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Câmpus de Presidente Prudente Curso de Graduação em Geografia (Licenciatura e Bacharelado) Convênio: UNESP/INCRA/Pronera Parceria: Escola Nacional Florestan Fernandes A MIGRAÇÃO NA REFORMA AGRÁRIA NO MARANHÃO: O CASO DO ASSENTAMENTO CIGRA LAGOA GRANDE DO MARANHÃO JOSÉ JONAS BORGES DA SILVA Monografia apresentada ao Curso Especial de Graduação em Geografia (Licenciatura e Bacharelado), do Convênio UNESP/INCRA/Pronera, para a obtenção do título de Licenciado e Bacharel em Geografia. Orientadora: Profa. Dra. Valéria de Marcos Monitora: Hellen Carolina Gomes Mesquita da Silva Presidente Prudente 2011

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Page 1: A MIGRAÇÃO NA REFORMA AGRÁRIA NO MARANHÃO: O … · Universidade Estadual Paulista – UNESP, pela metodologia desenvolvida no Curso, a qual possibilitou à turma Milton Santos,

Câmpus de Presidente Prudente Curso de Graduação em Geografia (Licenciatura e Bacharelado)

Convênio: UNESP/INCRA/Pronera

Parceria: Escola Nacional Florestan Fernandes

A MIGRAÇÃO NA REFORMA AGRÁRIA NO MARANHÃO:

O CASO DO ASSENTAMENTO CIGRA – LAGOA GRANDE

DO MARANHÃO

JOSÉ JONAS BORGES DA SILVA

Monografia apresentada ao Curso Especial de Graduação

em Geografia (Licenciatura e Bacharelado), do Convênio

UNESP/INCRA/Pronera, para a obtenção do título de

Licenciado e Bacharel em Geografia.

Orientadora: Profa. Dra. Valéria de Marcos

Monitora: Hellen Carolina Gomes Mesquita da Silva

Presidente Prudente

2011

Page 2: A MIGRAÇÃO NA REFORMA AGRÁRIA NO MARANHÃO: O … · Universidade Estadual Paulista – UNESP, pela metodologia desenvolvida no Curso, a qual possibilitou à turma Milton Santos,

A MIGRAÇÃO NA REFORMA AGRÁRIA NO MARANHÃO:

O CASO DO ASSENTAMENTO CIGRA – LAGOA GRANDE

DO MARANHÃO

JOSÉ JONAS BORGES DA SILVA

Monografia apresentada ao Curso Especial de Graduação

em Geografia (Licenciatura e Bacharelado), do Convênio

UNESP/INCRA/Pronera, para a obtenção do título de

Licenciado e Bacharel em Geografia.

Orientadora: Profa. Dra. Valéria de Marcos

Monitora: Hellen Carolina Gomes Mesquita da Silva

Presidente Prudente

2011

Page 3: A MIGRAÇÃO NA REFORMA AGRÁRIA NO MARANHÃO: O … · Universidade Estadual Paulista – UNESP, pela metodologia desenvolvida no Curso, a qual possibilitou à turma Milton Santos,

José Jonas Borges da Silva

A MIGRAÇÃO NA REFORMA AGRÁRIA NO MARANHÃO:

O CASO DO ASSENTAMENTO CIGRA – LAGOA GRANDE

DO MARANHÃO

Monografia apresentada como pré-requisito para

obtenção do título de Bacharel em Geografia da

Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita

Filho”, submetida à aprovação da banca examinadora

composta pelos seguintes membros:

Profª Drª Valéria de Marcos

Presidente Prudente, novembro de 2011

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho a Josiel Alves

Pereira, o Josi (in memoriam). E, de forma

especial às minhas queridas irmãs de

Notre Dame De Numar, Anne Carolina

Wihbey e JoAnne Depweg (Júlia), duas

internacionalistas históricas na luta pela

emancipação dos trabalhadores do mundo.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e à Via Campesina,

organizações que representam a utopia dos que lutam pela emancipação da classe

trabalhadora internacional, pelas oportunidades de aprendizagem nas várias dimensões do

saber. E, em especial por vivenciar a vida acadêmica nestes últimos cinco anos. Gostaria de

dizer que neste período, o ato de estudar se tornou possível graças à cumplicidade política

militante entre o sujeito educando e o sujeito político, chamado MST. Estudar geografia foi

um compromisso assumido por mim na condição de militante político e do desafio pessoal de

me qualificar para melhor contribuir com a causa comum daqueles que se colocam para a

transformação política da sociedade em que vivemos.

O agradecimento vai também para a Escola Nacional Florestan Fernandes - ENFF e a

Universidade Estadual Paulista – UNESP, pela metodologia desenvolvida no Curso, a qual

possibilitou à turma Milton Santos, uma educação e formação privilegiada, permitindo a

relação entre a teoria e as realidades vivenciadas por cada educando e educanda.

A todos os “entes”, parentes, amigos e carinhosamente a todos educandos e

educandas da Turma Milton Santos, pela convivência e aprendizado cotidiano. E a todos e

todas que diretamente e indiretamente estiveram envolvidos na construção e consolidação

deste projeto de uma geografia dos movimentos sociais, no intuito de fortalecer a Educação

do e no Campo e consequentemente para a consolidação da Reforma Agrária no Brasil.

Estiveram comigo na pesquisa, equipe valiosa, composta por Edvan, Leomar,

Cristiane, Luciana, Isabel, família Ciano, especialmente Elias, sem terrinha, meu assistente

para assuntos aleatórios da pesquisa.

Sou grato aos secretários e secretárias que ao longo dos cinco anos foram

desenvolvendo as atividades para o bom desempenho do curso e da turma; ao monitores e

monitoras que diretamente contribuíram para a elevação pessoal e coletiva da turma Milton

Santos, em especial minhas monitoras, Yamila Goldfarb e a Hellen Carolina, que estiveram

presentes nos momentos determinantes para mim no curso, a primeira na contribuição do meu

tema e projeto de pesquisa e a segunda na construção do texto monográfico (contribuição

imprescindível)

Page 6: A MIGRAÇÃO NA REFORMA AGRÁRIA NO MARANHÃO: O … · Universidade Estadual Paulista – UNESP, pela metodologia desenvolvida no Curso, a qual possibilitou à turma Milton Santos,

Uma referência especial ao quarto A, que se tornou um espaço de diálogo, estudo,

amizade e pelas muitas, mas muitas gargalhadas dada pelo quinteto Alcione (Cabôco), Iure

(Galego), Gilberto (Cabrito), Avelino (o Mestre) e Jonas.

Agradeço também a Ivanei Farina Dalla Costa e Delvek Mateus, que contribuíram

solidariamente com a Turma, compondo a coordenação política pedagógica. Sabe-se da

grandeza e sacrifícios exigidos para cumprirem as responsabilidades de CPP e educandos.

Particularmente não posso deixar de agradecer aos coordenadores do Curso, Thomaz

Junior e Bernardo Mançano, pela dedicação e compromisso com o processo de educação

emancipatória deste curso; pelo empenho e disposição em assumirem os riscos políticos e

acadêmicos que implicam um projeto de tal envergadura como este.

De forma muito especial quero agradecer à minha orientadora Profª Drª Valéria de

Marcos, que, sempre gentil e atenciosa, foi comprometida no processo de minha orientação,

mantendo o rigor acadêmico que exige este trabalho.

Agradeço à Zaira, namorada “paciente” com meus “congestionamentos textuais” e

também comprometida com o meu processo de aprendizagem. Companheira de luta e de vida.

E por fim, agradeço ao assentamento Cigra, e particularmente às famílias da

Comunidade Alto Bonito, pela inestimável contribuição e disponibilidade no processo de

pesquisa.

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CANÇÃO DA PARTILHA

Reparto contigo este canto

Feito pão na mesa indigente,

Pois, o vazio em tua boca

não é só a fome que sentes.

É o canto que te foi negado,

É a terra cavada no homem.

Por isso reparto, urgente,

Meu canto, que se fez semente:

A terra também sente fome

(César Teixeira)

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RESUMO

Este trabalho trata do fenômeno migratório em áreas de reforma agrária no estado do

Maranhão. O trabalho teve como campo empírico a comunidade do Alto Bonito no

assentamento Cigra – Lagoa Grande do Maranhão – MA.

A pesquisa tenta recuperar o processo migratório na formação brasileira, tendo como

referência a migração feita pelos trabalhadores do campo, aqui neste trabalho identificados

como os migrantes da terra.

Outro aspecto desenvolvido na pesquisa é sobre o papel dos movimentos sociais e sua relação

com o fenômeno da migração, especialmente as organizações sociais do campo. Tendo como

referência as lutas camponesas que fizeram parte da formação do campesinato brasileiro, em

destaque as lutas camponesas realizadas a partir da década de 1950.

Por fim, o trabalho tenta fazer uma crítica à questão da reforma agrária partindo da premissa

de que esta política pública tem como um dos objetivos diminuir a migração no campo. Por

isso a pesquisa buscou entender os motivos da migração na reforma agrária, como e por que

os assentados estão saindo de seus locais de origem em busca de trabalho e renda fora do

assentamento. A pesquisa tenta identificar os migrantes da reforma nas várias dimensões da

migração brasileira e internacional.

Palavras chaves: Migração, Reforma Agrária, MST, Assentamentos

ABSTRACT

This work deals with the phenomenon of migration in areas of agrarian reform in the state of

Maranhao. The empirical field work was in the community of Alto Bonito in the settlement

CIGRE – Lagoa Grande do Maranhão - MA. The research attempts to recover the migratory

process in the Brazilian formation, with reference to migration made by field workers in this

work identified asmigrants from the earth. Another aspect is developed in the research on the

role of social movements and their relationship to the phenomenon of migration, especially

rural social organizations. With reference to the peasant struggles were part of the formation

of the Brazilian peasantry, highlighted the peasant struggles made 50. Finally, the paper

attempts to critique the issue of land reform starting from the premise that public policy has as

one of the goals is to reduce the migration field.Why this research is trying to understand the

reasons for migration in the land reform, how and why the settlers are leaving their

homelands in search of workand income out of the settlement. The research attempts

to identify migrants in the various dimensions of the reform of the Brazilian and

international migration.

Keywords: Migration, Agrarian Reform, MST, Settlements

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LISTA DE SIGLAS

APP Área de Preservação Permanente

ASSEMA Associação em Áreas de Assentamento do Estado do Maranhão

CEB´s Comunidades Eclesiais de Base

CENTRU Centro de Educação do Trabalhador Rural

COLONE Companhia de Colonização do Nordeste

CPT Comissão Pastoral da Terra

CUT Centra Única dos Trabalhadores

DOU Diário Oficial da União

ENFF Escola Nacional Florestan Fernandes

IBGE

IBRA

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

Instituto Brasileiro de Reforma Agrária

INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

MASTER Movimento dos Agricultores Sem Terra

MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário

MPF Ministério Público Federal

MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

PA Projeto de Assentamento

PCAT Programa de Colonização do Alto Turi

PC do B Partido Comunista do Brasil

PDA Plano de Desenvolvimento do Assentamento

PNRA Plano Nacional de Reforma Agrária

PRONAF Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar

PRONERA Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária

PT Partido dos Trabalhadores

PTB Partido Trabalhista do Brasil

SIPRA Sistema de Informações de Projetos de Reforma Agrária

SUDAM Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia

SUDENE Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste

UDR União Democrática Ruralista

ULTAB União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil

UNESP Universidade Estadual Paulista

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LISTA DE MAPAS

Mapa 1 Localização do Assentamento Cigra - Maranhão 69

Mapa 2 Destino dos Migrantes do Alto Bonito – Cigra (2010) 83

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Subáreas do Assentamento Cigra – Maranhão (2010) 70

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 Programas de Assistência – Comunidade Alto Bonito – Cigra – Maranhão

(Setembro – 2010) 74

Tabela 2 Destino dos Migrantes – Comunidade Alto Bonito – Assentamento Cigra

(2010) 82

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11

1. A MIGRAÇÃO NO CONTEXTO DA FORMAÇÃO SÓCIO-ECONÔMICA

BRASILEIRA 17

2. A QUESTÃO AGRÁRIA E A MIGRAÇÃO NA SEGUNDA METADE DO

SÉCULO XX 29

3. A LUTA PELA REDEMOCRATIZAÇÃO POLÍTICA NO BRASIL E A

FORMAÇÃO DO MST 43

3.1 A FORMAÇÃO DO MST NO CONTEXTO DA QUESTÃO AGRÁRIA NO

MARANHÃO 53

3.2 A TERRITORIALIZAÇÃO DO MST: ESTADO DO MARANHÃO 56

4. O ASSENTAMENTO CIGRA NA LUTA PELA REFORMA AGRÁRIA NO

MARANHÃO 59

4.1 A COMUNIDADE ALTO BONITO E A CONSOLIDAÇÃO DO

ASSENTAMENTO CIGRA 70

5. ALTO BONITO: UMA EXPRESSÃO DA MIGRAÇÃO NA REFORMA

AGRÁRIA MARANHENSE 73

CONSIDERAÇÕES FINAIS 91

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INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por objeto de estudo o fenômeno da migração na reforma agrária,

tendo como campo de pesquisa empírica a Comunidade Alto Bonito, a qual compõe o

assentamento CIGRA, localizado na Microrregião Pindaré da região Oeste Maranhense.

Trata-se de um assentamento constituído por cerca de 735 famílias cadastradas e 180 famílias

agregadas1, distribuídas em 12 comunidades do assentamento, compondo a base orgânica do

Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra – MST.

O assentamento Cigra é resultado da luta dessas famílias camponesas sem terra que,

de uma maneira ou de outra, tinham sido expropriadas das condições de produção. A

migração não se apresenta como fenômeno desconhecido para estas famílias, pois na condição

de expropriadas da terra, condição esta anterior ao assentamento, tiveram na migração a

alternativa de sobrevivência. São famílias que, em geral, migraram de outros estados e de

outros municípios em busca de terra e trabalho. E, no movimento migratório vivenciado, se

mobilizaram em torno da reivindicação da luta pela terra, o que culminou com o processo de

ocupação da então fazenda Cigra, organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais sem

Terra – MST. Considerando a extensão geográfica do assentamento, a grande quantidade de

famílias e de comunidades existentes e o distanciamento entre elas, foi necessário a escolha de

uma comunidade para a realização da pesquisa, o que foi feito tendo como critério a maior

incidência de migrantes.

A escolha deste objeto de pesquisa resulta de minhas inquietações a partir de minha

atuação política na região, pois na condição de militante de organização de luta pela terra e

por reforma agrária, este assentamento me chamou a atenção para o contingente de pessoas

que seguiam para outras localidades em busca de trabalho. Outro aspecto importante para a

escolha deste objeto foi que, apesar da vasta produção acadêmica sobre a migração, não

existem muitos trabalhos que problematizem as particularidades deste fenômeno nas áreas de

reforma agrária.

1 De acordo com AZAR (2005, p 17) “A diferença entre famílias cadastradas e agregadas encontra-se no fato de

que as primeiras são reconhecidas legalmente pelo INCRA, recebendo tratamento institucional como famílias

assentadas, no caso, com direitos de acesso aos programas governamentais desenvolvidos pelos governos.

Diferentemente, como o próprio nome denota, agregadas são as famílias que se agregam às primeiras.

Normalmente são filhos ou filas do casal cadastrado que constitui família e não meios de trabalho, parentes

idosos que vivem próximos, ou ainda parentes que moravam em centros urbanos e não conseguiram modos de

sobreviver nas condições impostas pelas relações lá estabelecidas. Estabelecem moradia e vão se integrando na

dinâmica social e produtiva do assentamento”

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No decorrer da pesquisa percebi que os camponeses migrantes da comunidade do

Alto Bonito seguem caminhos distintos, sendo que uns vão para o corte da cana-de-açúcar e

para a colheita de maçã e soja no Centro Sul; outros para a construção de barragens em

regiões distintas; outros ainda para carvoarias em diversas regiões do Maranhão do Pará; e,

enfim, há ainda aqueles que migram para garimpos Amazônicos nas Guianas, Suriname e

Venezuela.

Minhas inquietações têm como premissa o fato da reforma agrária constituir-se em

política governamental que tem como objetivo garantir o acesso dos trabalhadores à terra e a

um conjunto de políticas públicas que permitam às famílias sua permanência no campo em

condições dignas. Com tal concepção, fez-se fundamental compreender os elementos

determinantes para o fluxo migratório na reforma agrária, ou seja, compreender porque

grupos de camponeses atendidos pelas políticas de reforma agrária precisam sair mundo afora

em busca de trabalho. E, para entender essa problemática, minhas reflexões partem da atual

dinâmica da economia do estado e da realidade específica vividas nos assentamentos de

reforma agrária no Maranhão. Neste sentido, atentei para entender os motivos que levam as

famílias da Cigra à migração, e como isso rebate no seu cotidiano dentro e fora do

assentamento.

A intenção é desvendar que trabalhos estes migrantes realizam? Onde? A que

relações de trabalho se submetem? Como são recrutados? Em suma, minha intenção é

compreender a seguinte questão: se a reforma agrária, enquanto política pública, é

apresentada tanto pelo Estado quanto por muitos estudiosos, como alternativa de permanência

do homem na terra, o que explica o fenômeno da migração no caso dos assentamentos de

reforma agrária no estado do Maranhão?

Considero o tema abordado nesta monografia de grande relevância, uma vez que a

migração é fenômeno que perpassa toda a formação brasileira, particularmente por ser

utilizada como instrumento político pelo Estado e pelo capital para a reprodução e ampliação

de seus lucros.

Os aspectos teóricos utilizados são, na sua grande parte, resultado dos cinco de anos

de estudos no Curso de Geografia Especial, realizado pela Universidade Estadual Paulista –

UNESP (Presidente Prudente). Tal curso compõe o Programa Nacional de Educação em

Áreas de Reforma Agrária – PRONERA, ligado este ao Ministério de Desenvolvimento

Agrário – MDA e ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, e é

organizado pela Via Campesina – Brasil e pela Escola Nacional Florestan Fernandes - ENFF

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A Via Campesina e a ENFF são organizações que fazem parte de um conjunto de

forças sociais e políticas que, nos últimos quinze anos, têm levado o debate da educação do

campo para dentro da sociedade brasileira. Nesse sentido, a realização desta pesquisa tenta dar

sua contribuição a essa causa que é de toda a sociedade brasileira. Além disso, a realização

desse trabalho me possibilitou a articulação entre a teoria e o conhecimento empírico sobre a

questão, resultado este de muitos anos de militância social e política na luta pela terra, cuja

prática política sempre teve como base debates sobre a questão agrária, assim como a

migração. Porém, a pesquisa não intenciona encerrar a questão, não acabando em si, pois

tenho a clareza da amplitude e complexidade do tema. O que fiz foi um esforço no sentido de

adentrar no universo que permeia a questão.

Parto, assim, da demarcação das contradições que originam o processo da conquista

do assentamento Cigra, já que desde o inicio este enfrenta questões estruturais, jurídicas,

político-ideológicas, que caracterizam a trajetória de luta pela terra e pela reforma agrária

desse assentamento. Nesse sentido, abordo a questão da migração relacionada ao debate

geográfico, entendendo que o processo migratório se intensifica nas sociedades

contemporâneas com a consolidação do modo de produção capitalista. A fase capitalista de

intensificação da indústria tem como um dos aspectos de sua caracterização a expropriação

das terras camponesas, obrigando os camponeses a se deslocarem do campo para a cidade, e

com isso compor um imenso contingente de trabalhadores que se viram transformados em

outro segmento de trabalhador: o trabalhador urbano, cujas exigências eram o atendimento da

nova ordem social, que necessitava da força de trabalho livre para o mercado.

Diante deste contexto, se faz importante apontar alguns conceitos e categorias

relacionadas à temática problematizada na pesquisa. Dentre as questões principais a serem

discutidas encontram-se a categoria de espaço, trabalho, o conceito de território, o debate da

migração e reforma agrária. Para tal, trabalhando com os seguintes autores da geografia e de

ciências afins empenhados na compreensão da formação do Brasil, dentre eles Darci Ribeiro,

Ariovaldo Umbelino de Oliveira, Bernardo Mançano Fernandes, Celso Furtado, Manoel

Correia de Andrade, entre tantos outros autores que me oportunizaram compreender a questão

agrária brasileira e a migração.

O estudo sobre a migração em áreas de reforma agrária no estado do Maranhão vem

somar o conjunto de estudos realizados por minha organização política no sentido de melhor

compreender as transformações que estão ocorrendo no campo, e quais os sujeitos que

compõem este processo, seus interesses e antagonismos, assim como a atuação do Estado

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como sujeito mediador das relações estabelecidas entre os antagonismos existentes. Me refiro

aqui, à disputa de projetos empreendida pelo agronegócio e pela agricultura familiar

camponesa, por outro.

Para um aproveitamento maior do trabalho de campo que envolvesse todas famílias

da comunidade Alto Bonito, organizei um grupo formado por filhos de assentados, estudantes

dos cursos Pedagogia da Terra, Educação do Campo2 e Geografia, um de cada curso, e ainda

um militante residente no assentamento, uma educadora e um assentado migrante. O objetivo

foi organizar um grupo de pesquisa sobre o assentamento Cigra, tendo como foco a

comunidade Alto Bonito, considerando a existência de um grupo significativo de pessoas que

se encontram fazendo curso de graduação das várias outras comunidades do assentamento.

Primeiramente, reuni-me com o grupo e apresentei a proposta de pesquisa, minhas

motivações e intenções de formar o grupo de pesquisa. No processo de socialização dos

objetivos do meu projeto de pesquisa, ouvi sugestões, tirei dúvidas e discutimos o

questionário, assim como nos preparamos para sua aplicação, pensando neste sentido como o

grupo deveria se apresentar, fazer as abordagens e como aprofundar as questões em casos

específicos. Como o grupo é todo do assentamento e conhece bem a comunidade, seus

problemas e sua história, isso contribuiu muito para a percepção de outros elementos que

foram considerados na organização e aplicação da pesquisa, dando uma qualidade muito

maior para o meu trabalho. Após o “treinamento”, demos início à pesquisa. O questionário foi

aplicado às 57 famílias residentes na comunidade. A facilidade para tal aplicação deveu-se à

disponibilidade e interesse do grupo no trabalho. Após a divisão geográfica, o grupo, dividido

em duplas, visitou todas as famílias para conversar e realizar a aplicação dos questionários no

período de dois dias.

Outro metodologia utilizada foi a realização de leituras referentes à temática.

Realizei levantamento em fontes primárias e secundárias, tendo tido acesso a vários

depoimentos de migrantes e familiares, fotos, vídeos e cartilhas relativas à temática e

disponíveis na comunidade estudada. Além disso, entrevistei vários migrantes de destino e

atividades diferentes, o que poderá ser observado no trabalho. Conversei com profissionais

técnicos que atuam na área, lideranças políticas municipais, dirigentes de base (igreja,

associação, escola), direção estadual do MST, seguindo, para tanto, roteiro previamente

estabelecido. Infelizmente não pude utilizar todo o material como gostaria, ficando o mesmo

como fonte para futuros trabalhos.

2Os cursos Pedagogia da Terra e Educação do Campo são resultado de uma parceria entre o MST, INCRA e

UFMA, através do Pronera.

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Além disso, fiz observação direta e recuperei informações vivenciadas a partir de

minha militância política de 22 anos de atuação e de quem acompanhou todo o processo de

mobilização, organização, ocupação e conquista do assentamento Cigra. De forma mais

direta, desde 2009, por ocasião da elaboração do projeto de monografia e para a realização da

pesquisa de campo, viajei pelo menos seis vezes para a comunidade com o objetivo de coletar

as informações que se encontram aqui apresentadas.

Em relação às fontes secundárias, como já dito, li trabalhos acadêmicos como

monografias, dissertações e teses referentes ao tema e de matérias publicadas em revistas

especializadas; utilizei trabalhos disponibilizados na rede mundial de computadores; levantei

e analisei dados oficiais do INCRA, porém registro a dificuldade para acessar documentos de

fundamental importância, como o processo de desapropriação da área. No caso, fiz solicitação

junto ao órgão, mas pela deficiência no controle interno do Instituto, o mesmo não conseguiu

localizá-lo, o que exigiu inúmeras visitas minhas ao setor responsável e depois de meses de

insistência, fui informado de que o processo de desapropriação do assentamento Cigra faz

parte de um pacote de mais de trinta processos que simplesmente sumiram do órgão.

Como militante, tive o privilégio de conviver diretamente com os sujeitos que

compõem a pesquisa desde o processo de organização das famílias para a ocupação da

fazenda, o que obviamente me possibilitou facilidades tanto na apreensão das dimensões de

vida das famílias, como no acesso a estas. Porém, tal aproximação com a realidade estudada

exigiu de mim especial atenção às exigências metodológicas da pesquisa, e para isso tive que

ficar atento para não naturalizar fatos, duvidar da aparência apresentada pelos fenômenos,

enfim, não responder “panfletariamente” às questões por mim colocadas. Assim, utilizando

dos conceitos e categorias geográficas, busquei perceber as questões para além da minha

compreensão de militante, o que reconheço como o mais difícil dos exercícios. Mas para

tanto, considero como fundamental a importância do trabalho da orientação acadêmica, papel

cumprido na dinâmica de leituras, na elaboração e aplicação dos questionários e na leitura

atenta e questionadora do material submetido para correção.

Enfim, os resultados da pesquisa encontram-se estão sistematizados em cinco

capítulos, além desta introdução. No primeiro faço uma análise da dimensão da luta pela terra

no Brasil, entendendo-a como intrínseca à questão agrária. Abordo também o fenômeno da

migração no contexto histórico brasileiro, enfatizando-a no processo de ocupação da

Amazônia, e de forma particular na formação sócio-econômica maranhense.

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No segundo capítulo a reflexão feita aborda a questão agrária e a migração no Brasil

e o processo de fortalecimento da luta pela reforma agrária até chegando até a repressão

militar na década de 1960. No terceiro capítulo trago o contexto político do Brasil no período

denominado de redemocratização e a efervescência de sujeitos políticos para demarcar os

elementos que dão origem à formação do MST no Brasil, especialmente no Maranhão, e suas

estratégias de enfrentamento à questão agrária no estado.

Os dois últimos capítulos dedico ao processo de luta do assentamento Cigra. O

quarto capítulo vai tratar dos mecanismos utilizados para a expropriação dos camponeses que

tinham a posse mas não a propriedade da terra, passando pela fase inicial da luta onde os

camponeses que trabalhavam na terra e tinham que pagar renda, passaram a resistir ao

latifúndio, dando origem ao chamado “Grupo dos 80”, até chegar à consolidação do

acampamento, uma ação conjunta entre posseiros, organizações políticas locais e o MST,

tentando observar o processo de consolidação do assentamento.

No quinto capitulo apresento elementos e informações observadas durante a pesquisa

de campo, trazendo as várias dimensões vividas pelas famílias de migrantes, como a

organização da produção, a reprodução do campesinato, as relações familiares estabelecidas e

as mediações políticas existentes no processo. Para concluir, apresento as considerações

acerca da pesquisa realizada, identificando limites e desafios para o processo de consolidação

da reforma agrária.

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1. A MIGRAÇÃO NO CONTEXTO DA FORMAÇÃO SÓCIO-ECONÔMICA

BRASILEIRA

A questão agrária brasileira e o fenômeno da migração nesta segunda década do século

XXI colocam-se como algo desafiador para se compreender as novas relações sociais existentes

no campo. Existe hoje uma complexidade que deve ser desvelada para que sejam compreendidos

os aspectos teóricos e políticos dessa questão, pois o campo possui uma dinâmica própria, seja

ela marcada pelas forças do capital, pelo agronegócio das commodities ou pela dinâmica das

forças sociais representada pela classe dos trabalhadores do campo.

Os movimentos sociais do campo encontram-se na condição de luta e resistência, sem

força política suficiente para realizar ações mais ofensivas, diferentemente de outros períodos

históricos, nos quais a luta política nacional sofreu forte influência da luta pautada pelos

movimentos sociais.

O que se apresenta é uma constante disputa por território entre capital e trabalho, entre

os que resistem para manter-se nos seus territórios e os que querem desterritorializá-los. São

interesses antagônicos entre a classe dos latifundiários capitalistas e da classe explorada no

campo, sendo a terra a centralidade desta disputa.

O que diferencia o momento atual desta disputa é o setor dominante do campo a qual

apresenta-se com características diferentes de outros períodos. Tal setor foi se consolidando

historicamente no campo através de alianças e articulações com vários setores e segmentos da

sociedade. Nesse sentido, o agronegócio, setor econômico hegemônico do campo, encontra-se

profundamente articulado com os setores industrial, financeiro, midiático e inclusive com o

institucional, conforme pode ser observado através da aprovação do Código Florestal, votação

que demonstrou claramente a força deste setor no contexto político do país.

Porém, apesar do atual contexto sócio-político se caracterizar pelo descenso da luta de

massa, surgem novos sujeitos políticos atuando no país, os quais expressam as mais diferentes

categorias do campo e da cidade. No Maranhão, a diversidade dos grupos e movimentos com

atuação política no campo é o reflexo do que acontece no resto do país. Essas representações

podem ser encontradas nas comunidades quilombolas, ribeirinhas, indígenas, pescadoras,

quebradeiras de coco, de posseiros, de pequenos proprietários, nos assentamentos, nos

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acampamentos, enfim, nas comunidades tradicionais em geral. Ambas possuem em comum a

busca pela terra e defesa de seus territórios.

No entanto, apesar desta diversidade política e da particularidade do momento da

inserção do Maranhão na dinâmica capitalista, com a implantação de grandes projetos

desenvolvimentistas, os quais têm atingidos diretamente os grupos acima citados, as

organizações e movimentos sociais ligados ao campo, apesar de muitos esforços não têm

conseguido aglutinar força suficiente para realizar ações ofensivas capazes de conter o avanço do

capital. Toda a luta empreendida pelos movimentos e organizações sociais do campo não tem

resultado em ganhos concretos para as famílias destas comunidades.

No Maranhão, a relação estabelecida entre capital e trabalho tem sido mediada pelo

Estado, que tem assumido um papel de estímulo e garantia do avanço do capital, por um lado

através de políticas de infraestrutura e incentivos fiscais e, de outro, agindo de forma incisiva no

sentido de coibir quaisquer ações de reivindicação ou denúncia contra os grupos e corporações

empresariais estabelecidas no estado. Um dos exemplos da investida do capital no contexto

maranhense é a instalação de uma fábrica de celulose no município Imperatriz, onde o governo

do estado tem investido em estrutura e recursos para receber o empreendimento da Suzano

Celulose, além dos investimentos federais via Banco Nacional de Desenvolvimento Social –

BNDS, o mesmo que financia a ampliação do Porto do Itaqui em São Luís, onde serão

construídos mais dois píeres, sendo um deles de exclusividade da Suzano. Esse é um dos vários

exemplos dos novos empreendimentos do capital que começam a se instalar no estado. De

acordo, com os dados do governo do estado, o Maranhão receberá mais de R$ 100 bilhões em

“investimento” nos próximos quatro anos. (PMDB, 2010)

Dentre as conseqüências da essa expansão do capital internacional no estado encontra-

se o agravamento dos conflitos rurais e urbanos, os quais têm contribuído de forma marcante

para a precariedade das condições de vida das famílias pobres do estado. Neste contexto, muitas

famílias, principalmente do campo, têm buscado na migração alternativa para sua reprodução

social. Tais elementos contribuíram para a problematização do fenômeno migratório nesta

unidade federativa, sendo o ponto de partida analítico os “migrantes da terra”3, sobre os quais

3 Estou fazendo uso do termo “migrante da terra”, como resultado das reflexões feitas a partir de leituras de autores

como Fernandes (1999), Martins (1980), Ribeiro (1995), Prado Jr (1998) e Andrade (1998). Apesar dos autores

citados não fazerem qualquer referência ao termo, seus estudos mostram claramente a existência da particularidade

deste tipo de migração, o qual permeia todo o processo histórico da sociedade brasileira.

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irei tratar no decorrer deste trabalho. No entanto, para a compreensão desta questão é preciso

buscar na formação brasileira elementos que possam contribuir para o entendimento do processo

migratório na questão agrária atual.

A migração no contexto da formação sócio-econômica do Brasil já é visível logo no

inicio, com a chegada dos exploradores europeus, que viajavam pelo mundo em busca de

negócios lucrativos para os impérios centrais daquele período. Isso representou o que pode ser

entendido como a entrada dos colonizadores Ibéricos nas terras do “novo mundo”, marcando

assim, desde o início, o conflito pela terra no país. (MORISSAWA, 2001 p. 57)

Ali iniciava o processo que iria demarcar a formação sócio-econômica brasileira,

caracterizada desde o inicio pelo uso da força e da violência para impor à nova colônia os

interesses e costumes da Coroa, no sentido de uma superposição da cultura européia sob a

cultura existente nas novas terras. Essa nova colônia denominada Brasil constituiu um país que

tem na sua gênese a cultura baseada na expropriação da terra e das riquezas naturais sempre

voltadas aos interesses externos. Para perceber isto, basta analisar como os interesses da Coroa

foram sendo mantidos e como eram garantidos. Primeiro, houve a apropriação do território e, a

partir de então, foi sendo extraída da Colônia toda a matéria-prima possível que fosse do

interesse da Coroa Portuguesa. Some-se a isso o padrão do uso da força de trabalho instituído,

baseado na escravização de povos indígenas e posteriormente de tribos negras advindas da

migração forçada da África. Assim, a migração constituiu-se em um fenômeno social desde o

inicio da colonização, usado como instrumento de dominação de novas terras, garantindo,

também, o uso da força de trabalho nas áreas colonizadas.

Para garantir os interesses do rei, a Coroa dividiu essas terras em quatorze capitanias

hereditárias, entregues aos “nobres amigos”, denominados “donatários” (ALENCAR et al, 25).

Para garantirem a produção das extensas áreas sob seu domínio as subdividiam em sesmarias,

deixando a cargo de sesmeiros a responsabilidade da produção. As capitanias hereditárias eram

O termo é usado para fazer referência às populações de trabalhadores do campo que, historicamente, migram na

condição de vítimas da questão agrária. Neste sentido, como exemplo de “migrantes da terra” podemos pensar as

comunidades originárias que aqui se encontravam quando da chegada dos portugueses, as quais, pressionadas pelo

avanço da colonização, precisaram se deslocar continuamente para o interior do país em busca de novos territórios.

Também os negros africanos viveram a condição de “migrantes da terra”, arrancados de suas terras e transformados

em força de trabalho escrava, longe de seus lugares de origem. (RIBEIRO, 1995) Atualmente, estes migrantes podem ser encontrados em todas as regiões do país, constituindo a classe camponesa

expropriada de suas condições de trabalho e da própria terra pela dinâmica capitalista contemporânea, cujas

expressões podem ser percebidas nas questões apresentadas pelos quilombolas, sem terra, indígenas, seringueiros,

caiçaras, extrativistas.

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destinadas aos donatários sob a condição de terem que pagar impostos à Coroa pelo uso e

ocupação das terras. (SILVA, 2004, p. 17). Tais donatários mantinham a posse da terra, mas não

detinham sua propriedade, já que as terras se mantinham como monopólio português, o que

durou até 1822. Até essa data, eles passam a ter o direito de explorar a terra, mas também a

responsabilidade sobre o controle político do território, em um sistema que articula economia e

política (ALENTEJANO, 2010)

Além da posse das terras, estes donatários foram os primeiros a iniciar o processo de

produção voltado exclusivamente ao mercado externo, no caso, ao mercado capitalista que

buscava sua consolidação no contexto europeu da época, ao qual se subordinavam os interesses

da Coroa portuguesa (FURTADO, 2001). O sistema produtivo desse período, necessariamente

baseava-se na utilização de grandes extensões de terras, no monocultivo e na utilização da força

de trabalho eminentemente escrava. Tal modelo adotado foi denominado por diversos estudiosos

da formação brasileira de plantation (PRADO JUNIOR, 2001). Para Stédile (2001, p. 21) este

sistema produtivo se caracteriza como a primeira fase econômica produtiva do Brasil,

denominada de agroexportador.

Esse modelo tinha como matriz produtiva o monocultivo, sendo usado para tal a mais

avançada tecnologia existente na época. Outra característica tratava da localização das áreas de

cultivo, pois as plantações deveriam ser desenvolvidas o mais próximas possível dos portos

existentes, já que toda a produção era voltada ao mercado externo. Assim, o Brasil cumpria o seu

papel na Divisão Internacional do Trabalho (MORISSAWA, 2001. p. 59) como produtor de

matéria-prima, sendo a produção realizada para atender, essencialmente, às necessidades da

Coroa portuguesa e do mercado europeu.

Ainda sobre o uso e a ocupação do solo na formação do Brasil, Prado Junior (2001,

p.31-2) diz que:

Se vamos à essência da nossa formação veremos que na realidade nos

constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde

ouro e diamante; depois algodão, e em seguida, café, para o comércio europeu.

Nada mais que isto. É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do

país e sem atenção a considerações que não fossem a interesse daquele

comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileira.

Esse processo, de acordo com a compreensão dos autores, explica como se constituíram

as bases econômicas e políticas para formação do país, sob o controle dos latifundiários, cujas

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práticas resultaram na expulsão e dizimação de populações originárias e na implantação da

escravidão negra e sua manutenção por centenas de anos.

Das muitas heranças deixadas pela elite agrária brasileira, o coronel nordestino constitui

uma de suas maiores expressões. Os coronéis eram chefes políticos com grandes poderes

políticos e econômicos municipais ou regionais, com atuação nos diversos setores da sociedade,

podendo agir e decidir desde a definição de políticas públicas às questões relacionadas à terra e

aos conflitos entre as famílias. Desse modo o coronelismo “se caracterizou pelo rígido controle

dos chefes políticos sobre os votos do eleitorado, constituindo os “currais eleitorais” produzindo

o ‘voto de cabresto’” (MARTINS, 1983. p. 46).

Para garantir seu controle sobre a região de sua influência, o coronel se fazia valer dos

serviços de outros sujeitos, dentre os quais o jagunço. De acordo com Martins (1983, p. 48),

“para fazer valer o seu poder regional, os coronéis dispunham de grande número de jagunços,

trabalhadores e agregados de suas fazendas e das fazendas de seus clientes e correligionários”.

Porém, vale destacar que apesar da forte presença e influência no Nordeste, os coronéis não

constituem exclusividade desta região e encontram-se espalhados por todas as regiões do país,

tendo grande domínio político sobre elas.

O mais importante aspecto para estes coronéis que compõem a elite agrária brasileira, é

o controle da terra, o qual acontece, fundamentalmente, com a participação do Estado, a exemplo

da aprovação da Lei de Terras, em 1850. As consequências do histórico processo desta

concentração são os genocídios de povos originários, os conflitos e guerras desencadeadas por

todo interior deste país, entre latifundiários e os que lutavam em defesa de seus territórios;

lutavam por terra e liberdade. Foram homens e mulheres que, ao longo da história, têm sido

vítimas de uma intensa e sangrenta tragédia brasileira. Esse processo pode ser mais bem

compreendido na extensa e rica literatura brasileira que trata do assunto, a exemplo daquela

produzida por Fernandes, quando diz que:

As lutas de resistência aconteceram em todo o Brasil. Muitos foram os

quilombos criados em diferentes porções do território. Desde o Pará até o Rio

Grande do Sul, passando pelo Maranhão, Piauí, Ceará, Paraíba, Pernambuco,

Alagoas, Sergipe, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Goiás, Mato Grosso,

São Paulo, Paraná e Santa Catarina. Foram três séculos de revoltas que

conduziram o enfrentamento contra o insustentável sistema escravocrata.

(FERNANDES, 1999. p.16)

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Essas lutas, sejam elas dos povos indígenas, dos povos negros, dos camponeses livres,

ou dos abolicionistas, tinham como bandeira denunciar o sistema escravocrata e a opressão aos

homens e à terra. Bandeiras de luta que chegaram ameaçar o status quo daquele período. Um

desses registros, em particular, simboliza bem como foi o processo de luta pela libertação da

terra no Maranhão, a Guerra da Balaiada (SERRA, 2008), ocorrida em meados do século XIX,

tendo início no ano de 1838.

A Balaiada constituiu uma resistência popular composta por camponeses, índios,

negros, artesãos e profissionais liberais, com grande apelo popular daqueles que tiveram a

coragem de enfrentar as oligarquias agrárias e denunciavam as condições de miséria vivida pela

população do estado daquele período. De acordo com Prado Jr (2001. p. 72).

[...] na origem deste levante, vamos encontrar as mesmas causas que indicamos

para as demais insurreições da época: a luta das classes médias, especialmente

urbana, contra a política aristocrática e oligárquica das classes abastadas,

grandes proprietários rurais, senhores de engenho e fazendeiros, que se

implantara no país. (grifo nosso)

O combate se estendeu até 1842, quando sua principal liderança, o Negro Cosme, foi

capturado e assassinado em praça pública pelas forças do Império. Assim, a Balaiada, uma das

maiores expressões de luta popular do Maranhão, inspira até hoje as lutas sociais no estado.

Esse contexto de luta esteve presente em todo século XIX, A título de exemplo

merecem outros destaques, a Guerra dos Cabanos (1835 -1840), onde índios, negros e

camponeses se uniram em plena floresta Amazônica para tomar a cidade de Belém e Manaus,

exigindo terra e liberdade (Ribeiro, 2003). Na Bahia, merece destaque a Sabinada (1837 – 1838),

movimento que se levantou contra a Monarquia. Ainda antes da virada do século, o Brasil

vivencia a Guerra de Canudos (1893- 1897), também na Bahia (MORISSAWA, 2001). Traço

comum de todas estas lutas é que elas colocavam em xeque o decadente Império, fazendo com

que a República Brasileira já nascesse sendo contestada, posto que colocava as forças do Estado

Republicano a serviço dos interesses dos latifundiários contra Canudos, ou seja, contra as

resistências populares e camponesas (CUNHA, 2008). Via de regra, essas lutas, guerras e

revoltas denunciavam as condições de miséria e desmando político existente no país, exigindo

terra e trabalho livre. Essas formas de resistência apontadas acima fizeram parte de uma lista

interminável da nossa história e marcaram a formação de uma classe, o campesinato brasileiro.

A histórica luta dessa classe contra o cativeiro da terra constitui a cultura de resistência

que o povo brasileiro vai consolidando na posse da terra, como umas das poucas formas de

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garantir o direito a um pedaço de terra para trabalhar, principalmente a partir do século XIX,

quando esses camponeses começam a constituir-se e a se reproduzir como classe, estabelecendo

nova lógica de relação com a terra. Como disse Stédile (2005. p.24-25) isso fez parte do que

poderia ser considerado como uma das vertentes do processo de formação do campesinato

brasileiro.

Nesse período os camponeses iniciam um novo processo de relação com a terra e com a

natureza já que a maioria não possuía propriedade. Eles se tornaram posseiros, ocupando as

terras de forma individual ou comunal (Andrade, 2007. p.77), movidos pela necessidade,

elemento fundamental para enfrentar os conflitos. Como posseiros, os camponeses começam a

ter outra perspectiva política na relação estabelecida com a terra, uma vez que passam a se

dedicar a uma produção agrícola voltada não apenas à sua existência enquanto trabalhador, mas

também à sua existência enquanto ser social e político.

Para Andrade (2007. p.78), os camponeses estabelecem relações diferenciadas com a

terra. No Maranhão alguns se organizam através da unidade da produção familiar, outros se

organizam através do uso coletivo da terra, todos relativamente autônomos em relação ao

latifúndio. Existem também grupos que arrendam a terra, mas não habitam a propriedade do

fazendeiro, enquanto outros vivem na condição de agregados, trabalhando e morando nas terras

do proprietário. Ademais, podem ser lembrados os agroextrativistas e ribeirinhos.

A trajetória destes camponeses é demarcada pela migração, pois sempre precisaram

seguir em busca da terra (ANDRADE, 2007, p.190). Na dinâmica migratória, sempre que iam se

estabilizando na terra, seja como camponeses livres, pequenos proprietários ou mesmo posseiros,

vinha o latifundiário que pressionava para apropriar-se da terra, cujo destino poderia ser a

criação de gado, a fabricação de produtos agrícolas voltados ao mercado externo, ou ainda

mantida como reserva de valor. De forma legal ou não, a terra ia sendo apropriada privadamente

pelos latifundiários, amparados pela Lei nº 601, de 1850, a Lei de Terras, cuja

[...] característica principal [foi], pela primeira vez, implantar no Brasil a

propriedade privada das terras. Ou seja, a lei [proporcionou] fundamentos

jurídicos à transformação da terra – que é um bem da natureza e, portanto, não

tem valor, do ponto de vista da economia política – em mercadoria, em objetivo

de negócio, passando, portanto, a partir de então, a ter preço. A lei normatizou,

então, a propriedade privada da terra. (STÉDILE, 2005. p.22-3)

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Assim,

[...] ao dizer que as pessoas só podem ter acesso à terra na medida em que têm

recursos para comprá-la, alija os escravos que estão em processo de libertação,

os imigrantes que vão vir para substituir os escravos, os homens livres e pobres.

Mantém-se o monopólio da terra e a concentração após a Lei de Terras e ao

longo de toda a história do século XX. (ALENTEJANO, 2010. p.1)

Com essa medida o Império transformou a terra em mercadoria, tornando-a propriedade

particular reconhecida pelo Estado. Tal lei cumpriu o papel de legalizar a propriedade privada e

teve como principal consequência social a manutenção dos pobres e negros na condição de “sem

terra” (STÉDILE, 2000, p. 178). Um dos motivos para manter estes grupos sociais privados do

acesso à terra era mantê-los sob o domínio político e tê-los como força de trabalho voltado aos

interesses das elites agrárias.

Assim, para evitar o avanço camponês enquanto classe, na segunda metade do século

XIX as elites agrárias criaram grandes mecanismos para conter o avanço das lutas sociais no

campo. O primeiro, já apontado, a Lei de Terras de 1850; o segundo, em 1888, a Abolição dos

Escravos, liberdade esta, tutelada pelo Estado; e por último, já no limiar do século XX, a política

de imigração, principalmente européia, criada pelo Estado brasileiro como forma de substituição

da força de trabalho escrava pela força de trabalho do migrante, baseada no sistema de colonato4.

Pela importância e a força que representou a imigração européia, vale a pena trazermos

alguns elementos apresentados por Prado Junior (2002) que posteriormente vão contribuir para a

compreensão do contexto da época. Dentre os aspectos que chamam atenção, está o fato de que

os imigrantes tinham que assumir tarefas antes executadas pelos escravos. Este fato, relacionado

aos números expressivos de migrantes europeus, contribuíram de forma particular para a

formação do campesinato brasileiro. Sobre a complexa relação estabelecida entre o imigrante

europeu e o escravo, o autor esclarece que:

a escassez de braços e o desequilíbrio demográfico entre as diferentes regiões

do país acrescentavam-se aos problemas que antes já derivavam dele. Aliás, a

transferência de escravo do Norte para o Sul, se prejudicava grandemente

aquele, não resolvia senão muito precariamente as dificuldades do último. Era

preciso uma solução mais ampla e radical. Já no auge da campanha contra o

4 O sistema de colonato estabelecido durante a imigração européia no Brasil, principalmente no Sul e Sudeste, tinha

como base a exploração da força de trabalho imigrante. Pelo acordo estabelecido entre fazendeiro e migrante, este

deveria cuidar da produção da fazenda, já plantados pelos escravos, sendo que em troca receberiam casa para morar,

podendo usar pequena área de terra para produção de subsistência para sua e assim, ter o direito de criar pequenos

animais, o que lhes possibilitaria melhores condições de sobrevivência. (MARTINS, 1984)

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tráfico, e na previsão do que brevemente ia acontecer, começara-se a apelar para

este recurso. A corrente imigratória se intensifica depois de 1850; e veremos

coexistir, nas lavouras de café, trabalhadores escravos e europeus livres. A

estranha combinação não surtirá efeito e logo se verificará sua

impraticabilidade, terminando num fracasso esta primeira tentativa de preencher

com colonos europeus os vácuos deixados pela carência de escravos. Somente

mais tarde e em outras condições [...] renovar-se-ão as correntes migratórias da

Europa, resolvendo-se então com elas o problema do trabalho na agricultura do

café. Mas ter-se-á confirmado pela experiência a incompatibilidade das duas

formas de trabalho; e este será um dos mais importantes fatores do crescente

descrédito da escravidão. (PRADO JUNIOR, 2002. p. 174-5)

A existência de uma relação direta entre a produção das fazendas do Norte e Nordeste e

a utilização dessa força de trabalho escravo para o Sul destacada pelo autor explicita a relação

política que se estabelecia no sistema escravocrata, criada no Império e que continuaria depois

por algum tempo com a República. A utilização da imigração europeia, primeiramente voltada

aos interesses do mercado de trabalho nas fazendas, fazia pressão sobre o sistema de escravidão,

transformando posteriormente os escravos em “migrantes da terra”, os quais passaram a

constituir força de trabalho direcionada ao capital industrial nascente que, naquele momento,

precisava de mão-de-obra livre, demanda surgida pelos interesses dos industriais urbanos, que

divergiam com os interesses, no primeiro plano, dos grandes proprietários de terra. Como pode

ser observado, a imigração européia teve importância significativa para a formação do Brasil,

principalmente pelos aspectos econômicos, políticos e culturais. Uma das determinações para tal

fenômeno foi o expressivo contingente de pessoas que se aventuram em busca do trabalho.

Na segunda metade do século XIX o Brasil vivia outro movimento migratório

importante, agora direcionado para a Amazônia. Esta região sempre esteve pautada pelo discurso

errôneo que ali se constituía um “vazio demográfico” (SAWYER, 1989). Esse discurso

equivocado foi sendo construído desde o inicio do século XIX, quando o Estado brasileiro,

utilizando-se dessa retórica, decidiu criar uma política de povoamento e exploração de recursos

da Amazônia. Essa política levou para a região milhares de trabalhadores de várias partes do

Brasil. Eram migrantes que tinham como tarefa extrair as riquezas disponíveis na região, as quais

seriam voltadas principalmente aos interesses externos. Para Alcântara:

A exploração de produtos naturais da Amazônia com o objetivo de atender as

necessidades do mercado mundial vem sendo uma prática constante desde as

primeiras investidas dos europeus em busca de suas riquezas. Por isso mesmo, a

região passou por várias fases de ocupação. (ALCÂNTARA, 2007. p.86)

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Este movimento migratório ganhou impulso quando a região começa a ser projetada no

mercado mundial, através do “Ciclo da Borracha”, especificamente entre os anos 1870 e 1912.

Coincidentemente

As migrações nordestinas para Amazônia sempre estiveram ligadas às questões

de conflitos no campo, coincidindo com os períodos de seca, e os pequenos

agricultores são os que primeiro sentem os efeitos da mesma. Além de serem a

maioria da população rural sertaneja, eles não tinham alternativa a não ser

migrar (NASCIMENTO, 1998. p.1)

Do Nordeste, fugindo da grande seca ocorrida entre 1877 a 1879, e também da cerca

que sempre caracterizou a questão da terra na região, muitos nordestinos, não encontrando

alternativa em sua terra natal, migram para a Amazônia. Tal “escolha” migratória sofreu duas

importantes influências. De um lado, o apoio e incentivo feito pelos governos; e de outro, o

estímulo dos donos de seringais, os quais chegaram a organizar recrutamento de trabalhadores

em outras regiões. Na verdade, a dinâmica migratória nordestina da época revela o mecanismo

utilizado pelo Estado no sentido diminuir as tensões sociais ao mesmo tempo em que garantia os

interesses do desenvolvimento capitalista no país, pois o governo, na época, tanto incentivava

quanto obrigava a migração nordestina. O mesmo ocorreu na seca de 1904, quando

[...] o Brasil estava no auge de dois momentos econômicos: o da borracha na

Amazônia, e do café no Centro-Sul, havendo inclusive incentivos do governo

em forma de passagens gratuitas para que os migrantes pudessem se deslocar

para essas regiões. Mesmo aqueles que não queriam sair do nordeste eram

compelidos, pois o governo utilizava-se da força policial para obrigá-los a

migrar. (MEDEIROS FILHO; SOUZA, 1984, apud NASCIMENTO, 1998. p.3)

Dois dados sobre a migração para a Amazônia neste período chamam a atenção.

Primeiro, que aproximadamente a migração para esta região teria alcançado cerca de meio

milhão; segundo, que o trabalho desses migrantes teria elevado em 40% a produção de borracha

no Brasil. Por outro lado, este deslocamento de milhares de famílias nordestinas para a

Amazônia seria motivo de preocupação para os grandes proprietários de terra do Nordeste, visto

que este movimento migratório ameaçava a oferta de força de trabalho na região

(NASCIMENTO, 1998. p.03 apud SOUZA, 1978).

O fenômeno da migração nordestina provocou na Amazônia um processo de

desterritorialização de comunidades nativas, sendo estabelecida uma disputa pelos territórios

entre os grupos de trabalhadores que chegavam na região, o capital e as comunidades. Apesar

dos conflitos criados pela migração, os migrantes vindos de todas as regiões do país foram

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responsáveis pela formação do povo amazônico. Através da mistura de suas culturas e valores

com o modo de vida dos indígenas, posseiros, ribeirinhos, seringueiros, quilombolas e todos

os outros grupos sociais existentes, foi constituída a atual diversidade cultural e política

encontrada na Amazônia.

O Maranhão esteve diretamente envolvido neste processo migratório por vários

motivos: primeiro, representava um espaço de passagem para os migrantes nordestinos;

segundo, parte destes migrantes ao chegarem ao estado e verem as condições e recursos

naturais existentes5 decidiram por ali ficar; terceiro, muitos maranhenses acabaram seguindo o

fluxo migratório nordestino em direção à nova fronteira de expansão, a Amazônia. Foi nessa

passagem de século o Maranhão viveu seu primeiro grande momento de recebimento do fluxo

migratório de nordestinos. Nessa fase inicial a ocupação se deu do Leste rumo ao Centro-

Oeste do estado.

No Maranhão, a expulsão dos camponeses da terra acontecia através de mecanismos

como a grilagem, levado a cabo pelos ex-senhores de escravos, estes identificados agora como

novos proprietários, fazendeiros ou coronéis da terra. Com tal mecanismo foram griladas

terras indígenas e de posseiros, obrigando-os a desencadear novos processos migratórios, pois

só restava aos indígenas e camponeses entrar terra adentro pelo país, buscando se distanciar

da cerca do latifúndio e do cerco do capital, constituindo as chamadas frentes de expansão

(Martins, 1980), tão presentes na formação do campesinato brasileiro6.

Os muitos camponeses que enfrentavam as investidas do latifúndio, foram vitimas de

violência efetivada pelos jagunços a mando dos grileiros. A dinâmica migratória impressa

seguia a ordem então estabelecida pelo capital, no sentido da consolidação da propriedade

privada, ainda que ilegal da terra. A esse respeito, Fernandes diz que:

5 O Maranhão apresentava condições naturais procuradas pelos migrantes nordestes: terra em abundância, rios

perenes, solos úmidos, vasta cobertura vegetal e presença constante de chuvas. 6 A grilagem constituiu-se em prática muito comum no estado do Maranhão, principalmente a partir da segunda

metade do século XX, com o processo de expansão da pecuária, o qual foi acompanhado pela valorização das

terras no estado, processo este que compunha a chamada modernização do campo, ou intensificação do capital

no campo. A grilagem, assim, está diretamente associada ao sistema da concentração fundiária no estado e tem

como método a falsificação de documentos que são reconhecidos pelos Cartórios.

É importante lembrar que o Estado encontra-se diretamente presente diretamente no processo de grilagem de

terras no Maranhão, tanto com o reconhecimento legal das falcatruas, quanto através da garantia da posse da

terra pelo pseudo proprietário, inclusive com uso de forças coercitivas, como o aparato policial do Estado, ou

seja, a grilagem no Maranhão não constitui-sei só com a violência dos pistoleiros contratados pelos grileiros.

(ASSELIN, 1982)

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Ao mesmo tempo, enquanto os trabalhadores fizeram a luta pela terra, os ex-

senhores de escravos e fazendeiros grilaram a terra. E para realizarem seus

interesses por meio da trama que construiu o domínio das terras, exploraram

os camponeses. Estes trabalharam a terra, produziram novos espaços sociais

e foram expropriados, expulsos, tornando-se sem-terra. Nessa realidade

surgiu o posseiro, aquele que, possuindo a terra, não tinha o seu domínio. A

posse era conseguida pelo trabalho e o domínio pelas armas e poder

econômico. Desse modo, o poder do domínio prevaleceu sobre a posse.

Evidente que esse processo de apropriação das terras gerava conflitos

fundiários, de modo que a resistência e a ocupação eram perenes. Assim,

formaram-se os latifúndios, grilando imensas porções do território brasileiro.

Dessa forma, aconteceu, em grande parte, o processo de territorialização da

propriedade capitalista no Brasil (FERNANDES, 1999. p. 17)

Este processo de mercantilização da terra levou os latifundiários a ficarem “com a maior

fatia das terras ocupadas nesse final de século, ou seja, abocanharam 70 milhões de hectares, ou

40% do crescimento da superfície agrícola” (Oliveira, 2001, p. 83). Os números mostram o

quanto grandes proprietário, (boa parte deles coronéis), expropriaram e acumularam terras no

período. No entanto, tais números se articulam com o aumento dos “desgarrados da terra”, os

quais se viram na condição de sem terra, com poucas possibilidades de sobreviverem no campo,

restando-lhes assim a alternativa de migrarem para as cidades ou adentrarem cada vez mais ao

interior do país, num contínuo movimento de expansão de fronteiras. É sobre essa questão que

tratarei no próximo capítulo.

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2. A QUESTÃO AGRÁRIA E A MIGRAÇÃO NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO

XX

A virada do século XIX no Brasil não constituiu só uma mudança de tempo, mas,

principalmente, uma mudança de modelo de produção, em que saímos de um sistema

produtivo agroexportador para um ensaio de industrialização da economia brasileira. Para

Konder (2003, p. 33), esta passagem foi gradualmente estabelecendo novas indústrias. Para o

autor, esboçou-se um tímido “surto de industrialização” e somente a partir da década de trinta,

a indústria passa a ser o modelo produtivo hegemônico no país (CHICO et al, 1994 ).

Demarca-se, no entanto, que a industrialização no país é um processo que já vinha sendo

vivenciado desde o período colonial, pois já nesta época, as fazendas de engenho de cana-de-

açúcar contavam com tecnologias avançadas para o período. Ainda no Império, a manufatura

do algodão foi desencadeada com a implantação de indústrias, com destaque para este setor

produtivo no estado do Maranhão7.

Nos primeiros 50 anos do Brasil República, o processo de industrialização foi sendo

consolidado com a construção de um parque industrial no país, o que Konder (2003) definiu

como surto da industrialização. Este fato vai trazer consequências diretas à questão da terra,

posto que no Brasil esse processo da industrialização se efetivou sem que antes tivesse sido

resolvida a questão agrária brasileira, questão esta até agora sem resolução. Ao contrário, ela

vai ser intensificada com o advento da industrialização, pois, a partir deste período, houve

uma valorização da terra, e, por conta disso, vão ocorrer intensos processos de especulação e

de expropriação de terras. Como consequência, o campesinato vai ser expulso da terra,

passando a assumir importante papel na divisão social do trabalho, efetivado sob duas

dimensões: de um lado, responsabilizando-se, na formação e manutenção do operariado

nacional, pela produção de alimentos baratos (garantindo assim, a diminuição dos custos da

reprodução social do trabalhador urbano, processo vigente ainda hoje); de outro, compondo o

conjunto da força de trabalho. Neste contexto, a sociedade brasileira começou a passar por

mudanças políticas, uma vez que o “mundo rural” passou a conviver com o “mundo urbano”,

através de novos valores e de uma reconfiguração de poderes, com a formação da elite

urbano-industrial.

7 A industrialização da cana-de-açúcar e do algodão no Maranhão toma impulso a partir do final do século XIX,

tendo seu auge a partir de 1860. Nesse período se instalaram no estado dezenas de engenhos e fábricas que deram

uma outra dinâmica econômica para o estado (FIEMA, 2008. p. 32).

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Neste momento histórico acontece a recomposição de forças políticas conservadoras,

ainda que a elite agrária não perca seu poder apesar da formação da elite urbano-industrial,

uma vez que as mudanças ocorridas com o processo de industrialização não alteraram a

estrutura fundiária do país. Ao contrário, a elite agrária manteve a concentração da terra e,

através dela, propiciou a formação do exército industrial de reserva através do processo

migratório dos camponeses. (CHICO et al, 1994.)

Assim, os grupos que estiveram no poder desde a monarquia, mantendo-se no poder

escravocrata durante todo o século XIX, foram os mesmos que exploraram os imigrantes

europeus que se espalhavam por grande parte do país, especialmente no Sul e Sudeste, e os

mesmos que posteriormente expropriaram as terras de tantos camponeses pelo Brasil afora,

aumentando, assim, de forma significativa, o número de migrantes da terra. Foram estes

grupos que agravaram (e continuam agravando) as contradições sociais no campo e na cidade,

fazendo com que a questão agrária constitua uma das expressões das contradições do capital

ainda hoje (MARTINS, 1983, p. 18)

No que se refere à questão agrária, os interesses antagônicos entre as classes que a

compõem fizeram com que a luta pela terra tomasse importantes dimensões na formação e

organização camponesa. Neste sentido são reconhecidas como expressões da luta camponesa

a Guerra do Contestado, ocorrida entre 1912 e 1916, considerada por (MARTINS, 1983, p.

26) como “a maior guerra popular da história contemporânea do Brasil”. A Guerra camponesa

do Contestado envolveu os estados de Santa Catarina e Paraná e foi marcada pela disputa de

terras envolvendo posseiros, o Estado e uma empresa inglesa, responsável pela construção de

uma ferrovia que ligaria São Paulo ao Rio Grande Sul, expropriando milhares de pequenos

proprietários e posseiros da região, provocando sérios danos aos camponeses dos dois estados

envolvidos na guerra.

Outros momentos importantes da luta camponesa de resistência ao capital foram

marcados pela emergência, de um lado, do banditismo social, do qual o Cangaço no Nordeste

foi o mais significativo exemplo e, de outro, dos movimentos messiânicos, que aglutinavam

camponeses sem terra, liderados por um messias em busca da terra prometida. Assim, de

acordo com Fernandes (1999, p 21-2), a

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[...] forma de organização desde os movimentos messiânicos até os grupos

de cangaceiros demarcavam os espaços políticos da revolta camponesa.

Eram consequências do cerco à terra e à vida. Embora fossem lutas isoladas,

aconteciam em quase todo o território brasileiro e representaram uma

importante força política que desafiava e contestava incessantemente a

ordem instituída. São partes da marcha camponesa que percorre o espaço da

história do Brasil.

Essa parcela importante do povo brasileiro, que na primeira metade do século XX fez

a história da luta pela terra, principalmente através do enfrentamento aos coronéis e às elites

do país, questionando o avanço do capital no campo, segundo Fernandes (1999), compõe o

processo de formação do que são hoje os sujeitos sociais que fazem a luta pela terra no Brasil,

de forma particular das famílias sem terra. Conforme o autor,

[...] a maioria absoluta dos trabalhadores, ex-escravos e imigrantes

começaram a formação da categoria, que na segunda metade do século XX,

seria conhecida como Sem-Terra. Lutaram pela terra, pelo desentranhamento

da terra, numa luta que vem sendo realizada até hoje. Essas pessoas

formaram o campesinato brasileiro, desenraizadas, obrigadas a migrar

constantemente. Do Sul para o Nordeste e para o Norte. Do Nordeste para o

Sudeste, Sul e Norte. Do Norte para o Sudeste. Do Sudeste para o Nordeste,

esta é uma história de perambulação e de resistência camponesa. A ocupação

pelos camponeses sem-terra era e é a principal forma de ter acesso à terra. A

ocupação tornara-se uma ação histórica da resistência (FERNANDES, 1999.

p. 18)

Como pode ser visto, o fenômeno da ocupação na luta pela posse da terra constitui há

muito tempo como estratégia das lutas camponesas mais utilizadas no Brasil. Em todas as

regiões e tempos históricos os camponeses desbravaram matas e florestas em busca de

consolidar territórios, de tomar posse de novas áreas, e a cada nova ocupação, a esperança de

ali fincar definitivamente sua morada. Porém, a cada nova área “conquistada”, eis que surge a

figura do latifúndio, obrigando-o constantemente a migrar para novas fronteiras, adentrando

sempre e cada vez mais para o interior do país.

Assim, a dinâmica da ocupação de terras, no sentido de sua posse, encontra-se

diretamente relacionada com o processo migratório. Em outras palavras, o latifúndio, com a

expropriação da terra sempre condicionou a reprodução camponesa à migração forçada, e

nesta, à ocupação de terras distantes. Nesta dinâmica, o camponês expulso de sua terra, segue

para outras fronteiras, ocupando a terra com a intenção de obter dela a posse. Porém, seguindo

sua trilha, vai o próprio latifúndio capitalista, que de novo o expulsa, usando estratégias e

mecanismos espúrios, como a grilagem, o que faz com que o camponês deva iniciar outro

ciclo migratório. O movimento feito é uma fuga constante da lógica perversa imprimida pelo

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capital. Tal processo caracteriza a “longa marcha do campesinato brasileiro” (OLIVEIRA,

2001), levando os migrantes da terra a marcharem permanentemente nos caminhos

indefinidos da luta pela sobrevivência contra o latifúndio.

Fazendo uma analogia entre o campesinato existente em diversos países, Martins

(1983) aponta a contradição existente entre o capital e o campesinato no Brasil. Assim,

diferentemente de outros países, a questão agrária permanece até hoje, não resolvida, e,

portanto, os camponeses foram subjugados pelos ditames do capital, representado pela figura

do latifundiário e articulado com o Estado. Assim, analisando as particularidades do

campesinato brasileiro, o autor considera-o como uma classe. Para ele, o que existe aqui, é

[...] um campesinato que quer entrar na terra, que, ao ser expulso, com

frequência à terra retorna, mesmo que seja terra distante daquela de onde

saiu. O nosso campesinato é constituído com a expansão capitalista, como

produto das contradições dessa expansão. Por isso, todas as ações e lutas

camponesas recebem do capital, de imediato, reações de classe: agressões, e

violências, ou tentativas de aliciamentos, de acomodação, de subordinação.

O direito de propriedade que afinal de contas, o camponês invoca

judicialmente para resistir às tentativas de expropriação é o mesmo direito

que o capitalismo invoca para expropriar o camponês (e não um direito

institucionalmente diferente, como o da propriedade comunal). É das

contradições desse direito, que serve a duas formas de propriedade privada –

a familiar e a capitalista – que nascem as interpretações distintas sobre a

terra camponesa e a terra capitalista, terra de trabalho e terra de negócio.

Essa contradição está no fato de que o mesmo código garante direitos

conflitantes na nossa situação – o do “pequeno” e do “grande”; o do

camponês e o do capitalista.

É um campesinato que tem, na relação com o capital, contradições diferentes

daquelas que tem o operário. O camponês não é uma figura do passado, mas

uma figura do presente da história capitalista do país. Classificar a esperança

da terra livre como um dado do passado é imputar sentidos às lutas

camponesas; é admitir equivocadamente que o passado tem uma existência

em si mesmo. Entretanto, esse “passado” só tem sentido, só pode ser

compreendido, por meio das relações que se tornam sua evocação necessária

– essas relações estão na violência do capital e do Estado. Portanto, esse

“passado” é uma arma de luta do presente. Esse “passado” só tem sentido no

corpo dessa luta, só se resolverá quando se resolverem as contradições do

capital – quando então será possível compreender que o sentido do passado

só se desvenda corretamente “no futuro”, na superação e na solução das

contradições do capital – da exploração de da expropriação (MARTINS,

1983, p. 16 – grifos do autor)

É neste contexto histórico que a grande massa camponesa enfrentou tem resistido a

mais de cinco séculos de latifúndio, cujo sistema sempre teve como alicerce o tripé capital,

proprietários de terras e Estado devido o grau de conservadorismo das relações estabelecidas.

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Porém, as lutas e enfrentamentos acontecidos neste contexto, em sua maioria, aconteciam

ainda de formas isoladas e desarticuladas.

Entre os segmentos de camponeses que se encontravam nesta condição temos os

posseiros, os sertanejos, colonos, seringueiros, indígenas, que, na maioria das vezes, tiveram

que, sozinhos, fazer a defesa de suas terras, suas posses, seus territórios, da grilagem dos

coronéis, da expropriação estimulada, apoiada e organizada pelo Estado. Tudo isso foi feito

de forma, orquestrada pela ganância do capital para garantir sua reprodução e ampliação no

campo, fazendo com isto a terra cumprir seu papel de mercadoria. No processo histórico

brasileiro a elite agrária vai sofrer intensas críticas, no sentido de que seriam “arcaicas” as

estruturas agrárias que determinavam as relações sociais no campo, permitindo assim, um

avanço no poder político estabelecido pela burguesia urbano-industrial, assumindo esta, parte

do controle do poder.

Na década de 1930, as desigualdades econômicas e sociais que caracterizavam o

desenvolvimento do país fizeram surgir novas forças sociais, propondo e exigindo reformas

para a modernização do país. Dentre tais reformas, a reforma agrária assume pela primeira

vez na história do país, papel de destaque no cenário político nacional. Os tempos eram de

mudanças políticas no processo republicano, e

[...] o Brasil foi tomado pelo movimento militar comandado por Getúlio

Vargas e vivendo, como todo o resto do mundo, os efeitos da crise de 1929,

buscou-se desenvolver um “projeto brasileiro de desenvolvimento

industrial”, produto das novas alianças de classes e frações de classe no seio

do poder no Estado (OLIVEIRA, 1991, p. 14).

O autor demonstra que o período foi marcado por “uma nova república”, onde os

trabalhadores tiveram que lutar sob o bojo da ditadura marcada por um Estado populista. O

Brasil passava pela Era Vargas, representada por um governo que falava para a classe dos

trabalhadores, sinalizando políticas sociais, ao mesmo tempo em que servia aos interesses do

capital industrial. A partir dai há uma consolidação da economia pelas elites industriais na

política brasileira, mas apesar desta consolidação, politicamente este setor manteve como

aliada à burguesia rural, fazendo avançar as forças produtivas do capital no campo. Neste

processo, “a maioria das camadas médias e o proletariado eram os mais prejudicados pelas

frequentes elevações do custo de vida, além de estarem excluídos das decisões políticas”

(ALENCAR et al, 1994, p. 278). Acrescente-se a estes segmentos sociais, os camponeses.

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Os processos econômicos e políticos que pautaram este período histórico não alteram

em nada as bases das relações sociais existentes no campo, pois a questão agrária se agravou e

intensificou com o pacto populista entre a burguesia agrária e a industrial, ou seja, a

consolidação industrial não contribuiu, apesar das criticas ao setor agrário dominante, para

alterar as estruturas consideradas atrasadas. Muitos eram os motivos para a atenuação dos

conflitos entre os interesses intra-classe burguesa, afinal a emergente burguesia industrial

paulista,

[...] além de composta de empresários ligados ao café, continuava

dependendo em muitos aspectos da agro-exportação. Um deles, a

necessidade de divisas para a importação de equipamentos e matérias-primas

só obtidas com as vendas externas dos produtos primários (ALENCAR et al,

1994. p. 281)

Ainda sobre a estreita relação de interdependência entre o setor agro-exportador e o

setor urbano industrial, os autores acima afirmam que a “complementaridade entre os setores

possibilitava a conciliação política, a ponto de muitos industriais chegarem a admitir na época

que o Brasil tivesse de fato uma vocação essencialmente agrícola” (ALENCAR et al, 1994. p.

281)

Alencar et al (1994) consideram que neste período a exploração capitalista se

efetivava considerando dois aspectos de sua natureza. Por um lado, havia um contexto político

favorável à exploração da força de trabalho brasileira, haja vista a fragilidade da legislação

trabalhista de então, o que deixava o trabalhador desprovido de qualquer proteção contra o

padrão de uso da força de trabalho então instituído. Em termos econômicos, havia a oferta de

uma força de trabalho caracterizada pelo baixo preço, uma vez que o rápido processo de

mecanização da indústria limitada a oferta de assalariamento e de qualificação de seus

empregados, formando assim, um grande contingente de excedente da oferta de força de

trabalho. Na constituição deste excedente da força de trabalho industrial, a migração

camponesa vai cumprir sua sina histórica, posto que quando

[...] a produção capitalista se apodera da agricultura ou nela vai penetrando,

diminui, à medida que se acumula o capital que nela funciona, a procura

absoluta da população trabalhadora rural [...] Parte da população rural

encontra-se na iminência de transferir-se para as fileiras do proletariado

urbano ou da manufatura e na espreita de circunstâncias favoráveis a esta

transferência. (MARX, 2008. p. 746)

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No caso especifico deste momento da economia brasileira, o avanço do capitalismo

no campo, a exemplo da lavoura cafeeira paulista e suas periódicas crises, expulsava a força

de trabalho camponesa que seguia rumo aos centros urbanos na esperança do assalariado

prometido pelo capital. Porém, vale ressaltar que mesmo com a aliança entre capital,

latifúndio e o Estado, a luta pela terra avançou, fazendo com que os movimentos pela terra

conseguissem pautar o debate da questão agrária na sociedade, ainda que tal debate fosse

conduzido para a apresentação de políticas agrárias, cuja concepção, na maior parte dos casos,

se limitasse a projetos de colonização de fronteiras, utilizando, inclusive para isso, a migração

como um instrumento organizado pelo Estado. Exemplo disso foi o que fez o governo de

Vargas (1930-1945), com a “Marcha para o Oeste”, criada como política oficial de

colonização para ocupação do Centro-Oeste e Amazônia. Com tal política, Vargas estimulou

a ocupação de “vazios demográficos”, movido pelo intuito de distensionar os conflitos de

terra pulverizados pelo país. A política nacional também pretendia, com o processo, a

integração das regiões, potencializando-as economicamente.

De forma especifica, este governo promoveu o segundo movimento migratório para a

Amazônia, articulado com os interesses do capital internacional para a produção de borracha

durante a segunda guerra mundial. Para aumentar a produção desta produção, foi criada a

“batalha da borracha” e,

[...] para a viabilização desses milhares de extratores que seriam convocados

para a “batalha”, foram criados pelos governos brasileiros e estadunidenses,

vários órgãos e instituições que se encarregariam do financiamento,

recrutamento, transporte, alojamento, assistência médica e sanitária e

alimentação para os que lutariam nessa batalha. (NASCIMENTO, 1998. p.

04)

É importante lembrar, no entanto que

[...] a colonização no Brasil tem se constituído, historicamente, na alternativa

escolhida pelas classes dominantes do país para evitar, simultaneamente, a

necessária reforma estrutural do campo e suprimir-se de força de trabalho

para seus projetos na fronteira (OLIVEIRA, 2001. p. 142)

É nesse contexto que a bandeira da reforma agrária é pautada a partir da década de

1930, como sinônimo de colonização, sem alterar, no entanto, a estrutura agrária. Mas, foi a

partir da década de 1940 que organizações políticas, religiosas e de trabalhadores passaram a

pautar efetivamente esse tema, superando os limites do debate pautado anteriormente. Neste

período, a reivindicação da terra passa a ser por políticas públicas, políticas agrícolas,

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educação e reforma agrária para o campo. Assim, o debate da reforma agrária adentra o

cenário político nacional, sendo incluído na agenda do poder central. A partir desse período a

luta pela terra qualifica o debate, qualificando assim a luta, e assume forma mais articulada,

buscando desenvolver ações menos isoladas e envolvendo vários sujeitos políticos, já que

naquele momento as organizações da sociedade começaram a pautar a questão agrária, seja

nos partidos políticos, seja nas organizações dos trabalhadores.

Este fato representou um avanço na luta política no campo, o que significou algo

positivo nas organizações camponesas que fazem a luta pela terra, a qual foi assumindo outras

dimensões políticas que marcaram a segunda metade do século XX. Dai em diante o país

passou a conhecer outra forma de resistência e luta pela terra, num processo mais articulado,

incluindo de vez no vocabulário da política brasileira a bandeira da reforma agrária. Isso

ocorreu como resultado da organização dos camponeses em vários espaços, seja sindicato,

associação, cooperativa, Igreja ou partidos. Articulados, passaram a enfrentar de frente o

latifúndio. Neste sentido,

Particularmente a partir dos anos 50, camponeses de várias regiões do país

começaram a manifestar uma vontade política própria, rebelando-se de

vários modos contra seus opressores, quebrando velhas cadeias, levando

proprietários de terras aos tribunais para exigir o reparo de uma injustiça ou

o pagamento de uma indenização; organizando-se em ligas e sindicatos;

exigindo do Estado uma política de reforma agrária; resistindo de vários

modos a expulsões e despejos; erguendo barreiras e fechando estradas para

obter melhores preços para seus produtos (MARTINS, 1983. p.10).

A citação acima nos dá a dimensão do que estava acontecendo no campo brasileiro

em meados do século XX, demonstrando a insatisfação dos camponeses com as questões

relacionadas à terra, explicitando o que já foi apresentado anteriormente.

Historicamente o país tem privilegiado os interesses das elites que comandam o país,

especificamente no campo, representadas estas pelos grandes proprietários de terras. Tal

privilegiamento permite a desigualdade entre os grupos sociais do campo, como por exemplo,

através da estrutura fundiária. Em 1945, o desenho fundiário do país mostrava que 1,5% dos

proprietários dos estabelecimentos agrícolas acima de 1.000 hectares detinham 95,5 milhões

de hectares, ou seja 48%, das terras. Isto significa que quase a metade da área encontrava-se

nas mãos de poucos grandes proprietários, enquanto que 86% das terras ficavam com os

pequenos estabelecimentos agrícolas com área menor que 100 hectares, o que representava a

ocupação de apenas 35 milhões de hectares, ou seja, apenas 19% das terras (OLIVEIRA,

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2001. p.39), demonstrando assim o elevado nível de concentração da terra no Brasil naquele

período.

Essa concentração foi um dos elementos que levou a desencadear de forma intensa a

luta política no campo, a exemplo do que fizeram os camponeses no interior de Pernambuco,

os quais se organizam em “Ligas Camponesas” para denunciar as condições de miséria e

exploração que vivenciavam, condições estas promovidas pelo latifúndio e garantidas pelo

Estado. Na luta, se mobilizavam, dentre outras coisas, contra o pagamento de foro e contra

expulsão de camponeses da terra, assim como exigiam o direito ao trabalho e à terra. De

acordo com Stédile (2002. p. 7), foi

[...] a partir de 1955 que surgiram as mais contundentes organizações

camponesas no Brasil, as Ligas Camponesas. Revitalizando um nome já

conhecido e motivadas pela luta pelo direito à terra, as Ligas mobilizaram,

durante dez anos, milhares de camponeses brasileiros, gerando revoltas e

esperanças. E, sobretudo, proporcionaram dignidade a milhares de cidadãos

que viviam no interior, em especial na região Nordeste do Brasil.

Essa movimentação cresceu e as lutas desses camponeses se espalharam por todo o

Nordeste de forma crescente, chegando mesmo os camponeses a se organizarem em quase

todo o território nacional, através de encontros, congressos e comitês. O movimento “cresceu

tanto ao ponto de adquirir um status de organização nacional, sobretudo depois de haver se

organizado o Comitê Nacional das Ligas Camponesas” (MORAIS, 2002, p. 37). A

importância e influência políticas das Ligas desencadearam a organização de outras “ligas”, as

organizadas a partir de temas específicos, que apoiavam a luta pela reforma agrária feita pelas

Ligas Camponesas, a exemplo das ligas urbanas, feministas, e dos estudantes (MORAIS,

2002). Para expandir sua organização para as outras regiões do país, as Ligas contaram com o

apoio, desde o início, da Igreja Católica e do Partido Comunista do Brasil.

Além das Ligas Camponesas outras organizações merecem destaque para se entender

a efervescência das lutas políticas no campo neste período. A primeira delas, a União dos

Lavradores e Trabalhadores Agrícolas – ULTAB, organizada em todas as regiões do país,

mobilizando e organizando os camponeses numa articulação com os operários urbanos, a

exceção do Rio Grande do Sul e Pernambuco. Neste, por ser o “centro nervoso das Ligas”; e

no Rio Grande do Sul, por lá se encontrar organizado outro importante movimento camponês,

o Movimento dos Agricultores Sem Terra – MASTER, cuja organização mais importante

voltava-se à ocupação de terras no estado. A organização gaúcha contou com importante

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apoio do Partido dos Trabalhadores do Brasil - PTB e de seu mais ilustre filiado, o então

governador da época, Leonel Brizola. Apesar de tais organizações apresentarem-se com o

tema central da luta pela reforma agrária, as mesmas não defendiam estratégias idênticas, pois

enquanto

[...] a ULTAB era uma organização de tipo clássico e constituía uma

experiência que o Partido Comunista já havia posto em prática no período

1945 – 1947, sem maiores resultados, a não ser o de reunir grande número

de filiados e de eleitores. Sua tática residia na acumulação de forças, através

de um trabalho de apoio a reivindicações e a interesses econômicos

trabalhadores agrícolas (assalariados e camponeses). As Ligas, ao contrário,

atuavam no sentido de despertar a consciência política entre os camponeses,

para que no momento histórico pudessem decidir sobre seus destinos.

(MORAIS, 2002.p 39)

As diferenças que demarcam a atuação entre as Ligas e o MASTER ficam por conta

do objetivo central da luta, considerando que “diferentemente dos foreiros de Pernambuco que

resistiam para não serem expulsos da terra, a luta dos integrantes do MASTER era para entrar

na terra”. (MORISSAWA, 2001. p. 94)

Estes foram exemplos que, juntos com outras iniciativas e lutas coletivas de caráter

espontâneo, ajudaram muitos trabalhadores a resistirem e enfrentarem o avanço e os ditames

do capital sobre as terras brasileiras. Tais lutas garantiram que muitos trabalhadores tivessem

acesso à terra, agora levando a bandeira da reforma agrária em todas as regiões do país.

Para Martins (1983. p.9) os camponeses são insubmissos na sua condição de classe, e

para isso vão contra a ordem estabelecida, seja contra esta instituída pelo latifúndio ou pelo

Estado. Assim se deu o processo de territorialização das organizações políticas do campo

contra a consolidação do capital na década de 1950 e nos primeiros anos da década de 1960.

Estas organizações foram importantes na luta pela reforma agrária e na luta contra o Estado

autoritário brasileiro que, há tempos, encontrava-se articulado com os interesses do capital

internacional. Porém, na contramão das organizações da classe trabalhadora, camponeses e

operários foram “calados” pelo golpe militar instituído. Com ele, as bandeiras de liberdade

levantadas pelas organizações do campo e da cidade foram derrotadas, havendo o crescimento

das forças políticas no país das elites brasileiras, responsáveis pela ditadura instaurada no

país, iniciada em 1964, e que durou até 1985.

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Mas, a luta não foi em vão, pois deste processo de luta dos trabalhadores ficou a

larga experiência que mais tarde serviria como instrumento de luta ideológica. Na verdade, os

lutadores nunca se calaram apesar do arrefecimento da luta. Foram 21 anos que marcaram a

história do Brasil e, no campo e na cidade, as organizações de trabalhadores foram derrotadas

levando a um retrocesso político da luta no país, principalmente a luta pela reforma agrária,

sendo desencadeado pelas forças políticas conservadoras um processo de perseguições,

prisões e torturas às lideranças camponesas por todo o interior do país8.

Um dos importantes casos de perseguição e pressão à luta camponesa no período

ditatorial foi a Guerrilha do Araguaia, acontecida na região conhecida como “Bico do

Papagaio”. Todas as localidades escolhidas pela Guerrilha ficavam próximas ao Rio Araguaia,

área de históricos conflitos pela terra, numa região de divisa entre os estados do Maranhão,

Pará e Goiás, norte do atual estado Tocantins. Lá, grupo de guerrilheiros ligados ao Partido

Comunista do Brasil – PC do B treinava táticas de guerrilha com o “objetivo de estabelecer

relações com os camponeses locais e aos poucos conscientizá-los da necessidade da luta

armada contra os latifundiários e o governo da burguesia” (MORISSAWA, 2001, p. 101).

Como consequência, houve muita perseguição e pressão contra os camponeses que apoiavam

a luta e com as ameaças, prisões, torturas e assassinatos, estes entregaram muitos

guerrilheiros. Tudo isso numa operação que durou de 1972 a 1975, envolvendo 92

guerrilheiros revolucionários e um contingente militar de seis mil soldados, responsabilizados

pelos muitos assassinatos e desaparecimentos na região9. A região vivenciava nesse período a

expansão capitalista na agricultura, financiada inclusive pelo Estado, o que representou a

expansão e consolidação do capital internacional sobre a região amazônica.

A truculência que caracteriza a ditadura militar instaurada no país desencadeou

várias consequências para a nossa sociedade, entre elas podem ser destacadas duas. Primeiro,

a forte repressão às organizações sociais urbanas; e a segunda, a determinação política de

8 Manoel da Conceição é uma das mais importantes lideranças camponesas no Maranhão. Historicamente teve sua

luta marcada pela perseguição, em uma ocasião foi baleado o que levou o levou a amputar uma das pernas; por duas

vezes foi preso, torturado e exilado pela Ditadura Militar. É um dos membros fundadores do PT da CUT e esteve no

processo de formação do MST no Maranhão, no qual contribuiu na região do Pindaré, onde atuava como sindicalista

e de onde iniciou o processo de fundação do Centro de Formação do Trabalhador Rural - CENTRU, onde atua até

hoje. Em 28 de setembro de 2010, na condição de liderança camponesa, recebeu o título de Doutor Honoris Causa,

pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA, o primeiro camponês a receber este título naquela instituição. 9 A respeito da Guerrilha do Araguaia, assim como de várias outras lutas ocorridas no período da ditadura militar

brasileira, muitas são as questões não esclarecidas pelo Estado. Neste sentido, não existe nenhuma fonte com

registros concretos, de quantas prisões, assassinatos e desaparecimentos ocorreram na Guerrilha. Segundo Alencar et

al (1996, p. 399 – 400) foram mortos 61 militantes da Guerrilha do Araguaia, sendo que morreram sob torturas nas

prisões e combates mais de 200 pessoas e 151 são contados como desaparecidos.

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dizimar os movimentos camponeses existentes. Como consequência para o campo, houve a

expulsão de milhares de famílias de suas terras, dando assim, lugar à expansão do capital

neste setor, cujas bases encontram-se na concentração de terras que vinham ensaiando desde a

primeira fase de industrialização brasileira, expandindo para todas as regiões do país,

principalmente para as novas fronteiras agrícolas, como foi caso da região Amazônica.

Consequentemente, houve

[...] uma diminuição da área média ocupada pelos diferentes estratos de área

nos estabelecimentos com menos de 100 ha. Estes tinham, em 1940, uma

área média de 4,4 ha e diminuíram em 1980 para 3,4 ha e 3,3 ha em 1985. O

mesmo ocorreu com os estabelecimentos com área entre 10 e 100 ha, que

apresentavam em 1940, área entre 10 e 100 ha, que apresentavam em 1940

área média de 34 ha, e que diminuíram para 32 ha em 1980 e em 1985

(OLIVEIRA, 2001, p.87)

Ainda como consequência deste processo, tivemos o crescimento do já exacerbado

poder político do latifúndio, tornando ainda mais complexa a questão agrária brasileira. Por

outro lado, foram estabelecidas alianças entre latifundistas, industriais e Estado no sentido de

consolidar o processo de industrialização da agricultura no meio rural, o que se deu através de

um modelo que privilegiou o desenvolvimento de forças produtivas, garantindo maior

acumulação capitalista, agora no campo. Foi isso que, durante a ditadura, os conflitos agrários

se intensificaram em vários níveis e em todas as regiões do país. Vale lembrar que mesmo

com a militarização da questão agrária muitos foram os movimentos de lutas e resistência

contra o novo modelo instituído no referido período.

Segundo Morissawa (2001, p. 100), de 1964 a 1981 o campo foi marcado por

conflitos espalhados por todo o país, numa média de setenta conflitos relacionados à disputa

pela terra envolvendo trabalhadores rurais, levando o homem do campo a migrar para as

cidades como uma das poucas alternativas de vida. Parte desses novos migrantes da terra foi

sendo absorvida como força de trabalho na indústria, principalmente urbana, que naquele

período encontrava-se em plena expansão no país. O Brasil passava, então, por seu segundo

grande surto de industrialização, agora marcado por uma hegemonia constituída,

essencialmente, pela elite urbana industrial do centro sul. Assim, o país passou a vivenciar

uma intensificação do capital na agricultura, com a modernização agrícola, a qual foi

denominada por alguns autores como modernização conservadora e por outros de

modernização dolorosa. O que em síntese os termos significam é que, de fato, houve uma

modernização no campo, através da introdução de novas tecnologias, maquinários, insumos

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agrícolas, porém, esta “modernização” em nada alterou a estrutura agrária “arcaica” existente

no campo.

Para a implantação desse modelo ditador foram orquestrados mecanismos políticos

que ajudaram o Estado a consolidá-lo no campo, articulados estes, com o capital

internacional. Na época, com a preocupação de impedir as revoluções sociais que aconteciam

em algumas partes do mundo, e em particular na ilha cubana, a articulação entre a burguesa

nacional e aquela internacional, através do Estado ditatorial, vai tomar providências para

impedir que isso ocorresse, criando leis, e iniciando o processo de colonização da Amazônia,

sob a retórica de atender às necessidades do povo sem terra. Assim, através do discurso da

distribuição de “terras em homens” para “homens sem terra”, o Estado criou projetos de

colonização para a região. Em resposta à pressão social pela reforma agrária, foi criada em

1962, a Superintendência Regional de Política Agrária – SUPRA, sendo extinta com a criação

do Estatuto da Terra, em 1964. Como conseqüência foram criados o Instituto Brasileiro de

Reforma Agrária – IBRA e Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário – INDA, órgãos

responsabilizados pela reforma agrária no país, naquela época. Outra importante estratégia de

controle sobre os persistentes conflitos no campo neste período

[...] foi a criação do Estatuto da Terra pela Lei nº 4504 (de 30 de novembro

de 1964), por meio da qual se visava, prioritariamente, a modernização do

campo mediante o aumento da produção e da produtividade. A partir daí, a

paisagem rural mudou radicalmente. Milhares de máquinas, tratores e

insumos agrícolas substituíram paulatinamente a maneira de produzir até

então existente. A modernização da agricultura significou, basicamente, o

aumento e a consolidação da expansão capitalista, cujo resultado foi a

chamada industrialização do campo, com a presença de grandes empresas

nacionais e internacionais e a concentração acelerada da terra e da renda

(SILVA, 2004, p. 21).

A iniciativa do governo com a criação do IBRA e do Estatuto da Terra surtiu pouco

efeito para os camponeses, já que essa lei não saiu do papel, servindo apenas aos interesses do

Estado e dos latifundiários, entregando mais terras às empresas agroindustriais, resultando em

uma contínua concentração de terras. Tal contexto contribuiu para a desmobilização da luta

pela reforma agrária. A tentativa de desqualificação da luta foi de lhe tirar o caráter nacional e

caracterizá-la como luta isolada, desarticulada, o que não foi possível devido ao apoio político

recebido das organizações populares, da Igreja, partidos e de organizações sindicais. Para

Martins (1983, p. 96).

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O Estatuto faz, portanto, da reforma agrária brasileira uma reforma tópica,

de emergência, destinada a desmobilizar o campesinato sempre e onde o

problema da terra se tornar tenso, oferecendo riscos políticos. O Estatuto

procura impedir que a questão agrária se transforme numa questão nacional,

política de classe. De fato, nestes anos todos de governo militar, o problema

agrário somente tem se mantido como problema nacional e político graças à

vigilância e à ação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na

Agricultura, da Igreja e, mais recentemente, de vários dos diferentes grupos

políticos que recobraram há pouco alguma liberdade de atuação.

Este foi um período, como já vimos, no qual o discurso oficial o da colonização das

novas fronteiras agrícolas, feito através do estímulo à migração de camponeses

particularmente para o Norte do país, substituiu aquele da realização da reforma agrária. A

ênfase dada pelo discurso oficial dos governos militares era a necessidade de integrar o Brasil

para não entregá-lo ao capital internacional. Porém, tal política criou dificuldades para os

migrantes que seguiram rumo à Amazônia, principalmente na adaptação às regiões que

compunham as fronteiras de colonização. Um dos mais graves problemas foi o isolamento

geográfico da região, o qual representava um limite para os migrantes, principalmente no

sentido de que estes se encontravam a milhares de quilômetros distantes do lugar de origem.

Outra dificuldade eram as condições de vida, sendo que muitos migrantes, naquele período,

tiveram que viver em barracos construídos de forma precária, se alimentavam

inadequadamente e facilmente adquiriam doenças (SILVA, 2004).

Como crítica sobre a política integralista, tem destaque o fato dos militares terem

desconsiderado a existência, nessa região, de comunidades indígenas, caboclas, ribeirinhas,

pescadoras e até mesmo de núcleos urbanos. Associado a isto, desconsideram ainda, aspectos

culturais importantes, como a relação existente entre estes grupos e a natureza. Todo este

processo representou umas das faces do “desenvolvimento” da agricultura no campo

brasileiro.

Assim, de acordo com o contexto apresentado, a modernização da agricultura no

Brasil vai se realizar com base no tripé: “militarização da questão agrária, expropriação de

camponeses e aumento da exploração dos trabalhadores, muitos dos quais foram reduzidos à

condição de escravos” (SILVA. 2004, p. 23). No entanto, apesar do caráter autoritário do

regime, o qual imprimiu por muitos anos a repressão e a perseguição política no país, as

forças sociais populares gradualmente foram se reorganizando, iniciando um novo e

importante período de lutas na história brasileira. Neste quadro, destaca-se a retomada, de

forma intensa da luta pela terra e pela reforma agrária, sobre a qual se tratará a seguir.

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3. A LUTA PELA REDEMOCRATIZAÇÃO POLÍTICA NO BRASIL E A FORMAÇÃO

DO MST

A década de 1970 foi marcada por momentos importantes para a sociedade brasileira,

com o crescimento econômico desencadeado pela política dos governos militares e que ficou

[...] conhecido como “milagre brasileiro” [...] Militares, tecnocratas, firmas

internacionais, burguesia associada – que inclui banqueiros, industriais e

exportadores e uma nova classe média, ascendente – viveram um momento

de euforia, com índices de crescimento do Produto Interno Bruto ficando em

torno de 10% ao ano (ALENCAR et al. 1994. p. 399)

Era um momento em que o país vivia sob uma ditadura política, pessoas eram

perseguidas e o período era marcado por um “silêncio” no meio político e social, já que

muitas organizações foram derrotadas, enquanto outras foram perseguidas, e vigiadas

permanentemente, como por exemplo, os movimentos estudantil, artístico e intelectual. Todos

eram obrigados a aceitar as regras da ditadura, inclusive partidos políticos encontravam-se na

mesma condição. Paralelamente, a aliança das burguesias nacional e internacional

consolidava-se.

Porém, quando a economia começou a dar sinais de descenso depois do “milagre”

acima referido, a política da ditadura começou a perder forças, pois o apoio recebido pelos

militares devia-se a esse desempenho econômico, que ideologicamente levou a opinião

pública a acreditar que o Brasil iria desenvolver-ser economicamente. Apesar das benesses

recebidas pelo setor empresarial, o “ crescimento econômico já não era suficiente para

garantir o fechamento político e muitos empresários criticavam o modelo autoritário”

(ALENCAR et al, 1994, p. 402). Assim, passada a euforia do crescimento dos primeiros anos

de ditadura, começaram a aparecer as contradições desse processo, iniciando-se a crise depois

da “estabilidade” política e econômica. O país voltou a vivenciar momentos difíceis, havendo

o agravamento da situação social, com “a elevação da dívida externa, o crescimento da

inflação, a concentração de renda, o desemprego, a miséria” principalmente no campo

(ALENCAR et al, 1994, p.427).

Foi um período marcado pelo processo de modernização agrícola, que levou a uma

intensificação da concentração da propriedade, associada à implantação do pacote tecnológico da

revolução verde.

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A revolução verde constituiu-se em um pacote tecnológico associado a essa

modernização, responsável pela alteração radica do uso da terra e do solo em todo o país e do

mundo. Tal medida determinou uma nova configuração nas relações sociais de produção e

consumo, tanto no campo como na cidade.

A chamada Revolução Verde pós-segunda Guerra Mundial prometia comida

farta e sadia na mesa dos habitantes de todo o planeta. A pretexto de

modernização dos campos, a revolução verde impôs os monocultivos em

áreas extensas, expulsando camponeses e suas famílias da terra que

cultivava, trocando homens por máquinas. O uso de sementes geneticamente

modificadas, os conhecidos transgênicos, generalizou-se a pretexto de

multiplicar a produção; o uso dos agroquímicos ou agrotóxicos foi

intensificado a partir da década de 60 com o uso de adubos químicos e

venenos. A química promete saúde, mas oferece risco aos que consomem

alimentos geneticamente transformados e aos trabalhadores que manipulam

os agrotóxicos. Hoje o Brasil possui e opera mais de 400 tipos de

agrotóxicos registrados: inseticidas, fungicidas e herbicidas. A tecnologia

utilizada na revolução verde é proveniente da segunda guerra. (Campanha

permanente contra os agrotóxicos e pela vida. 2011)10

Esse pacote de medidas veio para tornar ainda mais complexa a questão agrária

brasileira, com a produção hegemonicamente voltada aos interesses externos do capital. Hoje

o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo. Conforme denúncias feitas no

documentário “O veneno está na mesa” atualmente no Brasil cada habitante consome em

média cinco quilogramas de agrotóxicos.

Este pacote tecnológico está diretamente relacionado aos problemas sociais no

campo que se intensificaram com a modernização conservadora da agricultura11

, a qual

promoveu o crescimento econômico da agricultura, aumentando o número de trabalhadores

assalariados na agricultura. Como resultado deste processo houve a reconcentração da terra, já

que a modernização elevou muito os preços da terra. Assim, o resultado foi uma maior

pressão e controle do capital sobre a terra e, com isso, o processo de expropriação e de

10

Trecho extraído do documentário “O veneno está na mesa”. Ano de lançamento: 2011. Direção de Silvio

Tendler. 11

No período conhecido como modernização conservadora, o Estado estimulou projetos agroindustriais,

beneficiando o capital nacional e internacional, levando para o campo máquinas modernas, insumos e força de

trabalho para garantir o desenvolvimento deste setor produtivo. Com este objetivo foram construídas

hidrelétricas para o fornecimento de energia para os projetos do capital e para as cidades que recebiam a pressão

do crescimento descontrolado e, compondo o conjunto de obras de infra-estrutura, também foram construídas

rodovias, ferrovias, aeroportos, portos. Economicamente, tais projetos contaram com incentivos fiscais e isenção

de impostos. No entanto, a produção camponesa manteve-se nas mesmas condições de trabalho, sem incentivos,

sem políticas de produção e sem acesso ao conjunto de benefícios oferecidos pela “modernização” do campo.

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expulsão das famílias camponesas. Segundo Fernandes (1999, p. 39), neste período 30

milhões de pessoas tiveram de migrar para cidades e outras regiões em busca de alternativas

de trabalho. Como resultado, a concentração da terra pelo latifúndio e por empresas

capitalistas que se instalavam no campo levou à intensificação dos conflitos do campo.

Dessa forma, a insustentabilidade do modelo concentrador e a miséria em

que foram colocadas as famílias camponesas, produziram novos e intensos

conflitos. Em meados da década de setenta, a questão agrária começava a se

tornar um dos principais problemas do governo autoritário. (FERNANDES,

1999, p. 31)

Todas essas transformações trouxeram conseqüências sociais negativas tanto para o

campo quanto para a cidade. Um dos exemplos foram as transformações desencadeadas pela

ocupação do espaço brasileiro com a implementação de grandes projetos, a exemplo da

colonização da Amazônia financiada pelo Estado, para onde migrantes do Nordeste e do

Centro Sul rumaram. Porém, contraditoriamente inicia-se uma sucessão de fatos que

trouxeram à tona as mazelas dos governos ditatoriais, vindo a público o resultado do

descontrole dos militares em relação às constantes perseguições, torturas e assassinatos

comandados e executados por instituições do Estado. Denúncias de violação de direitos

humanos pelo Estado brasileiro foram feitas em cenários internacionais, principalmente por

exilados políticos que se estabeleceram em inúmeros países.

Internamente, a sociedade brasileira começou a questionar as políticas adotadas pelos

militares, e, como resposta à crescente insatisfação, aumentaram as pressões sociais com a

intensificação das lutas e resistências. Foram retomadas greves e, em todo o país, operários

cruzavam os braços. Nos principais centros, também a mobilização estudantil foi retomada,

crescendo a organização do meio acadêmico. O processo de luta pela redemocratização

avançou, fazendo com que o Brasil seguisse rumo à democracia. Foi este processo de

intensificação das lutas que levou ao surgimento de novos sujeitos políticos12

, de novos

instrumentos de lutas, dentre os quais os movimentos de bairros, os grupos de solidariedade e

defesa dos direitos humanos tanto no Brasil quanto no exterior, o movimento contra a

12

Em geral, a luta camponesa no Brasil se desenvolveu em reação à forma truculenta adotada pelo capital para

se expandir no campo. A insubmissão camponesa é a gênese da luta dos sem terra pois, como diz Martins

(1983), é na condição de insubmisso que o camponês busca garantir sua reprodução social. Porém, é importante

destacar que este sujeito social não se coloca na condição de sujeito enraizado e nem de sujeito resignado às

imposições do latifúndio (MARTINS, 1983). Ele é politicamente insubordinável aos ditames do capital no

campo, mesmo no período onde parte das forças populares de esquerda teve que recuar devido à pressão e

perseguição pelos sucessivos governos da ditadura.

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carestia. Ainda neste contexto, surgiram as novas Pastorais Sociais ligadas à Igreja Católica e

foram criados a Central Única dos Trabalhadores – CUT e o Partido dos Trabalhadores - PT.

No campo, o movimento social camponês entra num novo período da história

brasileira. A luta dos posseiros se rearticula em todo o país, especialmente no Norte e

Nordeste. Tal rearticulação resulta do trabalho feito pelas Comunidades Eclesiais de Base-

CEB´s e pela Comissão Pastoral da Terra – CPT, ambas organizações ligadas à Igreja

Católica. Os posseiros, rearticulados através dessas organizações, encontram outro grupo

social do campo, as famílias que, expulsas do seu território e de suas condições de trabalho,

tornam-se sem terra. Começa neste encontro, uma nova fase da luta pela terra, retomando com

intensidade a bandeira da reforma agrária. Diante de toda essa movimentação a sociedade foi

provocada pelas forças sociais e políticas a se posicionar, fazendo com que tanto no campo

quanto na cidade a luta fosse reinventada, emergindo um novo momento histórico no país.

Assim, a luta pela terra saiu do seu isolamento político, retornando de forma organizada em

acampamentos de trabalhadores sem terra, e se articulando em nível nacional e internacional.

(STÉDILE, 2006) e (FERNANDES, 1999) Essa força política resultou do contexto de

efervescência do movimento social existente na época, em particular no campo, a exemplo da

luta dos assalariados rurais no Nordeste e Centro Sul, dos posseiros, dos seringueiros no

Norte, da luta indígena que aconteciam em todas as regiões, dos migrantes colonizados que

voltavam da Amazônia, e dos que ficavam e faziam frente nas lutas locais.

O país no final da década de 1970 até os primeiros anos da década de 1980 viveu um

turbilhão de mudanças políticas e sociais. Esse foi o momento que a sociedade brasileira

renasceu de um longo período escuro da nossa história. Dessa complexidade política nasceu

um conjunto de forças sociais que deram uma nova qualidade à sociedade brasileira. Dentre

estas forças, os camponeses, cuja luta e organização se fortalece cada vez mais, por ação em

boa parte da Comissão Pastoral da Terra influenciada pela Teologia da Libertação e cujo

resultado será a organização de várias organizações e entidades, dentre as quais, aquela de

maior representatividade a nível nacional foi o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem

Terra – MST. O marco característico de sua luta foi a ocupação do latifúndio e, destas

ocupações aquela da Fazenda Macali13

, situada no município Ronda Alto (RS), realizada em 7

13

Um dos marcos da retomada da luta pela terra no Brasil se deu a partir da ocupação da fazenda Macali e

Brilhante. As famílias que ocuparam essa área eram remanescentes da luta pela terra na fazenda Sarandi,

ocorrida ainda na dedada de 1960. O ano de 1979 será determinante para a conquista dessa área, Nesse período o

Brasil vai conhecer os primeiros acampamentos dos camponeses Sem Terras que em pouco tempo, se espalham

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de setembro de 1979, é sem dúvida momento importante que influenciará na organização do

MST tal qual o conhecemos hoje, que ocorrerá em meados dos anos 1980.

A ocupação da fazenda Macali marca simbolicamente a articulação das forças que se

articulavam em torno da luta pela terra naquele período. De 1979, ano da primeira ocupação

dos camponeses sem terra dos no Brasil até 1984, ano da fundação do MST, o processo de

organização da luta das famílias sem terra contou com o apoio da CPT, das CEB´s e das

Igrejas progressistas cristãs, as quais contribuíram na formação e organização dos primeiros

acampamentos no Sul do Brasil.

Enquanto aconteciam as ocupações de latifúndios no Centro Sul do país, realizadas

pelas famílias sem terra, no Norte e Nordeste a luta era empreendida pelos posseiros que tanto

resistiam na terra contra o processo de expulsão/expropriação quanto ocupavam latifúndios

improdutivos. Este processo organizativo resultou de longo processo de articulação entre

vários sujeitos sociais, dentre eles, organizações políticas e religiosas, em especial da

Comissão Pastoral da Terra, a qual teve destacado papel na luta pela terra em todas as regiões

do pais, articulando e organizando os trabalhadores pobres do campo no sentido de despertar

para seus direitos no enfrentamento ao latifúndio. Nesta perspectiva, a CPT cumpriu papel

imprescindível para a formação do MST.

Na sua formação, o MST se serviu do trabalho e da experiência histórica acumulada

pelas organizações populares e camponesas, estudando suas estratégias e limites. Assim, para

se entender a origem do MST, é preciso levar em conta o que estava acontecendo no campo e

as várias frentes de lutas camponeses espalhadas por todas as regiões do país, não esquecendo

ainda que estas lutas encontravam-se associadas às políticas de modernização da agricultura,

que chegavam acompanhadas de um aparato tecnológico e político muito grande, seguido por

grandes projetos que prometiam o desenvolvimento das regiões brasileiras, como já apontado

neste trabalho (CARVALHO, 2005). Pode-se dizer então que o MST é considerado como

resultante de um processo histórico da formação do campesinato brasileiro, tendo sido sua

gênese determinada por fatores econômicos e políticos. Fernandes (1999), ao falar da natureza

do Movimento, diz que essa gênese se encontra relacionada ao processo de enfrentamento ao

por todas as regiões, fortalecendo a luta pela terra dos posseiros, dos seringueiros, assalariados rurais, havendo

uma intensa movimentação política dos camponeses pela retomadas das terras e pela conquista da reforma

agrária. O MST tem na sua gênese a diversidade da política e organizativa dos camponeses de todas as regiões

do país.

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latifúndio, assim como ao capital. Sobre a importância histórica da luta camponesa para o

MST, o autor esclarece que as

[...] lutas camponesas sempre estiveram presentes na história do Brasil. Os

conflitos sociais no campo não se restringem ao nosso tempo. As ocupações

de terras realizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra -

MST, e por outros movimentos populares, são ações de resistência frente à

intensificação da concentração fundiária e contra a exploração, que marcam

uma luta histórica na busca contínua da conquista da terra de trabalho, a fim

de obter condições dignas de vida e uma sociedade justa (Fernandes, 199,

p.15).

No primeiro momento, o MST iniciou suas ações na região sul do Brasil para, em

seguida, se territorializar na maior parte dos estados brasileiros. Efetivamente, o MST foi

criado em janeiro de 1984, na cidade de Cascavel (PR), e conforme já foi dito, buscou desde

sua gênese compreender as dificuldades históricas da luta camponesa. Neste sentido, nasceu

se articulando nacionalmente, superando, assim, o limite do isolamento, entendendo a

articulação com outras forças e sujeitos do campo e da cidade, como estratégia fundamental

para o avanço da luta dos trabalhadores do campo. Outra importante estratégia adotada pelo

MST foi a ocupação dos latifúndios, entendida como a materialização da luta pela reforma

agrária. Implementando seu caráter nacional, organizou-se em acampamentos em todos os

estados: pois seja no interior do Maranhão, seja no Rio Grande do Sul ou Pernambuco, as

ações apareciam sintonizadas em estratégias alinhadas, demonstrando claramente a existência

de um inimigo comum e de uma estratégia comum de resistência. Assim, respeitando a

diversidade cultural existente entre as regiões, o MST, enquanto movimento social vem

construindo uma unidade nacional.

Dentre as características apresentadas pelo Movimento destaca-se o caráter da sua

formação sindical, em que aparece representado na luta pela terra que vem no sentido de

resolver os problemas econômicos das família. Para tanto, tem realizado uma luta corporativa

dos camponeses, através da democratização do acesso à terra e ao trabalho. Outro aspecto

apresentado pelo MST é seu caráter popular, por ter claro que sua força política está na força

de organização, na capacidade de mobilização social de sua base por políticas públicas para os

acampamentos e assentamentos, realizada de forma articulada com outros sujeitos sociais e

políticos da sociedade em geral. Por fim, o Movimento apresenta seu caráter político, cuja

principal aspiração encontra-se na transformação social do país. Estes aspectos encontrados

no MST também estão sintetizados em seus objetivos: a terra, a reforma agrária e o

socialismo. (STÉDELI; GORGEN, 1996). Assim, o caráter e os objetivos do MST

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encontram-se intrinsecamente relacionados com o contexto político da época de seu

surgimento, seja na esfera nacional como internacional, sendo que sua formação se deu em

uma conjuntura política propícia para se avançar na luta política no país, ainda que

internamente as forças conservadoras do latifúndio e do capital fizessem de tudo para que a

luta pela reforma agrária não avançasse.

Esta era uma época da redemocratização do Brasil, período conhecido como Nova

República. O então presidente eleito José Sarney, em resposta às mobilizações populares,

elaborou o I Plano Nacional de Reforma agrária – PRNA que previa o assentamento de um

milhão de famílias. Dando sequencia ao processo de retomada da democracia, em 1988 foram

realizadas eleições para deputados que formariam a Assembléia Constituinte, responsável pela

revisão da Constituição Brasileira. Neste momento havia uma pressão social por direitos e

políticas públicas, em particular, para a realização da reforma agrária. De acordo com Stédile

(2006), “pareciam ser novas possibilidades, em face da pressão popular por um projeto

democratizante, diante do qual a “Nova República” não tinha como recuar”. Porém, forças

contrárias à democratização da terra lutaram para que a pauta da reforma agrária não

avançasse. Entre essas forças destaca-se a União Democrática Ruralista – UDR, que se

articulava publicamente para impedir que a decisão sobre a realização da reforma agrária

como pleiteavam os movimentos sociais fosse implantada na Constituição e para impedir as

ocupações de terra.

Preocupada em se mobilizar para impedir as desapropriações de terras com

fins de reforma agrária, com objetivos ultrapassados e métodos nada

pacíficos, a UDR foi criada em 1985, para lutar com todas as armas, da

intimidação ao poder econômico, não só contra as mudanças políticas e

burocráticas em favor da reforma agrária – que as lideranças ruralistas

consideravam “demagógica, de papel” –, mas também para exigir o que seria

a “verdadeira política agrícola’” (DREIFFUS, 1990, 69), voltada para a

intensificação do capitalismo no campo. (AZAR, 2005, p. 67)

Porém, apesar das ofensivas, perseguições e assassinatos, a luta pela reforma agrária

tomou conta do país e milhares de pessoas ocuparam as ruas nas cidades em defesa dessa

bandeira. No campo, terras foram ocupadas, realizaram-se manifestações e mobilizações

públicas pela reforma agrária, audiências públicas e assembleias para discutir as questões

relacionadas à terra. Tais iniciativas eram feitas por movimentos, sindicatos, federações de

trabalhadores, partidos políticos, enfim, por um conjunto de sujeitos sociais e políticos que

emergiam em todas as regiões do país, sendo que dentre estas forças constituídas encontrava-

se o MST.

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O ponto de partida para construir o MST em cada estado foi a organização

de uma estrutura básica. Essa estrutura, formada pela coordenação, direção,

secretaria e setores, foi concebida desde as práticas das organizações

camponesas históricas e, principalmente, das experiências vivenciadas,

quando as famílias organizaram comissões e núcleos nos acampamentos e

nos assentamentos. Esses ensaios praticados durante anos de luta tornaram-

se as referências que delinearam as formas de organização das atividades do

Movimento. Desse modo, os sem-terra criaram suas instâncias de

representação que são a direção e a coordenação estaduais, as coordenações

de assentamentos e acampamentos. Evidente que esse processo foi sendo

construído por etapas. O seu começo é a ocupação da terra (FERNANDES,

1999, p.86).

No caso do MST, como já dito, adotou-se a ocupação como principal instrumento de

luta. Estrategicamente, o Movimento, através da ocupação, denunciava a problemática da

terra à sociedade, e cobrava com a organização das famílias sem terra a aplicação do I PNRA.

Neste sentido, os acampamentos de sem terra se faziam às dezenas no interior do Brasil, e o

MST seguia fazendo, na “lei ou na marra”, a luta pela reforma agrária. A palavra de ordem

denotava o fracasso das metas estabelecidas no PNRA do governo Sarney, primeiro governo

civil depois de 21 anos de ditadura.

A ocupação, enquanto estratégia de luta do MST, foi utilizada em todos os governos

que sucederam o governo Sarney, ainda que com intensidades diferentes, variando de acordo

com a conjuntura política de cada período. Além disso, para cada contexto histórico, o

Movimento trazia em suas palavras de ordem o referencial de sua estratégia (FERNANDES;

STÉDILE, 1999). Os lemas usados pelo MST no seu processo de organização social e

política, encontravam-se estreitamente articulados à conjuntura política do país. As palavras

de ordem “Reforma Agrária na lei ou na marra” e “Reforma Agrária para quem nela trabalha”

cumpriam o papel de denunciar a estrutura fundiária concentradora que reinava (e continua

reinando) no país e também a questionar a política de reforma agrária adotada pelos governos

da época.

Já a situação de perseguição política e criminal impetrada pelo governo Fernando

Collor de Melo aos movimentos sociais, em especial ao MST, era denunciada através do lema

“Ocupar, resistir e produzir”, o qual explicitava o sentido da ocupação para além da entrada

na terra, ressaltando também que a luta precisava continuar depois da ocupação, pois muitas

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eram as dificuldades para a manutenção das famílias na terra Com este lema, o MST indicava

à sociedade a existência de dificuldades e entraves políticos para o sucesso da reforma agrária.

De forma muito contundente, a palavra de ordem “Reforma Agrária: uma luta de

todos”, era um chamado feito à sociedade pelo MST durante o governo de Fernando Henrique

Cardoso, para o debate sobre a necessidade da realização da reforma agrária não efetivada até

então. As palavras de ordem apontavam para a base social do MST e para a opinião pública os

descasos da política pública de reforma agrária e a necessidade de se continuar ocupando os

latifúndios para a democratização do acesso terra (FERNANDES; STÉDILE, 1999,

OLIVEIRA, 2001). A intenção também era articular campo e cidade, no sentido de fazer a

sociedade em geral compreender que os problemas do campo encontravam-se diretamente

relacionados aos da cidade e que a concentração da terra afetava toda a estrutura social

brasileira.

Na primeira década deste século, com outro contexto sócio-econômico no país,

diante da investida do capital transnacional na disputa pelo controle da produção no campo, a

palavra de ordem “Reforma Agrária: por justiça social e soberania alimentar” denunciava à

sociedade os riscos que a produção de alimentos na lógica mercadológica implicava para a

soberania nacional, e de forma particular as implicações do controle da produção de alimentos

no país por corporações internacionais. Além disso, como já observado neste trabalho, o

contexto representou a disputa de projetos antagônicos, por um lado a agricultura capitalista

baseada numa matriz produtiva de alto nível tecnológico de altíssima produtividade e uso de

grandes extensões de áreas para o monocultivo, numa produção voltada aos interesses do

mercado de commodities, o que tem levado a uma crescente concentração de terras. Por outro

lado a agricultura familiar camponesa que resiste através de sua matriz produtiva, na qual se

destacam o uso do trabalho familiar à produção que associa a produção de alimentos para

auto-consumo com a venda do excedente, deliberadamente produzido ou não para o mercado.

Todas as palavras de ordem usadas pelo MST ao longo de sua existência, como pode

ser observado, refletiam o momento e as mudanças pelas quais passavam a sociedade

brasileira, assim como o processo de crescimento do MST. A mudança dos temas tinha como

respaldo a compreensão de que é preciso entender o momento para se definir a estratégia a

seguir. Porém, independente do período e do contexto político mais geral, a ocupação sempre

se apresentou como principal instrumento na estratégia, pois como a questão da concentração

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fundiária nunca foi resolvida no país, o MST sempre teve clareza da impossibilidade de

derrotar o latifúndio sem enfrentá-lo diretamente, entendendo que isso só seria possível

através da ocupação de terras, aspecto básico para a compreensão deste Movimento.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, desde sua

gênese, tem sido a principal organização no desenvolvimento dessa forma de

luta. É impossível compreender a sua formação, sem entender a ocupação da

terra.

Nesse sentido, para os sem-terra a ocupação, como espaço de luta e

resistência, representa a fronteira entre o sonho e a realidade, que é

construída no enfrentamento cotidiano com os latifundiários e o Estado.

O sentido da formação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

está na sua espacialização e territorialização, porque traz o significado da

resistência por meio da sua recriação. Nessas duas décadas, no

desenvolvimento desses processos, os sem-terra se organizaram em vinte e

duas unidades da federação e construíram uma estrutura organizativa

multidimensionada em suas instâncias representativas e nas formas de

organização das atividades. Dessa forma, ampliaram a luta pela terra em luta

por outros direitos: educação, política agrícola, saúde etc., construindo as

condições para conquistá-los. (FERNANDES; STÉDILE, 1999. p. 08)

Hoje o MST se encontra organizado em 24 das unidades da federação brasileira.

Desde sua gênese se colocou como um movimento de permanente espacialização sobre o

latifúndio, enquanto maior expressão do capital no campo. Para isso, formou e consolidou

uma militância política e, indiscutivelmente, os trabalhos e ações desencadeadas em torno da

bandeira da reforma agrária. Nestes mais de 25 anos de luta pela terra o movimento somou

imensuráveis conquistas, em todas as dimensões da vida humana, seja na área da educação, da

produção, da formação política e da cultura. Em outras palavras, o resultado da luta pela terra

e pela reforma agrária assumida pelo MST tem sido a conquista e construção de territórios,

cuja base se encontra no processo de ocupação da terra e dos espaços de reprodução

camponesa.

Vale destacar, entretanto, que nesta luta o MST tem enfrentado no seu cotidiano não

apenas o latifúndio, através da figura do fazendeiro, mas também um conjunto de forças e

sujeitos sociais e políticos conservadores, aliados e articulados com este segmento do campo.

Articulado com o Estado (cuja gênese encontra-se nas elites agrárias brasileiras), a nova

faceta do latifúndio, o agronegócio, tem intensificado a expropriação da terra. E, em paralelo,

tem desencadeado intensa campanha de negação de direitos à luta pela terra, tendo para isso,

recebido constantes e expressivos auxílios de setores político, jurídicos e sociais importantes

da sociedade.

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3.1- A FORMAÇÃO DO MST NO CONTEXTO DA QUESTÃO AGRÁRIA NO

MARANHÃO

No Maranhão a questão agrária é um reflexo do contexto nacional, porém apresenta

suas particularidades, especialmente na região do Bico do Papagaio, área conhecida nas

décadas de 1970 e 1980 pelos intensos conflitos de terra e pelos inúmeros assassinatos. Esta

região foi marcada por inúmeros conflitos neste período, chegando a apresentar um dos

maiores, senão o maior, índices de violência no campo contra trabalhadores rurais no Brasil.

De acordo com dados da CPT apresentados por Almeida (1982, p. 04), durante o ano de 1979

[...] até julho de 1981, o dados referentes ao Maranhão assinalam 207

(duzentos e sete) conflitos de terra, envolvendo 67.184 (sessenta e sete mil e

cento e oitenta e quatro) famílias de trabalhadores rurais e 7.706.075 (sete

milhões, setecentos e seis mil e setenta e cinco) hectares de área em disputa.

Neste levantamento, o Maranhão apresenta o maior número de conflitos, ou

seja, 22,5% do total assinalado.

Para não deixar margens de dúvidas, o autor utilizando-se de outra fonte de pesquisa,

afirma que

A mesma posição ocupa o Maranhão no levantamento da ABRA, que cobre

os anos de 1980 e 1981, apresentando 67 (sessenta e sete) conflitos de terras

com um total de 14 (catorze) trabalhadores rurais mortos, 241.000 (duzentas

e quarenta e um mil) famílias sem terra Wagner (1882, p. 4).

Os conflitos na região receberam tratamento especial do Estado através de ações

repressivas como as que caracterizaram a Guerrilha do Araguaia, já tratada neste trabalho. No

entanto, tomaram repercussão nacional e internacional com o assassinato de uma das mais

importantes lideranças atuantes na organização dos camponeses da região, o padre Josimo

Tavares, assassinado em 10 de maio de 1985, na sede da CPT em Imperatriz14

.

Essa situação resultou do contexto político em que vivia o estado desde o momento

que o governo estadual assumiu a articulação imprescindível para a garantia dos interesses

dos latifundiários. Um exemplo foi a Lei nº 2.979, de 17 de julho de 1969, conhecida como

Lei de Terras do Maranhão ou lei Sarney, promulgada pelo então governador do estado, José

Sarney, a qual abriu “as portas do estado para os grandes grileiros, tumultuando o processo de

14 O assassinato do Padre Josimo Tavares aconteceu no dia 10 de maio de 1986. O crime ocorreu na cidade de

Imperatriz no estado do Maranhão. Padre Josimo atuava como coordenador da Comissão Pastoral da Terra –

CPT na região Bico do Papagaio. Essa região é bastante conhecida pelos intensos conflitos pela terra que

marcaram as décadas de 1970 a 1980. Seu trabalho era mais direcionado às famílias camponesas do estado do

Tocantins.

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regularização fundiária e provocando êxodo rural e violência no campo” (JORNAL VIAS DE

FATO, 2011). Tal Lei corroborou com políticas desenvolvimentistas que estimularam grandes

projetos agropecuários, os quais intensificaram os conflitos no estado, em especial na região

da Amazônia Oriental, região, marcada por uma permanente migração de camponeses que

fugiam da seca e da cerca do latifúndio do Nordeste, muitos do próprio Maranhão,

provenientes de outras regiões onde as disputas pela terra já tinham sido consolidadas pelo

capital latifundista.

Na Amazônia Oriental maranhense, especificamente na região do Alto Turi, o

governo iniciou em 1971 um Programa de Colonização que tinha como meta atender um

milhão de pessoas numa área de 3 milhões de hectares. As famílias beneficiadas com o

programa, eram provenientes tanto do estado quanto do Nordeste em geral. No entanto, “com

apenas dois anos após a sua implantação, o programa foi considerado um fracasso”, e,

“caracterizando o gradual abandono do projeto, a SUDENE tinha assentado até 1972 apenas

844 famílias na área” (JATOBÁ, s/d, p.626).

Com o fracasso deste projeto de colonização, as terras foram sendo ocupadas de

forma a intensificar a concentração de terras na região. Sendo assim, esse período de

colonização oficial estimulou a migração para aquela região, como já foi aqui apontado,

ocasião em que chegaram grandes contingentes de migrantes de vários estados do Nordeste.

Enquanto isso, os setores empresariais agropecuários continuavam especulando com as terras,

contando para isso com o apoio e incentivo do governo federal, o que era feito através da

Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia – SUDAM e da Superintendência de

Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE. (FEITOSA, 1998)

Tal processo colocou o Maranhão na rota da fronteira agrícola da Amazônia. Muitas

empresas de capital internacional foram estimuladas pelo Estado a ocuparem “espaços vazios”

na Amazônia, através do discurso do desenvolvimento para a região. Nesta perspectiva o

Maranhão cumpria um papel importante em três frentes: como área de passagem para outros

estados para a migração rumo à Amazônia; como exportador de força de trabalho para a

composição do exército industrial de reserva para a industrialização formada no Centro-Sul

do país; como fornecedor ele também de migrantes para a região Centro-Norte, para as áreas

de fronteira agrícola.

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Esse processo iniciado no estado na década de 1960, vai impulsionar a valorização

das terras, estimulando a grilagem destas por latifundiários e por empresas agropecuárias,

expulsando os camponeses para a cidade ou fazendo-os adentrar cada vez mais rumo às

“bandeiras verdes”15

do estado, em busca de terras devolutas. Tal fenômeno se intensificou

com a chegada dos grandes projetos trazidos pelo capital para a região. Foram projetos como

o Programa Grande Carajás16

, a construção da hidrelétrica de Tucuruí, o Consórcio Alcoa-

Billington, aqui denominado Consórcio Alumar/Alcoa, a construção dos portos Itaqui e da

Ponta da Madeira. A consolidação desses grandes projetos, que prometiam o desenvolvimento

para o estado, se confirmou como mais um engodo político do Estado e do capital para utilizar

a extensa matéria prima da região, levando toda a riqueza extraída e deixando as mazelas

sociais ao longo dos municípios por onde estes projetos se instalaram (FEITOSA, 1988).

Associado a este complexo industrial, também foram implementados grandes

projetos agropecuários compostos pela produção da soja, do eucalipto, do bambu e da cana-

de-açúcar, assim como a pecuária extensiva e a piscicultura. Todos estes projetos tinham em

comum o fato de constituírem-se em agentes de expulsão das comunidades afetadas,

provocando invariavelmente um conjunto de mazelas no campo, intensificando o processo

migratório já existente. Importante demarcar também os impactos destes projetos em vários

aspectos como no meio ambiente.

Assim, a década de 1980 transformou o Maranhão em território de disputa entre os

queriam permanecer nas terras onde estavam, onde foram criados, e aqueles que queriam

expropriá-los. Tal confronto exigiu a organização dos trabalhadores do campo. E, é neste

contexto político e agrário que o MST do Maranhão 17

se formou, fazendo o enfrentamento

direto ao latifúndio. No ano de 1985, com a realização do primeiro Congresso Nacional do

MST, que foram iniciados os trabalhos pelo MST no estado. Neste congresso estiveram

15

Bandeiras Verdes é a denominação dada pelos camponeses para a floresta amazônica. Muitos camponeses

nordestinos que fugiam da seca e da expropriação do latifúndio, procuravam as “bandeiras verdes”, que seriam

as terras em abundância, sem dono, as terras de todos. De acordo com depoimentos de migrantes nordestinos,

estes seguiam orientações dadas pelo conhecido padre Cícero, que orientava seus devotos a seguir “rumo ao sol

poente”, rumo ao Oeste, pois lá se encontrariam as “bandeiras verdes”. Assim, milhares de nordestinos chegaram

à Pré-Amazônia maranhense a partir das 50 e 60 . Para maiores detalhes, ver o documentário “Bandeiras

Verdes”, do cineasta maranhense Murilo Santos o qual pode ser encontrado como anexo no livro Fronteiras: A

expansão Camponesa na Pré-Amazônia Maranhenses 16

Projeto Grande Carajás, de acordo com Silva (1995, p. 56/) *“abrange uma área de aproximadamente 895.000

km em terras do Maranhão, do Pará e do atual Tocantins. Seus objetivos iniciais estão relacionados diretamente

ao mercado externo e à geração de divisas para o pagamento da dívida externa brasileira, através dos segmentos

minero-metalúrgicos, agropecuária e agroflorestal”.

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presentes organizações do Maranhão, como o CENTRU18

, através de seu representante, o

líder camponês Manoel da Conceição19

, o qual contribuiu de forma intensa na formação do

MST no estado, compondo o processo organizativo e de mobilização do Movimento, até sua

consolidação no estado.

3.2 - A TERRITORIALIZAÇÃO DO MST: ESTADO DO MARANHÃO

O MST iniciou seus trabalhos de articulação e de formação no estado ainda em 1985.

Consolidou-se, primeiramente, na região Pindaré, em 1986, com a ocupação da Fazenda

Capoema, cuja área era de 60.000 hectares, esse primeiro acampamento contou com mais de

537 famílias. A importância histórica desta ocupação deveu-se à violência que caracterizava a

região, decorrente dos grandes conflitos pela terra ali existentes. A região se tornou conhecida

pelo intenso processo de grilagem, cuja maior expressão era o “Grilo Pindaré”, no qual foi

identificada extensa e complexa rede de interesses empresarias20

.

Em 1987, foi a vez das famílias sem terra ocuparem a fazenda Terra Bela, no

município Santa Luzia, atual Buriticupu, com 9.374 hectares. Ainda neste ano o MST seguiu

rumo ao Sudoeste do estado, ocupando a conhecida fazenda Criminosa, no município

Imperatriz. Esta fazenda, com 5.000 hectares, de propriedade do grupo Sharp, apresentava

18

CENTRU, Centro de Educação do Trabalhador Rural, uma organização não governamental fundado em 1984

por trabalhadores rurais para trabalhar a sustentabilidade ambiental e humana voltada na perspectiva da

organização da produção camponesa direcionada para a comercialização dos seus produtos. Inicialmente,

dedicou-se ao trabalho de formação sindical na região tocantina e no sul do Estado, com a preocupação de

ajudar, assessorar e apoiar o trabalhador rural, sobretudo, na área da educação. A partir de 1990, aprofunda a

discussão sobre o processo de organização social, associativismo e cooperativismo. 19

Manoel da Conceição é uma das mais importantes lideranças camponesas no Maranhão. Historicamente teve

sua luta marcada pela perseguição, em uma ocasião foi baleado o que levou o levou a amputar uma das pernas;

por duas vezes foi preso, torturado e exilado pela Ditadura Militar. É um dos membros fundadores do PT da

CUT e esteve no processo de formação do MST no Maranhão, no qual contribuiu na região do Pindaré, onde

atuava como sindicalista e de onde iniciou o processo de fundação do Centro de Formação do Trabalhador Rural

- CENTRU, onde atua até hoje. Em 28 de setembro de 2010, na condição de liderança camponesa, recebeu o

título de Doutor Honoris Causa, pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA, o primeiro camponês a

receber este título naquela instituição. 20

De acordo com AZAR (2005, p. 66) “A história da grilagem na região de Pindaré, muito bem detalhada no

livro “Grilagem: corrupção e violência em terras de Carajás”, de Victor Asselin, (Petrópolis: Editora Vozes,

1982), apresenta as diferentes declarações territoriais da Fazenda Pindaré, todas devidamente registradas junto ao

INCRA, o que mostra a complexidade existente nesse grilo. As mais importantes são: 353.320ha; 1.694.000ha;

3.518.320ha; 242.000ha; 125.000ha. Os números servem para dar uma dimensão da extensão territorial e as

inerentes questões daí resultantes.”

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este curioso nome pelo fato de ai terem ocorrido assassinatos de trabalhadores que resistiram

à prática de “limpeza de área” 21

o que levou vários trabalhadores rurais serem assassinados.

Num segundo momento de territorialização do MST no estado, várias ocupações

foram realizadas na região tocantina, a exemplo da fazenda Gameleira, área de 2.000 hectares

ocupada em 1988. O processo de consolidação do Movimento e sua espacialização no estado

foi se dando também através de apoio a outras áreas de conflitos, em que mesmo sem fazer o

processo de organização da ocupação o Movimento articulava a luta para enfrentar o

latifúndio, seguindo para outras regiões e reterritorializando áreas antes tomadas pelo

latifúndio, as quais passaram a assumir a dimensão de territórios da reforma agrária.

Em 1989 o MST chegou à região de Mearim, onde ocupou com 500 famílias a

fazenda Diamante Negro Jutay, área de 8.400 hectares, localizada no então município de

Vitória do Mearim, hoje município de Igarapé do Meio. A região hoje é um dos principais

territórios da reforma agrária no estado, já que ali se encontra um numero expressivo de

assentamentos de reforma agrária. Os dois munícipios de Vitória do Mearim e Igarapé do

Meio somam um total de 19 assentamentos com 2945 famílias assentadas no total.

A década de 1990 representou para o MST no Maranhão um período de consolidação

enquanto movimento de caráter estadual, já que alcançou outras regiões, como o Oeste do

estado, nos municípios Newton Bello, Pedro do Rosário e Zé Doca, ocupando três fazendas e

conquistando três assentamentos. Além disso, mobiliza também as famílias que, apesar de não

se encontrarem ainda assentadas, vivem em acampamentos já consolidados na região.

Na região Leste do estado o Movimento avançou fazendo luta e resistência, através

de ocupações de fazendas e também organizando povoados existentes em áreas de latifúndio,

quando comunidades centenárias de posseiros que decidiram por romper as amarras da

exploração, característica das relações de vida e de trabalho estabelecidas pelo fazendeiro,

assumindo a luta pela reforma agrária. Como resultado, hoje a região conta com mais de 773

famílias assentadas e 730 famílias acampadas.

21

De acordo com Morissawa (2001, p. 189), a denominação de “limpeza da área” “foi dada pelos próprios sem

terra, devido aos vários assassinatos de posseiros que resistiram” a tal limpeza. A autora, na verdade, faz

referência à prática muito comum no estado de expulsão de comunidades de áreas não regularizadas, no processo

de expansão de fronteira agrícola. O termo, assim, designava a retirada das famílias deixando a área “limpa”,

portanto, livre do empecilho representado pelos camponeses, com o detalhe de que esta limpeza era garantida

pela violência e assassinato aos que a ela resistiam.

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Por fim, em 1994, o MST chegou à região Médio Mearin, foco da presente pesquisa,

e um dos principais palcos da luta pela terra no estado. Esta região é importante no sentido de

ter se constituído a porta de entrada para as ações empreendidas pela UDR, de perseguição

política, tortura e assassinatos de camponeses no estado. Hoje existem dezenas de

assentamentos na região, duas delas organizadas pelo MST, as quais representam

percentualmente o maior número de famílias assentadas na região, fato que representa uma

conquista muito grande para a luta pela terra no estado, de forma particular como marco da

ação do MST na região.

O MST seguiu na sua espacialização realizando ações e organizando famílias sem

terra em várias regiões do estado, chegando de forma muito particular na região Médio-

Mearim, cujas características do campo são de relações de exploração dos camponeses,

população formada com grande influência migratória, já que a região (compunha o itinerário

da migração nordestina rumo à Amazônia). Palco de muitas lutas e resistências camponesas,

constitui importante território de disputa entre o latifúndio e o campesinato. É neste cenário

que o MST vai conquistar um dos maiores assentamentos do estado, o qual vivencia os

grandes desafios do processo de luta pela reforma agrária e pela reprodução social

camponesa, o assentamento Cigra, sobre o qual discorrei a seguir.

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4. O ASSENTAMENTO CIGRA NA LUTA PELA REFORMA AGRÁRIA NO

MARANHÃO

A história do Maranhão é marcada por uma constante luta pela terra, com grandes

conflitos entre latifundiários e trabalhadores rurais. Desse processo de luta pela terra e

reforma agrária é possível encontrar registros históricos em todas as regiões do estado. Neste

sentido, muitas são as manifestações de luta e resistência no Maranhão, entre as quais merece

ser destacada a luta pela terra articulada por trabalhadores camponeses sem terra na fazenda

CIGRA (Sabeza)22

, localizada no município de Lagoa Grande do Maranhão.

No Maranhão, estado marcado por distintos episódios de luta camponesa em busca

de terra e de trabalho, a atual luta camponesa demonstra que a questão da reforma agrária no

estado ainda não foi solucionada, fazendo com que os conflitos no campo permaneçam

acirrados e cada vez mais frequente. O fato é que na mesma condição das famílias sem terra

que lutaram pela fazenda CIGRA na década de 1990, milhares de outras participaram e

continuam participando de resistências travadas em todas as regiões maranhenses,

constituindo-se como parte do contingente dos migrantes da terra do Maranhão.

Da luta que caracteriza o estado, destacam-se duas lutas históricas. A primeira do

povo negro, hoje representada nas mais de 600 comunidades quilombolas que resistem até

hoje em todas as regiões do Maranhão. A segunda é a luta indígena que vem resistindo de

todas as formas à invasão de seus territórios, a fim de manter viva a história de seus povos, a

exemplo do que foi citado por Trovão (2008) sobre a luta do povo Piocobgez que habitava no

vale da várzea do rio Grajaú e que se opunha com grande resistência aos grandes criadores de

gado usando inclusive estratégias de destruição de fazendas e povoados contra o avanço da

pecuária. Relacionando a importância da resistência negra e indígena, Trovão (2008, 33) diz:

Tal como o negro, a resistência do índio a tal dominação, foi

primordial para a sobrevivência, embora ainda bastante sacrificada de

algumas, e o que é mais importante é que o espírito de luta dessas

duas minorias étnicas nos dá uma lição da necessidade de conviver

com as diferenças de cada cultura e os diferentes, que, no entanto,

foram importantes na construção do Brasil e particularmente do

Maranhão.

Tão importante quanto a luta negra e indígena foi a luta dos migrantes nordestinos

22

A fazenda Cigra, com uma área de 24.066,6851 ha (AESCA, 2008, p. 62) antes era chamada de Sabeza, em

referência a outra área vizinha do mesmo proprietário e que era dividida apenas pelo rio Grajaú. Hoje o rio

divide o assentamento das outras fazendas e povoados.

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que, fugindo das cercas e da seca da região, desbravaram as terras maranhenses, enfrentando

logo após a investida dos latifundiários e dos grileiros, retomando uma intensa mobilização

camponesa pela terra no estado. Esse processo, de acordo com Fernandes (1999, 28), se

intensifica a partir de meados da década de 1950, ocasião em que,

[...] na região do Pindaré chegaram famílias expulsas do vale do Mearin, que

foram expulsas do Piauí e que já vinham expulsas do sertão do Ceará. Nessa

mesma época, iniciou o processo de grilagem da região, expulsando

novamente muitas famílias, que partiram para o oeste e sudoeste do

Maranhão, sempre em busca da terra liberta e da conquista da liberdade.

Assim, camponeses migrantes e expulsos chegaram na região que depois se

tornaria conhecida como Bico do Papagaio.

Esses posseiros migrantes, na sua maioria camponeses nordestinos expulsos e

expropriados em sua terra natal, se dirigiram para as várias regiões do estado em busca de

terras. De acordo com Trovão, parte desses migrantes seguiu para a região Oeste do estado,

rumo ao Projeto Alto Turi, região de colonização do governo federal, iniciada na década de

197023

, enquanto outros seguiram para distintos rincões do interior do Maranhão. De acordo

com o autor, “dentre os retirantes que seriam beneficiados [pelo Projeto de Colonização]

estariam os nordestinos, remanescentes migrantes das áreas de seringais e dos castanhais e

que ficaram antes de atingir o destino, e aqueles que de lá tinham regressado” (TROVÃO,

2008, p. 26).

Foi a partir da década de 1960 que os migrantes nordestinos se fixaram na região

central e sudoeste do estado, territorializando-se especialmente na micro região do Pindaré,

meso-região do Oeste da Amazônia. No município de Lago da Pedra, consolidaram frações de

territórios, sendo que em momento posterior perderam suas terras para fazendeiros e grileiros.

Foi este o contexto que deu início à formação do latifúndio Sabeza, com as primeiras compras

de terra datam da década de 1970. Contraditoriamente, foi neste período também que se

formaram a maioria das pequenas propriedades e posses, cujas terras, de modo geral, se

encontravam nas mãos dos camponeses que moravam em povoados. Segundo Silva (2008),

naquele momento existiam apenas algumas fazendas na região, as quais localizavam-se

próximas ao povoado Lagoa Grande, atual município de Lagoa Grande do Maranhão.

23

O Projeto de Colonização do Alto Turi – PCAT teve inicio no ano de 1972 e foi um projeto implantado pela

Companhia de Colonização do Nordeste – COLONE, instituição vinculada à Superintendência de

Desenvolvimento do Nordeste SUDENE, que era responsável no governo federal pela colonização de uma área

de um milhão de hectares na região oeste maranhense, atingindo 11 municípios do estado. O projeto tinha como

propósito beneficiar 50 mil pessoas (TROVÃO, 2008, apud Velho, 1881)

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O processo de territorialização do latifúndio na região assumiu contornos de

acirramento de conflitos a partir da década de 1980, quando João Carneiro, latifundiário

proprietário de várias fazendas, recebeu recursos subsidiados pelo governo federal através da

Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia – SUDAM (SILVA, 2008, p. 51,52). Foi

a partir desse momento que os latifundiários da região passaram a adquirir grandes extensões

de terras, através da compra e também da grilagem. O latifundiário em questão, através da

constituição da Empresa Agropecuária CIGRA, acessou os recursos da SUDAM para se

apropriar de terras. Para tanto, expropriou as terras dos camponeses pela prática da grilagem.

Cabe ressaltar que tal prática apresenta como maior característica a violência com a qual é

realizada.

Além da prática expropriatória da grilagem, este fazendeiro também utilizou o

mecanismo de compra da terra dos camponeses. No caso, para garantir a aquisição de grandes

extensões de terra, oferecia valores acima do valor de mercado, sucumbindo qualquer tipo de

resistência que os camponeses pudessem ter em relação à venda de suas terras.

Estrategicamente, aos camponeses mais resistentes a ordem era persuadi-lo através do uso da

violência. Tais mecanismos de intimidação e pressão sobre as famílias posseiras ameaçadas

frente ao poder político e econômico do fazendeiro garantiram a concentração de cerca de

24.000 (vinte e quatro mil) hectares de terra, constituindo assim um outro latifúndio, a Cigra.

Foi a partir deste contexto agrário e político que em 1993, trabalhadores rurais que

sobreviviam da produção extraída da “roça no toco24

”, sem condições de produzirem,

sentiram a necessidade de se organizarem e luta pela terra. Com tal perspectiva, formaram um

grupo e, com o apoio do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Lago da Pedra, propuseram-

se a lutar pela terra, cujo foco se centrava no latifúndio Cigra (Silva, 2008, p.52). Foi assim

que teve início a história da luta pela conquista da CIGRA, cujas primeiras iniciativas

aconteceram em julho de 1992, com a mobilização de um grupo de trabalhadores para entrar

na terra.

Porém, a notícia da mobilização dos trabalhadores chegou ao conhecimento do

fazendeiro, que reagiu, fazendo com que houvesse um recuo estratégico do grupo. Por conta

disso, somente um ano depois, em quatro de agosto de 1993, o grupo se rearticulou com o

24

A roça no toco é uma prática herdada dos povos indígenas e aperfeiçoada pelas famílias camponesas, que

utilizam determinada área para produzir através da prática consorciada de vários tipos de produção. Dentre os

principais consórcios produzidos no estado temos o arroz com milho, a mandioca com o feijão, com a introdução

da abóbora, quiabo e melancia nos consórcios citados.

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apoio da Delegacia Sindical do então povoado Lagoa Grande, pertencente ao Sindicato dos

Trabalhadores Rurais de Lago da Pedra, resolvendo entrar na terra.

O grupo em questão era formado por apenas 10 trabalhadores rurais que, embora

fossem poucos, estavam decididos a lutar pela terra motivados pela necessidade de ter um

lugar para fazer suas roças. A fazenda Cigra apresentava-se como lugar ideal para esta luta

por caracterizar-se como improdutiva, posto que a única atividade produtiva desenvolvida

pelo proprietário era a pecuária de corte, em uma área reduzida, sendo sua maior parte

constituída por mata virgem e grande quantidade de recursos hídricos

Com as compras das terras dos posseiros pelo latifundiário, as famílias passaram

à condição de sem terras, não tendo mais condições de produzirem livremente, precisando,

para tanto, submeterem-se às exigências do proprietário, que determinava pagamento pelo uso

da terra. Assim, de posseiras estas famílias se tornaram rendeiras e parceiras.

A renda camponesa da terra é caracterizada pelo pagamento pelo direito de uso da

terra. Suas formas de pagamento podem ser em dinheiro, em produtos ou em serviços. O mais

importante desta prática é a relação de exploração estabelecida pelo fazendeiro ao camponês

sem terra. Neste sentido, a realidade vivenciada pelas famílias da região não permitia qualquer

melhoria nas condições de vida, posto que eram submetidas a estas relações de exploração.

Esta situação era e ainda é a realidade de muitos camponeses nos municípios tanto da referida

região, como de todo o estado. Tal situação foi determinante para que as famílias se

organizassem, o que pode ser confirmado pelo relato abaixo, feito por um camponês

assentado pelo Projeto de Assentamento - PA Cigra, entrevistado por Silva (2008, p.54):

Indignados com essa situação de vida, os trabalhadores se deparavam cada

vez mais com a necessidade de um espaço para produzir sua própria

alimentação e sair daquele sofrimento, no qual há tanto tempo viviam. Eu

trabalhava num terreno dum senhor alagoano, lá nos Três Lagos. Eu botava

20 linhas de roça, eu pagava 60 alqueros de arroz, antão isso é uma forma de

exploração, comprava a terra da mão dele através da renda e depois devolvia

pra ela dinovo e agente aindá se sentia humilhado, porque quando a gente

tava colhendo a roça a gente já tava imaginando aonde era que ia colocar a

outra roça, se falasse pra ele, ele não queria dá a terra pra gente trabalhar,

não queria alugar. (entrevistado 3).

Aqui, fica claro que as relações de trabalho estabelecidas entre proprietário e

camponeses era de exploração. Estes trabalhadores eram rendeiros, parceiros, que pagavam

renda de até 35% da sua produção ao fazendeiro.

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Para Oliveira (1985, p. 81-82)

[...] a renda em produto, uma das formas da renda da terra pré-(não)-

capitalista, origina-se do fato de que o trabalhador cede parte de sua

produção ao proprietário da terra, pelo fato deste (o proprietário) ter cedido o

direito para que ele cultivasse a terra. Como podemos observar, nessa forma

da renda da terra, pré-(não)-capitalista, a coerção (elemento fundamental da

renda em trabalho) é substituído pelo direito, muitas vezes, expresso em

contratos (verbais ou escritos). [...] No caso brasileiro muitas são as

combinações de parceria.

Além disso, segundo os relatos obtidos, uma das condições para que estes

camponeses tivessem acesso à terra para que pudessem cultivar suas roças era a formação de

pastagem, o que implicava que antes de fazerem as roças, os camponeses abriam caminhos

para desbravarem a floresta e, só depois, faziam suas plantações. Percebe-se que o grau de

exploração era muito grande, já que os relatos apontam tipos de pagamento de renda: o

primeiro, após todo o trabalho produtivo concluído, característico do plantio de roça, com os

produtos colhidos e a produção armazenada, os trabalhadores faziam a divisão da produção

com o fazendeiro. O segundo tipo de pagamento de renda se fazia em trabalho, onde

camponeses, antes de sair da área ou mesmo para continuar usando as terras do proprietário

com quem “lidavam”, tinham que deixar a área desmatada plantada com capim, para a

formação de futuros pastos. Segundo o depoimento da assentada dona Maria dos Santos, 55

anos,

quando a fazenda tomou de conta a agente às vezes conseguia um pedaço de

terra para fazer roça mais tia que pagar renda25

e deixá o capim plantado pra

fazenda, às vezes o gado da fazenda entrava na roça e comia tudo antes da

colheita e não adiantava ir lá reclamar por que os homens eram brabo

(entrevista concedida colhida em 10 de dezembro de 2010).

Porém, nem sempre a situação era “tão favorável” aos camponeses. Pois,

[...] às vezes acontecia de todo o trabalho feito ficar perdido, com gado

entrando nas roças antes da colheita da produção, e aí não se podia fazer

nada, já que os homens eram perigosos, aqueles que tinham acesso a um

pedaço de terra para fazer roça eram pessoas escolhidas a dedo pela fazenda,

nem todo agricultor tinha direito a fazer roça, não. (Cícero Pedro do

Nascimento, entrevista colhida em 10 de dezembro de 2010)

O fato dos animais comerem a produção da roça não implicava no “perdão da

dívida” do camponês pela utilização da terra, o que obviamente levava este a situações de

mais dificuldades, pois não dispunham nem de terra, nem de dinheiro e nem de produção para

25

A renda apontada pela depoente trata-se na verdade de parceria, sendo o pagamento comumente realizado em

produto.

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o pagamento da dívida, o que levava a uma relação de endividamento para com o fazendeiro

e, consequentemente, a novas formas de exploração.

Assim, os camponeses que trabalhavam na terra, cansados da exploração a que eram

submetidos, decidiram lutar e construíram as primeiras casas no “Baixo do Tucum”, uma das

localidades da fazenda, onde iniciaram a feitura das roças, agora sem compromisso com o

fazendeiro. Porém, o número de camponeses era pequeno, o que punha em risco a empreitada,

afinal dez pessoas eram insuficientes para o enfrentamento do latifúndio, particularmente

quando se tratava de um latifundiário violento como o “doutor” João Carneiro, velho

conhecido por suas truculências contra os trabalhadores rurais desde as “bandas” de

Quixeramobim, no Ceará, e também pela forma dura na exploração dos trabalhadores, o que

lhe deu fama na região, como é observado abaixo:

O fazendeiro quando começou a adquirir essa terra, lá pelas eras de mais ou

menos 75, vinha chegando e comprando do jeito dele, quem não quisesse

vender era expulso saia do mesmo jeito, como aconteceu com o Ciço Pedro.

Ele perdeu seu pedaço de terra e só conseguiu de volta quando a terra foi

desapropriada. Hoje ele mora ali pro rumo do Tomé, é assentado. Antes da

fazenda tinha por estas bandas, povoados que se acabaram depois que o

doutor João Carneiro chegou, [...] na Estrela tinha morador, na Cigana tinha

morador, na Jabota, tinha gente espalhado que chegaram aqui vindo do

Ceará, Piauí há mais de 50, 60 anos chegaram pra cá [...] (Antonio Amâncio,

entrevista concedida em 13 de dezembro de 2010)

Tendo conhecimento da força do inimigo e consciente das dificuldades que poderia

enfrentar, o grupo sentiu a necessidade de mobilizar mais trabalhadores para a luta. De

imediato receberam a adesão de mais 17 pessoas, fortalecendo assim a ação inicial do grupo.

O novo grupo formado contava com pessoas de várias outras comunidades da região, todas

com histórias de resistência e luta contra a grilagem de terras. Estas comunidades eram a

Unha de Gato, Baixão dos Caboclos, Centro do Manoel Rufino, Centro Pereira, Baixão do

Eugênio e Granbretânia, todas localizadas no município Lago da Pedra, na área emancipada

deste município, atual município de Lagoa Grande do Maranhão, onde se encontra a fazenda

CIGRA (AESCA 2008. p. 63).

Porém, apesar de contar com a participação de pessoas das comunidades acima

citadas, poucas foram as adesões. O grupo, embora agora composto por 27 trabalhadores,

ainda não mostrava força suficiente para confrontar o latifundiário, o que exigiu a

continuidade do trabalho de mobilização de mais trabalhadores e camponeses para fortalecer a

luta. E assim o fizeram.

Com o apoio da Igreja Católica e do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Lago da

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Pedra, mobilizaram pessoas de outros municípios, conseguindo a adesão de camponeses das

comunidades Pau Ferrado, Monte Vídeo e Poços, próximos do então povoado Lagoa Grande.

O resultado dessa mobilização foi que no final de outubro de 1993 o grupo já contava com

cerca de oitenta integrantes, sendo por isso autodenominado de “Grupo dos 80”.

A iniciativa da mobilização surtiu efeito e o grupo sentiu-se fortalecido, mas de

imediato passou a sofrer ameaças do latifundiário através de investidas de seus pistoleiros, o

que se intensificou principalmente depois que decidiram expulsá-los da localidade

denominada Lagoa Nova, onde eles controlavam a cobrança da renda e vigiavam os

camponeses para que não fizessem nada além da roça. Com a expulsão dos pistoleiros dessa

localidade, aumenta-se a tensão entre os posseiros e o fazendeiro.

A partir de então, o local se transformou no principal lugar de disputa entre

fazendeiro e o “Grupo dos 80”, aumentando assim a tensão pela disputa daquele território. Por

isso, o grupo resolveu mudar-se do Baixão do Tuncum para a Lagoa Nova, mudança que

propiciava maior acesso à água, melhores condições de manter a segurança física do grupo e

de garantir, de forma mais tranqüila, a manutenção das roças. Outro fator que definiu a

mudança do Baixão do Tucum para Lagoa Nova, foi a possibilidade de acesso mais rápido ao

povoado Lagoa Grande, o que facilitaria a comunicação e articulação externa. Tal mudança

constituiu um elemento estratégico para expandir o grupo, pois este entendia que a

proximidade física com os camponeses que pagavam renda poderia encorajá-los a aderirem à

luta, já que a presença do grupo estimularia os camponeses a tomarem posição em relação à

luta pela conquista da CIGRA. O resultado dessa estratégia foi que parte destes camponeses

aderiram à luta e juntaram-se ao “Mutirão”26

, enquanto outros decidiram continuar os

trabalhos da mesma forma, ligados diretamente à sede da fazenda, e ainda teve um grupo que

decidiu se retirar da área. (AESCA, 2008).

Esse primeiro momento da luta pela conquista da fazenda representou a consolidação

26

Mutirão foi a denominação dada ao processo de resistência na fazenda CIGRA, iniciada pelos camponeses e

apoiada pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Lago da Pedra e pela Delegacia Sindical de Lagoa Grande

no período de 1992 até agosto de 1994. Neste período, os camponeses se organizaram para fazer roças dentro da

fazenda e, através de grupos, realizavam as atividades: seguiam juntos para as roças, buscavam água, faziam a

segurança coletiva das áreas trabalhadas, e mesmo quando tinham que ir à cidade, também o faziam sempre em

grupo. A estratégia era a garantia da segurança física de cada um dos camponeses, pois sabiam eles que em

qualquer “encontro” individual com algum dos pistoleiros do fazendeiro, o camponês estaria sempre em risco e

em desvantagem. Outra característica do mutirão era que os camponeses tinham uma área dentro da fazenda

onde fincaram acampamento. Lá, montaram barraca para se alojarem e depositarem seus instrumentos de

trabalho, fazer comida e descansar; além de constituir-se em um espaço eminentemente masculino, pois a

participação direta das mulheres era muito pequena. A partir de setembro de 1994, com a ocupação da fazenda

organizada pelo MST, o termo acampamento vai tomando sentido, considerando que as famílias acampam no

local e as características anteriores vão dando lugar à organicidade própria do MST.

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do “Grupo dos 80”, fato que acirrou o conflito direto com o fazendeiro, gerando o confronto

entre trabalhadores, pistoleiros e policiais. Tal fato, por duas vezes, resultou em camponeses

feridos, o que provocou mais revolta e maior disposição para a luta pela terra e pela reforma

agrária.

Passada essa primeira fase, o grupo decidiu fortalecer ainda mais a mobilização,

ampliando as articulações, buscando apoio de organizações políticas dos trabalhadores na

região e no estado. Foi com esta perspectiva que buscou o apoio do MST para contribuir com

a organização das famílias e conquistar a cobiçada fazenda. Foi desta forma que o MST

chegou à região e que sua militância passou a organizar a ocupação da fazenda, iniciando o

trabalho de base27

que se concentrou em cinco municípios: Lago da Pedra, Paulo Ramos,

Lago do Junco, Lago dos Rodrigues, Vitorino Freire (PDA 2008), especialmente nas

comunidades rurais desses municípios, contando para isso com o apoio de organizações

sociais como os Sindicatos de Trabalhadores Rurais dos municípios de Paulo Ramos, Vitorino

Freire, Lago da Pedra, Pio XII e comunidades de base da igreja católica e escolas da família

desses municípios. Depois de três meses de articulação e organização nos municípios houve a

consolidação da ocupação da fazenda. A ocupação da fazenda Cigra, politicamente foi muito

importante, pois foi a primeira realizada pelo MST na região.

Às quatro horas da manhã do dia 19 de setembro de 1994 chegou o primeiro grupo

de trabalhadores rurais ao acampamento localizado na área da fazenda Lagoa Nova para se

integrarem ao “Grupo dos 80” e concretizarem a luta pela fazenda CIGRA. O acampamento,

agora organizado pelo MST, contava no final da manhã com mais de 400 famílias e seguia

uma dinâmica organizativa própria do Movimento, com a formação de grupos específicos de

trabalho28

.

O acampamento foi montado na Lagoa Nova, localizado a 19 km da sede da fazenda

27

O trabalho de base se constitui como uma forma de preparar as famílias para a ocupação de terra. É um

processo de formação sobre a situação em que vivem os camponeses sem terra, fazendo a reflexão sobre a

importância e a necessidade de luta pela reforma agrária. É também o primeiro espaço de organização política

antes da chegada à terra. É neste momento que são organizadas as primeiras equipes responsáveis pela

articulação e mobilização de mais famílias sem terra, assim como em que são articulados os sujeitos políticos da

região. 28

O processo de ocupação da terra feita pelo MST tem uma dinâmica própria que vai da organização das

famílias em núcleos de base, passando pela organização da segurança em grupos que se revezam 24 horas por

dia para garantir tranqüilidade do acampamento, até os grupos de trabalhos, equipes para execução das várias

tarefas diárias, como limpeza, negociações, articulações, alimentação, dentre outras. Os setores básicos são:

saúde, formação, educação, juventude e produção. Destes setores e equipes é formada a coordenação do

acampamento, os setores são composto por representantes dos grupos de famílias, podendo variar de acordo o

numero de famílias acampadas, quanto maior o acampamento maior a representação nos setores. Podendo ter

setores, equipes ou grupos de trabalho de dez pessoas ou até de 30. Estas estruturas tem uma agenda de reuniões

e de trabalho permanente.

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e a 5 km do povoado Lagoa Grande. A consolidação do acampamento com a ocupação da

fazenda Cigra foi o marco definitivo para a desapropriação da área para fins de reforma

agrária, demanda latente entre os camponeses daquele município. Tal processo pode ser

melhor observado através do depoimento cedido a Silva (2008, p. 55), transcrito abaixo

Quando foi começado aqui o Cigra, foi através do MST e Sindicato dos

Trabalhadores Rurais. A militância começou fazendo reuniões nos

povoados, que levou o povo prum local que hoje é chamado Lagoa Nova.

Todos chegaram à noite e pela manhã o MST começou a trabalhar junto com

as famílias, dividindo em grupos para montar o acampamento: uns foram

cavar poço para manutenção de água das famílias; outros foram tirar palhas

para fazer barraco; outros foram cuidar da alimentação e outros para tirar

madeira. Foi montado também grupos para fazer vigília nas entradas do

acampamento, para fazer segurança das famílias que se encontrava dentro

daquele local, que tinha crianças e mulheres.

Com tal organicidade, o acampamento seguiu na luta, fortalecendo o movimento

iniciado pelo “Grupo dos 80” e avançando na correlação de forças, o que levou à

consolidação do acampamento com o tempo. Este fato, porém, não inibiu as constantes

ameaças feitas pelos pistoleiros do fazendeiro. Na verdade, a fazenda já era objeto de

processo de reivindicação feito pelos camponeses antes da ocupação da terra, e devido a isso,

já existia um clima de tensão entre o fazendeiro e os camponeses que já sofriam, há tempo,

ameaças por parte dos pistoleiros contratados pelo fazendeiro. Assim, o clima de tensão se

intensificou com o acampamento organizado pelo MST, e as ameaças feitas pelos pistoleiros

foram sendo concretizadas através do sequestro de alguns trabalhadores que foram levados

para a sede da fazenda onde foram torturados física e psicologicamente, fato que agravou

ainda mais a tensão entre os dois lados.

No mês de novembro daquele ano, dois novos fatos marcaram o acampamento

CIGRA. O primeiro decorreu das péssimas condições em que se encontravam os barracos,

diante da necessidade de reparos, principalmente na cobertura, pois a proximidade das chuvas

gerava uma grande preocupação principalmente com relação às crianças e idosos. Para

resolver tal questão os acampados empreitaram os serviços de caminhoneiros do povoado

Lagoa Grande. Estes, apesar de terem acertado o contrato, estavam temerosos da reação do

fazendeiro e não compareceram a nenhum dos vários encontros marcados. Por conta disso, os

acampados se reuniram, analisaram a situação e entenderam que seria necessária uma ação

mais radical. Assim, seguiram até o povoado e sequestraram os caminhoneiros e seus

respectivos caminhões, a fim de que fosse garantida a realização do serviço anteriormente

combinado: o transporte das palhas para a cobertura dos barracos. O segundo fato foi uma

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grande caminhada para pressionar a desapropriação da fazenda, envolvendo cerca de 600

pessoas que percorreram mais de 10 km entre o acampamento até a sede do povoado Lagoa

Grande, realizando ali um grande ato político público.

Mesmo com a crescente mobilização e o grande apoio político, a tensão entre as

famílias sem terras e os latifundiários só aumentava. Foi quando, no dia 8 de dezembro do

mesmo ano de 1994, cansadas de esperar uma resposta à questão, as famílias acampadas

resolveram ocupar também a sede da fazenda. O intuito de tal ocupação era o de pressionar o

fazendeiro contra as constantes ameaças e torturas sofridas pelos camponeses. Na manhã

deste dia, enquanto se dirigiam à sede para efetivar sua ocupação, as famílias foram

surpreendidas por pistoleiros que efetuaram um violento ataque contra os manifestantes, o que

resultou no assassinato do camponês Josiel Alves Pereira, o qual já havia sido sequestrado

durante o tiroteio29

. O assassinato de “Josi”, como era carinhosamente chamado pelos

companheiros, causou comoção e revolta entre as famílias, desencadeando grande pressão por

parte das organizações sociais do estado para que ocorresse a prisão dos pistoleiros, os quais

chegaram a ser capturados e levados à delegacia, onde permaneceram presos por apenas uma

semana. Com a prisão dos pistoleiros e a fuga do gerente da fazenda, a sede ficou abandonada

e as famílias decidiram pela ocupação de suas dependências, a fim de evitar o não dos

pistoleiros ao local.

Apesar da prisão dos pistoleiros, passados 16 anos do crime ainda não houve o

julgamento dos assassinos e nem dos mandantes do crime. Social e politicamente, o

assassinato também provocou uma onda de pressão sobre os órgãos estaduais e federais para

acelerar o processo de desapropriação da referida fazenda. Tal pressão tinha como base o

laudo emitido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, que

caracterizava a fazenda como improdutiva, além do próprio decreto de desapropriação, datado

de 1º de dezembro de 1994, sete dias antes do assassinato de Josi. O decreto foi publicado no

Diário Oficial da União – DOU, na data de 02 de dezembro de 1994, enquanto a expedição da

imissão de posse só aconteceu em 27 de janeiro de 1998. (AESCA (2008, p. 24). Passados

dois anos desde a primeira tentativa de negociações, através do INCRA, entre governo

federal, movimentos e organizações sociais e representantes do fazendeiro, em 17 de julho de

1996 foi concretizada a conquista da fazenda CIGRA, com a criação do Projeto de

Assentamento - PA CIGRA, pelo governo federal.

29

Josiel era uma das principais lideranças da luta, e já tinha sofrido ameaças de morte desde os primeiros

conflitos juntos com outras pessoas.

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MAPA 1 - Localização do Assentamento Cigra – Maranhão (2011)

Vencida a batalha da libertação da terra, os Sem Terra decidiram se organizar para

conquistar outros direitos além da terra. Em julho de 1996 o acampamento foi desfeito e as

famílias se espalharam por toda a área, formando 12 comunidades: Baixão do Tucum (atual

Vila Trocate), Vale do Acidente, Lagoa Nova, Cigana, Zé Gato (atual Vila Kênio), Lagoa da

Estrela, Vila Tomé, Bom Jesus, Alto Bonito, Vila Nova, Cojuba e Joselândia, esta última, em

homenagem a Josiel Alves. De acordo com o PDA (2008, p. 24), ao todo são 725 famílias

sipradas30

e 130 famílias agregadas31

, com uma população estimada em 5.130 pessoas. Ainda

de acordo com a fonte acima, cada família siprada foi beneficiada com um lote de 31,54

hectares.

30

Família siprada é a condição da família assentada que possui cadastro junto ao Sistema de Informações de

Projetos de Reforma Agrária – SIPRA, cujo objetivo é sistematizar, monitorar e gerar informações

socioeconômicas dos assentamentos, como os projetos e recursos aplicados. Tal monitoramento é feito através

de um banco de dados. O SIPRA reconhece oficialmente o cadastrado como beneficiário da reforma agrária.

(AESCA, 2008) 31

Famílias agregadas, nome comumente utilizado pelos assentados, são aquelas famílias que não têm o registro

como beneficiária da reforma agrária junto ao SIPRA. Sua condição é apenas de moradora de “favor”,

dependendo de um amigo ou parente, que lhe dá permissão para utilizar a terra para sua produção e manutenção.

Em geral, são parentes de alguma família assentada, que se encontrava em condições de precariedade,

principalmente nas cidades e que recebem o apoio da família assentada, passando a morar no assentamento, onde

constroem uma “casinha” e passam a compor a dinâmica da comunidade.

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Figura 1 - Subáreas do Assentamento Cigra – Maranhão (2010)

4.1. A COMUNIDADE ALTO BONITO E A CONSOLIDAÇÃO DO

ASSENTAMENTO CIGRA

Depois da conquista da terra, a luta na Cigra se voltou para a organização do

assentamento. Como já foi dito anteriormente, a área foi subdividida em doze subáreas32

. Em

função do assentamento possuir 24 mil ha, as famílias decidiram formar várias comunidades

no assentamento, de forma a garantir um melhor processo de socialização entre elas. O termo

comunidade possui um valor simbólico maior, dando a idéia de “algo comum”, da troca de

favores, da solidariedade no trabalho, nas atividades festivas. Trata-se de um conceito muito

comum na região, fruto inclusive da influência das Comunidades Eclesias de Base - CEB´s -

até hoje, sendo, porém, um termo usado apenas pelos camponeses e religiosos. Para o INCRA

elas são denominadas de agrovilas.

Das comunidades formadas no PA CIGRA, a comunidade Alto Bonito33

foi uma das

primeiras a serem organizadas. Ela possui 1.844 ha (um mil, oitocentos e quarenta e quatro

32

Subáreas, denominação muito utilizada na região para explicar a divisão do assentamento em áreas menores,

cada subárea corresponde a um número de famílias diretamente beneficiada, conforme pode ser observado na

figura 1. 33

Alto Bonito é o nome escolhido para a comunidade pela existência de um morro com uma bela paisagem, de

uma vegetação alta, onde tinha um babaçual. Pela beleza do morro que chamava muita atenção de todos que

passavam naquela localidade, decidiram por denominá-la Alto Bonito.

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hectares), os quais encontram-se divididos em 57 (cinquenta e sete) lotes de 35 (trinta e cinco)

ha para cada família, sendo que cinco hectares de cada lote são destinados à Área de

Preservação Permanente - APP, seguindo a legislação ambiental34

.

Todos estes elementos constituem o processo de consolidação do assentamento, que tem

início ainda nos idos anos de 1995 e 1996, quando foram feitas as primeiras roças e

construídos os primeiros barracos, ainda sob a ameaça dos pistoleiros, que mesmo depois do

processo de desapropriação da área, teimavam em circular e ameaçar as famílias, tanto em

suas residências quanto em lugares inusitados, como estradas e roças, conforme pode ser visto

no depoimento abaixo, cedido a Nascimento (2009, p. 13)

Quando chegamos aqui foi muito ruim, nós não tinha paz, os pistoleiros era

passando de vez em quando nós ía trabalhar, era um sufoco toda vez que eles

vinha, nós parava o serviço e só depois que eles passava dava continuidade

no serviço, para poder fazer nossas roças, passamos por muita dificuldade

na busca da realização de nosso sonho. (Sr. Raimundo, transcrito de

NASCIMENTO, 2009)

Como pode ser observado no depoimento acima, a comunidade Alto Bonita recebeu

pressão e ameaças mesmo depois da terra ter sido desapropriada pelo governo. O fazendeiro

não queria entregar a terra para os camponeses, pois este considerava a perda de suas terras

uma derrota política e pública inconcebível para o latifúndio da região. Neste sentido, a

fazenda Cigra constitui-se em mais uma conquista dos trabalhadores sem terra no processo de

territorialização camponesa naquela região, reflexo da luta e da conquista no nível das

organizações políticas dos trabalhadores que só aumentava em todo estado.

Atualmente a comunidade do Alto Bonito dispõe de uma infraestrutura básica,

mesmo que precária, sendo este um dos motivos de saída de muitas famílias para fora do

assentamento. Na comunidade só existe educação até o ensino fundamental, sendo necessário

as pessoas que queiram continuar estudando se deslocar da comunidade até as escolas da

cidade todos os dias, razão pela qual algumas famílias optam em mandar os filhos morarem

na cidade.

A partir de reunião realizada com as lideranças do assentamento acerca da intenção

da pesquisa de entender o fenômeno da migração no assentamento, a avaliação do grupo

indicou a comunidade Alto Bonito como aquela com o maior número de pessoas que

34

A Área de Preservação Permanente - APP está regulamentada na lei federal de número 4.771/65, alterada pela

lei de número 7.803/89. A APP nas áreas de reforma agrária é uma exigência para a criação dos Projetos de

Assentamentos - PA, sendo um espaço reservado para conservação de mata ciliar, florestas, áreas de mangue,

lagos e lagoas entre outros em beneficio do meio ambiente e da comunidade.

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periodicamente migram para outros estados e países em busca de trabalho e renda, sendo ela a

escolhida para o desenvolvimento de minha pesquisa empírica.

Considerando que o fenômeno da migração tem se apresentado de forma contundente

em assentamentos de reforma agrária, tenho nestes últimos tempos dedicado parte do meu

tempo para entender como isto se apresenta particularmente nesta comunidade, pretendendo

com isso analisar o sentido deste fenômeno para um assentamento que, em tese, dispõe de

apoio de políticas públicas especificas para a permanência dos trabalhadores no campo, além

de ser organizado pelo MST, movimento com reconhecimento público que tem a preocupação

de organizar a vida das famílias nos assentamentos e, de forma especial, com a questão da

produção como estratégia de melhoramento das condições de vida das famílias assentadas.

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73

5. ALTO BONITO: UMA EXPRESSÃO DA MIGRAÇÃO NA REFORMA AGRÁRIA

MARANHENSE

Como vimos ao longo desse trabalho, a questão da migração se apresenta como um

fenômeno social, um processo histórico inerente à formação dos homens, que aparece em

todas as sociedades e não se constitui apenas como processo exclusivamente humano, já que o

fenômeno da migração pode ser encontrado em todos os espaços da vida, seja na dinâmica da

sociedade, seja na dinâmica da natureza. Mas, é a particularidade da migração humana o foco

desse estudo, em especial a migração na reforma agrária. É ela que será aqui analisada a partir

da dinâmica migratória na Comunidade Alto Bonito do assentamento Cigra.

Para entender este fenômeno na reforma agrária, parto do trabalho desenvolvido em

campo para realização da presente pesquisa35

, onde busquei fazer um levantamento tendo

como um dos aspectos a caracterização da comunidade, com o objetivo de identificar o nível

de acesso das famílias do Alto Bonito aos programas sociais.

Das 57 famílias assentadas na comunidade Alto Bonito, 44 delas recebem algum tipo

de programa assistencial do governo federal, o que corresponde a 77,20% do total, enquanto

22,80% declararam não receber qualquer tipo destes auxílios. Os programas acessados são o

Programa Bolsa Família, aposentadoria ou o Auxílio-maternidade e Auxílio-doença. A tabela

abaixo mostra a distribuição deste acesso na comunidade. Vale ressaltar que nenhum

programa de assistência social acessado pelas famílias é oferecido pela administração estadual

ou municipal.

35

A pesquisa foi realizada através da utilização e aplicação de questionários e entrevistas, onde obtive

informações importantes que me fizeram entender a problemática da migração no assentamento Cigra, tendo

como campo empírico a comunidade Alto Bonito. Além das entrevistas e questionários, foram feitas reuniões na

comunidade Alto Bonito, assim como conversas e debates com lideranças de outras comunidades do

assentamento.

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74

Tabela 1: Programas de Assistência – Comunidade Alto Bonito – Cigra – Maranhão

(setembro 2010)

Programa Acessa % Não

acessa

% Sem

resposta

% TOTAL

Bolsa Família 39 68,40 16 28,10 02 3,50 57

Aposentadoria 08 14 49 86,00 - - 57

Auxílio-

maternidade

02 3,50 55 96,50 - - 57

Auxílio-doença 01 1,75 56 98,25 - - 57

Fonte: Dados levantados na pesquisa de campo (2010)

Observando a tabela acima percebemos que do total de 57 famílias entrevistadas,

68,40% se declararam beneficiárias do Programa Bolsa Família, 28,10% disseram não ter

acesso ao programa, enquanto 3,50% ficaram sem declarar reposta. Apesar do Programa em

questão constituir-se em um programa público federal, é importante observar que sua

implementação em nível local é de responsabilidade da prefeitura municipal, o que implica na

construção de relações políticas complexas entre os poderes locais e as famílias que compõem

o público do programa. Pode-se perceber que o programa Bolsa Família tem possibilitado o

agravamento da fragilidade política das famílias pobres em relação aos poderes locais

constituídos, tanto público quanto privado. Por um lado, famílias precisam se submeter a

relações determinadas por gestores municipais, constituindo sua inserção no Programa, moeda

de troca política. A fragilidade e dependência política das famílias perante esses gestores

possibilitam que estes, muitas vezes, se utilizem do programa para fazer controle social.

Além disso, as famílias também precisam se submeter aos ditames do poder privado,

como por exemplo, o comércio local. São inúmeros os casos denunciados de situações nas

quais comerciantes locais exercem um controle sobre a utilização dos recursos

disponibilizados pelo Programa, chegando a ter casos de apreensão de cartões por

comerciantes como garantia de compra no seu estabelecimento ou como garantia de

pagamentos de dívidas anteriormente constituídas.

No que se refere à população idosa, os números encontrados indicam que 14% das

famílias entrevistadas possuem benefícios da aposentadoria. Considera-se, no entanto, que os

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75

idosos36

que compõem as famílias assentadas não se encontram em sua totalidade no

assentamento, pois muitos passam a morar nas cidades devido às dificuldades,

principalmente, de acesso aos serviços de saúde no meio rural, os quais são muito precários.

A pesquisa também mostra que, no momento em que os dados foram coletados,

apenas 3,50% das mulheres entrevistadas acessavam o auxílio-maternidade e apenas 1,75%

das famílias possuíam alguém acessando o auxílio-doença. Não é objetivo desta pesquisa a

análise de tais programas. A intenção é apenas pontuar os tipos de renda acessados pelas

famílias envolvidas, para que tais dados possibilitem a melhor compreensão do fenômeno da

migração no contexto da reforma agrária.

O que é possível ser afirmado é que apesar dos programas elencados constituírem

renda extra para as famílias, eles não têm impendido a migração do assentamento, já que a

renda obtida não resolve os problemas da comunidade e também não tem atendido às

demandas das famílias. Nesse sentido, os jovens são aqueles menos beneficiados e, ao não

verem suas necessidades atendidas pelas políticas públicas, buscam alternativas de geração de

renda, vendo na migração uma saída para a busca de trabalho e renda fora da comunidade,

crendo que esta suprirá as demandas pessoais, próprias da juventude.

O preço a pagar é alto: deixam suas famílias, os amigos, a convivência com a

comunidade, seus valores e cultura, conforme pode ser observado no depoimento abaixo:

A distância da família é que mais se sente falta, dos amigos, da comunidade.

Mas, é preciso ficar para arrumar um dinheiro, mesmo com muita

dificuldade já que aqui, para arrumar uma diária de R$ 20 não tem quem

pague, já que roda pouco dinheiro então tem que sair pra fora. (Aroldo

Fontinele da Silva, 29 anos, depoimento em 09 de setembro de 2010).

Seguindo os dados levantados pelo questionário, encontram-se questões relacionadas

à produção do assentamento, como esta se encontra organizada e qual o destino dos produtos,

ou seja, como ocorre a organização da produção e comercialização da produção na

comunidade Alto Bonito. A partir destes dados, pode ser traçado o perfil das famílias em

relação à produção e à renda geradas na comunidade, no sentido de entender o papel da

produção no processo migratório vivenciado pela comunidade.

No que se refere ao tipo de produção, a comunidade apresenta características e tipos

comuns no estado. Assim como no assentamento em geral, na comunidade Alto Bonito as

36

Como o assentamento apresenta uma precária estrutura física, muitas vezes as famílias decidem pela

permanência do idoso sob os cuidados de quem vive nas cidades.

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76

famílias têm como matriz tecnológica da produção agrícola a roça no toco, como a forma

tradicional de tirar o sustento e um pouco de renda. De acordo com o levantamento feito na

pesquisa, as práticas agropecuárias envolvem 100% das famílias. Ainda considerando as

informações obtidas, as atividades são feitas de forma individual, tendo como trabalho

cooperado apenas o trabalho familiar. Em termos de área utilizada para a agricultura, o arroz

ocupa a maior área, sendo cultivado em consórcio principalmente com milho, feijão, quiabo,

abóbora, dentre outras culturas. Além deste tipo de produção, existe uma expressiva produção

de pecuária extensiva, com a criação de gado bovino de corte, prática que envolve pelo menos

90% dos assentados, sendo esta produção considerada uma espécie de poupança, posto que o

gado geralmente é vendido para atender situações especiais e de emergência. O dinheiro

adquirido com a venda do gado é usado para custear tratamentos de saúde, viagens e

pagamentos de dívidas, mas também o gado é criado para garantir compra de utensílios e

mobiliário doméstico, roupas e ainda material de trabalho e melhoria da terra.

A produção agrícola é basicamente para o auto-sustento, sendo comercializados

produtos excedentes. A comercialização deste excedente agrícola, assim como do gado de

corte, geralmente é feita para os atravessadores,

[...] um tipo de comerciante que, geralmente de forma inescrupulosa, se

oportuniza da precariedade social das famílias camponesas, impulsionadas

pelas dificuldades financeiras, e mais especificamente pelas dificuldades de

escoamento e comercialização de suas produções. Estas famílias submetem-

se a vender os seus produtos a qualquer preço e nas condições impostas pela

figura intermediária do atravessador. Sabendo ele (o atravessador) das

dificuldades que enfrentam estas famílias, investe-se de poder e negocia o

preço da mercadoria impondo-lhe o valor que lhe convém,

responsabilizando-se pela distribuição dos produtos no mercado local.

(AZAR, 2007, p 107)

No caso específico do assentamento Cigra, um dos elementos que determinam a

relação assentados e atravessadores é sua localização geográfica e, consequentemente, as

condições de acesso ao mesmo. Como o assentamento localiza-se em região caracterizada

pela falta de infra-estrutura, sem estradas, sem transporte adequado, as famílias não têm

condições efetivas de escoamento de sua produção. Associado a isto, os programas de

comercialização disponibilizados pelo poder público não apresentam condições de

acessibilidade a estes assentados, considerando os critérios que os programas apresentam,

assim também pelos motivos de descaso dos municípios, que não têm valorizado o acesso a

programas do governo federal voltados à agricultura camponesa.

Assim, com as dificuldades de realizar a comercialização de seus produtos diretamente

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77

aos consumidores finais, os assentados encontram-se condicionados às relações estabelecidas

pelos atravessadores. São eles que, com seus transportes, chegam até o assentamento e

negociam a compra da produção, normalmente impondo os preços. Considerando ainda as

dificuldades financeiras a que são submetidas as famílias, outro fenômeno de fundamental

importância no processo de comercialização é a “venda na folha”, que é literalmente a compra

da produção em fase anterior à colheita, ou seja, ainda “na folha”.

É fato comum, não só no assentamento Cigra, mas em todo o estado, que famílias

necessitadas de dinheiro sejam “atendidas” por algum comerciante, o qual faz um

adiantamento em dinheiro relativo à compra da futura produção do assentado. Como a

produção ainda não está concretizada, o valor desta fica estabelecido muito abaixo do valor

real do produto, “resolvendo” a situação emergencial das famílias mas, no fundo,

aprofundando suas dificuldades financeiras. O fato se torna mais dramático porque com o

tempo estas famílias não têm nem a produção para seu consumo, nem dinheiro para sua

manutenção, criando com isso um círculo vicioso.

Apesar de não existir efetivamente o trabalho cooperado na prática agropecuária na

perspectiva da agroindústria, existem trabalhos cooperados tanto na produção quanto em

atividades sociais e políticas, as quais são eminentemente coletivas. Assim, são organizadas e

realizadas coletivamente todas as atividades de festividades e comemorações, como a festa do

aniversário do assentamento, das comunidades, o festejo religioso, atividades escolares como

exposições e feiras de ciência. Também tem o cunho coletivo as articulações e mobilizações

políticas, como a luta por políticas públicas.

Casos como a luta pela escola e pelo PRONAF são exemplos que bem demarcam a

participação da comunidade na busca da resolução de seus problemas. No primeiro caso,

conforme Nascimento e Esperdião (2009), a luta pela educação teve início ainda em 1996,

tendo sido imprescindível a participação de todos e de forma coletiva. De acordo com o

estudo feito acerca da conquista da escola pela comunidade, os autores informam que foi

[...] um luta que sem sombra de dúvida contribuiu e contribui para a

realização de grandes sonhos. Se os povos da Agrovila Alto Bonito, não

estivessem organizados juntamente com outras pessoas na busca de mais

uma conquista não teriam conseguido esta vitória, pois conquistas como essa

só se alcançam quando várias pessoas se unem e lutam juntas com a

consciência de que conquistarão o que por direito é do povo, uma educação

do campo voltada para a realidade de vida e que possa contribuir para a

transformação da sociedade. (NASCIMENTO e ESPERDIÃO, 2009, p. 24).

Em termos de trabalho, as famílias realizam várias atividades de forma cooperada,

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como os mutirões e trocas de dias. No entanto, a cooperação, na perspectiva da organização

produtiva e de comercialização do assentamento, apresenta-se ainda como um grande desafio.

As famílias vêm debatendo sobre o assunto há muito tempo, no sentido de criação de uma

cooperativa de comercialização para viabilizar o escoamento da produção. Tal debate tem se

manifestado através da experiência de comercialização coletiva, com a realização da Feira da

Reforma Agrária. O assentamento Cigra, desde 1999, organiza uma feira com seus produtos

agrícolas, através da venda coletiva. O evento é anual e acontece no município Lago da Pedra,

maior centro comercial da microregião Médio Mearim.

Inicialmente, com caráter de sensibilização social sobre a reforma agrária, a Feira,

depois de 11 anos, apresenta-se ampliada em suas intenções. Se, primeiramente, os assentados

pretendiam apenas mostrar à sociedade a viabilidade da reforma agrária, com o passar dos

anos, ampliaram seus objetivos, tendo a feira tornado-se uma referência não apenas no

aspecto comercial de produtos de reforma agrária, mas no sentido político. Composta não

mais apenas por assentados da Cigra, conta com a participação de organizações sociais

ligadas à luta pela terra e pela reforma agrária de cinco municípios, sendo eles Lagoa Grande,

Lago da Pedra, Paulo Ramos, São Roberto e Esperantinópolis. A Feira hoje constitui uma

articulação do MST, da Associação Estadual de Assentamentos no Estado do Maranhão –

ASSEMA, Casa Familiar Rural, Escola Família, Sindicatos de Trabalhadores Rurais e Igreja

Católica, assumindo um caráter mobilizador, articulador, de pressão e reivindicação política,

assim como de formação e denúncia.

Como já foi dito, a produção do assentamento é essencialmente para o auto-consumo

familiar e o pouco excedente existente é comercializado, principalmente com os

atravessadores. Em termos da aplicação do dinheiro recebido nesta transação, o que foi

levantado na pesquisa é a destinação deste recurso que, somado às demais rendas monetárias

às quais nos referimos no início deste capítulo destina-se, essencialmente, à aquisição de

produtos para a família, como roupas, sapatos, remédios, alimentos não produzidos na roça;

de produtos e material para a produção e, ainda, para quitação das parcelas do projeto de

produção.

Em relação ao envolvimento da família na produção agropecuária, todas as famílias

entrevistadas responderam que compõem o processo produtivo. De forma geral, a organização

da produção é feita com a divisão de tarefas entre vários membros da família. Alguns cuidam

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da roça, cuja tarefa é eminentemente de responsabilidade dos homens, assim como o

tratamento dos animais de médio porte (gado, cavalos, burros e jumentos). Na divisão social

do trabalho, as mulheres cuidam dos animais de pequeno porte (galinhas, patos, porcos),

cuidam das hortas, são responsáveis pelo beneficiamento de produtos diversos como

confecção de queijos e doces, assim como realizam trabalhos na roça37

além, obviamente, de

terem o papel estratégico de cuidar dos trabalhos domésticos. Cabe às crianças o papel de

ajudar em todas as atividades, sejam aquelas realizadas na roça, no trato com os animais ou

nos trabalhos domésticos. No entanto, vale ressaltar as particularidades do trabalho infantil

masculino e feminino.

Em situações especificas do papel da mulher no processo produtivo, nas ocasiões em

que o homem “responsável” pela casa migra, cabe à sua esposa assumir o papel de condução

do processo, tomando as decisões inerentes a este. Na ausência do “homem da casa”, ela

assume o comando e responde pelas atividades e resultados obtidos.

Muitas vezes, para garantir a permanência das crianças na escola, e considerando a

diminuição da capacidade produtiva da família provocada pela ausência do migrante, a

mulher precisa contratar força de trabalho externa à unidade familiar, contando para isso com

o dinheiro enviado pelo migrante.

Obviamente que a migração implica em sobrecarga de trabalho e acarreta problemas

para a manutenção da produção, pois quem fica, seja mulher, mãe ou parentes, precisa

garantir tanto a produção quanto a manutenção da casa. Para isto, em geral dependem do

envio de dinheiro pelo migrante.

Quanto à sobrecarga de trabalho, 96,5% das famílias entrevistadas consideram que

há sobrecarga de trabalho, pois, além do trabalho da roça e do trato com os animais, é

ampliada a responsabilidade com a casa e com os filhos, ficando assim bem demarcado o

papel da mulher na formação dos filhos. Conforme os relatos obtidos, a sobrecarga alcança

outros aspectos além da questão produtiva e familiar, pois as atividades socioculturais

também passam a ser de responsabilidade da mulher, como as atividades na Igreja, na escola e

na associação, cabendo à mulher representar o associado que se encontra na condição de

migrante. Por exemplo, dos homens que são associados na associação da comunidade Alto

37

Muitas mulheres trabalham na roça, de forma diversa, algumas apenas contribuem, outras têm roças próprias,

parte das mulheres da comunidade desenvolvem hortas próximo de casa. Não existe pesquisa sistematizadas

sobre isso.

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Bonito e que migram, cabe às mulheres responder por suas responsabilidades de associado.

Os migrantes, apesar de identificarem esta sobrecarga familiar, se justificam com a

argumentação da necessidade de busca de dinheiro, conforme depoimento abaixo:

Eu vou pra lá, mais não é bom a gente só vai porque aqui não tem como

arrumar dinheiro e ai tu vai quando volta tem um dinheiro no bolso.

(Antonio Fontinele da Silva, 25 anos, depoimento em 12 de dezembro de

2010)

Esta busca por trabalho e melhores condições de vida é bastante significativa no

conjunto das famílias do Alto Bonito, pois destas, 66,60% das famílias entrevistadas afirmam

ter alguém que migra.

Abordadas sobre a necessidade da migração no assentamento, das 57 famílias

pesquisadas no Alto Bonito, 39 responderam sobre a questão, sendo que destas, 74,40%

justificam esta necessidade, enquanto 25,60% não concordam ser a migração necessária.

Quanto às justificativas sobre a necessidade da migração, muitos alegam que o

trabalho agropecuário realizado na comunidade não é suficiente para gerar a renda necessária

para a manutenção da família, pois muitas vezes não é suficiente nem mesmo para o auto-

consumo. Outro fator importante para a justificativa é que a renda adquirida na migração

contribui para uma melhor estruturação do lote de produção, além de possibilitar melhorias

das casas e, no caso das famílias não sipradas, esta renda pode significar a própria construção

da casa.

A migração também é justificada pelo acesso “fácil” ao dinheiro. Além disso, para

muitos, a capacitação profissional adquirida com o trabalho durante a migração lhe possibilita

futuras oportunidades de trabalho e renda.

De forma bastante expressiva foi dado ênfase à necessidade dos jovens migrarem,

estando entre os maiores motivos a necessidade de ajuda financeira que as famílias têm e o

não acesso destes às políticas produtivas de reforma agrária. A dificuldade de acesso a estas

políticas pelos jovens deve-se à sua condição de não assentado.

No que se refere à negação da necessidade do fenômeno migratório, foram utilizados

argumentos como a importância da permanência do migrante junto à família e à comunidade;

a necessidade deste ajudar nas questões familiares como em caso de doença; a importância de

priorizar os estudos e se preparar melhor para o futuro; a não necessidade de ajuda financeira

da família e as condições de precarização do trabalho a que são submetidos os migrantes,

trabalhando muito e ganhando pouco; o alto custo de vida fora do assentamento, que acaba

exigindo grandes esforços do migrante para manter os dois espaços, o dele e o da família que

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permanece no assentamento; pelos muitos trabalhos e atividades a serem realizadas,

sobrecarregando os que ficam.

Sobre a percepção que estas famílias têm sobre a migração, as respostas são de que

esta é muito ruim, pois são muitas as dificuldades que os migrantes passam na viagem, com

muito sofrimento e muitas despesas; provocam muitas preocupações nos que ficam,

principalmente nos pais e cônjuges; constitui uma atividade de risco, pois nem sempre o

migrante tem a garantia do retorno financeiro, nem mesmo para cobrir as despesas da viagem,

afinal ele vai arriscar-se em busca do trabalho e este é incerto.

A partir das respostas obtidas, é possível compreender que a saída dos migrantes da

reforma agrária compromete a dinâmica social e política do assentamento, gerando um

sentimento de ausência, fazendo com que a comunidade fique na expectativa do retorno do

grupo, o que geralmente acontece no final do ano. Por outro lado, existe a compreensão, por

parte de alguns, de que o processo migratório tem contribuído para o melhoramento do

assentamento, justificando, para isso, o maior acesso a bens de consumo. E, apesar da

diversidade de opiniões, o elemento que congrega as ideias, tanto de quem concorda quanto

dos que não concordam com sua realização é o de que a migração é determinada no Alto

Bonito pela necessidade da manutenção e reprodução familiar.

No que se refere aos destinos da migração, as informações fornecidas chamam a

atenção, considerando-se a diversidade dos destinos, pois na busca interminável de alternativa

de renda, os assentados do Alto Bonito seguem os destinos mais distintos possíveis, conforme

pode ser observado na tabela e no mapa abaixo.

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Tabela 2: Destino dos Migrantes - Comunidade Alto Bonito - Assentamento Cigra (2010)

LOCAL DESTIN

O

Guiana Francesa 01

Guiana Inglesa 02

Suriname 02

Minas Gerais 03

São Paulo 29

Montevideu – SP 01

Luziania – SP 07

São Paulo – SP 02

Tupã - SP 12

Ribeirão Preto – SP 01

Campinas - SP 02

Paulina - SP 01

Luziania - SP 07

São Paulo – SP 02

Tupã - SP 12

Paulina - SP 01

Ribeirão Preto – SP 01

Campinas - SP 02

Clementina – SP 01

Pará 06

Brasília 02

Goiás 01

Rondônia 01

Mato Grosso do Sul 01

Paraná 01

Marabá – PA 01

Paraupebas - PA 01

Cajuapara – PA 01

Tupiranga – PA 01

Analisando a tabela acima, é explícita a pulverização da migração, onde os migrantes

tomam os rumos mais diferenciados possíveis, viajando para o vizinho estado do Pará,

circulando por boa parte do país e, inclusive, saindo deste. No entanto, fica muito bem

demarcado que o destino principal seguido pelos migrantes do Alto Bonito se concentra na

região Sudeste e, observando mais atentamente, se percebe que este destino é um dos

territórios da cana-de-açúcar no estado de São Paulo. Conforme pode ser observado no mapa

abaixo.

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Mapa 2 - Destino dos migrantes do Alto Bonito – Cigra (2010)

Em entrevistas realizadas com migrantes sobre o que determina a escolha do destino

a seguir, as informações obtidas são que para a tomada de tal decisão, os migrantes da

reforma agrária levam em conta aspectos como custos e benefícios. Por exemplo, o destino

que desperta maior interesse junto aos entrevistados migrantes são as regiões de garimpo,

como as Guianas, Suriname e Venezuela, pois existe em seus imaginários a ideia de que o

ganho é mais fácil e maior. Porém, tal viagem implica grandes custos e grandes incertezas,

pois muitas são as variáveis deste tipo de migração. São os riscos da clandestinidade da

prática produtiva e a insegurança dela decorrente. As condições precárias de trabalho, a

distância e a dificuldade de comunicação com a família, a precarização do trabalho e a

precariedade das condições de alojamento, assim como os problemas e conflitos enfrentados

com a dinâmica produtiva interna nos países, a exemplo do conflito entre trabalhadores

brasileiros e trabalhadores surinameses ocorrido em 2010, amplamente difundido pelos meios

de comunicação brasileiros, são exemplos dos riscos aos quais esses migrantes estão expostos.

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Tal situação é explicitada no depoimento abaixo.

Saí para São Paulo com 21 anos de idade, fiquei por lá nove meses, voltei

três vezes, uma vez como ajudante geral, na segunda fui mesmo como

soldador e na terceira fui pra Campinas trabalhar, dessa vez passei dez meses

lá num trabalhei, fiquei só mesmo tipo umas férias em Campinas, fiquei

usando o dinheiro do seguro, tinha uns amigo que colaborava comigo. Voltei

pra cá pro Alto Bonito e depois viajei para o Suriname dia 1º de agosto de

2009 até de seis de fevereiro de 2010. Fui pra lá porque as pessoas que viam

de lá falava que é fácil de ganhar dinheirinho um pouco mais fácil e mais

rápido também isso me motivou mais um pouco para trabalhar pra ganhar

mais alguma coisa, mas não é fácil, tudo é difícil basta ser você sai de bem

daqui de Belém entrar no avião ai chegar lá ai você passou no aeroporto

você já não entende o que o pessoal está falando ai você já está perdido, para

entender a língua depende dos outros, chega a dar um desespero... Saí de

Belém fui para Paramaribo um lugar do Suriname, que tem uma linguagem

muito enrolada, para me comunicar a gente recorre aos morador de lá mesmo

as vezes num fala muito o português bacana mas arranha um pouco sabe ai,

se você for ouvir bem dar pra você compreender boas partes do que ele fala

nessa hora você fica assim: pô o que eu tô fazendo num lugar desse aqui

perdido aqui sem saber pra onde vou, ai você vai sai lá fora do aeroporto

pega um taxi ai entra num taxi com um papel por escrito mostra pro taxista

ele já sabe qual o hotel que você que ir e ai já leva diretamente naquele

lugar. Chegando lá tem muito brasileiro, lá tem muitas pessoas do Brasil

trabalhando, como cozinheira, faxineira, zeladora, vigia todo tipo de serviço,

lá tem mais brasileiro que se hospeda é muito brasileiro para trabalhar

principalmente por causa do garimpo.

Fui por que lá já tinha parentes, irmão e comigo foi outro cunhado.

Chegando lá no Suriname me comuniquei por rádio para ver como fazer a

viagem até a Guiana. Então ele indicou uma pessoa para pegar nós, saímos

às 4 horas da madrugada rodamos de carro pequeno até meio dia, até chegar

num rio e lá agente pegou a lancha ao meio dia e rodou dentro d`agua até as

2 horas da tarde no ponto combinado para pegar as motos, depois entremos

na mata já tinha moto e motoqueiro esperando nós, sentamos uma pra cada

durante 3 dias direto. Rodava o dia todo, devagar a meia noite parava para

descansar até as 4, 5 horas da manhã e ai só meio dia de novo para lanchar.

Muito difícil só nós quatro naquele fim de mundo, sem estrada só umas

varedas para passa as motos.

No segundo dia só trilhas no meio da mata, a noite desse dia paramos mais

cedo todo mundo cansado muita água, chuva lama, fome. No terceiro dia já

aparece um barraco no meio da mata, já vai aparecendo garimpeiro até

chegar no teu destino, chegamos as 3 horas da tarde no meio do mato.

Chegando lá da uma relaxada, mas ai a gente se pergunta o que eu to

fazendo aqui no meio dessa mata, ai fui comer alguma coisa, descansar para

no outro dia procurar serviço, só fui trabalhar no quarto dia, num barranco

distante do meu cunhado, do meu irmão, tive que ficar só com desconhecido

e aí ficar torcendo para dar tudo certo. (Dorival Severino Sousa, 28 anos,

depoimento colhido em 12 de dezembro de 2010).

Como fica claro com o depoimento, as dificuldades e riscos para este tipo de

migração são muitos. E um aspecto muito importante também identificado durante a pesquisa

é o desconhecimento de algumas famílias quanto ao destino seguido por seu migrante, não

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sendo muito incomum que a família só tenha notícia do mesmo em episódios de morte ou

doença. Por exemplo, durante a pesquisa de campo, uma família foi informada da morte de

um familiar migrante ocorrida no garimpo. Até então, a família apenas sabia que este se

encontrava em tal atividade, mas desconhecia a localidade. Além disso, nenhuma informação

obteve das circunstâncias de sua morte (ou assassinato, como ocorre em alguns casos).

Diante de tal contexto de insegurança, os migrantes da reforma agrária decidem

rumos mais seguros e menos onerosos, e a região Centro-Sul se apresenta como importante

opção. Nesta região, o estado de São Paulo é o que, nas perspectivas migratórias, apresenta

melhores condições, pois a viagem é muito mais segura e mais barata em relação ao garimpo.

Para seguir até São Paulo um trabalhador gasta cerca de duzentos reais, enquanto para

atravessar a fronteira rumo ao garimpo ele precisa dispor de pelo menos dois mil reais

considerando os gastos de avião, passaporte, hotel, taxi, alimentação e transporte terrestre e

aquático. Assim, para os migrantes informantes, no complexo do agronegócio do interior

paulista, como no corte de cana-de-açúcar, existem algumas vantagens como a segurança do

salário no final do mês, a possibilidade de acesso aos serviços básicos oferecidos pelo Estado,

como saúde, melhores condições de moradia, facilidade de comunicação com a família e, o

considerado por eles mais importante, o recebimento do seguro desemprego. A importância

deste último elemento se encontra no fato de que, no retorno dos migrantes para casa, eles

contam com este benefício de assistência social por alguns meses, ou seja, ao chegarem em

casa dão continuidade aos trabalhos produtivos da família e recebem o seguro, como forma de

renda extra.

As atividades produtivas levantadas em que se envolvem durante o período

migratório mostram a diversidade de ramos em que estes migrantes se envolvem. Foram

identificadas atividades como açougueiro, operário da construção civil, operário fabril,

doméstica, babá, balconista, garçonete, carvoeiros, açougueiro, plantio e colheita de tomate,

batata e cenoura, crediarista, juquireiro38

, garimpeiro, e atividades gerais na produção de

cana-de-açúcar e soja. Uma das curiosidades acerca de tal informação é a capacidade

laborativa do grupo, que vai se adequando às diversas realidades e tipos de trabalho, dentre os

quais se percebe que muitos não são agrícolas. Em outras palavras, enquanto assentados da

reforma agrária, estes migrantes encontram-se submetidos às condições complexas, pois

38

Juquireiro: trabalhador de fazenda na atividade especifica do corte de Juquira, que é uma designação regional

para definir roçado, pastagem, mata que trabalhada.

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precisam, para garantir a renda buscada, exercer papéis bastante distintos do seu trabalho no

campo, de sua lida nas roças, num contexto completamente diverso do seu.

Outro aspecto abordado no trabalho de campo foi a participação da família no

processo decisório da migração. A partir dos questionários aplicados junto às famílias, das 38

famílias nas quais existem migrantes, 57,90% das famílias não participam da decisão,

afirmando ser esta uma decisão individual do migrante, enquanto 39,50% declaram não tomar

lugar neste tipo de decisão, e 2,60% não informaram.

Na pesquisa foi identificado o distanciamento da família na decisão da migração,

porém as informações dadas acerca da temporalidade da migração mostram que existe um

envolvimento e participação da família durante o processo de migração, pois do universo de

famílias com migrantes, 94,70% delas sabiam afirmar sobre o tempo da migração de seu

migrante, e apenas 5,20% não sabia informar sobre a questão. Estas famílias mostraram que

também acompanham o processo migratório, pois sabem informações sobre a dinâmica e

condições de trabalho e sabem que o trabalho é temporário ou permanente, sendo que deste

número cerca de 86,80% dos migrantes fazem trabalho temporário, enquanto algo em torno de

7,90% realiza trabalhos permanentes e 5,20% não informaram. Tais informações são

confirmadas pelos migrantes envolvidos na pesquisa, para quem a participação da família,

principalmente dos mais velhos, como pai e mãe, “são os conselhos na hora de viajar”.

Considerando os aspectos levantados pelas famílias pesquisadas acerca do trabalho

temporário, podem ser apontadas duas caracterizações deste tipo de trabalho. Sobre os

migrantes que se deslocam para atividades da cana-de-açúcar, do tomate, da cebola, da

construção civil, ou que seguem para a prestação de serviços e que têm contrato assinado, as

famílias sabem que em cerca de oito ou nove meses a maioria retornará para seus afazeres

cotidianos no assentamento. No caso dos outros grupos - aqueles que têm como destino o

garimpo, as atividades carvoeiras, ou que vão trabalhar nas fazendas, apesar de realizarem

trabalhos temporários - as famílias não têm informações sobre o seu período de retorno.

Outro aspecto importante na diferenciação dos grupos de migrantes temporários, é

que o primeiro grupo citado, em geral possui carteira assinada, enquanto o segundo grupo não

conta com qualquer tipo de segurança trabalhista, não podendo dispor, portanto, do tão

cobiçado seguro desemprego. Sob o ponto de vista das relações estabelecidas com as famílias,

este segundo grupo é o que mais desperta preocupações, pois diferentemente do primeiro, não

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dispõe dos recursos de segurança nem física nem trabalhista, ficando à “mercê da sorte”, em

suas andanças em busca de trabalho, muitas vezes sem contato com seus familiares. As

famílias sabem que o trabalho é temporário, sabem que o trabalho é informal, sem contrato de

trabalho e sem garantias, e não sabem quando o migrante tornará à casa. São os migrantes da

informalidade.

Sobre a formalidade do trabalho, dos 38 migrantes identificados na pesquisa, de

acordo com informações fornecidas pelas famílias, 86,80% trabalham com carteira assinada

enquanto que 7,90% destes não têm esta garantia da legislação trabalhista. Sobre os 5,20%

restantes, as famílias não souberam informar sobre sua condição de trabalho.

Conforme dito anteriormente, o trabalho com carteira assinada possibilita segurança e

“tranquilidade” com relação ao pagamento do benefício seguro desemprego. O que os

migrantes e suas famílias sabem é que ao ser “fichado” em alguma empresa durante um

período, este tempo lhe garantirá uma renda extra durante período de três a seis meses,

dependendo do contrato de trabalho, constituindo-se este elemento fator de estímulo para a

migração temporária. Também foi observado que tal estímulo atinge de forma direta a

juventude, a qual compõe parte expressiva dos migrantes da reforma agrária.

Essa caracterização da “migração segura” com a formalidade trabalhista tem a região

Centro-Sul como referência, pois lá se encontram as grandes corporações da produção do

açúcar e álcool. Os migrantes da reforma agrária, quando decidem migrar, o fazem em busca

de trabalho e renda. Durante a pesquisa sobre a aplicação dos recursos financeiros ganhos, as

respostas obtidas indicam que o dinheiro recebido por conta da migração é usado,

essencialmente, para sua manutenção na localidade para onde migra e para a manutenção da

família no assentamento. Complementando as informações, 81,60% das famílias com

migrantes recebem dinheiro deste, enquanto 13,20% afirmaram não receber recursos, e 5,20%

não informaram.

Os recursos enviados pelos migrantes da reforma agrária do Alto Bonito em geral são

utilizados, prioritariamente, para garantir as despesas da família e para a manutenção do

trabalho agropecuário. Para a família é feita a compra de mantimentos, roupas, calçados,

remédios, móveis e eletrodomésticos, construção e reforma de casa, material escolar e

viagens. A preocupação com a condição do trabalho se reflete na contratação de terceiros para

atividades da roça e do pasto; compra de material para melhoramento da roça, como cercas e

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insumos, compra de gado, remédios e vacinas para os animais. E, apesar dos migrantes

apontarem os gastos que são realizados com a produção de suas roças, com a contratação de

força de trabalho local, muitos avaliam valer a pena esta relação estabelecida, pois sem o

dinheiro recebido no trabalho externo não seria possível a garantia deste conjunto de coisas

elencadas.

Os migrantes que seguem para o ciclo da cana-de-açúcar apresentam uma

particularidade, pois os serviços de terceiros que contratam são geralmente para a manutenção

da roça, uma vez que as viagens feitas seguem o aspecto da sazonalidade da atividade

agrícola, ou seja, saem depois do plantio e retornam ao assentamento antes da colheita.

No caso dos migrantes jovens, ficou constatado a preocupação com o status social.

Em geral, o dinheiro ganho é muito direcionado para o custeio de suas despesas pessoais,

como roupas, perfumes e sapatos, compra de veiculo automotivo, principalmente

motocicletas. Foram, porém, identificados jovens que aplicam seu dinheiro prioritariamente

na produção agropecuária.

Quanto ao acompanhamento familiar ao migrante, ou seja, se alguém da família

acompanha o migrante ou se ele viaja sozinho, as informações são de que 55,30% dos

migrantes viajam acompanhados por alguém da família, principalmente algum parente, como

irmãos e primos, enquanto que os 44,70% restantes geralmente viajam desacompanhados dos

familiares, seguindo apenas com amigos.

Durante a pesquisa, através das entrevistas e conversas realizadas com os migrantes,

foi possível identificar que geralmente os migrantes seguem caminhos anteriormente traçados

por algum amigo, por um conhecido, por um parente ou mesmo pelo irmão mais velho. Em

outras palavras, os migrantes não saem sozinhos, principalmente na primeira vez, seguindo

sempre com pessoas conhecidas, ainda que não familiares. Da segunda vez em diante, não

necessariamente acompanham alguém, mas ao contrario, passam a ser acompanhados por

alguém. Com a experiência adquirida, muitas vezes, alçam voo sozinhos e buscam outros

destinos, diferentes do primeiro. A viagem feita em grupo assume caráter de segurança para

os migrantes do mesmo local de origem. Juntos, eles garantem, além da segurança, a

solidariedade e ajuda mútua, as quais se expressam de várias maneiras, como a divisão das

despesas e atividades domésticas ; os cuidados em caso de saúde e de acidente; os contatos e

informações para as famílias e comunidade e ainda a manutenção dos aspectos culturais da

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região de origem, como os hábitos alimentares, as formas de comunicação e linguagem, a

forma de trabalhar. Enfim, é a sobrevivência pensada a partir do grupo como uma forma de

melhor se proteger fora de seus espaços de convivência.

No que se refere à viabilidade da migração, das 38 famílias com migrantes, 55,30%

delas acreditam que apesar de todas as dificuldades e problemas acarretados com a migração,

vale a pena seus familiares seguirem para outros lugares em busca de trabalho. Já 39,50%

analisam não valer a pena os sacrifícios feitos pelos migrantes e 5,30% não opinaram sobre a

questão.

No que se refere às vantagens da migração, as explicações se concentram no fato de

que esta possibilita a “entrada de dinheiro em casa”. A renda extra obtida serve para o

pagamento de dívidas e de melhoramento de condições da própria produção agropecuária,

contribuindo efetivamente para o melhoramento de vida das famílias. Já as explicações sobre

por que não vale a pena a migração, as posições apontam para a falta que os migrantes fazem

para o conjunto da comunidade no que se refere ao convívio social e político. Para as famílias

fica a saudade dos pais, filhos e cônjuges; as preocupações e acumulo de trabalho; a

insegurança quanto ao retorno financeiro e quanto às questões referentes à sua sobrevivência

distante da família. Além disso, o dinheiro ganho no período não é suficiente para garantir a

manutenção da família por muito tempo já que, segundo relato obtido, “três meses depois

acaba o dinheiro e aí, ou volta [à migração] ou vai para a roça”.

Finalizando este momento da análise sobre o processo migratório da comunidade

Alto Bonito, o questionamento feito às famílias foi sobre como evitar a migração. Em

resposta, os entrevistados demonstram clareza quanto ao papel das políticas públicas para a

geração de trabalho, emprego e renda para as áreas de assentamento. Assim, apontam a

necessidade da implementação de uma política agrícola voltada para o assentamento, como

um instrumento para a alteração do atual quadro. Dos elementos indicados pelas famílias para

evitar a migração na reforma agrária, encontram-se sugestões para o Estado, das quais

destacam-se:

- Maior investimento governamental em projetos produtivos, a exemplo da produção

de hortaliças e piscicultura.

- Maior investimento do Estado na área da educação e formação, principalmente da

qualificação profissional da juventude, com a educação de nível médio, no sentido de gerar

emprego e renda para este segmento social.

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- Desenvolvimento de programas de trabalho e renda no município e, especificamente,

no assentamento.

- Desenvolvimento de agroindústria, utilizando a produção e a força de trabalho

existente na comunidade.

- Inclusão das famílias não sipradas no programa de reforma agrária.

- Acompanhamento e assistência técnica e fornecimento de equipamentos de trabalho

e insumos de produção

- Desenvolvimento de tecnologias apropriadas à região, possibilitando maior

produtividade das atividades agropecuárias.

Os dados apresentados neste capítulo compõem assim, a complexidade do cotidiano

da comunidade Alto Bonito no assentamento Cigra, no contexto de grandes conflitos e

contradições sócio-econômicas do Maranhão, na particularidade da implementação da

reforma agrária no estado. Tais dados nos indicam um conjunto de limites e desafios do

processo de consolidação do assentamento, sobre os quais considerarei a seguir.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho realizou o estudo da migração na reforma agrária, através da

realidade vivenciada pela comunidade Alto Bonito, uma das doze comunidades do

assentamento Cigra, base orgânica do MST e que se encontra localizado no município Lagoa

Grande do Maranhão – MA. O objetivo foi o de compreender os fatores determinantes para o

fenômeno da migração em áreas de reforma agrária.

Entendo que os assentados da reforma agrária de hoje são as famílias que viviam na

condição de sem terra antes de serem asssentadas, sujeitos que eram submetidos a condições

de expropriação e de exploração por parte do latifúndio, mas que através da ocupação, a partir

de um trabalho político organizativo, assumiram a identidade de famílias Sem Terra. São,

pois, pessoas que vivem como sujeitos críticos de sua própria história, que se organizam e se

reproduzem socialmente como camponeses Sem Terra.

É importante ressaltar que questões como a organização produtiva das famílias do

assentamento Cigra, o enfrentamento à questão agrária, a luta por políticas públicas,

constituem elementos que sempre foram mediados pelo Estado, principalmente por três

instituições: o INCRA, o Governo do Maranhão e a Prefeitura Municipal. Estas, enquanto

instituições públicas, representações e instâncias do Estado, sempre estabeleceram relações

complexas com a comunidade em questão, já que desde o momento da ocupação até o acesso

aos programas sociais, a aplicabilidade de qualquer conquista passou – e continua passando -

diretamente por estas instituições públicas, o que interfere nas condições materiais de vida

dessas famílias. Tal fato, porém, não minou a busca pela autonomia e emancipação política

das pessoas e da comunidade.

Foi na busca de entender a complexidade destas questões, tentando relacioná-las com

o tema da migração, que fui percebendo o antagonismo entre o desenvolvimento das forças

produtivas do capital, das instituições públicas envolvidas e das famílias assentadas na Cigra,

em particular na comunidade do Alto Bonito. Por isso tentei refletir o tema a partir das

dimensões abaixo elencadas, as quais se encontram intrinsecamente ligadas aos aspectos

resultantes da pesquisa.

Um aspecto histórico que vale ressaltar é que mesmo sob pressão social, a reforma

agrária realizada ainda não reflete as reais necessidades das famílias camponesas Sem Terra,

uma vez que as políticas de reforma agrária, tal como são pensadas pelo Estado, não

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consideram a diversidade de elementos que compõem a vida das famílias: sua origem, grupo

social, aspectos étnico-culturais, o envolvimento no processo de realização dos

assentamentos. Tais questões foram identificadas ao longo da pesquisa, pois como exemplo, o

INCRA, na relação que estabelece com o assentamento tem com base o cadastro das famílias

e não as necessidades da comunidade, em especial as crianças, jovens e velhos, ignorando

toda história de vida, a prática social dessas famílias.

Esta desconsideração das particularidades subjetivas muito contribui com o

fenômeno da migração dos assentamentos, digo isso porque identifiquei o processo migratório

das famílias, desde a condição de migrantes da terra, passando para “beneficiários” da

reforma agrária, para depois seguirem o caminho e engrossarem as fileiras da migração da

reforma agrária. Assim, para se entender o fenômeno da migração na reforma agrária é

necessário aprofundar-se nos aspectos históricos da questão agrária e do debate das políticas

de reforma agrárias aplicadas pelo Estado, seus impasses e limites, para que seja possível

compreender os avanços e desafios para conter a migração na reforma agrária, esta entendida

e defendida como instrumento para conter a migração. Caso contrário, poderemos incorrer no

erro da má interpretação dessa questão, fazendo com que ocorram equívocos recorrentes na

nossa história de reforma agrária no Brasil.

Sobre o desenvolvimento dos assentamentos, o que pode ser constatado foi a relação

autoritária que o Estado mantêm com as famílias do Alto Bonito, quando chega com seus

programas prontos, projetos de casa definido, com as empresas de prestação de serviços que

nunca ouvem as famílias, o que afeta diretamente na organização político-social e econômica

da comunidade. Além disso, como as instituições e agentes financeiros que atuam na

comunidade esperam o retorno econômico, pressionam e condicionam as famílias a

programas sociais e econômicos previamente definidos e sempre voltados às regras do

mercado, priorizando a comercialização de mercadorias em detrimento do atendimento das

necessidades da comunidade. O êxito da reforma agrária fica estabelecido pelo grau de

inserção das famílias ao mercado e não pela melhoria de sua qualidade de vida, que não

necessariamente se encontra relacionada diretamente ao padrão de vida econômico.

Contraditoriamente, estes organismos não investem em aspectos fundamentais para a

economia do assentamento, como a comercialização.

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Na inexistência de uma política pública agrária e agrícola voltada às populações

pobres do campo, o Estado as atende através de políticas compensatórias, como os programas

sociais, a exemplo do Bolsa Família, Bolsa Jovem, com projetos pontuais pensados em curto

prazo, a exemplo dos projetos financiados pelo governo federal. Não existe nenhuma linha de

crédito agrícola que garanta eficácia para a reforma agrária, já que o PRONAF - hoje cada vez

mais burocratizado [não consegue garantir a assistência necessária para acompanhar o

desenvolvimento produtivo e econômico do assentamento. O governo estadual, por sua vez,

não contribui efetivamente para o desenvolvimento produtivo agrícola, assim como não

investe na infra-estrutura do assentamento, sendo que as políticas públicas para esta área se

apresentam frágeis, sem continuidade, desarticuladas e fragmentadas. O descaso do Estado

em relação à questão agrária é percebido no processo de desagregação e sucateamento do

principal órgão público, responsável pela reforma agrária, o INCRA.

Em termos de estrutura física, as condições de trabalho são precárias e, mesmo sendo

o órgão com tão grande responsabilidade, tecnicamente sua atuação é reduzida ao processo de

desapropriação de áreas e ao assentamento das famílias, deixando em seguida a maior parte da

aplicação dos recursos para o processo de terceirização das políticas publicas nos

assentamento. Tal fato se apresenta extremamente danoso para o processo de consolidação

dos assentamentos, considerando problemas de gestão como a má aplicabilidade dos recursos

destinados a melhoria da infra-estrutura das comunidades, como pro exemplo a mau

aplicação dos recursos para a habitação das famílias beneficiárias da reforma agrária.

Conforme foi apontado neste trabalho, foram feitas denúncias pelas famílias assentadas junto

aos órgãos competentes sobre empresas atuantes na região.

Assim, pode ser observado que não existe por parte dos poderes públicos uma

formação técnica e política para compreender tal situação como elemento agravante para a

política de reforma agrária. Pude também perceber que há uma dificuldade por parte das

instituições do Estado na compreensão do real significado disto no cotidiano das familiais

camponesas e, mais especificamente, de como a não efetivação da reforma agrária no sentido

amplo, completo, de garantia de acesso à terra, mas também de garantia das condições da

reprodução da vida, contribui para o agravamento da migração nas áreas de reforma agrária.

O que quero alertar é que se não houver uma preocupação mais efetiva por parte do Estado

com o período pós-implantação da política de assentamento das famílias, no sentido de

garantir-lhes qualidade de vida no processo de consolidação do assentamento, as famílias

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continuarão a ver na migração uma alternativa para possibilitar a reprodução de suas

condições de vida.

Do ponto de vista social, este tem sido o maior desafio para as famílias assentadas,

uma vez que buscar alternativas de vida fora do assentamento, como foi visto, tem feito parte

do cotidiano da comunidade Alto Bonito. Os dados deixaram claro a intensidade do fenômeno

da migração, assim como o “desconhecimento” do poder público sobre o assunto, não

havendo, inclusive, nenhum estudo por parte dos órgãos públicos que atentem para essa

questão nos assentamentos. Além disso, a fragilidade das políticas públicas para os

assentamentos, de modo geral, e em particular a ausência destas para a juventude, constituem-

se em elemento determinante que contribui de forma significativa para a migração deste grupo

social, fato que aparece de forma gritante nas observações realizadas em campo, mostrando a

tendência de esvaziamento sazonal da comunidade pesquisada por este grupo social.

O que pude observar nesta questão é que a migração tem influenciado a comunidade

tanto negativamente como positivamente. Os aspectos negativos encontram-se relacionados,

principalmente, aos destinos seguidos pelos migrantes deste assentamento, pois como estes

seguem para todas as regiões do país, inclusive para o exterior e, nestes destinos,

desempenham as mais variadas atividades: sejam trabalhos na soja no Centro Sul, seja

desempenhando tarefas na construção civil em várias regiões, no garimpo no Norte e em

outros países amazônicos, na prestação de serviços nos grandes centros urbanos e, ainda

juquireiros e carvoeiros no Maranhão e Pará. O importante é que todas estas dimensões do

trabalho e a diversidade de regiões geográficas da migração fazem com que os migrantes da

reforma agrária tragam junto consigo valores desconhecidos e muitas vezes não aceitos pela

comunidade que tem na sua origem os valores da roça, a cultura camponesa.

No que se refere aos aspectos positivos está o fato do fenômeno da migração

caracterizar-se, eminentemente, como temporária. Outro ponto que merece ser destacado é o

fato de que esta migração tem contribuído decididamente para a recriação e reprodução

camponesa naquele assentamento, uma vez que a renda adquirida nos trabalhos realizados nos

períodos migratórios, como pude observar, tem contribuído para melhorar as condições de

vida das famílias, garantindo a vida e o trabalho camponês no assentamento, muitas vezes

melhorando as condições da roça, adquirindo instrumentos e meios de trabalho; outras vezes

comprando um pedaço de terra para plantar sua roça.

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Em suma, minhas observações apontam que o fenômeno da migração da reforma

agrária tem se constituído como alternativa à precariedade das políticas de reforma agrária,

garantindo condições de sobrevivência para as famílias do assentamento, ao mesmo em que

constitui forma de resistência do campesinato, conforme elementos e análise feita neste

trabalho.

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