FAVELL, 2001, p. 49). É o exercício, ainda que escondido da história e da política

nacional, do que Howarth e Varouxakis (2014, p. 104-105) chamam de um “nationalisme fermé”

excepcionalista. Essa configuração é capaz, por exemplo, de legitimar a acusação de que os “franceses são as

vítimas do uso da burca e alvos de uma prática social incivilizada”.

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da convivência entre o caráter excludente do nacionalismo francês e a “cegueira” do Estado

pós-colonial sobre as relações de poder assimétricas reproduzidas socialmente: “aqui a lógica

dominante é a de continuidade, com as grandes ideias universais da França colonial do século

XIX, trazidas de volta dentro de suas fronteiras europeias” (FAVELL, 2001, p. 65). Vertovec

e Wessendorf (2010, p. 105) demonstram como tal configuração, ao ser definitivamente

encaminhada ao discurso e gestão pública, comumente gerou debates que procuravam

bloquear o reconhecimento de minorias sob a máxima de que “isso sim geraria a

discriminação e a estratificação racial”93

.

Foi dessa forma que a ampla construção da imigração como ameaça à segurança

societal francesa foi possibilitada. Em pouco tempo, a comunidade muçulmana na França se

tornou o objeto primordial desse processo em vistas tanto do transbordamento da guerra civil

argelina quanto da visibilidade política, cultural e religiosa atingida pelo Islã após décadas de

ativismo transnacional (NAYLOR, 2000, p. 213; SILVERSTEIN, 2004, p. 130). Situado entre

políticas radicais de assimilação e anti-discriminação, o paradigma neorrepublicano de

integração protagonizou então a evolução da linha restritiva de políticas imigratórias

anteriores a um patamar de conteúdo explicitamente identitário. Como aponta Togman (2001,

p. 117), várias medidas se destacam no tratamento do “problema muçulmano” sob essa

perspectiva e sinalizam bem o padrão de securitização desenvolvido sobre a comunidade

franco-argelina de imigrantes.

Em primeiro lugar, a criação do Conselho de Integração (1990-1993) teve por objetivo

a realização de pesquisas capazes de construir conhecimento acerca do processo concreto de

integração na França, finalmente elaborando uma série de prescrições normativas para

reforma política. Os seis relatórios gerados “podem ser lidos como o ponto focal de um

consenso extraordinário nas relações públicas francesas, no vocabulário, no enquadramento

teórico e temático que provinham para discussões e debates políticos mais detalhados”

(FAVELL, 2001, p. 43). Foi a expressão clara da ampliação de atores, meios e objetos

envolvidos na construção discursiva da imigração enquanto ameaça à identidade nacional,

abrindo o precedente à tradução desse processo em legislações restritivas para políticas

públicas e de fronteira. Nesse espectro destacam-se as Leis Pasqua (1986-1993) e Debré

___________ 93

O empoderamento de quaisquer grupos sociais passou a ser visto não apenas como desnecessário, mas

também indesejável. Há, nesse sentido, a negligência de que “uma defesa republicana de minorias não pode,

então, ser limitada exclusivamente ao princípio de não discriminação. Ela também requer um reconhecimento

positivo da diferença étnico-cultural, com uma visão pluralista sobre as culturas nacionais que reconheça a

diversidade da comunidade cívica” (CHABAL, 2015, p. 258).

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(1997), que agiram em complementariedade no objetivo de reforçar o policiamento de

fronteira e expandir as condições de deportação (TOGMAN, 2011, p. 126; HOWARTH e

VAROUXAKIS, 2014, p. 121). Em segundo lugar, a criação da Comissão Stasi (2003-2004)

e do Comitê Interministerial sobre o Controle da Imigração (2005) sintetiza o enquadramento

do Islã enquanto incompatível à vida social francesa com a orientação prática de restrição. A

comissão teve o objetivo de “examinar a implementação do princípio de laicidade na

República”, publicando o relatório que levou à proibição de símbolos religiosos em escolas

públicas (VERTOVEC e WESSENDORF, 2010, p. 102). Já o comitê consistiu de um arranjo

ad hoc afirmativo da “tolerância zero” sobre a imigração não documentada, materializando

essa posição em relatórios anuais comumente de cunho tradicionalista (MAHLKE, 2005, p.

106). A partir desses desenvolvimentos, inicialmente preocupados especialmente com a

integridade dos princípios laicos da República, foi inevitável a institucionalização de um tipo

de discurso culturalista. Como apontam Vertovec e Wessendorf (2010, p. 102), tanto o uso da

burca em escolas públicas94

quanto a recente amplitude de adesão dos restaurantes nacionais à

alimentação halal95

foram ilustrados, por mídia, sociedade e Estado, enquanto perigos

vinculados ao terrorismo internacional (como recentemente no âmbito dos ataques ao Charlie

Hedbo e à Paris)96

e à fragmentação cultural da sociedade francesa:

Pode parecer extraordinário que os legisladores tenham de ir a tais medidas para

impor uma justificação moral sobre uma questão técnico-legal normalmente deixada

a barganhas pragmáticas entre nações. Mas deve ser reconhecido que o esforço é

tomado pela percebida ameaça do fundamentalismo islâmico, que para sempre lateja

na mente francesa, na medida em que se preocupa com os problemas correntes na

___________ 94

Conforme debate de Vertovec e Wessendorf (2010, p. 101), a proibição do uso da burca em espaços públicos

em 2010 foi o ponto culminante de uma série de episódios e debates nacionais catalisadores do processo. Nesse

sentido, o affaire du foulard surge a partir de três eventos principais: expulsão de três alunas muçulmanas de

escola secundária em Creil por usarem a burca (1989), regulação do Ministro da Educação tratando da

“conspicuidade” da burca (1994) e debate intenso com instauração da Comissão Stasi que proíbe em 2004 o uso

em escolas públicas (2003-2004). Um novo padrão qualitativo de governança imigratória emergiu nesse

contexto, mas manteve uma série de imaginários sociais construídos durante a colonização acerca do Islã

(SILVERSTEIN, 2004, p. 123). 95

“Halal”, segundo a lei islâmica, diz respeito a qualquer objeto ou ação com os quais é permitido se envolver.

Na França, a polêmica centralizou-se sobre a amplitude da carne halal no país, definida primariamente como

excludente do porco e relacionada a uma forma específica de abatimento sagrado de animais para consumo. 96

Os ataques ao jornal francês Charlie Hebdo ocorreram em 7 de janeiro de 2015 e envolveram o assassinato de

12 pessoas pela publicação, já tradicional ao periódico, de charges satíricas sobre o profeta Maomé. Nas semanas

que se seguiram, uma campanha mundial foi lançada sob o slogan “Je suis Charlie” (“eu sou Charlie”) e uma

série de protestos intensos em comoção pública se espalharam pela França. Em defesa da liberdade de expressão

e da democracia, uma marcha organizada em 11 de janeiro mobilizou 3,7 milhões de pessoas em todo o país e

autoridades como Angela Merkel, David Cameron e Matteo Renzi. Em 13 de novembro, uma série de ataques

foi orquestrada ao redor de Paris e resultou em ao menos 120 mortos. Violentos enquanto foram tais atentados, o

grau inédito de midiatização do tema e de defesa de instituições fundadas na tradição política nacional resultou

em mais uma instância expressiva da convergência entre Estado e sociedade quanto ao rechaço do elemento

muçulmano da nacionalidade francesa pós-colonial. Em suma, é a mesma exclusão que catalisa choques étnico-

culturais e reproduz o favorecimento social de uma política externa agressiva irresponsável com as relações

interculturais irremediáveis à sociedade francesa.

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Argélia. A partir disso, as políticas de lidar com o Islã na França estão para sempre

transformadas em uma luta simbólica entre a virtude política universal do sistema

público francês, e suas distinções entre público e privado fortemente legisladas em

oposição à ameaça do “intégrisme” islâmico (FAVELL, 2001, p. 84).

Nesse sentido, o posicionamento do Islã no centro de várias políticas de Estado

apoiadas por uma diversidade de atores despertou os precedentes necessários à emergência da

questão da identidade nacional ao discurso e prática em imigração. Junto às justificativas

econômicas, a integridade étnico-cultural da nação, há tempos motivo de preocupação social,

encontrava agora ressonância nas medidas oficiais para o tema.

Para além da forte politização do Islã verificada até a atualidade, os novos níveis

atingidos pela integração europeia nesse período foram fundamentais para o padrão assumido

de gestão imigratória. Enquanto a tradição gaullista manteve a preferência geral na França por

uma configuração intergovernamental às novas aproximações europeias (HOWARTH e

VAROUXAKIS, 2014, p. 194), a inserção da imigração nesse processo em muito convergiu

com a situação da política nacional sobre o tema. De forma geral, a organização de uma

política migratória unificada aos Estados-membro foi iniciada por uma adaptação tecnocrática

de projetos econômicos como o do mercado comum à dimensão da mobilidade humana

interna e, posteriormente, à da segurança comum. Representando a vinculação desse processo

ao objetivo central de combate à imigração não documentada, a incorporação de uma série de

fóruns intergovernamentais97

ao quadro institucional e jurídico da União Europeia pelos

tratados de Maastricht (1992) e Amsterdam (1997) oficialmente centralizou a migração

enquanto objeto de regulação comunitária (HUYSMANS, 2000, p. 755). Um dos resultados

em securitização expedidos por esse processo foi a criação da Agência Europeia de Gestão da

Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas dos Estados-Membros da União Europeia

(Frontex) em 2004, e que atualmente mantém-se o principal instrumento comunitário de

combate à imigração não documentada e de vigilância da mobilidade de grupos percebidos

como de risco segundo a autonomia prevista aos envolvidos no Acordo de Schengen (BIGO,

2008, p. 47). No caso francês, não espanta que esse grau de discricionariedade para a

definição de ameaças à “segurança nacional” ou à “ordem pública” permita a vinculação dos

___________ 97

Dois desses fóruns destacam-se como fundamentais ao nível de articulação europeia atual para o tratamento

comum da imigração: Grupo Trevi e Grupo Schengen. O primeiro, criado em 1975, teve o objetivo principal de

coordenar políticas governamentais para o setor do antiterrorismo, com o tempo concretizando iniciativas no

campo do policiamento de fronteiras e precedendo boa parte da estrutura tomada pelo Terceiro Pilar da UE

(atualmente denominado Área de Liberdade, Segurança e Justiça). O segundo, cujo tratado foi assinado em 1985

e entrou em vigor em 1993, busca primeiramente a harmonização das políticas de entrada e permanência entre

Estados-membro (pelo visto Schengen). Em um segundo momento, paralelamente à sua internalização pela UE,

instaura-se a cooperação administrativa para controle de fronteiras por meio de uma série de práticas que

“submetem a circulação transmediterrânea a uma série de restrições” (MAHLKE, 2005, p. 115).

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debates internos em identidade às atitudes restritivas no âmbito externo. Nesse sentido, a já

consolidada securitização da imigração no setor societal da França legitima especialmente à

opinião pública a indiferença do Estado em face da crise humanitária atual. É a emergência de

um mecanismo de complementariedade entre abertura interna e soerguimento externo de

fronteiras.

De importância paralela nesse contexto foram os ataques de 11 de setembro. Como

aponta Leite (2010, p. 62), a nova conjuntura introduziu um tipo de tratamento com enfoque

emergencial de curto prazo, num “conjunto de normativas comunitárias que disciplinam

alguns aspectos relacionados à questão da imigração” e procuram desenvolver o que Van

Munster (2005, p. 8) chama de “gestão de riscos”. O procedimento consolidado, apesar dos

constantes compromissos humanitários, primou pelo enfrentamento de questões pontuais por

meio da cessão de um alto nível de discricionariedade aos Estados e da perspectiva de

previsibilidade de ataques terroristas pela demarcação de grupos de risco. Karyotis (2007, p.

7) destaca a Reunião Extraordinária do Conselho de Justiça e Política Interna em 20 de

setembro de 2001 como pontual ao novo aparato de tratamento da imigração em nível

regional: sempre com um “olhar à frente” acerca das ameaças. Nesses termos, o tratamento

comunitário europeu da imigração acabou por contribuir aos reflexos naturais do declinante

welfare state, ao imaginário de nações idealmente homogêneas e à relutância sócio-política,

especialmente no caso francês, em aceitar as consequências da globalização (CHABAL, 2015,

p. 39). Dentre os casos mais ilustrativos desse apoio comunitário à lógica societal da

securitização da imigração em países como a França está a Diretiva do Retorno de 2008.

Aprovada em 2008 pelo Parlamento Europeu com 396 votos a favor, 197 contra e 106

abstenções, foi parte de um esforço coletivo para a diminuição da regularização de não

nacionais e para a instituição de medidas mais severas em termos de detenção e deportação

de irregulares. Em suma, dá-se plena liberdade ao Estado para a interpretação de quais grupos

estabelecidos e quais perfis de fluxos futuros devem ser adequados às novas normas. Isso, na

França, recentemente tomou a perspectiva de uma diminuição até mesmo da população

imigrante já estabelecida e que, pela conjunção das legislações nacional e comunitária, tem

sido mal sucedida na perseguição de um status regularizado.

O espaço seletivo reservado à migração na agenda da UE, portanto, reproduziu

elementos do processo de securitização do tema, algo central para a gestão desenvolvida pela

França nesse período. Essa esteve ancorada em um paradigma dialético centrado na

coabitação entre o controle de fronteiras e a integração (ao menos retórica) da comunidade

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imigrante estabelecida. Conforme debatido, o novo contexto expandiu atores, meios e objetos

de atenção para o tratamento da imigração. A construção primeiramente discursiva e em

seguida prática da imigração como ameaça à identidade nacional é agora consolidada por

atores do poder legislativo, da opinião pública, da mídia e dos mais diferentes espectros do

sistema político, num processo característico à securitização em setor societal (BUZAN,

WEAVER e DE WILDE, 1998, p. 124). Os meios utilizados foram adequados à nova

importância do tema no contexto da integração europeia e envolveram a interiorização, pelo

âmbito prático de legislações, os novos padrões discursivos de justificação inerentes a um

discurso etnocêntrico. Os objetos de vinculação a fontes de ameaça à identidade, à economia e

à ordem pública envolviam, de forma inédita em sua materialização, a comunidade

estabelecida (especialmente sua capacidade de integração) e a imigração não documentada.

Em vistas dessa abertura do tema ao debate nacional, e mesmo com a persistência de

parte das lutas ideológicas entre o individualismo e o igualitarianismo dos anos 1980, a

década de 90 marcou percepções de ameaça à coesão cultural da nação e, portanto, à parcela

excludente da virtude universalista francesa. Os anos 2000 e o período mais recente provaram

a materialização dos discursos anteriormente consolidados e a capacidade dos mesmos em

manter a prática de uma posição defensiva mesmo em tempos de crise humanitária no Mar

Mediterrâneo. Por mais paradoxal que pareça, essa configuração de ideias foi reproduzida

pelos órgãos e legislações neorrepublicanos então inaugurados e que, entre a ação direta ou

velada, mantiveram-se os veículos legitimadores das posições securitárias (FAVELL, 2001, p.

69). Há, nesse período, uma conjunção inédita de ideias e ações que, em associação às

variáveis analisadas, possibilitam a expressão concreta de uma identidade nacional

essencialista a partir da securitização da imigração em termos societais. Como que numa

réplica contemporânea dos árabes “cidadãos de segunda classe” durante o período colonial, a

prática fez prevalecer o que o discurso universalista esconde: o etnocentrismo.

Por que, como debatido, o tradicionalismo vinculado ao republicanismo clássico

submeteu os princípios universalistas? Por que o reconhecimento positivo da diferença,

inscrito em tais princípios, não pôde ser viabilizado ao framework republicano? Como

debatido por Chabal (2005, p. 129-175), há uma estrutura histórica em jogo, constituída tanto

de glórias quanto de derrotas morais do passado. Paralelamente, ambas as categorias de

memória são reproduzidas por forças sociais e políticas cuja descolonização mostra-se

incompleta. A reinvenção da nação francesa mantém a passos firmes o caráter fluído de

qualquer construção identitária, mas não sem refletir elementos sobre os quais foi fundada.

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Dentre esses, a análise realizada sobre a lógica à qual esteve submetida a relação com a

comunidade franco-argelina destaca o senso de um „deslocamento impróprio‟ causado pelo

fim da ordem colonial (especialmente em sua significação para o caso da Argélia). Longe de

alcançar Estado e sociedade de forma totalizante, é no campo simbólico que tal fenômeno é

verificado: há a tendência de constate busca por correções históricas aplicadas às

descontinuidades que se sobrepõem na corroboração da ideia de que “a França não é mais a

mesma”. A imigração pós-colonial, ao lado de processos como a globalização e a

“americanização do mundo”, representa um desses obstáculos à perseguição de um ideário

nacional de traços anacrônicos. A manutenção de um posicionamento securitário centrado em

identidade, frente aos fluxos de recebimento e à estabelecida comunidade argelina, expressa a

parcela da transformação contemporânea da França ainda apegada a uma realidade de poder

não mais percebida. É, portanto, um estágio remanescente da descolonização da França:

Nesse sentido, é necessário reexaminar genealogicamente o imaginário nacional

francês do universalismo republicano enquanto um produto histórico do

colonialismo, para mostrar como suas definições de „nação‟, „nacionalidade‟, e

„cidadania‟ são em si historicamente ligadas a uma série de exclusões correntes de

povos e conteúdos culturais específicos (SILVERSTEIN, 2004, p. 33).

A intensificação qualitativa da securitização da imigração nesse período confirma o

mesmo caminho identitário perseguido pela França desde o fim do passado imperial, porém

de forma explícita e em coexistência com as dinâmicas regionalistas de securitização. O

consenso político anterior é expandido a um tratamento da imigração de bases simbólicas e

instrumentais, sendo mantido mesmo em meio às tentativas retóricas por Hollande de “virar a

página” com a África e com as memórias dela emanadas98

. O essencialismo nacional

sobrevive na gestão pós-colonial da imigração por meio da tradução, em prática política e

discursiva, de um senso de superioridade legitimado por determinada construção da história.

Identitário como o é o conteúdo político envolvido na imigração, sua vinculação com a

malaise social é, portanto, até os dias de hoje confrontada tanto por atitudes de autoafirmação

nacional instrumentalizadas junto ao bloqueio europeu de fronteiras quanto pela “intuição

otimista de que a França é capaz do „grande começo‟ que a levaria à regeneração” (CHABAL,

2015, p. 264).

___________ 98

Um exemplo de tal estratégia discursiva perseguida pelo presidente diz respeito a seu reconhecimento, inédito

na história pós-colonial francesa, do massacre de estimados 250 argelinos em Paris ocorrido durante protestos

em 17 de outubro de 1961. Nesse contexto, Hollande buscou desde sua eleição um afastamento retórico em

relação a Sarkozy (conhecido por proposições como a do ensino dos benefícios do colonialismo em escolas

públicas) – ainda assim, a opinião pública e as práticas institucionais continuam a favorecer uma posição severa

sobre o tema imigratório.

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80

4.5 Conclusão do capítulo

Por meio de uma revisão de três períodos históricos demarcados a partir da variação da

securitização da migração no setor societal, este capítulo procurou demonstrar como a relação

entre o Estado e a imigração, mesmo em suas descontinuidades, funciona como ferramenta de

expressão de uma lógica identitária essencialista na França. Cada seção analisou a evolução

histórica do processo de securitização da imigração no âmbito societal à luz de variáveis

conjunturais influentes. Por fim, os padrões de variação em securitização foram relacionados

a uma estrutura de identidade nacional remodelada pelo contexto considerado, porém

permanente e expressa em todos os períodos. Nesse sentido, o primeiro período (1962-1974)

registrou um padrão nulo de securitização do tema, que ainda assim teve um tipo de expressão

reflexiva da tendência identitária de dominação pós-colonial marcada tratamento racionalista

dos fluxos e nos sentimentos sociais xenófobos que escondia. No segundo período (1974-

1986) verificou-se uma securitização da imigração no setor econômico e de segurança pública

situada agora em consenso político de pouca capacidade instrumental frente à conjuntura

mista da “crise republicana”, porém que confirmou agora de forma discursiva a mesma

expressão identitária do período anterior. Por fim, último período (desde 1986) registrou uma

securitização da imigração centralmente posicionada no setor societal a partir de um consenso

político amplo e com potencial de materialização tanto em discurso quanto em prática. O

essencialismo identitário francês, calcado em construções nostálgicas sobre o passado e em

um decorrente sentimento de superioridade, mantém-se assim presente com maior intensidade

na forma de securitização praticada em tempos recentes: a da exclusão da imigração fundada

explicitamente em justificativas identitárias.

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81

5 CONCLUSÃO GERAL

A história contemporânea da relação entre Argélia e França, fundamentalmente

permeada pelo legado subjetivo do passado, envolveu a manutenção reinventada de muitas

das significâncias sociais, políticas e culturais desenvolvidas sobre a plataforma colonial.

Incisiva e prolongada como o foi, a dominação revestiu o imaginário social de ambos os lados

com papéis que não simplesmente deixaram de ser desempenhados a partir de 1962. Para

além das assimetrias de poder, essas funções representam os dilemas reais que os novos

tempos impõem abruptamente a identidades construídas em outras circunstâncias históricas.

De um lado, a ex-colônia luta pela consolidação de uma “versão de si” de interesse das elites

e legítima à população, ao mesmo tempo em que se ancora na dignidade moral da libertação.

De outro, a antiga metrópole mantém o resgate de princípios tradicionais agora ajustados às

novas necessidades de autoafirmação, buscando paralelamente gerir os constrangimentos da

memória colonial. Em suma, são estruturas identitárias permanentes e que emergem à prática

e ao discurso em várias das instâncias que envolvem algum contato entre as duas nações. A

migração de argelinos à França, historicamente consolidada em termos transnacionais,

representa uma das vias mais recorrentes pelo qual isso ocorre.

Recorrendo a tal informação, clarificada durante os debates realizados sobre o fluxo

franco-argelino, os três capítulos de desenvolvimento buscaram a aplicação do modelo

analítico proposto. Resumido pelo posicionamento da migração enquanto ferramenta de

expressão às identidades pós-coloniais de Argélia e França, tal modelo gerou análises

centradas na utilização das abordagens teóricas selecionadas para a apropriação do

desenvolvimento histórico das gestões migratórias verificadas atualmente.

O primeiro capítulo buscou debater a vinculação entre teoria e objeto por meio de

estrutura textual tripartida. Primeiramente, discutiu-se a relação entre migração e

colonialidade através da breve problematização das produções científicas verificadas em cada

conceito, algo que em seguida é utilizado para demonstrar como as circunstâncias pós-

coloniais de um processo de mobilidade humana são capazes de representar aspirações sociais

tanto sujeitas à dominação quanto resistentes à mesma. Em seguida, o debate foi deslocado

aos conceitos de nation-building, segurança e identidade, utilizando-se das contribuições

teóricas neles envolvidas para elucidar a relação (central ao modelo analítico) entre gestão

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migratória e construções identitárias. Por fim, o capítulo foi encerrado com breve análise dos

aspectos quantitativos da emigração argelina à França, a título de contextualização do objeto

para os debates subsequentes.

O segundo capítulo direcionou-se à avaliação da parcela da hipótese de trabalho

referente à Argélia. Para isso, três períodos históricos desde 1962 foram demarcados segundo

a variação dos dois objetos em análise: o caráter qualitativo da emigração argelina e sua

instrumentalização para fins de nation-building pelo Estado. Indissociáveis, os objetos foram

integrados a variáveis externas condicionantes em cada conjuntura, tais como a construção do

Estado argelino, sua estabilidade político-econômica, as novas dinâmicas de reprodução das

elites e o elemento geracional em migração. Nesse sentido, foi possível a verificação tanto de

padrões distintos de gestão emigratória nos três períodos analisados quanto sua evolução a

políticas identitárias para a comunidade expatriada sob a forma de nation-building. Nos dois

primeiros períodos (1962-1973 e 1973-1999), verificou-se que a emigração varia

consideravelmente em termos qualitativos e a posição do Estado permanece vinculada a

pequenas mudanças dentro de uma orientação defensiva em relação ao fluxo99

. Já no último

período (1999-atualidade), enquanto a emigração manteve o caminho à capacidade de agência

política cada vez maior, a posição do Estado aproxima-se a passos firmes de medidas

permanentes em nation-building junto aos expatriados. Ao fim das análises de cada período,

debateu-se como a gestão migratória da conjuntura em caso expressou traços constituintes da

identidade pós-colonial argelina. Em suma, foi verificado que a instrumentalização estatal da

emigração em cada um dos períodos esteve vinculada ao desafio existencialista argelino de

diferentes formas. A mesma estrutura foi reproduzida de diferentes maneiras pela gestão

migratória de cada conjuntura, mas sua expressão concreta e em políticas de nation-building

apenas foi gerada ao longo do último período de análise.

Partindo em sentido analítico semelhante, o terceiro capítulo procurou avaliar a

parcela da hipótese de trabalho concernente à França. De forma análoga, três períodos

históricos foram selecionados de acordo com a variação da gestão imigratória francesa em

termos de securitização da imigração em termos sociais. Partindo dos debates em migração

___________ 99

Conforme debatido, tais mudanças se deram dentro de uma atitude racionalista sobre a emigração, algo bem

ilustrado pelas aproximações limitadas a períodos de remessas prósperas, boa relação bilateral e perspectiva de

apoio político. Não havia, nos dois primeiros períodos, a noção de que o fluxo e a comunidade expatriada

poderiam significar um suporte ao reconhecimento de uma identidade nacional plural e muito menos de que o

incentivo à sua posição transnacional poderia gerar bons resultados sócio-políticos ao país. Em suma, a posição

predominante nesse primeiro momento foi a suspeição quanto às intenções políticas da emigração e sua

aproximação apenas em momentos de potencial geração de ganhos de curto prazo ao Estado.

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fornecidas pelos capítulos anteriores, a análise continua permeada por variáveis externas que

condicionaram os posicionamentos securitários do Estado francês em relação aos fluxos e à

comunidade estabelecida de cada conjuntura. Verificou-se que a securitização da imigração

desenvolveu um tipo de evolução mais distribuída entre os períodos do que o processo de

nation-building argelino, o que resultou no alongamento do último período de análise (que

cobre quase três décadas). Em suma, a vinculação efetiva do tema imigratório a uma agenda

de segurança societal assume precedentes mais graduais que reinventam imaginários políticos

antes construídos. O primeiro período (1962-1974) marca a inserção das políticas imigratórias

em uma agenda estritamente econômica que apenas trata a comunidade franco-argelina como

questão de segurança em poucos momentos, já que isso convinha às necessidades nacionais

de mão de obra. Já os dois últimos períodos (1974-1986 e 1986-atualidade) representam a

securitização concreta do tema, primeiro enquanto ameaça constante à ordem pública e ao

funcionamento eficaz do welfare state e, posteriormente, à segurança societal da França.

Envolvidos na análise de cada período estiveram eventos distintos como a significância

política da transição à Quinta República, a “crise do republicanismo” e a ascensão da Frente

Popular. Novamente, cada padrão de variação da gestão imigratória francesa é analisado

como expressivo, por diferentes formas, de uma estrutura identitária pós-colonial permanente:

ainda assim, essa apenas figura como central no tipo de securitização desenvolvido no período

mais recente. As análises em gestão migratória realizadas nos dois capítulos e a progressão

histórica de sua expressão identitária podem ser apropriadas de forma resumida nos Quadros 1

e 2.

A partir da análise realizada, tem-se que o fluxo de argelinos à França, ao representar

uma fonte de contato transnacional remetente à colonialidade do poder, despertou desde 1962

diferentes reações nos Estados argelino e francês. Tais respostas assumiram a forma de

gestões migratórias evocativas das identidades nacionais pós-coloniais. Enquanto todas as

conjunturas apresentaram tal orientação, foram os períodos mais recentes para os dois casos

que trataram seu conteúdo simbólico de forma direta em prática e discurso. Cabe a questão:

como esse diagnóstico histórico realizado comprova que tais gestões migratórias de fundo

identitário são estruturais? Conforme debatido, a tomada de uma posição em nation-building e

em securitização em cada um dos casos não ocorreu em um “vácuo” simbólico. Tanto o

Estado argelino quanto o francês desenvolveram justificativas para suas ações nos períodos

em que não houve gestão migratória em sentido identitário. No caso argelino, a emigração era

percebida como uma insurgência política diretamente relacionada ao negativo exercício

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étnico-cultural do povo berbere: o existencialismo já estava presente de forma reflexiva

mesmo em uma visão da nação excludente dos expatriados. No caso francês, a imigração era

legitimada apenas por seu papel então fundamental ao desenvolvimento nacional, posto que

grande parte da sociedade opunha-se a ela: o essencialismo já figurava de modo reflexivo

tanto na objetificação política quanto na rejeição social dos fluxos. Em suma, cada conjuntura

imprimiu especificidades à manipulação das identidades nacionais existencialista e

essencialista, e por isso cada uma gerou tipos diferentes de sua expressão. Na dimensão da

gestão migratória, isso significou que apenas os períodos mais recentes envolveram uma

expressão explícita das disposições envolvidas nas estruturas identitárias de cada nação.

Quadro 1 – Análises em migração realizadas nos capítulos 1 e 2

100

___________ 100

Elaborado pelo autor. Os dados quantitativos apresentados foram retirados diretamente dos debates realizados

na última seção do capítulo 1 – referências específicas, portanto, encontram-se nessa parte do texto. Já os dados

qualitativos foram retirados das análises realizadas ao longo das três seções do capítulo 2, sendo sua organização

neste quadro organizada em torno de duas categorias principais presentes no texto: elemento geracional e tipo de

atividade política. Dessa forma, a sumarização dos debates conforme encontrados no quadro envolveu a

utilização de ambos os elementos como guia à descrição do padrão de variação qualitativa. Demais variáveis

debatidas e cujo caráter foi considerado secundário encontram-se na coluna “contexto”. Conforme foi

demonstrado na introdução ao trabalho, a exposição quantitativa do capítulo 1 foi realizada a título de

Variável

independentePeríodo

Padrão de variação

quantitativa

Padrão de variação

qualitativaContexto

Teor de

demandas

Tipo de

deslocamento

e relações

bilaterais

"Década

Negra"

Estável (entre 20 e 40

mil por ano)

Rapidamente

decrescente (entre 10

e 40 mil por ano)

Rapidamente crescente

(entre 100 e 220 mil por

ano)

Fluxo

emigratório

argelino

Estável (socialmente

constituída enquanto

pendular e ativismo

político nacionalista

ancorado em deveres

familiares)

1962-1973

1973-1999

1999-

atualidade

Gradualmente crescente

(reunificação familiar,

movimento beur, ruptura

com unidade familiar e

autonomização de

ativismo com articulação

internacional)

Rapidamente crescente

(refúgio, movimento

rabeu, transnacionalismo

com demais redes

sociais de migrantes e

retomada de laços

híbridos com família e

nação de origem)

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Na Argélia, a emigração cada vez mais tem sido instrumentalizada para fins de nation-

building. O Estado passa a desenvolver esforços dialogados com a comunidade expatriada por

meio da criação de órgãos consultivos permanentes que não apenas visam a proteção jurídica

da comunidade franco-argelina, mas o estreitamento de laços transnacionais políticos, sociais

e culturais. Conforme debatido, medidas como a inflexão retórica ao uso de expressões como

“comunidade nacional estabelecida no exterior” e sua concretização a partir do ensino do

árabe e do tamazight no seio da emigração a vinculam a uma consciência mais responsiva

assumida recentemente pelo Estado em relação à temática da identidade nacional. É um novo

estágio do desafio existencialista argelino, configurado em mais um tipo de rearticulação

estatal direcionada à constante autodefinição. De uma nacionalidade desvinculada dos

expatriados e quase exclusivamente ancorada na glória revolucionária passou-se a uma que

inclui o reconhecimento das diversidades internas aliado à aproximação identitária da

diáspora. Cada fase dessa mudança, como no caso das políticas linguísticas desde os anos

1970, demonstra uma instância diferente na qual o Estado se engajou na tarefa existencialista

de definir a identidade da nação.

Para a França, a imigração tem sido cada vez mais tratada por uma perspectiva de

segurança societal. O Estado reproduz uma série de imaginários sociais que

fundamentalmente estão relacionados à experiência colonial. Esse processo característico ao

período de análise mais recente é representado pela criação de uma série de arranjos

institucionais e legislações de exceção que cobrem não mais apenas, por exemplo, a questão

da imigração não documentada. A atenção pública e os esforços práticos do Estado passam a

ser dispensados à desejada integração da comunidade já estabelecida, posto que sua

visibilidade política e principalmente étnico-cultural é amplificada quando o “mito do

retorno” é falseado nos anos 1970 e 1980. Em meio à constante autoafirmação nacional

concretizada por meio da manipulação seletiva da história e dos valores tradicionalistas,

republicanos e universalistas, tanto o enquadramento discursivo de lideranças políticas quanto

o tratamento jurídico-institucional da questão demonstraram a profunda preocupação com a

integridade da fábrica social francesa. Como claramente ilustra a polêmica do uso da burca ou

até mesmo a debatida tese do seuil de tolerance dos anos 1970, tal preocupação assumiu em

aproximação entre teoria e objeto, e para contextualização inicial. Já o debate qualitativo encontra-se no capítulo

2 por dizer respeito a processos fundamentalmente vinculados ao processo de construção do Estado argelino.

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conjunturas diferentes a mesma posição: glórias e valores envolvidos na fundação nacional

são retomados para a legitimação de práticas impositivas e, acima de tudo, conscientes de sua

moralidade. A intensificação da posição defensiva da França sobre a imigração mesmo em

face das mudanças circunstanciais, portanto, representa um novo estágio expressivo da mesma

lógica essencialista de sua identidade pós-colonial.

Quadro 2 – Análises realizadas nos capítulos 2 e 3

101

___________ 101

Elaborado pelo autor. As duas variáveis externas classificadas como “cumulativas” denotam períodos em que

os processos anteriores, influentes sobre as características qualitativas do fluxo migratório, repetiram sua

influência sobre nation-building sobre o fluxo. Durante o período entre 1999 e atualidade, por exemplo, as

variáveis externas da geração e da “década negra” (guerra civil argelina) foram de mesma influência sobre as

políticas estatais de nation-building junto à emigração. As categorias selecionadas para expressão identitária,

nomeadamente “existencialista/essencialista reflexiva ou concreta”, dizem respeito ao teor assumido pela gestão

migratória de cada período em termos de identidade e procuram destacar a acentuada mudança ocorrida nas

conjunturas mais recente. De forma análoga ao quadro anterior, foram selecionadas variáveis contextuais

consideradas primárias aos debates, sendo as demais não apresentadas a título de síntese do conteúdo. São elas:

economia, relações bilaterais, a “década negra” e geração emigratória.

Objeto de análise Período Variável interveniente Padrão de variação Variável dependenteContexto

1986-

atualidade

Securitização do

fluxo em setor

societal

Radidamente

crescente (expansão

de atores, meios e

objetos com

formação de

consenso simbólico)

1974-1986

Securitização do

fluxo em setor

societal

Gradualmente

crescente (expansão

de atores e meios

com formação de

consenso político)

Argélia

1962-1974

Securitização do

fluxo em setor

societal

Nulo ("demanda e

oferta" e definição

de objetos)

França

1962-1973

1973-1999

1999-

atualidade

Nation-Building

sobre o fluxo

Nulo (posição

defensiva contra-

insurgente)

Nation-Building

sobre o fluxo

Nulo (retórica de

proteção e interesse

exclusivo em

remessas)

Gradualmente

crescente (primeiras

medidas

institucionais sob

nova percepção)

Nation-Building

sobre o fluxo

Identidade de expressão

essencialista reflexiva (identidade

não é explícita em gestão

imigratória)

Identidade de expressão

essencialista concreta (identidade é

central em gestão imigratória)

Identidade de expressão

existencialista concreta (identidade

é central em gestão emigratória)

Identidade de expressão

existencialista reflexiva (identidade

não é explícita em gestão

emigratória)

Construção das

elites, lastro

ideológico

revolucionário e

relações bilaterais

Abordagem interna

em nation-

building, estabilidade

político-econômica e

tipo de descolamento

migratório

Padrão de

reprodução das

elites, abordagem

interna em nation-

building e "década

negra".

Economia, relação

Estado/"parceiros

sociais" e transição à

Quinta República

Inflexão de modelo

discursivo sobre

integração, "crise do

republicanismo" e

novas dinâmicas

políticas

Politização da

"questão

muçulmana",

neorrepublicanismo

e ascensão da FN

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Em face de tais conclusões, destaca-se a busca implícita de algumas contribuições ao

debate geral sobre o tema. Em termos sociais, é preciso ter em mente que o desenvolvimento

de gestões públicas sobre fluxos migratórios está subscrito não apenas aos interesses e

possibilidades da conjuntura, mas dizem respeito também a construções identitárias

produzidas no seio da relação entre Estado e sociedade. Tal reflexão permite, por exemplo, a

análise da atual evolução brasileira em política imigratória como duplamente determinada: ao

lado do suporte instrumental à almejada orientação humanitária no ambiente internacional,

estão em jogo construções simbólicas acerca da “vocação multicultural” do país. Há uma

manipulação da gestão imigratória segundo o momento, mas sempre de forma a reproduzir

um senso de autopercepção consolidado. A problematização necessária diz respeito ao

balanceamento entre esse imaginário político e a realidade social das relações étnico-culturais,

de modo a questionar a intensidade na sociedade brasileira de problemas recorrentes como o

racismo, a xenofobia e as tensões intergrupo. Apenas o ponderamento entre o imaginário de

uma nação inclinada ao multiculturalismo e a realidade etnocêntrica de parcelas da sociedade

brasileira é capaz de gerar uma gestão imigratória responsável na proteção humanitária e

atenta às correntes sociais contrárias a tal. Como vimos para o caso de Argélia e França, a

evolução dessa mesma lógica entre migração e identidade é gradual e está vinculada à

descolonização de ambos os lados. É nesse ponto que as conclusões da presente pesquisa

buscaram algum grau de contribuição ao debate acadêmico. Além da ampliação da literatura

disponível em língua portuguesa sobre o objeto, foi elucidada uma parcela de mais uma

instância do contato humano em que a colonialidade possui grande poder de influência: a

migração. Grande parte dos estudos recentes em torno do pós-colonialismo buscam

justamente a identificação dos mais variados níveis de sua expressão de forma a clarificar em

que estágios se encontram os processos concretos de dominação, resistência e libertação.

Ao mesmo tempo em que essa demanda envolve a consideração atenta das nuances

específicas a cada caso e a variável externa, há um elemento de caráter geral às análises de

objetos subjetivos que figura como requisito à precisão dos resultados: a investigação

empírica. Restringida por limitações temporais e pelo não acesso a fontes primárias ou a

ambientes qualificados ao campo etnográfico, a presente pesquisa procurou evitar tal

constrangimento pela apropriação de identidades pós-coloniais e de seu campo discursivo em

termos já bem documentados. Em outras palavras, frente à impossibilidade de extrair

informações específicas acerca dos traços do pertencimento nacional argelino e francês,

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optou-se pela utilização de modelos estruturais teoricamente informados e referentes mais a

lógicas de funcionamento do que a características detalhadas. Ao mesmo tempo em que

possibilitou a melhor apropriação do potencial explicativo da migração, essa escolha

representou a limitação da capacidade analítica em identidade, mas sem destituí-la das

qualidades de investigação verificadas nos resultados. Busca-se, nesse sentido, propor a

necessidade de novas pesquisas focadas no tratamento tanto microssocial quanto nacional e

regional das referidas estruturas identitárias, utilizando análises em discurso e etnografia de

modo a abarcar como são empregadas por atores de diferentes escopos (portanto em suas

variantes) e em que sentidos mudam ou não ao longo da história. Outra prescrição possível a

pesquisas futuras nesse sentido é a de maior delimitação temporal de modo a possibilitar a

apropriação de detalhes e variantes não captados pelo escopo abrangente aqui utilizado. As

limitações do presente trabalho, assim, fornecem esses pontos de atenção válidos a novas

pesquisas sobre o objeto de Argélia e França ou, em geral, sobre a relação entre identidades

pós-coloniais e fluxos migratórios. Longe de totalizar a complexidade dos processos de

construção identitária, a capacidade da exploração de tal temática reside na descoberta de

possíveis pontos de diálogo entre a pós-colonialidade e idiossincrasias sempre influentes.

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