a matÉria visual, o livro digital e a cultura livresca- limites, contaminaÇÕes e possibilidades

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1. Introdução

Inserido na complexidade que envolve os processos comunicacionais - de produção, armazenamento, circulação e percepção de signos -, nas diver-sas mídias, o presente artigo tem como objeto de estudo o livro que, desde seu aparecimento, vem sofrendo mudanças significativas, adquirindo características peculiares em consonância com a cultura vigente.

Berço de novas transformações na cultura livresca, o ambiente criado pelas articulações midiáticas e avanços tecnológicos, principalmente por conta da incor-poração das telecomunicações no sistema de circulação da informação, têm con-vocado, os interessados no assunto, a uma discussão acerca das transformações ora em curso. Acerca do exposto, importa registrar a importância de se debater tais questões, não só no âmbito dos avanços tecnológicos, mas fundamentalmente acerca das mudanças decorrentes do convívio dos signos de diferentes matrizes da linguagem (SANTAELLA, 2005) em um único espaço - onde o livro hoje se ob-jetualiza -, este propício para a convergência de mídias já conhecidas.

Nesse contexto, o presente trabalho tem como objetivo fomentar as dis-cussões, mais que esgotá-las, acerca dos diferentes modos de participação da linguagem visual em projetos gráficos de livros infantis, buscando reconhecer os diferentes caminhos de atuação desta linguagem na construção da mensagem do livro, bem como os vetores da sua convivência com as demais - verbal e sono-ra - nos livros digitais, em especial os app books desenvolvidos para o dispositivo de leitura da Apple, o iPad.

2. Ponderações de pesquisa

Se as conceituações acerca do livro impresso já se configuram enquanto um campo marcado pela heterogeneidade, no contexto digital o seu recorte torna-se ainda mais nebuloso e controverso. Distante de um consenso na literatura, as defi-nições de livro eletrônico não apenas divergem entre si como se mostram amplifica-das quando das diferentes conformações assumidas pelo referido objeto, a partir de referenciais distintos, a saber: hardware, softwares e formatos de arquivo.

Sem se ater à problematização conceitual mencionada, a pesquisa, que ora se apresenta recortada neste artigo, parte antes da categorização que separa

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o livro eletrônico dos dispositivos de acomodação da matéria livresca (hardwares e/ou softwares de leitura). Considera, contudo, que estes estariam divididos em livros-arquivos, que podem adotar diferentes formatos e extensões, e os livros aplicativos (app books), categoria-alvo sobre a qual se debruçam prioritariamente as investigações aqui propostas.

Diferente dos demais aplicativos1 de leitura, os app books destinam-se a acomodar a matéria livresca de um único título ou coleção, permitindo ao usuá-rio interagir com as interfaces gráficas, base de atualização e corporificação das linguagens, em especial a visual, foco das discussões aqui expostas.

O segmento de livros infantis foi eleito como universo para seleção e aná-lise dos objetos empíricos desta pesquisa, pois não só, historicamente, são pu-blicações em que a visualidade é demasiadamente explorada, como também por ter-se verificado que, na direção dos livros eletrônicos, os infantis são os que ganham maior destaque.

Considerando, então, tais questões, a presente pesquisa foi guiada por uma orientação metodológica que observa o pensamento lógico dedutivo, que pressupõe uma teoria geral já sistematizada, sendo avaliada à luz das particula-ridades do objeto investigativo e do problema de pesquisa. Os dados levantados tomaram como técnicas a revisão de literatura específica e a observação direta do corpus de análise - objetos empíricos -, estes selecionados a partir do método estatístico não probabilístico, por conveniência. Por fim, de posse dos dados co-letados, os procedimentos analítico/sintético serviram de orientações de proble-matização e discussão dos resultados.

3. Linguagem visual no livro infantil impresso

A imagem editorial é compreendida, independentemente da técnica utili-zada, como qualquer representação do mundo visível e/ou imaginado e se mate-rializa em um espaço, não somente no sentido visual, mas como, por exemplo, em uma espacialidade não necessariamente visível, mas certamente sensível, como as imagens mentais advindas da relação leitor-objeto livro.

1 Para CERUZZI (2000), no campo das tecnologias da informação, um aplicativo (app) é uma subcategoria de programa de-senvolvido para auxiliar o usuário na realização de tarefas específicas. Diferenciam-se, portanto, dos utilitários - destinados a tarefas de manutenção ou uso geral - e dos sistemas operacionais (S.O.) - voltados para gerenciar as tarefas em um nível mais macro.

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Assim como há a leitura da palavra em livros que comportam somente textos, a leitura da imagem - seja em livros compostos somente por imagens (FIGURA 1.1) ou por múltiplas linguagens -, vem se consolidando ao longo da história do livro infantil, fazendo perceber que o diálogo palavra-imagem percor-reu caminhos diferenciados, mas absolutamente integrados quando se visita a história do livro impresso.

As imagens, mesmo quando não acompanhadas de textos, são capazes de explicitar uma narrativa própria. Os textos, de forma semelhante, mesmo quan-do não acompanhados de imagens, sugerem-nas, instigando os leitores a imagi-narem espaços, personagens, cenas etc.

Além disso, o texto também assume um caráter imagético, visto que a sua impressão e materialização o torna também elemento gráfico, tornando-o produtor de sentido em duas vias: a do sentido da narrativa do texto e a do sig-nificado promovido pela estrutura morfológica do tipo utilizado no projeto grá-fico do livro. Então, o verbal, enquanto ideia, se materializa em texto a partir de elementos gráficos, as tipografias, permitindo, historicamente, ora neutralidade, ora amplificação ou reafirmação da ideia da narrativa verbal.

Muito embora o texto no livro impresso mantenha uma estrutura quase sempre linear, existem livros que fazem uso de um ordenamento narrativo que pressupõe múltiplos caminhos, como é o caso das histórias interativas em su-porte impresso, o RPG – Role Playing Game. Nessas histórias, as imagens servem de janelas [do latim januella], como porta de acesso, no caso, aos múltiplos per-cursos da narrativa em teia.

Mas não só de textos e imagens fixas vive um livro impresso infantil. Des-de há muito tempo, esses livros exploram os vários sentidos desse leitor, per-mitindo, inclusive, que crianças cegas possam sentir em seus dedos imagens produzidas através de processos gráficos especiais (FIGURA 1.2). Não somente o tato, esses livros exploram também o som, o movimento e a tridimensionalida-de das imagens, permitindo, desde então, que a criança interaja e possa explorar sensorialmente esse objeto. Nestes casos, pode-se citar, respectivamente, como exemplos, os livros com dispositivos sonoros, (FIGURA 1.3) que são acionados quando da interação da criança com o objeto. Vale ressaltar que a zona de con-tato e de acionamento sonoro é sempre relacionado a uma imagem, seja ela ilustrativa ou tipográfica.

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Do mesmo modo, a ideia ou simulação do movimento já se faz presente há bastante tempo nos livros impressos, seja através de técnicas de ilustração, seja através dos chamados flip books – termo patenteado por John Barnes, já no século XIX, para designar um livro animado ou também conhecido como cinema de polegar (FIGURA 1.4). Mais atualmente, o sistema scanimation (FIGURA 1.5) tem sido utilizando também para simular o movimento.

Em verdade, a trajetória do livro impresso, mostra que este também so-freu influência dos diversos meios, tanto sim que não só o livro incorporou os recursos audiovisuais, como também é possível perceber que a estética da tele-visão e cinema, bem como, mais tarde, a dos games eletrônicos, foram incorpo-radas aos projetos gráficos de livros impressos.

Obviamente que esse movimento não é o mesmo que os livros eletrônicos hoje permitem, mas importa perceber que o ambiente já vinha sendo moldado junto a criança, preparando-a cognitivamente para a recepção das linguagens articuladas nos livros digitais, etapa inscrita na denominada cultura das mídias, segundo afirma Lucia Santaella (1996).

FIG. 1

Em relação ao aspecto tridimensional da imagem, esta é vastamente ex-plorada, uma vez que, para além da própria tridimensionalidade do objeto livro, as imagens internas parecem ganhar vida e movimento a partir das técnicas de

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pop-up (FIGURA 2), ilustrações tridimensionais feitas com recortes de papel, e os chamados harlequinade (FIGURA 2), ou seja, ilustrações em abas móveis de ima-gens escondidas, onde a ilustração passa a ser a janela de acesso a manipulação. Há também o livre-jeu, livro-brinquedo, (FIGURA 2) que, conforme afirma Paiva (2010, p. 91), é o objeto de transfiguração da leitura que materializa o sensório, o plástico, a originalidade na concepção, intervenções poéticas, jogos gráficos e visuais. A autora complementa registrando que o livre-jeu, flip book, pop-up e o harlequinade todos se mesclam a práticas de vanguarda que tentam valorizar a manipulação experimental dos signos e explorar sentidos – textuais, visuais, táteis, sonoras e olfativas.

FIG. 3A/B/C

Polifônica, então, por natureza, a produção editorial infantil, ao longo da sua história, tem explorado uma relação de linguagens distintas – relação esta responsável pela promoção de sentidos – o que, de certa forma, vem prepa-rando terreno para as transformações que ora se apresentam para o livro na cultura tida digital.

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Sobre essa formação cultural, Lúcia Santaella (1996), em seu livro, Cultura das Mídias, afirma que a cultura digital não brotou diretamente da cultura de mas-sas, pelo contrário veio sendo preparada por processos de produção, distribuição e consumo comunicacionais a que a referida autora chama de cultura das mídias. Para ela, esses processos são distintos da lógica massiva e vieram fertilizando, gra-dativamente, o terreno sociocultural para o surgimento da cultura ora em curso.

Como as imagens vêm se comportando na cibercultura é algo debatido logo mais neste artigo. Aqui cabe discutir ainda o comportamento da imagem em livros infantis antes do surgimento dos app books destinados para este público e disponíveis para dispositivos eletrônicos de leitura da Apple.

Nesse sentido, ainda como categoriza Santaella (1996), após a cultura oral, o homem passou a registrar, nos mais variados suportes, o texto que, por sua vez, mantive sua relevância em relação à dimensão imagética durante muito tempo.

Com a cultura impressa e depois com a cultura de massas, que aponta-ram para novos meios de reprodução e circulação, as possibilidades técnicas de produção imagética se ampliam, novas linguagens surgem como a fotografia, o cinema e a televisão, promovendo a imagem a um maior destaque nas produ-ções editoriais, em especial em livros destinados ao universo infantil. Deve-se, então, à cultura das mídias, o terreno fértil para o desenvolvimento imagético e sua complexificação, dado que a esta época o perfil cognitivo da criança televi-siva já permitia avanços nesse sentido. Sobre esta questão, Kerckhove (1997) afirma que as crianças sofreram a ação da televisão no seu processo cognitivo de percepção imagética, transferindo suas estratégias visuais da tela da TV para o texto, neste caso, impresso sobre um papel.

Assim, os livros voltados para esse público passaram a carregar ilustra-ções que já mantinham pé de igualdade com os textos, propondo, muitas vezes, uma narrativa distinta e complementar ao texto com quem dividia a página im-pressa. Sobre essa questão Barthes (1982, 23) afirma:

“outrora, a imagem ilustrava o texto (tornava-o mais claro); hoje, o texto torna pesada a imagem, enxerta-a de uma cultura, de uma moral, de uma imaginação”

A cultura televisiva e os processos de difusão, então, acabaram por modi-ficar os modos de acesso e leitura das imagens, atuando enquanto agentes cata-

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lisadores/viabilizadores de um processo ulterior onde a imagem se posiciona de forma mais igualitária em relação a matéria textual, interferindo de modo mais ativo e amplificador de sentido no discurso do livro.

De maneira análoga ao exposto, tem-se o contexto da cultura das mídias atuando enquanto vetor preparatório de um cenário onde vislumbra-se uma pos-sível potencialização e supremacia da visualidade dada a sua característica de congregar outras linguagens, seja na dimensão da acessibilidade interfacial, seja na construção de um discurso preponderantemente imagético.

4. Novos caminhos da matéria visual em livros aplicativos

Como dito, mesmo que ainda assentada sobre um suporte analógico, a história do livro infantil veio sendo construída a partir do uso conjunto de lin-guagens, alcançando, a visualidade, um papel ativo na construção do discurso.

Preparado silenciosamente no interstício da cultura de massa, o leitor mi-rim galgou novos recursos cognitivos como resposta adaptativa aos estímulos culturais da mídia televisiva, ao passo que a evolução das técnicas de produção e circulação da informação permitiram ainda mais a contaminação entre lingua-gens e mídias, possibilitando um destaque ainda maior à matéria visual.

A cibercultura, portanto, não se configura como um salto da era midiática, antes, porém, teve nesta última um espaço transitório de amadurecimentos e potencializações de estruturas culturais antes latentes e ocultadas pelo fetiche das evoluções tecnológicas.

Desta forma, cabe ressaltar, conforme Santaella (2004), que as transfor-mações aqui verificadas no tocante ao objeto livro não responsabilizam o meio e as novas tecnologias enquanto principais agentes transformadores deste e da cultura a ele atrelada. Do contrário, esses suportes, sejam físicos ou digitais, figuram enquanto meros canais esvaziados de sentido quando da inexistência da mensagem.

Isto posto, cabe reconhecer que as transformações aqui analisadas, anun-ciadas pelo livro digital, dizem muito mais dos diferentes modos de articulação das diferentes matrizes da linguagem entre si - na construção do discurso e de

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como meio vem redefinindo e ou potencializando as experiências de leitura - do que das inovações tecnológicas que atualizaram o suporte de assentamento da matéria livresca.

Destarte, pode-se reconhecer que os caminhos possíveis a serem trilha-dos pelo livro digital infantil terão nas transformações sofridas no nível da lin-guagem - enquanto sistemas de signos - e na maneira como estas dialogam entre si junto aos limites e potencialidades dos meios disponíveis na cultura digital, seu principal vetor transformador.

Nessa perspectiva, então, no contexto da cultura digital, a imagem abandona o caráter do estático e perene em relação a interface comum nos livros impressos para tornar-se imanente e, ao mesmo tempo, obsolescente. Diz-se isto dada a sua materialização estar vinculada à atualização constante da interface gráfica dos atuais dispositivos de acomodação da matéria livres-ca. Estes passam a determinar e serem determinadas pela imagem desde a sua gênese, seja no tempo de exposição, nas possibilidades de construção e reconfiguração dos diálogos com outras matrizes de linguagem, limites, con-taminações e até sua própria extinção, face a obsolescência da mídia que a suporta.

Neste sentido, cabe reconhecer o papel da linguagem visual no objeto livro, quando da transposição deste para o contexto digital, para além da evo-lução das técnicas e do meio. Do contrário, sendo a acessibilidade da informa-ção no nível do sujeito um traço da cibercultura, que se mostra mediado pelas novas tecnologias via interfaces, em sua maioria, sensoriais e pervasivas, cujo primado se encontra sobre a visualidade (ROCHA, 2009) a imagem parece con-quistar um lugar distinto do que historicamente assumiu na cultura do livro impresso.

Na cibercultura, então, a linguagem visual sofre mutações e potencia-lizações quer na esfera micro - o diálogo da imagem frente as demais lingua-gens que compõem o discurso -, quer na esfera macro, onde ela, a visuali-dade, assume o caráter de janela de acesso à informação, sendo elemento agregador das demais linguagens. Na cultura digital, era da prelazia da ima-gem, a linguagem visual não só é sujeito do conteúdo livresco, como principal via de acesso a esse.

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5. Livros aplicativos infantis

Na tentativa de se reconhecer in loco as questões levantadas anteriormen-te, tomou-se como exemplares para análise três livros eletrônicos de ampla dis-tribuição na AppStore Argentina, que por questões mercadológicas e diferenças na política fiscal do país, apresenta maior variedade de títulos que a loja de aplicativos nacional.

Dentre os selecionados encontram-se Toy Story, da Disney-Pixar (FIGURA 3), The Going to Bed Book, da autora Sandra Boyton em parceria com a Loudcrow (FIGURA 4) e o The Three Little Pigs Light, da Coleco (FIGURA 5). Os app books foram escolhidos tomando-se por critério os modos de articulação da linguagem visual com o meio e com as outras matrizes de linguagem no que se refere à construção/exibição, organização, acesso e interação com conteúdo do livro.

FIG. 3 FIG. 4 FIG. 5

De modo geral, pode-se observar que os exemplares adotados trazem al-gumas características em comum no que se refere à estrutura do aplicativo e os modos de realização da tarefa. Muito embora o objeto tratado pertença, à priori, a uma cultura editorial, verifica-se que a metáfora base para o acesso e navegação assemelha-se, em sua maioria, à lógica utilizada nas antigas apresentações de CD-ROM e da web. Isso pode ser verificado, principalmente quando da obser-vação que o livro passa a ser acessado, não mais a partir da sua capa (elemento de fundamental relevância no livro analógico, tanto do ponto de vista da atracão dos leitores quanto, por consequência, sua relevância mercadológica no ponto de venda), mas a partir de ícones. Esses passam a servir de elemento visual

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acionador do sistema, tendo na home, e suas estratégias interfaciais, a janela de acesso ao conteúdo livresco.

Questiona-se inclusive o papel desses ícones na cultura livresca na cultu-ra digital, visto que seu papel extrapola a função de acionamento, uma vez que este, enquanto elemento visual, assume, junto ao leitor em potencial, elemento também sedutor, similar a uma capa de livro clássico, por pré-comunicar a este leitor a direção que sua interface gráfica possui.

No que se refere ao ícone, verifica-se que em boa medida mantém-se a mesma lógica adotada para a elaboração das capas dos livros impressos. Se nes-te últimos a capa seduz, protege, indica o conteúdo e sugere um dado apelo emocional, nos ícones é também possível observar tais similitudes no que toca à função e ao modo como os elementos gráficos se apresentam. Seja pelo viés da semelhança na indicação de materiais, texturas, acabamentos ou representação tridimensional do objeto livro, seja pela configuração das imagens e/ou textos neles dispostos, os ícones dos app books ainda mostram-se preponderantemente ligados ao referencial do elemento extra-textual “equivalente” na cultura do livro impresso, resguardada a função referencial de acionamento, que faz do ícone um índice de ação e símbolo da aplicação acionada.

Todavia, há de se considerar que a natureza do meio em que estão inseri-dos os ícones conta com especificidades que precisam ser questionadas quando da verificação de soluções gráficas que assumem o caminho da transposição do repertório visual impresso para os novos dispositivos de leitura. Pressupondo--se que os ícones contam com o apoio de elementos da matriz verbal por padrão (legendas) na maioria dos sistemas operacionais, esses acabam por assumir, na cultura dos softwares e da web, uma tradição gráfica que tende mais à síntese por meio simbólico que propriamente pela via do icônico.

Nos livros aplicativos entretanto, ainda é possível se verificar, nos casos analisados, caminhos que reiteram as constatações de desconfiguracão, manu-tenção ou contaminação em relação à matéria livresca. Se em Toy Story a ma-triz visual e verbal se articulam de maneira similar à verificada nos ambientes digitais dos jogos eletrônicos, cd-rom e web, nos demais ainda é possível se constatar uma dada referencialidade à composição visual das capas dos livros impressos. Destarte, nota-se que em ambos os caminhos, as matrizes de lingua-gem ainda não estabelecem um diálogo com as vicissitudes e particularidades do

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meio, de modo a mediar a co-existência das diferentes linguagens num sentido mais convergente. Ademais, reconhece-se ainda que, dada a reconfiguração do modo de apresentação do conteúdo livresco no contexto digital assumir diversos caminhos em potencial, impõe-se, diferente da dada previsibilidade de apresen-tação já legitimadas pela cultura do impresso, a necessidade de um diálogo entre o ícone e a página de abertura (home), no sentido de construir não apenas uma via de sugestão ao leitor/usuário acerca da natureza da experiência com a qual irá se deparar, mas sugerir os modelos e caminhos metafóricos adotados para realização da tarefa em cada livro aplicativo específico. Desta maneira, ter-se-ia um inter-diálogo de diferentes matrizes de linguagem que atravessaria toda a estrutura do objeto livro digital preparando o interator, ainda que de forma mais ou menos parcial, dada as restrições impostas pelo meio, não apenas para a ex-periência de leitura que o espera mas também no sentido clarificar os modos de funcionamento e interação com os aplicativos - effordance.

6. Considerações finais

Em síntese, pode-se observar que os app books existentes voltados para o universo infantil tendem, por um lado, para a manutenção da estrutura e lingua-gem do livro impresso, por outro apontam para a descaracterização do mesmo, seja por meio da forma própria de articulação das matrizes de linguagem, seja pela forma inusitada de diálogo estabelecido pelas diversas mídias incorporadas por esses dispositivos de leitura.

Face ao exposto, enxerga-se o livro na cultura digital contaminado por mídias outras que outrora não eram possíveis e com uma enorme potência para uma real convergência dessas em prol da cultura livresca do futuro. Ainda sobre essa questão, muito embora a tecnologia já aponte nessa direção, oferecendo as bases de produção, armazenamento e circulação, o momento ainda é de transi-ção, visto que os atores da produção editorial infantil ainda estão sob a sombra da cultura das mídias, o que dificulta a articulação entre as linguagens em detri-mento da convivência mimética e contaminada destas.

Após investigar os rumos que o objeto livro parece estar tomando em meio a cultura contemporânea, notório está que será mesmo preciso que os pesquisa-dores e produtores envolvidos com esse objeto não se deixem seduzir pelo feti-che das mídias, no que se refere à hipervalorização das tecnologias. Esse cuidado deverá ser levado à sério por esses sujeitos produtores de cultura, sob o risco de

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obscurecer as discussões mais significativas que essa atual cultura nos impõe: a de investigar, como sugere Santaella, as verdadeiras alterações ocorridas no ob-jeto em questão, tanto na perspectiva do micro-nível da linguagem, visualidade enquanto sujeito da construção do discurso, e no macro-nível desta, visualidade enquanto agente aglutinador das demais linguagens e seus respectivos diálogos para com os novos limites e possibilidades do meio. Acrescenta-se a isso ainda o fato de que esses níveis se multi-influenciam de modo que a imagem também passa a interferir nas novas formas do humano se relacionar com o objeto livro na era digital, inclusive, o público específico do segmento aqui analisado.

Destaca-se, ainda, que as alterações na dinâmica do livro mudará, ao cer-to, o referencial físico que se tem desse objeto, acarretando em uma maneira nova de se pensar o objeto, alterando a maneira de se relacionar com este. Ao que parece, até mesmo a imagem que se construiu do livro se alterará, visto que sua história caminha para uma outra referencialidade que transcende a do obje-to brochurado.

Por fim, aceitando a convergência de mídias e linguagens como caminhos certos para o futuro do objeto livro, percebe-se, então, a posição de destaque que a matéria visual assumirá, principalmente porque esta se mostra favorável para a incorporação de novas linguagens, reforçando ainda mais o seu papel ativo na construção da narrativa livresca.

Diante do exposto, finda-se esse artigo com a certeza de manter-se atento às transformações promovidas no universo livresco ora em curso e suas con-sequências no âmbito da cultura contemporânea, apesar de toda a incerteza, própria do devir.

7. Referências bibliográficas

BARTHES, Roland. A Mensagem fotográfica. Teoria de cultura de massas. Adordo et al. Luis Costa Lima, org. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

KERCKHOVE, Derrick de. A pele da cultura. Lisboa: Relógio D’água, 1997.

PAIVA, Ana Paula Mathias de. A aventura do livro experimental. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

ROCHA, Cleomar. Interfaces cognitivas. Exposição instinto computacional. Org. Suzete Venturelli. Brasília, 2009.

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____________. Pontes, janelas e peles: contexto e perspectivas taxionômicas das interfaces computacionais. Relatório de estágio de Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital, PUC-SP. São Paulo: 2009.

SANTAELLA, Lúcia. Cultura das mídias. São Paulo: Experimento, 1996.

____________. Culturas e Artes do Pós-Humano – da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2004.

____________. Matrizes da linguagem e pensamento – Sonora, visual e verbal. São Paulo: Iluminuras, 2005.

____________. Navegar no ciberespaço – perfil cognitivo do leitor imersivo. São Paulo: Paulus, 2004.

Currículo dos autoresCarina Ochi Flexor: graduação em Comunicação Social com habilitação em Pu-blicidade e Propaganda pela Universidade Católica do Salvador (1996) e pós-gra-duação em Design pela Universidade Salvador (1999). Mestranda em Cultura Visual na Universidade Federal de Goiás - UFG. Atualmente coordena o Curso de Publicidade e Propaganda e é professora dos cursos de graduação e pós--graduação em design da Unifacs.

Elias Bitencourt: graduação em Desenho Industrial com habiliatação em Pro-gramação Visual pela Universidade do Estado da Bahia (2003), especialista em Design de Comunicação Visual pela Unifacs (2004). Atualmente é professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Design e graduação em Publicidade e Propaganda da Unifacs e professor de Design da Universidade do Estado da Bahia.

Cleomar Rocha: graduação em Letras pela Faculdade de Educação Ciências e Letras de Iporá (1991), mestrado em Artes pela UnB (1997), doutorado em Co-municação e Cultura Contemporânea pela UFBa (2004) e pós-doutorado em Tec-nologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP. Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal de Goiás.

Daniel Marques: graduando do curso de Design de Comunicação Visual com Ênfase me Meios Digitais da Univeridade Salvador – UNIFACS. Aluno voluntário de Iniciação Científica do Grupo de Pesquisa em Comunicação da Universidade Salvador – Unifacs. Atualmente é o designer gráfico da Ganesh Branding.