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    Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 11 (2): 226-237, abr/jun, 1995226

    Maio, M. C. ARTIGO / ARTICLE 

    INTRODUÇÃO

    Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) é con-siderado por historiadores e memorialistas damedicina no Brasil como o principal responsávelpela elevação da medicina legal a condição deespecialidade e disciplina científica (Coni, 1952;Peixoto, 1957; Santos-Filho, 1991; Azevedo,1943). O médico maranhense, além do pioneiris-mo de seus estudos em antropologia física, foialçado a condição de fundador de uma escola depensamento, a “Escola Nina Rodrigues” (Peixo-to, 1931; Ramos, 1934).

    No âmbito das ciências sociais, Nina Rodri-gues tornou-se presença obrigatória nas investi-gações etnográficas sobre a cultura afro-brasi-leira e nas análises sobre o pensamento socialbrasileiro, especialmente as relações entre raça,ciência e nação na República Velha.

    Afora as “leituras edificantes” sobre o médi-co-antropólogo (Coni, 1952; Lins e Silva, 1945;Lima, 1980) são poucos os trabalhos (Corrêa,

    A Medicina de Nina Rodrigues: Análise de umaTrajetória Científica

    Brazilian Physician Nina Rodrigues: Analysis of a Scientific Career 

    Marcos C. Maio 1

     MAIO, M. C. Brazilian Physician Nina Rodrigues: Analysis of a Scientic Career. Cad. SaúdePúbl., Rio de Janeiro, 11 (2): 226-237, Apr/Jun, 1995.

    One of the most productive ways of investigating the history of Brazilian medical practice at theturn of this century is to focus on the fruitful and ambiguous careers of those physicians that 

     played an important role in the changes affecting the medical field at that time. This paper aimsat analyzing the scientific career of physician-anthropologist Raimundo Nina Rodrigues, takingas its conceptual basis Pierrre Bourdieu’s notion of “scientific field “. The paper’s point of departure is the notion that the medical field is a space of confrontation that is structurallydetermined by previous conflicts in which physicians try to monopolize claims to scientificauthority and competence. Nina Rodrigues’ medical profile appears in this context as a preciseindicator of the process of specialization and competition that took place during that period.

     Key words: History of Medicine; History of Anthropology; History of Science; Legal Medicine

    1982; Schwarcz, 1993), que investigam os estrei-tos vínculos entre Nina Rodrigues e a medicina

    brasileira do final do século XIX. Portanto, esteé o tema do presente artigo que tem por objetivoabordar a trajetória científica de Nina Rodri-gues definida como a série de posições institu-cionais sucessivamente ocupadas por ele comoum agente singular do campo médico. Ao utilizaro conceito de campo, tomo por base a definiçãode campo científico de Pierre Bourdieu. Para osociólogo francês:

    “O campo científico, enquanto sistema derelações objetivas entre posiçõesadquiridas (em lutas anteriores), é o lugar,o espaço de jogo de uma lutaconcorrencial. O que está em jogoespecificamente nessa luta é o monopólioda autoridade científica definida, demaneira inseparável, como capacidadetécnica e poder social; ou, se quisermos, omonopólio da competência científica,

    compreendida enquanto capacidade de falar e de agir legitimamente (isto é, demaneira autorizada e com autoridade), queé socialmente outorgada a um agentedeterminado”. (Bourdieu, – 1983: 122-123)

    1  Departamento de Pesquisa, Casa de Oswaldo Cruz,Fundação Oswaldo Cruz. Avenida Brasil, 4036, Riode Janeiro, RJ, 21040-361, Brasil.

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    Medicina Legal

    As batalhas que se desenvolvem pela domi-nação no interior do campo científico são en-tre agentes que ocupam lugares sociais previ-amente estabelecidos no campo, à semelhan-ça de qualquer agente na sociedade. Esses

    atores são informados por interesses, objeti-vando a maximização da autoridade científicamediante o reconhecimento dos seus pares.Esta constante expectativa de valorização doseu trabalho através do intenso conflito inter-pares é o que caracteriza a relativa autonomiado campo científico em relação a outros cam-pos sociais.

    O alvo da contenda, que estimula cada agen-te do campo científico a lutar pelo reconhe-cimento de seus produtos e de sua autoridadede produtor legítimo, é o poder de impor umadefinição de ciência, ou seja, o poder de defi-nição do conjunto de problemas, dos métodos,das teorias que podem ser consideradascientíficas e que estejam em consonância comseus interesses específicos.

    Neste sentido, uma carreira científica é defini-da fundamentalmente “pela posição que ela ocu-

     pa na estrutura do sistema de carreiras possí-veis” (Bourdieu, 1983: 133). Ela é a série de posi-

    ções sucessivamente ocupadas por um agenteno campo científico que

    “é sempre o lugar de uma luta, mais oumenos desigual, entre agentesdesigualmente dotados de capitalespecífico e, portanto, desigualmentecapazes de se apropriar do produto dotrabalho científico que o conjunto dosconcorrentes produz pela sua colaboração

    objetiva ao colocarem em ação o conjuntodos meios de produção cientificodisponíveis”. (Bourdieu, 1983: 136)

    Com base nesses pressupostos teóricos, pre-tendo acompanhar os caminhos trilhados porRaimundo Nina Rodrigues no período compre-endido entre sua admissão na Faculdade deMedicina da Bahia em 1882, até sua conversãodefinitiva à medicina legal, com a ocupação dacátedra desta disciplina, em 1895.

    Proponho demonstrar que dentre as estraté-gias possíveis no campo médico, a de Nina Ro-drigues pode ser classificada como uma es-

    tratégia de sucessão, aquela que assegura “aotérmino de uma carreira previsível, os lucros

     prometidos aos que realizam o ideal oficialda excelência científica pelo preço de inova-ções circunscritas aos limites autorizados”

    (Bourdieu, 1983: 138).

    MEDICINA BAIANA: DO IMPÉRIOAO INÍCIO DA REPÚBLICA

    Ao longo do Império, formar-se em direito oumedicina era sinômino de status, uma estratégiade preservação ou ascensão social e um passa-porte de entrada no mundo da política. Na Bahia,

    segundo Gomes (1957), havia uma divisão declasses nas opções acadêmicas a serem segui-das. Enquanto a elite econômica, predominante-mente rural, preferia a faculdade de direito, ascamadas médias e subalternas escolhiam a me-dicina. Nina optou pela segunda carreira. Suatrajetória acadêmica esteve balizada por doismarcos fundamentais: a Faculdade de Medicinada Bahia (FMBA) e a denominada “Escola Tro-picalista Baiana” (ETB).

    Criada em 1832, a FMBA veio a substituir aantiga Escola Médico-Cirúrgica da Bahia fun-dada em 1808 com a chegada da Corte de D.João VI ao Brasil. Recursos escassos, exces-siva centralização administrativa sob responsa-bilidade do Governo Imperial, o que reduziadrasticamente a autonomia da Faculdade, des-preparo de professores e alunos, instalaçõesprecárias e arcaicas, carência de funcionários,falta de equipamentos, baixos salários, eramregistros recorrentes nas “Memórias Históri-cas da Faculdade de Medicina da Bahia”. Estequadro gerava um jogo contraditório decontestação verbal e acomodação burocrática(SantosFilho, 1991). Acrescente-se o fato a-pontado por grande parte da historiografia dapresença de um ensino “teórico, livresco,declamatório (...) [responsável pelo] desca-so pelo ensino prático, de que se descurouaté a segunda metade do século XIX, supri-am a falta de laboratórios pela explanação

    de sistemas e pela discussão de doutrinas”(Gomes, 1957: 33).

    Recentemente, Edler (1992), Ferreira (1994) eFerreira et al. (1995) procuraram relativizar de-

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    terminadas dicotomias presentes em discursosmédicos do século XIX e em parcela expressi-va da literatura vigente (Santos-Filho, 1991;Stepan, 1976; Coni, 1952), tais como: ensinoretórico versus ensino prático, medicina

    pré-científica em contraposição a uma medici-na científica. Sem desconsiderar as mazelasvividas pela medicina oficial, estes autoresapontam não só para o caráter político dessascríticas das elites médicas no sentido de sen-sibilizar o governo Imperial, mas também res-gatam uma importante tradição clínica, de for-te influência francesa, vigente na primeira me-tade do século XIX.

    De qualquer modo, os limites institucionaisdo ensino médico baiano suscitou, no finaldos anos 60, a constituição de um grupo queseria posteriormente denominado de EscolaTropicalista Baiana (ETB) (Coni, 1952;Santos-Filho, 1976; Peard, 1990; Oliveira,1982). Santos-Filho (1976: 478) considera queestes médicos, ao buscarem

    “o reconhecimento de doenças e afecçõesreinantes em outros países e que

    grassariam no Brasil, repetiram pesquisas pela microscopia, repetiram exames histo eanatomo-patológicos, observaram asintomatologia, conseguiram, por vezes,acrescentar novos dados à etiologia, à

     própria sintomatologia e à terapêutica, econfirmaram, em primeira mão, a presençade entidades mórbidas da chamada

     patologia tropical. Foram pioneiros. Demonstraram, em qualquer dúvida, aincidência de diversas e graves doenças.

    São perfeitas as suas observaçõesconsiderando-se os conhecimentos que

     possuíam e o confinamento científico emque viviam”.

    Projeto de medicina nacional (Peard, 1990) sin-tonizado com o conhecimento científico interna-cional na área da parasitologia, a ETB lutou pelaafirmação da singularidade brasileira no terrenodas pesquisas das doenças tropicais sem, comisso, ser capturada pela armadilha deterministatanto climática quanto racial. Num primeiro mo-mento, sua atuação se deu à margem da Facul-dade de Medicina da Bahia.

    A origém da ETB está associada a três mé-dicos estrangeiros: o português de origem ale-mã, Otto Wucherer (1820-1875); o escocês JohnL. Paterson (1820-1882) e o português JoséFrancisco Silva Lima (1826-1910). A visibilida-

    de desse grupo estava calcada, basicamente,no diagnóstico preciso das epidemias que, comfreqüência, assolavam Salvador; no trabalhoque desenvolviam no Hospital de Caridade daSanta Casa de Misericórdia, nas “sessões mé-dicas”, onde eram debatidos casos clínicos enos artigos publicados na Gazeta Médica da

     Bahia, publicação fundada pelos “tropicalis-tas” em 1866, e que veio a se constituir naprincipal revista científica nacional do século

    XIX (Peard, 1990).Mas o sucesso de tal empreendimento nãodeve ser atribuído somente à competência ci-entífica dos médicos da ETB. A conjunturapolítica dos anos 70 favorecia a politizaçãode diversas demandas da sociedade civil. Al-guns membros da ETB, além de médicos, erampolíticos, o que não destoava da tradição daépoca. Muitos deles eram republicanos esensíveis ao “bando de idéias novas” (Silvio

    Romero) do darwinismo, positivismo, materi-alismo, que aportavam na antiga capital doBrasil colonial.

    Nos anos 80, após a era das reformas de en-sino iniciadas na década passada (Edler, 1992),os “tropicalistas” foram quase totalmente ab-sorvidos pela própria Faculdade de Medicina.Alguns de seus membros tornaram-se pro-fessores e, mais tarde, diretores da instituiçãode ensino oficial.

    Este período registra um momento de inflexãona trajetória de profissionalização da medicina“acadêmica”. Foi a partir de então que emergiuuma nova representação sobre os fundamen-tos do saber médico, expressa pela noção de“medicina experimental”. Ao mesmo tempo emque se redefinia o estatuto de cientificidade emmoldes universalistas, elaborava-se um progra-ma de pesquisas orientado para a nosologia e aterapêutica nacionais. Simultaneamente, a re-forma do ensino médico consolidada pelos no-

    vos estatutos das faculdades de medicina doImpério (1884), representou uma importante vi-tória de parcelas da categoria médica, com es-pírito mudancista, no esforço orientado para a

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    emancipação da formação profissional, até en-tão sujeita à tutela exercida pela burocracia im-perial (Ferreira et al., 1992).

    As mudanças tiveram resultados diferencia-dos nos dois principais centros médicos do país.

    O Rio de Janeiro, por estar num processo de ins-titucionalização da medicina mais avançado queo da Bahia e ser a sede do poder central conse-guiu extrair maiores recursos do governo imperi-al. Na Bahia veio a ocorrer um descompasso en-tre as mudanças legislativas e a alocação de ver-bas para o sucesso das transformações propos-tas. A Gazeta Médica da Bahia denunciou comfreqüência o tratamento desigual exercido peloSegundo Reinado.

    Mesmo assim, os “tropicalistas” consegui-ram criar uma tradição médica na Bahia, emconsonância com os ensinamentos contempo-râneos da medicina experimental européia, comênfase nas investigações das então denomina-das doenças tropicais. O surgimento e posteriorinserção da ETB na Faculdade de Medicina daBahia é um indicador preciso das mudanças queocorreram na segunda metade do século XIX,período notabilizado pelo processo de estrutu-

    ração do campo médico brasileiro.Desse modo, a Bahia presenciou na segun-da metade do século XIX um vigoroso proces-so de estruração do campo médico com as re-formas de ensino (1879 e 1884), com o aumentoda visibilidade do periodismo médico (Gazeta

     Médica da Bahia, Gazeta Acadêmica, Revista Médico-Legal da Bahia) e a criação de asso-ciações profissionais (Sociedade Médico-Farm-acêutica de Beneficência Mútua, SociedadeMédica da Bahia, e Sociedade Médico-Legalda Bahia). Esta dinâmica institucional não sórefletia a preocupação com a delimitação daesfera de atuação da prática médica em opo-sição aos considerados curandeiros e charla-tães (Rodrigues, 1899), mas também estava emsintonia com o processo de especialização quese iniciava no interior da categoria médica na-quele momento.

    A TRAJETÓRIA DE NINA RODRIGUES

    Apesar de não haver uma biografia sobreRaimundo Nina Rodrigues, é possível, com

    base em alguns estudos (Lima, 1980; Corrêa,1982), traçar um perfil da trajetória do “médi-co-antropólogo”. Nina Rodrigues nasceu nointerior do Maranhão, zona algodoeira, em 4de dezembro de 1862. Seu pai, Franscisco So-

    lano Rodrigues, era proprietário de terras, en-quanto sua mãe, Luiza Rosa Solano Rodrigues,seria descendente de uma das cinco famílias de

     judeus sefarditas que chegaram às terras mara-nhenses, fugidas de perseguições político-religi-osas da Península Ibérica (Lima, 1980).

    Criado em fazenda, entre sete irmãos, Ninainiciou sua vida escolar na sede do municípiode Vargem Grande, Maranhão, onde se situa-vam as propriedades da família. No início da

    década de 1870 transfere-se para São Luís,onde fez o curso de humanidades no Seminá-rio das Mercês. Em seguida fez o cursopreparatório (correspondente ao curso secun-dário) no Colégio São Paulo. Em 1882 ingres-sou na Faculdade de Medicina da Bahia, ondepermaneceu até o início do quarto ano. Em 1885transferiu-se para a Faculdade de Medicina doRio de Janeiro, concluindo o quarto ano. Em1886 retorna à Bahia onde freqüenta o quinto

    ano. Foi neste período, quando estagiou naSanta Casa de Misericórdia, espaço privilegi-ado de atuação da ETB, que Nina estreitousuas relações com o então professor de clíni-ca médica e importante político do Império, Al-meida Couto (Mattoso, 1992). Além disso, par-ticipou da direção da Gazeta Acadêmica(1885-1887), revista dos estudantes da Faculda-de de Medicina da Bahia, inspirada na Gazeta

     Médica da Bahia.A Gazeta Acadêmica, como outros periódi-

    cos desse tempo, era não só um importante ins-trumento de formação acadêmico-científico, noqual publicavam-se casos clínicos observadosem hospitais e clínicas, estudos científicos reali-zados no Brasil ou no exterior, e artigos voltadospara o ensino médico (Gazeta Acadêmica, 1885),mas também um degrau importante na ascensãoprofissional, um canal de socialização para a fu-tura carreira docente.

    Em 1886 voltou ao Rio de Janeiro para con-

    cluir o curso de graduação e elaborou sua tesede doutorado, sobre três casos de paralisia pro-gressiva cujo o título era  Das Amiotrofias deOrigem Periférica, defendida no final de 1887.

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    Ao longo do ano de 1888, clinicou em SãoLuís e escreveu uma série de artigos sobre higi-ene pública com atenção especial para o regimealimentar inadequado da população maranhen-se. Nesta ocasião, começou a colaborar com a

    Gazeta Médica da Bahia, mediante um conjun-to de trabalhos acerca da lepra no Maranhão.Nesse extenso trabalho introduziu um quadroclassificatório das raças no Brasil.

    Estudo clínico no doutoramento, atençãocom a alimentação, uma das variáveis interve-nientes na relação saúde-doença e o estudo deuma doença tropical, a Lepra, indicavam queNina Rodrigues cumpria o programa da EscolaTropicalista Baiana.

    No início de 1889, prestou concurso para aFaculdade de Medicina da Bahia, tornando-seadjunto da 2a Cadeira de Clínica Médica, cujotitular era o Conselheiro José Luiz de Almei-da Couto, que viria a tornar-se sogro de NinaRodrigues. O casamento revelou-se umaimportante estratégia de ascensão social (Mi-celi, 1979).

    Entre 1888 e 1892, escreveu uma série deartigos na Gazeta Médica da Bahia sobre epi-

    demias (abasia coreiforme, influenza, beribéri,febre amarela), casos clínicos, higiene públicae revisitou a questão racial no país, já associ-ada à medicina legal, com o artigo Os Mesti-ços Brasileiros.

    Em 1890, participou, ao lado dos Drs. JoséFrancisco da Silva Lima (presidente do Con-gresso) e Manoel Victorino Pereira (orador ofici-al), da comissão organizadora do 3o CongressoBrasileiro de Medicina e Cirurgia realizado emoutubro, em Salvador. Patrocinado pela Socie-dade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro(SMCRJ) em conjunto com a Sociedade Médicada Bahia, este Congresso, junto com os demais,vieram a se constituir num importante fórum ci-entífico e político em que foram decididas impor-tantes controvérsias a respeito da saúde públi-ca. Além disso, os congressos médicos repre-sentaram uma estratégia bem-sucedida de asso-ciações médicas não oficiais como a SMCRJ, oBrazil Médico, a Gazeta Médica da Bahia, a Soci-

    edade Médica da Bahia na luta contra a “apatia eo indiferentismo” (Brazil Médico, 1887) que rei-nava nas instituições oficiais. Por último, é im-portante destacar que os congressos médicos

    que se realizaram em diferentes Estados, supera-ram a marca regional da medicina dando-lheamplitude nacional ao aproximar grupos médi-cos do Rio de Janeiro, Bahia, São Paulo e MinasGerais (Ferreira et al., 1995).

    Em 1891, com a Reforma Benjamin Constant,Nina foi transferido para a Cadeira de MedicinaLegal, como professor-substituto do catedráti-co Virgilio Damázio. No mesmo ano tornou-seredator-chefe da Gazeta Médica da Bahia,escreveu artigos na  Revista Brasil-Médico,o mais recente órgão da imprensa médica doRio de Janeiro, criado em 1887, e foi nomeadopara a Congregação da Faculdade de Medi-cina da Bahia.

    Em 1892, Nina Rodrigues participa da comis-são de reforma dos estatutos da Faculdade, alémde debater, ao longo do ano, um projeto em an-damento no legislativo estadual a respeito daorganização dos serviços sanitários no Estado.É desse período a publicação de artigos que re-velam a influência das doutrinas do médico itali-ano Cesare Lombroso.

    MEDICINA LEGAL: EM TEMPOS

    DE CONVERSÃO

    A conversão definitiva de Nina Rodriguesà medicina legal data da publicação de As Ra-ças Humanas e a Responsabilidade Penal no

     Brasil (1894). Este livro foi dedicado a médi-cos e juristas consagrados à época no campoda medicina legal, como: Cesare Lombroso,Enrico Ferri, Garófalo, Alexandre Lacassagnee o Dr. Corre (Rodrigues, 1957). Por conta da

    influência dos arautos da antropologia crimi-nal do final do século XIX, Nina se identifica-rá também com certos postulados de FrancisGalton, criador de uma teoria social posterior-mente denominada eugenia, e do social darwi-nismo (Castañeda, 1994).

    Já haviam se passado quase vinte anos des-de a impactante publicação de  L’Uomo

     Delinquente de Cesare Lombroso, em 1876. Ateoria lombrosiana não seria somente uma vagaproclamação de que o crime é hereditário, masuma teoria evolucionista específica baseadaem dados antropométricos. Criminosos seri-am casos de atavismo evolutivo em nossomeio, germes de um passado ancestral que

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    Medicina Legal

    permaneceriam adormecidos em nossa heredi-tariedade. Em alguns indivíduos desafortuna-dos, o passado tornar-se-ia presente. A iden-tificação de “criminosos natos” poderia ser re-alizada através da apreciação dos seus sinais

    anatômicos. O atavismo presente neles seriatanto físico quanto mental, sendo os primei-ros os mais importantes. Comportamentos cri-minosos poderiam também aparecer em ho-mens normais, contudo a anatomia teria os ins-trumentos necessários para revelar o “crimi-noso nato”, não escapando, assim, das carac-terísticas herdadas (Gould, 1991).

    Durante duas décadas, as idéias de Lombro-so foram coroadas de êxito, como se verifica pe-

    las diversas edições de suas obras e a publi-cação de artigos. O sucesso do médico italianochegou ao auge em 1885, com o Primeiro Con-gressso Internacional de Antropologia Criminal,reunido em Roma, quando “afirma sem rodeiosque sua teoria do criminoso nato predispostoao crime por sua constituição física não é pas-sível de discussão por ser o resultado da obser-vação positiva dos fatos” (Darmon, 1991: 37).

    A cientifização do fenômeno criminológico

    inaugura uma febre de medições, de exercíciosantropométricos, de invenções de instrumentosde aferição jamais vistos. Uma década após o sur-gimento de O Homem Criminoso aparece um novouniverso de publicações e a realização de várioscongressos. Como observa Darmon (1991: 84):“Através dessas revistas e desses congressos,manifesta-se o sonho de uma grande antropolo-gia criminal de essência pluridisciplinar. Antro-

     pólogos, biólogos, psiquiatras, médicos-legistas,sociólogos, juristas participam do movimento”.

    A medicina legal, com toda sua bagagem ins-trumental de aferição e classificação, através dacraniometria, da antropometria, da frenologiaofereceu a mediação técnica e empírica que ou-tras áreas mais gerais do saber médico nãopossuíam em seu tempo. Pierre Darmon, avalia-ndo a medicina na França na passagem do sé-culo XIX para o XX, afirma que “se a cardio-logia, a ginecologia, a laringologia e outrasespecialidades ainda est[avam] na fase de

    improvisação, a medicina legal pode ser consi-derada, graças ao emprego das novas técni-cas, a primeira especialidade médica dignadesse nome” (Darmon, 1991: 232).

    No Brasil, a cadeira de medicina legal sur-giu no período de transformação das Acade-mias Médico-Cirúrgicas do Rio de Janeiro e daBahia em Faculdades de Medicina, em 1832.Segundo Santos-Filho (1991: 530), “o ensino

     prático dessa matéria só se verificou em finsdo século XIX Até então foi totalmente denatureza teórica, e versou sobre toxicologia,

     perícias, autópsias, embalsamento, atestados para fins jurídicos e a responsabilidade pe-nal dos médicos”.

    De início, como historia Peixoto (1914: 502),“a matéria era vinculada à seção das ciênciasmédicas. Com a reforma de 1854, ocorreu atransferência da cadeira para a seção de ciên-

    cias acessórias, dotando-a de um laboratóriode Toxicologia e um preparador”. Magalhães(1932) apresenta o seguinte quadro da medicinalegal na Faculdade de Medicina do Rio de Janei-ro, nos anos cinqüenta do século passado: “Oslaboratórios de Química Mineral e de Medici-na Legal estão baldos de recursos, à mingua deaparelhos, faltando-lhes não só os mais moder-nos como os mais essenciais” (p. 59). Na Bahiao cenário não era distinto.

    Até o final do século XIX a cadeira de medici-na legal não gozava de prestígio. Não muito di-ferente de outras matérias, seu ensino carecia daparte investigativa. Labra (1985) cita os relatóri-os da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro(FMRJ), transcritos por Bruno Lobo, que

    “mostram que as dificuldades por que passoua medicina legal foram semelhantes às dahigiene, no sentido de que sempre lhe

     faltaram recursos técnicos para as análises,as demonstrações e a pesquisa, tendo o problema adicional de não poder contar  para as autópsias senão com cadávares denegros, indigentes, loucos e anti-sociais”(Labra apud Lobo, 1985: 324).

    Peixoto (1914: 502) registra os avanços ocor-ridos nos anos 80 e 90, quando:

    “a reforma de ensino de 1882 ampliou oquadro técnico e além do lente catedrático,do adjunto, do preparador, do ajudante de

     preparador, deu ao laboratório um

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    Maio, M. C.

    conservador e um servente. Em 1891 outrareforma modificava o ensino: a Medicina

     Legal perdia a Química Toxicológica, que foiter à cadeira de Química Analítica; o ensino

     podia exercer-se nos casos de clínica forense

    da Polícia; as Faculdades de Direito foramdotadas de cursos de Medicina Legal. Em1895, uma reforma das Faculdades de Direito

     fundiu as cadeiras de Higiene e de Medicina Legal na única de Medicina Pública”.

    Quando Souza Lima assumiu a cadeira naFMRJ houve uma mudança radical, com a ênfa-se na pesquisa e experimentação. O mesmo pro-cesso ocorreu na Bahia com as alterações de

    rumo introduzidas pelo médico e político VirgílioDamázio no início dos anos 80 (Rodrigues, 1904),e reforçadas por Raimundo Nina Rodrigues queprocurou alçar a medicina legal à condição dedisciplina científica. No entanto, este processonão foi destituído de alguns percalços.

    Num período em que a ciência tornou-seuma fonte preciosa para a legitimação das aná-lises sobre o social, a medicina legal no Brasilfoi uma das primeiras disciplinas a conquistar

    um espaço institucional próprio e a demarcara atuação de um profissional adequado: o pe-rito. Nas palavras de Corrêa (1982: 6869), “es-

     pecialidade e especialista se encontraram em Nina Rodrigues”.

    A “ÉPOCA DE OURO” DAMEDICINA LEGAL

    Professor e pesquisador da Faculdade deMedicina da Bahia, Nina desenvolveu seus es-tudos iniciais em fisiologia, doenças tropicaise, adiante, em medicina legal, que tinha comoum de seus suportes científicos a antropolo-gia física da época. Suas análises médi-co-legais, etnográficas e psicossociais cami-nharam pari passu com as lutas pelo monopó-lio do saber e da prática médica e pelo incre-mento da especialização no campo da medici-na que, entre outros efeitos, resultou no forta-lecimento da perícia médica. As Raças Huma-nas e a Responsabilidade Penal no Brasil(1894) pode ser considerado o arcabouço teó-rico deste projeto.

    Este livro revela a crescente influência, desdeo final do século XIX, da medicina no campo dodireito. O foco privilegiado desta confluência foia questão penal e mais especificamente o discur-so biológico sobre o criminoso, como vimos an-

    teriormente. Um dos aspectos centrais desta in-teração entre médicos e juristas, muitas vezesconflitante, dizia respeito ao debate entre “clás-sicos” e “positivistas”. Para o “direito clássico”,portador de uma concepção liberal, os indivídu-os estariam investidos de uma consciência livree soberana. Já o “direito positivo”, com diversasnuances, concebia o indivíduo como ato reflexode um meio genético e social únicos. Na visãodos “clássicos” a fronteira entre o criminoso e o

    não criminoso seria tênue, não havendo nenhu-ma diferença de substância e sim apenas um equí-voco de natureza egoísta que exigiria punição.

    Para os “positivistas”, o criminoso estaria a pri-ori condicionado por sua natureza, que se revela-va em impulsos anormais e doentios. Desta forma,este ser estranho à “boa sociedade” deveria serdevidamente localizado, curado ou segregado parasempre. Estas duas imagens sobre o indivíduo seexpressavam, também, em duas concepções dis-

    tintas do Estado e seu papel na sociedade. De umlado, um Estado gendarme, liberal; de outro, umEstado hobbesiano sem uma nítida separação en-tre o público e o privado (Fry & Carrara, 1986).

    A polêmica entre “positivistas” e “clássicos”está no cerne de As Raças Humanas, onde Ro-drigues (1957: 47) afirma que “a cada fase daevolução de um povo, e ainda melhor, a cada

     fase da evolução da humanidade, se se compa-ram raças antropológicamente distintas, cor-responde uma criminalidade própria, em har-monia e de acôrdo com o seu grau de seu de-senvolvimento intelectual e moral”.

    O poligenista e relativista Nina Rodrigues ébastante explícito na sua defesa de que os ne-gros não poderiam ser tratados em pé de igual-dade com os brancos, já que seriam inferioresbiologicamente e, portanto, incapazes de se con-duzirem como cidadãos em seus plenos direitos.No contexto científico do final do século XIX, osaber médico-legal localizará nos corpos a fonte

    das desigualdades sociais e terá como meta adefesa da criação de padrões diferenciados deacesso à cidadania. Em especial, no Brasil, estedebate envolveu o tema do futuro da nação

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    pós-abolicionista e republicana, onde a incor-poração de amplos segmentos da sociedade aomundo do trabalho e da política, sob novas ba-ses, tornou-se questão central (Corrêa, 1982;Schwarcz, 1993).

    Raça e nação, fio condutor das reflexões de As Raças Humanas, é o binômio que informa aconversão definitiva de Nina Rodrigues à medi-cina legal. Entretanto, Nina não operou este des-locamento como mera peça ritualística. A predo-minância da clínica na formação dos alunos daFaculdade de Medicina corria o risco de conti-nuar a manter à margem a cadeira de medicinalegal, como acontecia até então. Atento a esteperigo, Nina procurou deslocar a visibilidade

    prevalecente das disciplinas ligadas à ClínicaMédica, para sua matéria, através da mobiliza-ção de, pelo menos, três recursos.

    O primeiro deles, diz respeito à introdução,por parte do racialista (Todorov, 1993) Nina Ro-drigues, da medicina legal no debate intelectuale político sobre os destinos da nação com im-portantes interlocutores como: Tobias Barreto,Silvio Romero e José Veríssimo. Um dos objeti-vos centrais de seu programa para uma medicinalegal brasileira era “promover a solução daque-les problemas médico-legais que nos são pecu-liares, ou tem para nós uma feição peculiar, emrazão do clima, da raça, da natureza das novasinstituições políticas e judiciárias, ou do graude civilização” (Rodrigues, 1904: 34-35). Dessamaneira, a ciência em ação de Nina não se limita-va ao laboratório.

    O segundo recurso foi a criação, na condiçãode catedrático de Medicina Legal, junto comoutros médicos, da Sociedade Médico-Legal da

    Bahia e da  Revista Médico-Legal (Rodrigues,1895: 1-2). Esta publicação, de caráter trimestral,afirmava, no seu primeiro editorial, que

    “representa ao mesmo tempo uma tentativade especialização em matéria científica eum ensaio de confraternização ecooperação profissional.(...) Pois se nosso país já de muito devia ter soado para a medicina legal a hora de sua

     plena diferenciação da medicina clínica oucurativa, a autonomia em que é mister concretizar-se essa diferenciação, de fato,não existe.

     A prática e o ensino da medicina atingiramno Brasil aquele grau de desenvolvimentoalém do qual tornam-se condições iniludíveisde todo aperfeiçoamento ulterior à criação eao cultivo de especialidades. Em clínica, em

    higiene mesmo, a direção e a disciplina dasatividades profissionais enterreiradas nestesentido vão sendo coroadas de pleno sucesso.

     Mas para a medicina legal, dir-se-ia commais verdade, para a solução toda ocasionaldos problemas médico-legais, ainda são tidos

     por suficientes os conhecimentos gerais daarte, não se admitindo especialização de

     preparo, não se requerendo especial tirocínio prático. Por toda parte, são esses problemasconfiados, aqui a clínicos notáveis nasespecialidades que cultivam, mas que nãocuraram nunca das suas aplicações legais;ali há médicos que, na frase dura masexpressiva de ilustre profissional, desiludidosde conseguir clientela, vão buscar empregosremunerados nas comissões periciais, malreputadas de categoria, de pouca estimamesmo forense, e mercê das quais em

     jurisprudência criminal, as mais das vezes seaparenta no nosso foro, num respeito não

    sentido pelas praxes processuais”

    Se no século passado a luta dos médicos sedesenvolveu no sentido de monopolizar o exer-cício da medicina contra os leigos e os charla-tães, a partir da passagem do século uma novadisputa se associará à primeira. Desta vez, a com-petição se refletirá no interior da própria catego-ria médica, a partir da era das especialidades.

    Desde o final do século XIX, os médicos-le-

    gistas procuraram questionar os fundamentosdos clínicos gerais em matéria de medicina le-gal. Esta crítica apareceria com maior evidên-cia na cotidiana tarefa de comprovar afragilidade das perícias realizadas por clínicos.É nesta luta com os médicos clínicos que seconstituirá o campo autônomo da medicinalegal, campo este que será configurado defi-nitivamente nas três primeiras décadas desteséculo. Desse modo, a criação de uma associa-ção e de uma revista não-oficiais voltadas paraas questões médico-legais deram maior legiti-midade à especialização.

    Esta tendência foi reforçada pela vasta pro-dução médico-legal de Nina Rodrigues publica-

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    da em revistas nacionais e estrangeiras reconhe-cidas pelo mundo acadêmico. Alguns de seustrabalhos apareceram na Gazeta Médica da

     Bahia, na revista  Brasil-Médico, na  Revista Médica de São Paulo e na Revista de Cursos da

    Faculdade de Medicina da Bahia. A partir de1897, o médico maranhense entrou no circuitointernacional com artigos publicados nas seguin-tes revistas:  Annales Mèdico-Psycologiques(França), Annales D’Hygiene Publique et de Mèdi-cine Legale (França),  Archives D’AntropologieCriminelle (França), Archivos de Criminologia,

     Medicina Legal Y Psiquiatria (Argentina).Além disso, seu livro O  Animismo Fetichistados Negros Baianos foi lançado primeiro na

    França e depois no Brasil. Em 1901 foi publica-do seu terceiro livro, O  Alienado no DireitoCivil Brasileiro.

    O terceiro recurso acionado por Nina Rodri-gues foi a tentativa de criar no interior da Facul-dade de Medicina uma habilitação específicapara o estudante que se especializasse em medi-cina legal. Esta proposta encaminhada à Con-gregação da instituição, em 1892, foi recusadapela mesma. Mais tarde, em 1895, Nina propôs àSociedade Médico-Legal da Bahia que sugeris-se à Assembléia Legislativa do Estado a criaçãode um serviço médico-legal do Estado. A idéiafoi aprovada sem ter sido executada. Mesmoassim, Nina persistiu no estabelecimento de umasérie de alianças com o aparato jurídico-policialcom vistas ao ensino prático de sua disciplina(Rodrigues, 1904).

    CONCLUSÃO

    Na “Memória Histórica da Faculdade de Me-dicina” de 1897, redigida pelo catedrático NinaRodrigues e recusada pela Congregação da ins-tituição, o médico maranhense apresenta umquadro desalentador das condições materiais ede ensino existentes na instituição. No caso es-pecífico da medicina legal, Nina afirma que:

    “Em matéria de instalação, o laboratóriode Medicina Legal é o menos afortunadodesta Faculdade (...). A desabar pelos

     fundos, crivado de goteiras, sem caiação,nem água encanada, com o seuinstrumental todo incompleto...

    (...) Insisto em declarar, diante dos fatos,que ainda por muitos anos o ensino práticoda Medicina Forense há de ser uma simplesaspiração entre nós. Nesse resultadoentram por partes iguais a

    responsabilidade do atraso edesorganização da Justiça Administrativada Justiça no país e a responsabilidadedesta Congregação que não tem queridotomar na devida consideração asexigências deste ensino. A falta de umaorganização médico judiciária no país, acarência de um título ou diploma especialdo médico-perito, que, aliás, contra todasas tendências do ensino moderno nos países

    civilizados, a Congregação já declarou quenão é necessário entre nós (...). O ensino prático da Medicina Legal, tão ligado àordem pública, só em parte pode ser dadoem laboratório. A clínica forense que é overdadeiro terreno das aplicações médico

     judiciárias, da mesma maneira que aclínica civil, só pode ser aprendida ouensinada nos hospitais, ela precisa dosnecrotérios, dos laboratórios, dos serviços

     policiais e dos Tribunais. (.. .) Tenhoconseguido particularmente dasautoridades policiais e dos médicos peritosda polícia, todo o concurso em favor doensino prático da cadeira de Medicina

     Legal, mas duvido que os alunos possamaproveitar esse material de ensino,atentando-se à disposição dos cursos daFaculdade a se moldarem pela rotina doensino teórico, para o qual só a palavra enão os fatos tem valor e merece respeito.

    Foi precisamente o que se deu em 1896. Osalunos nunca tiveram ocasião de ir àchefatura de polícia e poucas vezes foramao hospital, e então, quer nos casos de

     ferimentos que estudamos, quer nasautópsias judiciárias que fizemos ouajudamos, o número dos alunos não excediade meia dúzia” (Rodrigues, 1976: 16-17)

    A “Memória” de Nina revela claramente seuprojeto acadêmico. As críticas ao Estado e àCongregação foram estendidas aos professores,pelo desinteresse para com o ensino e a pro-dução acadêmica. Como constata Nina:

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    “Podem-se contar os trabalhos que nestesúltimos anos têm saído dos laboratórios egabinetes desta Faculdade. A não ser umaou outra observação clínica, de poucamonta e sempre mais ou menos incompleta,

    me recordo de um trabalho sobre beribérido Dr. Pacheco Mendes, quando professor de Anatomia Patológica; um ensaio do Dr.Sá Oliveira sobre craniometria; umamodificação ligeira do processo deKatistoffer para análise da manteiga, Dr.Saraiva; talvez uma ou outra modificaçãoligeira de teoria que não chega a ser 

     publicada e ...nada mais”(Rodrigues, 1976: 21)

    A censura à conduta do governo no queconcerne às carências existentes nas Faculda-des de Medicina da época eram registros co-muns nas “Memórias Históricas”. No entan-to, a desaprovação da “Memória” elaboradapor Nina Rodrigues é um importante indicadordo nível de conflito instaurado no interior daFaculdade de Medicina. O propósito de afir-mar sua autoridade científica, leva o catedráti-

    co de medicina legal a uma disputa com a tra-dição estabelecida, criando articulações exter-nas à instituição oficial de ensino médico efomentando uma produção científica voltadapara sua área específica.

    Não obstante o insucesso momentâneo daluta pela melhoria das condições materiais deensino de sua especialidade, Nina Rodriguesconseguiu obter estatuto científico para sua dis-ciplina. É o que revela o número crescente de

    teses de doutoramento sobre temas médico-legais nas duas primeiras décadas do séculoXX (Schwarcz, 1993). Isto significa dizer que,dentro das possibilidades de atuação institucio-nal no interior do campo médico, Nina Rodri-gues fez da medicina legal um espaço autôno-mo de conhecimento.

    Nina não se transformou em mito da ciência,como foi o caso de Oswaldo Cruz (Britto, 1992).A denominada “Escola Nina Rodrigues” foi umainvenção criada nos anos 30 do presente séculopelos médicos Afrânio Peixoto e Arthur Ramoscomo forma de dar maior credibilidade às suasrespectivas militâncias no campo da medicinalegal (Maio, 1994; Corrêa, 1982).

    Após a Revolução de 30, a medicina legaltornou-se política de Estado e deixou de ser,como observa Peixoto (1931: 04), “um comen-tário de leis, porém ciência de observação eexperimentação, ciência aplicada ao meio e

    ao povo brasileiro.” Nesta década, Nina foilembrado não apenas por seus trabalhosmédico-legais, mas, principalmente, pelos es-tudos etnográficos. Procurando relativizar odeterminismo biológico do médico maranhen-se num período em que prevalecia o interessepelas investigações sobre as “sobrevivênci-as” africanas e a concepção de aculturação,Arthur Ramos (1939: 12-13) afirma que: “se,nos trabalhos de Nina Rodrigues, substituir-

    mos os termos raça por cultura, e mestiça-mento por aculturação, pôr exemplo, as suasconcepções adquirem completa e perfeitaatualidade”.

    O campo intelectual brasileiro se caracteri-zou pela reduzida diferenciação interna atéas primeiras décadas do século XX. Por estaocasião era comum que “o médico, o bacha-rel, o militar ou o engenheiro que, além dostemas técnicos de sua especialização, ver-

    sasse a política e a literatura, esta em nume-rosos gêneros de prosa e verso” (Ma-chado-Netto, 1973: 51).

    Neste sentido, podemos considerar queNina Rodrigues foi um agente singular do cam-po médico no momento de sua estruturação noBrasil. Participante ativo do processo de institu-cionalização da medicina na virada do século,Nina canalizou suas ações para uma série deinvestimentos que resultaram no avanço da au-tonomia da categoria médica. Para isso, compe-tiu com a tradição clínica, até então dominante,demarcando o espaço de atuação específica damedicina legal. Sua militância foi basicamentedesenvolvida a partir da Faculdade de Medici-na da Bahia e das revistas científicas consagra-das, ou seja, nos marcos institucionais consi-derados de maior legitimidade naquela ocasião.Foi na condição de médico e cientista que abor-dou os temas obrigatórios (Bourdieu, 1987) deseu tempo. A produção acadêmica de Nina Ro-

    drigues e o subseqüente reconhecimento desua obra revelam que a estratégia de sucessãoseguida pelo médico maranhense foi extrema-mente bem-sucedida.

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    RESUMO

    MAIO, M. C. A Medicina de NinaRodrigues: Análise de uma Trajetória

    Científica. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro,

    11 (2): 226-237, abr/jun, 1995.Uma das maneiras mais profícuas de sepesquisar a história da medicina brasileira napassagem do século XIX para o XX é ainvestigação da trajetória profissional dedeterminados médicos que tiveram posiçõesde relevo no processo de mudanças queatingiu o campo médico à época. Nestesentido, este artigo tem por objetivo analisara carreira acadêmico-profissional de

    Raimundo Nina Rodrigues, a partir da noçãode campo científico de Pierre Bourdieu.Partindo do princípio de que o campomédico é um espaço de confrontosestruturalmente determinado pelos embatespassados, onde os médicos buscammonopolizar a autoridade/competênciacientífica, considero que o perfil médico deNina Rodrigues é um indicador preciso doprocesso de especialização e concorrência

    que se desenvolveu naquele momento.Palavras-Chave: História da Medicina;História da Antropologia; História da Ciência;Medicina Legal

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