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A mão esquerda

Há muitas histórias interessantes a serem contadas. Outras, nem tanto, mas são contadas do mesmo jeito. O próprio Machado de Assis, autor que sempre admirei com cada fibra e nervo de meu velho ser, soube como ninguém perceber isso e transformou algumas histórias bem corriqueiras em clássicos que renderam quilos e mais quilos de teses de doutorado. Cabe ao leitor decidir se esta é uma história que valeria a pena ser contada ou não. Vamos a ela.

João Afonso Fonseca Albuquerque. Ou, simplesmente, professor Albuquerque, como era comumente chamado por seus alunos na universidade. Albuquerque não era simplesmente o Prof. Titular de Literatura Comparada daquele renomado tabernáculo do saber acadêmico, uma das universidades federais que ainda resistiam bravamente à sanha de privatizações do (des)governo autoritário que se instaurara no país. Ele era o profissional mais respeitado e admirado da casa. Até mesmo alunos que haviam sido reprovados pelo exigente acadêmico nutriam estima por ele. Inimigos políticos, esses muitos em uma instituição de ensino superior público, deixavam suas politicagens de lado ao falar do nobre catedrático. E não era para pouco, pois, afinal, até mesmo eu, que conto nos dedos da mão as pessoas que admiro, sempre nutri por aquele homem a mais sincera e inexplicável das admirações.

Todo ser humano que caminha sobre essa terra decrépita tem alguma forma de desvio comportamental secreto, alguma compulsão. Isso é um fato, queira o leitor negá-lo ou não. Uns são viciados em jogatina, outros dependem de substâncias químicas pesadas, há aqueles que não conseguem deixar de fazer sexo selvagem seis ou sete vezes por dia, há os que matam e que regozijam com isso, há os que perversamente glorificam a violência, a chacina e a matança como as mais eficazes formas de higienização social que existem, enfim, há todo tipo de doença nessa vida. Há mais mistérios entre o céu e a terra que nossa vã filosofia pode compreender, já dizia o batidíssimo clichê shakespeariano, recitado por tantos que sequer abriram uma página do bom e velho William. Aliás, isso era o que mais imperava nos corredores acadêmicos e o que mais enojava Albuquerque: aqueles que adoravam falar com convicção e segurança a respeito de obras e autores que nunca tinham lido. Certa vez vi o título de um livro em

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uma loja que me chamou bastante atenção: Como falar com propriedade sobre livros que você nunca leu. Ri à beça. Professor Albuquerque também tinha tomado conhecimento dessa obra e se lembrou de vários profissionais, doutores, mestres e outros distintos acadêmicos em pura patifaria que, em seus pilares de saber universal e inexpugnável, protegidos atrás de seus títulos (seus escudos, seus castelos), portavam-se dessa forma. Nem todos eram dessa estirpe movida a falcatrua, picaretagem e sem-vergonhice, logicamente, Albuquerque sabia disso. Nem eram a maioria, ele supunha. Mas era tão, tão difícil para ele discernir o joio do trigo já que ele sempre estava uns dez passos na frente de todos no que dizia respeito à quantidade de livros lidos...

Fiz uma pequena digressão, mas ela acabou me sendo útil, já que esses cretinos verborrágicos fraudulentos que Albuquerque tanto detestava estavam intimamente conectados com sua compulsão-mor: a fome por conhecimento. Desde a tenra infância o então pequeno Joãozinho sempre demonstrou uma estranha fome por leituras. Lia de tudo que era posto na frente de seus olhos: histórias em quadrinhos, livros infantis, jornais, revistas, até receitas de bolo. A família do garoto obviamente percebeu aquele gosto singular, e até certa preocupação brotou na cabeça de seus pais ao notarem o quanto o rapaz preferia muito mais ficar em casa lendo em seu tempo vago, incluindo sábados e domingos, do que sair com amigos ou com garotas. O caminho para o magistério lhe pareceu o percurso mais óbvio. Seu fascínio pelo conhecimento em várias facetas, o filosófico, o histórico, o antropológico, o sociológico, o político e, principalmente, o literário, lhe deixou bem evidente que seu caminho em vida seria transmitir seu saber para as pessoas – ou pelo menos tentar, com cada força de seu ser. Aos vinte anos já tinha uma biblioteca particular com cerca de cinco mil e quinhentos livros, todos devidamente lidos e relidos. Os anos de faculdade, desde sua graduação até seu doutoramento, lhe foram relativamente simples, tendo em vista que seu apetite por saber às vezes o fazia ler, em duas semanas, o programa de textos que seria lido em um semestre inteiro pela turma. Albuquerque assustava e fascinava os demais. Era o queridinho de muitos professores e o maior inimigo de outros, tendo em vista que, sem parcimônia alguma, antecipava ou corrigia os comentários proferidos em sala por algum acadêmico. Quantos

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rapazes não grudaram nele querendo ser seus amigos, colegas de grupo de estudos ou bajuladores, apenas por seu caráter quase messiânico de saber? Quantas mulheres ele não conseguiu facilmente levar para a cama apenas pelo desejo intenso nascido da admiração suprema que tinham por ele – e isso já não seria uma prova cabal da existência da sapiossexualidade? Enfim, Albuquerque tornou-se professor com grande facilidade. Era admitido nos concursos públicos sempre em primeiro lugar, e foi assim construindo uma sólida carreira, subindo a escada, de professor substituto a professor assistente até o sonhado posto de professor titular, aplaudido de pé em inúmeros congressos, publicando tratados acadêmicos sobre diversos assuntos os quais se tornaram verdadeiras bíblias. Havia até quem dissesse que ele seria um dos próximos imortais da Academia Brasileira de Letras. Sua trajetória era uma história de sucesso e felicidade absoluta.

Menos para ele. Professor Albuquerque, João, Joãozinho. Pobre menino

assustado preso dentro do corpo de um homem de quarenta anos. Quem poderia imaginar que nos cantos mais recônditos da alma daquele sisudo catedrático, que sempre andava com roupas sociais finas, barba feita e cabelos milimetricamente cortados, havia um ser desesperado por um nível de saber que jamais alcançaria? Como vos narrei, nosso pobre herói-gênio romântico sempre teve uma estranhíssima compulsão por leitura, esta nunca tratada em algum consultório de psicoterapia – nem tampouco em um de psiquiatria. Por conseguinte, essa mesma doença somente piorou com o tempo. Era para ele incômodo demais ir a uma livraria e ver que, por mais que houvesse centenas de livros que já havia devorado, havia tantos e tantos outros ainda a ser lidos. Ao entrar na vastíssima biblioteca de sua universidade e se deparar com a exorbitante quantidade de volumes que ali existia, muitos dos quais ele ainda não tinha sequer passados os olhos sobre, sentia uma dor similar àquela proporcionada por uma faca sendo enfiada em sua testa de uma tacada só. Apesar de ler numa velocidade sobre-humana e de ter um fantástico poder de absorção de informações, Albuquerque ainda era humano. Somente um humano, e isso era o que mais detestava em si mesmo.

Sempre havia algum livro que não tinha lido ainda, sempre. Em toda ocasião em que ouvia algum colega ou aluno lhe perguntar de

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alguma obra que desconhecia, corria para adquiri-la imediatamente e a lia no mesmo dia. Jamais se esqueceria da dor que sentira quando, em um congresso, em frente a uma plateia de mais de quatrocentas pessoas, teve que admitir que não tinha lido uma determinada obra de um obscuro autor dos confins do século XIX. Certo, ninguém ali conhecia o referido livro. A grande maioria sequer havia escutado falar do autor em questão. Tratava-se de um escritor esquecido (e até esquecível, muitos diriam) com apenas uma obra relevante, que aparecia em raríssimos compêndios enciclopédicos de Literatura – e dentre esses pouquíssimos, havia contradições a respeito da prateleira em que ele deveria ser alocado, em qual “ismo” encaixá-lo. A obra em questão nem tinha tanto valor literário assim: era uma história rocambolesca que o desfamigerado autor em questão havia originalmente publicado em folhetim e, posteriormente, lançado em um volume único em uma edição penosamente custeada do próprio bolso. Era uma obra quase que completamente desconhecida que possuía muito pouco (ou nenhum) impacto sobre a produção literária do referido período. Mas um desgraçado tinha que perguntar justamente sobre aquele material. Justamente sobre aquele maldito autor, aquele quase ilustre desconhecido. Aquele, aquele escritorzinho de quinta categoria que João não havia lido.

“Desculpe, eu não cheguei a ler essa obra”. Era como se estivesse cuspindo pedras. Olhou nos olhos das pessoas e sentiu a decepção suprema. “Como assim ele não conhece? Logo ele? Inadmissível”. Era como se ouvisse os risos de deboche, as imprecações. Sentiu sobre a ele as ácidas cusparadas de desprezo oculta nos silenciosos olhares de todos os presentes. Quis estrangular o beócio que havia lhe indagado aquilo, mas tinha compostura suficiente para manter a sua pose de bom Doutor. Entretanto, desmoronou ao chegar ao seu quarto de hotel. Quebrou tudo ao seu redor, num acesso de fúria boçal, como se fosse um desses superstars megalomaníacos, ensandecidos, vândalos, esses moleques mimados superfamosos que justificam seus rompantes de destruição com o adjetivo “excêntrico”. Havia tempos que João não chorava tanto. Ira, desespero, sofrimento. Ódio. Precisava conhecer tudo, tudo. Já estava num ponto em que dormia apenas três ou quatro horas por noite, se esquecia de comer, tudo por conta de sua compulsão por ler mais e mais. E mais. Tinha que saber tudo, sempre. Entretanto, quanto mais

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lia, mais ele se angustiava, pois novas obras seriam sempre lançadas. Sua alegria ao concluir um livro era logo apagada pela angústia inominável que sentia ao ver a enorme lista bibliográfica em seu final, repleta de referências obscuras que ele não havia sequer ouvido falar, mas que precisava, simplesmente precisava conhecer. A literatura é um organismo vivo, um verme, um parasita, uma larva gigantesca que apenas engorda, nos morde, nos infecta e nos enche com seus sintomas de pestilência e nos transforma em moribundos do saber, zumbis famintos pelas frescas carnes da erudição. Sentimos um prazer inexorável e inquestionável com cada sílaba, cada palavra que vem a mordiscar nossas retinas. O homem sempre soube criar grandes símbolos de poder, e eu particularmente coloco o conhecimento no mesmo patamar de outros simulacros de poderio devastador, como o dinheiro e as armas de fogo. Vou além: ouso dizer que o conhecimento pode ser severamente mais destrutivo que as mazelas sociais, as cíclicas crises do capitalismo, os regimes de autoritarismo e as temíveis hecatombes atômicas. Isso se dá quando o conhecimento se torna uma espécie de vício. Daí, o caráter emancipatório e libertador do saber é esvaziado: quando mais se sabe, mais acorrentado fica o indivíduo. A palavra deixa de ser uma porta e se torna o cadeado. A questão é que os seres humanos que embarcam nessa espiral de autodestruição costumam só perceber o erro tarde demais. Até hoje não sei se Albuquerque, ou melhor, se o Professor Albuquerque se deu conta disso de fato em algum momento de sua atormentada trajetória.

Nada era o bastante para ele, como eu dizia. Nada. Não havia tempo para ler todos os livros que queria ler, para absorver todo o conhecimento que queria. Não havia uma mísera noite em que o nobre professor, afogado em páginas e mais páginas, não desejasse com todas as suas forças ter alguma forma de obter mais conhecimento, todo o conhecimento possível, no menor espaço de tempo que sua efêmera vida mortal permitisse.

E foi justamente numa dessas noites de sofreguidão suprema em frente a volumes e mais volumes que sua campainha tocou. Estranhou: Não esperava visita alguma.

– Professor Albuquerque? – a silhueta que via pelo olho mágico não lhe era nada familiar. Pensou em um primeiro instante que pudesse ser algum aluno, mas jamais havia revelado seu endereço a

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nenhum deles. Julgou estranho também aquela figura ter chegado até a porta de seu apartamento e seu porteiro não ter interfonado avisando que alguém queria vê-lo, como sempre fazia, já que era procedimento do condomínio. Em todo o caso, entreabriu a porta, ainda sem levantar as correntes que a trancavam. Deu uma breve analisada naquele homem. Muito bem-vestido em seu terno limpo e negro-ônix, pálido como uma parede, cabelos longos e extremamente dourados, olhos de um brilhante azul, um sorriso convidativo e um olhar carismático. Indiscutivelmente, um sujeito bonito, garboso, charmoso. Elegante. Não entendeu o motivo de ter deixado aquele homem entrar em sua casa. Detestava visitas, elas sempre interrompiam suas leituras, era um tanto avesso ao contato com as pessoas. Só mantinha relações realmente necessárias, como as com seus familiares mais íntimos, uns dois quase-amigos e ocasionalmente com algumas mulheres, as quais ele via, usando seus próprios termos, como seus “reguladores hormonais”. Realmente não entendeu o motivo de ter, como que num passe de mágica, simpatizado tanto com aquele ser e não ter desconfiado dele. Com certo abuso, aquele homem alto e espadaúdo sentou-se em seu sofá como se a casa fosse sua e fez um gesto com sua mão esquerda indicando que seu anfitrião fizesse o mesmo, acomodando-se na poltrona da frente.

– Professor Albuquerque, sou um velho admirador seu. Acompanho sua trajetória há muito tempo, bem mais tempo do que podes imaginar.

O catedrático respondeu com um pequeno sorriso. Já estava acostumado com elogios. Queria logo despachar aquele estranho visitante e prosseguir em sua jornada pessoal pelo conhecimento. O homem loiro abriu seu paletó e tirou de dentro um livro. Albuquerque reconheceu a capa, era a publicação de sua Tese de Doutorado, uma abordagem extremamente inovadora de diversas obras de Machado de Assis, em comparação com obras de autores contemporâneos considerados não-canônicos (e alguns até vistos como “marginais” pelos setores mais conservadores da academia). Após ter pegado uma caneta, lhe ofereceu o livro e a esferográfica. Então aquele estranho que recebia em sua casa no meio da noite apenas queria um autógrafo? Que fosse. Estava acostumado a dar autógrafos simpáticos. Tinha um estoque de textos genéricos nos arquivos de sua mente para escrever em vários livros para inúmeros admiradores. “Caro fulano de tal,

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obrigado pela admiração, um abraço, João Albuquerque” ou “Dedico esse nobre volume a meu/minha amigo(a) beltrano(a) por sua admiração. Forte abraço, João Albuquerque”. “Ciclano, a apreciação que tens por mim é mútua. Abraço, João Albuquerque” era um de seus favoritos, mas evitava se repetir. Ao abrir o volume, indagou o nome de seu visitante, que lhe respondeu, com toda a naturalidade do mundo.

– Lúcifer. Deteve-se por um instante. Que mãe daria um nome daqueles

para uma criança, pensou? Ainda assim, por gentileza, procurou não comentar. Aquele senhor deveria ter tido uma infância um tanto quanto traumática na escola, principalmente na hora da chamada. Completou o autógrafo e devolveu o volume. Após ter recolhido o livro em seu paletó, Lúcifer se levantou, ao que Albuquerque, de forma cavalheiresca, fez o mesmo. Com seu sorriso suntuoso, o nobilíssimo visitante agradeceu e estendeu sua mão esquerda para cumprimentar o glorioso professor. “Geralmente homens se cumprimentam com a mão direita”, teve vontade de falar, mas não estava muito propenso a polemizações, e, com um sorriso inócuo, estendeu sua mão esquerda para cumprimentar seu fã.

Foi então que, ao toque das duas palmas, sentiu aquela explosão dentro de seu cérebro. Viu passar por seus olhos, num milésimo de segundo, páginas e mais páginas sobre os mais variados assuntos. Parágrafos escritos por nomes que nunca ouvira falar antes explodiram dentro de sua mente. Frases, versos, narrações, crônicas, a demência verborrágica se traduziu em um grito de horror. Soltou a mão de seu visitante e deixou-se cair em sua poltrona, exasperado, sem fôlego, como se tivesse percorrido uma grande maratona. Aquele homenzarrão de terno preto o olhava, lívido, confiante, como se tivesse consigo a mais valiosa mercadoria de trocas do mundo. E, de fato, tinha, como veio inconscientemente a perceber Albuquerque ao levantar-se, após segundos do mais sepulcral silêncio, olhá-lo nos olhos e dizer:

– O que foi isso?! – Isso, meu caro, é a grande razão de minha visita. Você pediu

uma forma de ter acesso a todos os saberes existentes. E agora você tem como.

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Estendeu sua mão esquerda, frente-a-frente com o bom Doutor.

– Todo o conhecimento do mundo...na palma de uma mão! Albuquerque sentiu seu coração bater de maneira

descompassada, como se quisesse fugir daquela prisão que era seu próprio peito. Ouvia com toda atenção, indócil.

– A brincadeira é simples: nós trocaremos de mão. Simples assim. Você ficará com a minha mão esquerda e eu com a sua. Com a minha mão, a obtenção de conhecimento letrado lhe será muito mais fácil. Bastará a você tocar um livro, sem sequer abri-lo, e todas as suas páginas irão automaticamente para sua mente, num piscar de olhos, como se você tivesse o lido sete vezes seguidas. Sete leituras em uma fração de segundo, veja só!

Seu interlocutor falava com paixão, articulado, como um grande político em um comício. Aquilo tudo soaria extremamente absurdo para Albuquerque se ele não tivesse sentido aquele turbilhão de sensações ao apertar sua mão. O conhecimento que tinha absorvido, por menor que fosse, ainda estava latejante em sua mente. De súbito, fez a pergunta inevitável:

– Então você é... – Sim. – adiantou a resposta. – O próprio. Como ocorreria com qualquer mortal nesse momento,

Albuquerque sentiu um calafrio percorrer sua espinha. – Então presumo que você há de querer minha alma por essa

barganha... Sempre galante, ele riu de forma pura, leve, divertida. – Sua alma? Você bebeu, homem? – Deu-lhe um bem-

humorado tapinha no ombro. – Eu disse que era uma brincadeira, e não um negócio. Só vim lhe atender um desejo. As pessoas costumam pedir as coisas aos céus e nunca na direção oposta.

Albuquerque fez cara de quem não entendeu, ao que aquele agigantado homem pousou sua pesada mão esquerda no ombro do doutor e passou a falar de forma contundente, séria e, acima de tudo, solene:

– Eu não tenho nada a ganhar com sua alma, ainda que soubesse que você a cederia prontamente por essa proposta. Tenho já muitas. Mais do que eu gostaria, ressalto. E esse serviço dá um trabalho do cão...Só quero me divertir um pouco e ver como isso vai dar. Dizem

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que sou o pai de todos os advogados...ora, mas não posso ser também o pai dos psicólogos e analisar, estudar, observar o comportamento dos homens? Que mal há nisso? “Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto”.

Albuquerque logicamente reconhecera a citação de Machado de Assis. Após um silêncio de alguns segundos, o visitante, olhando nos olhos do professor, inquiriu, incisivo:

– E então...topas? A entusiasmadíssima mudez do bom estudioso perante aquela

oportunidade de ouro foi a resposta que Lúcifer precisava. Pediu para que ele se sentasse em seu largo sofá e pôs-se a seu lado. Tirou do paletó negro uma imensa adaga dourada, bem-acabada em seu cabo, talhada com inúmeros desenhos enigmáticos. Pegou a mão esquerda de Albuquerque e, ao ir com a lâmina em direção a seu pulso, ele o impediu, possuído pelo instintivo medo de ser mutilado. O Diabo o olhou muito sério.

– Você quer ou não quer isso, Albuquerque? Albuquerque hesitou por alguns segundos. Respirou fundo e

fechou os olhos. Sentiu a lâmina fria tocar seu pulso. Chegou a ensaiar um grito de dor, quando percebeu que não sentia absolutamente nada. Incrédulo, abriu os olhos e viu a faca misteriosa cortando seu pulso, separando sua mão esquerda de seu braço, sem que ele sentisse dor alguma, sem que uma gota de sangue jorrasse, como se estivessem a fazer um torniquete. Ao terminar o corte, retilíneo e preciso como o de um cirurgião (ou de um assassino), o primeiríssimo de todos os anjos começou a cortar a própria mão esquerda, enquanto Albuquerque contemplava aquela cena bizarra digna de uma obra de realismo fantástico: sua própria mão esquerda em cima da mesa de vidro de sua sala-de-estar. Segurando seu braço novamente, aproximou a mão demoníaca de seu pulso, ao que, como que num milagre, uniram-se automaticamente ao tocarem-se, como se tivessem sido remendadas pelo melhor dos cirurgiões. As veias, os nervos, as carnes e por fim as peles encontraram-se e abraçaram-se como que velhos amantes, e tornaram-se um. A mão de seu sombrio visitante era bem maior que a sua, com os dedos compridos e fortes e as veias bem salientes, o que evidentemente lhe dava um tom desproporcional, anatomicamente falando, além da grande diferença

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na coloração de pele. Todavia, num segundo essa grotesca anomalia se desfez: sua nova mão esquerda começou a metamorfosear-se em proporções e em cor e ficar do mesmo tamanho e tonalidade que sua mão antiga. Após o desfecho daquela taumatúrgica mudança, comparou a sua boa e velha mão direita com sua excelente e nova mão esquerda: idênticas. Parecia que tinha nascido com aquela manopla sinistra. A mesmíssima transformação ocorreu com seu visitante, às avessas, quando este se apropriou da mão de Albuquerque.

– Está feito. – Disse-lhe, sorrindo, levantando-se e estendendo-lhe novamente a mão esquerda para cumprimentá-lo. Albuquerque quase riu ao perceber que apertava a sua própria mão esquerda com a mão de um estranho como a sua. – Em algum momento eu voltarei para desfazer a troca. Não me indague quando: pode ser daqui a três dias ou daqui a trinta e três anos. Aproveite bem enquanto isso.

Sabia o caminho até a saída e assim o fez, deixando Albuquerque sozinho. Olhou para sua novíssima mão esquerda. Abriu-a, fechou-a, analisou cada um dos dedos. Procurou em seu pulso alguma marca, alguma cicatriz. Nenhuma. De fato, se contasse aquela história para alguém, o julgariam um doido varrido. Diriam que finalmente havia ficado louco de tanto ler. Era melhor que guardasse consigo aquele mágico episódio. Depois se deu conta de que, de qualquer forma, não tinha ninguém próximo o bastante para dividir tal ocorrido. Foi correndo em direção à sua biblioteca, e olhou para um livro que estava lendo quando foi interrompido por aquela incrível visita. Um volume imenso, de mais de seiscentas páginas, contendo estudos diversos sobre a presença e a influência da mitologia cristã na literatura ocidental. Ao olhar a capa dura e avermelhada daquela obra, sentiu novamente a tristeza de ainda estar na metade do livro, ainda que lesse com notável rapidez. Tocou-a com sua mão esquerda, e fez-se a magia. Num átimo de segundo seu cérebro recebeu todas as informações daquelas páginas impressas em letra miúda, como se tivesse lido tudo sete vezes seguidas. Deu alguns passos para trás, ainda meio cambaleante. Sentiu um desejo incontrolável de rir ao notar que poderia citar qualquer passagem de cor e salteado em questão de milissegundos. Quantas horas de leitura ele havia economizado! Imediatamente tocou a capa de outros livros que estavam sobre a mesa de seu escritório, e deu-se a mesma milagrosa

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transubstanciação. Em pouco mais de meia hora tocou todos os livros de sua vasta biblioteca. Mais de dez mil volumes, alguns relidos, outros lidos pela primeiríssima vez. Finalmente, poderia saber tanto quanto gostaria de saber, contemplava diante de seus olhos décadas de conhecimento que jamais teria tempo de absorver em uma vida apenas. Apesar da noite insone, amanheceu cheio de disposição, deitado no chão de sua biblioteca, imerso em livros e mais livros, saciado como se tivesse copulado de forma selvagem com todas aquelas páginas. Um novo sol nascia para ele – alguns aqui diriam que uma gloriosa estrela-da-manhã o abençoava. Sentia-se como se fosse o primeiro dia do resto de sua vida. Hoje eu sei que foi, em verdade, o primeiro dia de seus últimos.

Pela primeira vez em décadas de rotina, saiu de casa de manhã cedo sem tomar nem desjejum e muito menos um dignificante banho. Estava ansiosíssimo para chegar até a universidade. Mal estacionou seu carro, voou pelos corredores sem desejar bom-dia para o porteiro e foi em direção à biblioteca. Geraldo, o bibliotecário, já estava acostumado em ver o indefectível Doutor Albuquerque quase que diariamente fazendo pesquisas ali, mas nunca tão cedo – antes das sete da manhã – sendo o primeiríssimo a entrar no grande salão dos arquivos da faculdade. Nem tampouco vira o respeitável catedrático agir daquela forma antes: parar no meio da biblioteca, olhar para aquela incontável quantidade de livros cuidadosamente estocados em estantes e mais estantes, começar a rir, em um animalesco frenesi, e correr por entre as prateleiras, passando seu dedo indicador na lombada de cada livro. Mal sabia o gentil Geraldo que Albuquerque, ao passar sua digital na lombada de cada livro, estava, em verdade, lendo cada um deles.

O digníssimo professor teve as reações mais adversas. Nas primeiras estantes, gargalhava como um demente. Quando tinha completado cerca de duzentos livros lidos, começou a chorar, mas não de tristeza, e sim da mais real das comoções, como se tivesse seu coração tocado pelo mais belo dos sonetos camonianos. Começou a se sentir estranho após o milésimo livro. A quantidade excessiva de informações que estupravam seu cérebro incessantemente passando através de seus dedos começava a exaurir seus neurônios, as sinapses já eram verdadeiros campos minados, mas ele não queria parar, ele não podia parar, não tinha como, precisava de mais e mais. Começou

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a explorar o universo contido nos livros em idiomas que lhe eram até então desconhecidos, como o hebraico, o aramaico, o grego, o japonês, o chinês e o russo, só para citar alguns exemplos que auxiliaram na construção-relâmpago do mais novo poliglota do planeta. Ao final da leitura que contou, se minha memória não falha, como sendo a de número sete mil duzentos e cinco, estava suado, exausto, esbaforido e com uma tonteira muito forte – o que não o impediu de continuar, como já se poderia antever. Alguns poucos alunos presentes na biblioteca estranharam, efetivamente, a inusitada visão do austero professor saindo do recinto despenteado, com olheiras, empapado de suor, respiração ofegante, com um enigmático sorriso nos lábios. Tolos. Tolos, pensava ele. Mal sabiam que ele havia acabado de ler quase quinze mil livros em apenas vinte e sete minutos! E o melhor, podia recitar qualquer um deles a qualquer instante. Volumes das mais variadas áreas de saber em quaisquer idiomas concebíveis ao seu alcance, e a que preço? Bastava tocar um livro com sua mão esquerda, absorver a avalanche de inúmeras letras e suportar uma incômoda dor-de-cabeça, solucionável através de uma reles aspirina (um remédio que passaria, desde então, a carregar em seu bolso, sempre).

Dicotomicamente falando, sua vida passou a ser um paraíso e um inferno (em especial para os demais mortais). Explica-se: Se o Doutor Albuquerque já despertava nas pessoas sentimentos tão desgraçadamente humanos como a inveja, o desconforto e a indignação provenientes da admiração desmedida quando ele ainda era um leitor, até certo ponto, normal, que dirá agora que era um leitor dos diabos, se me permitem este pequeno chiste? Ponham-se no lugar deste estudante por exemplo, bolsista, pesquisador, e que tinha como professor orientador, para a felicidade de seu currículo acadêmico e infelicidade de sua sanidade, justamente nosso anti-heroico protagonista. Digo que trabalhar com Albuquerque era uma faca de dois gumes porque, ainda que qualquer reles mortal se sinta lisonjeado e realizado quando algo próximo de um deus lhe dirige a palavra, e deve-se sempre ter em mente que os reles mortais consideram qualquer um melhor que eles uma espécie de deus, seja por estar em um palco, fazer bem meia dúzia de embaixadas com uma bola ou falar bonito perante uma multidão exasperada, pois bem, ainda que nosso nobre (ou pobre?) bolsista sentisse um êxtase imenso em trabalhar

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com o Professor Doutor Albuquerque e em ouvir os quilos de conhecimento de seu ídolo catedrático, era fato que o bom professor tinha para com seu pupilo um bastante elevado grau de exigência, ou, fazendo uso da terminologia da boa e velha universidade do cotidiano, lhe arrancava o couro.

Pois bem. Pois bem. Acho que já devem imaginar o ponto em que desejo chegar. Imaginem a agonia desse jovem ao perceber que seu orientador agora esbanjava ainda mais conhecimento do que antes, citando capítulos integrais de obras complexas, ipsis litteris, dando o número da página e indicando a ordem do parágrafo? Imaginem o desespero de ser metralhado por uma saraivada de informações sobre os mais variados temas, esmagando seu esforçado intelecto humano como um elefante pisoteando uma barata? Pois bem, era assim que esse pobre rapaz cujo nome não importa (quem liga para os coadjuvantes, não é?) se sentia perante seu mestre, e era assim que os demais bolsistas de Albuquerque se sentiam e, por tabela, seus diversos alunos. O que era uma sincera admiração se transformou em assombro, e de assombro foi para perturbação, e de perturbação evoluiu para medo. Medo absoluto. Inevitável. Real. As pessoas passaram a temer o bom doutor, dia após dia. E não apenas por sua aparência, paulatinamente mais similar com a de um mendigo louco, com a barba comprida, cabelos desalinhados, roupas sujas e amassadas. Nem tampouco por seu olhar de psicótico, de um pobre-diabo esquizofrênico em estado de eterno surto. Mas por saber tanto. Imagine o horror de, durante um almoço, você, um distinto professor doutor colega de Albuquerque, receber uma indagação mais ou menos desse naipe:

– Meu caro, recentemente estive lendo a sua tese de doutorado no banco de teses de nossa tão estimada universidade. No capítulo três de seu interessante trabalho, parágrafo quatro, linha trinta e um, você faz a seguinte afirmação sobre Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa...

Imagine o terror de ver outro professor declamar trechos inteiros do texto que você escreveu, recitar tijolos de parágrafos de sua autoria, mas que, por algum acaso, você não memorizou linha por linha, por mais que seja um assunto sobre o qual você mesmo discorreu? E imagine se, em seguida, esse mesmo poço de inumaníssima erudição ainda contrastar seu trabalho com outros e

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outros e mais outros trabalhos que, por algum outro acaso, você ainda não leu? E o pior, tente visualizar esse belo exemplo de desgraçado, esse bem-desenhado retrato de um pulha arrogante filho de uma puta, mencionar obras que você citou na bibliografia de seu trabalho, apontando milimétricas contradições entre elas e sua tese? E quando você se prepara para dar uma razoável resposta, eis que o maldito lhe bombardeia com mais e mais indagações que apenas lhe mostram o quanto de livros você não leu, o quanto de conhecimento você não detém e, por tabela, o quão autenticamente capacitado você não é? Era essa a nova rotina de Albuquerque, desconstruir e desmoralizar seus colegas. Mas justiça seja feita: não é que eles tivessem lido pouco...João Albuquerque é que havia lido demais!

Como afirmei antes, nosso bom(?) professor passou a ser temido. Muitos de seus orientandos fugiram dele. Suas salas-de-aula se reduziram pela metade. Vários de seus colegas apenas o cumprimentavam e, ainda que muito o admirassem e o respeitassem, o medo de serem pisoteados por aquele monstrengo gigantesco ainda era por demais predominante para permitir que um diálogo saudável pudesse se desenvolver. João Afonso Fonseca Albuquerque sentia-se o homem mais poderoso do mundo. E de fato ele era. Mal sabiam eles que desde aquela fatídica noite em que adquirira sua nova e tenebrosa mão esquerda, a mão que permitira aquela revolução em sua vida, Albuquerque havia entrado em uma espécie de cruzada particular por mais e mais conhecimento. Vasculhava diversas bibliotecas, livrarias e sebos da cidade, tocando em mais e mais livros dos mais variados assuntos. Ao cabo de três meses, além de seus tópicos já tradicionais, a Literatura, a Filosofia, Teoria Literária, Arte, História, Sociologia, Política e Antropologia, passou a engolir com a palma de sua mão outros tópicos que não dominava com a mesma profundidade, como Educação (agridoce ironia, não?), Teoria da Comunicação, Informática, Matemática, Biologia, Física, Química, Medicina, tomos sobre todas as religiões existentes, Astrologia, Culinária e até livros de autoajuda, esses últimos apenas para rir um pouco e ter momentos de relaxamento no meio de sua missão pessoal.

É claro que tudo isso jamais era o bastante. A cada página impressa nos corredores de sua mente ele se lembrava das outras milhares já escritas e as outras por escrever que ele ainda teria que absorver. Note que, neste peculiar exercício do aprendizado, ele não

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mais empregava o verbo “ler”, mas sim “absorver”, “devorar”, “engolir”, “abduzir”, etc. Pois bem, meus caros. Proporcionalmente a esse aumento demoníaco de quantidade de conhecimento de nosso (in)distinto protagonista, tivemos o já referido decréscimo do número de componentes de seu convívio social, conforme já relatei linhas atrás, referindo-me à sensação de pânico incontrolável que ele passou a inspirar nas pessoas ao seu redor. Falando nisso, é até de se estranhar o porquê de Albuquerque ter permanecido ileso, nos anos seguintes, quando se intensificou o clima persecutório nas escolas e nas faculdades, a soturna atmosfera de caça às bruxas motivada pelo governo autoritário, aquele regime fascista travestido de democracia, capitaneado por um presidente que estimulava alunos a filmarem e denunciarem os tão terríveis professores doutrinadores, marxistas, comunistas, socialistas, stalinistas, esquerdistas, satanistas, inimigos dos valores da família e de Deus (entidade que deveria estar sempre, segundo esse mesmo político, “acima de todos”). É de se esperar que Albuquerque, provocando tanto medo nos demais, sofresse alguma represália nesse tenso cenário, em que volta e meia algum reitor de alguma universidade era preso por uma suposta associação criminosa com células criminosas de comunistas-extremistas-terroristas, período em que com preocupante frequência algum professor era “denunciado” por corromper as frágeis mentes dos incautos aluninhos, os filhinhos dos cidadãos-de-bem, sendo o perigoso docente em seguida prontamente defenestrado (entendendo aqui o verbete “defenestrado” como “afastado”, “realocado”, “exonerado” ou, simplesmente, “desaparecido”). Enfim, seria previsível que, sendo Albuquerque tão incômodo, tão perturbador, ele pudesse ser escurecido por essa longa noite que tinha caído sobre todo o país, essa noite que jamais terminava, pesada, estrondosa, violenta, longa, longa noite que esmagava todos (todos). Todavia, de todos os males que Albuquerque veio a sofrer, ele não foi uma das vozes silenciadas pela paranoia vigilantista, fascistoide, autoritária e hipocritamente moralista que contaminou a nação e colocou em risco, dentre vários segmentos da sociedade, todos os professores, em especial os da rede pública, em especial os das universidades públicas, em especial os das universidades públicas que atuavam em certos cursos, como os de Ciências Humanas e Sociais e/ou de Letras e Artes, sendo este último o caso em que se inseria Albuquerque. Ainda não estão totalmente

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nítidas para mim as razões para nosso protagonista jamais ter sido incomodado nesses anos pesados como o chumbo. Porém, tenho cá minhas hipóteses. Em primeiro lugar, já que tantos alunos e professores fugiam dele, menos pessoas conviviam com ele, menos pessoas assistiam às suas aulas e, nesse contexto autoritário, menos pessoas ouvindo Albuquerque implicaria menos riscos dele ser denunciado. Mas seria simplista demais atribuir tudo apenas a esse motivo, digamos, estritamente numérico. É sabido por qualquer um que uma ditadura jamais se anuncia como tal – no máximo como um “regime” ou, segundo a terminologia indecorosamente cínica de certos seres humanos, como um “movimento”. A mais eficaz forma de ditadura é a que usa a maquiagem da democracia. Qualquer um sabe disso. Sendo assim, faz sentido que haja uma “cota de tolerância” para “elementos possivelmente perigosos e/ou subversivos”. Trocando em miúdos, um ou outro nome que, sendo mantido incólume, sem ser perseguido ou censurado, seria elevado ao estatuto de troféu, de álibi, seria uma suposta evidência que o governo usaria para afirmar para toda a mídia que as acusações de protofascismo e autoritarismo eram invenciones de esquerdopatas. “Se somos mesmo uma ditadura, então por que diabos não censuramos o fulano?”, diria algum porta-voz do presidente. Democratíssimo governo, sem dúvidas. Como alguém pode duvidar disso? Somente os meliantes da esquerda, sem dúvidas. Bem, seguindo essa linha de raciocínio, Albuquerque entraria nessa zona de segurança, nessa porcentagem de sobreviventes. Há, por fim, mais uma possibilidade para ninguém ter tocado no professor Albuquerque nesses anos tão tenebrosos: A de que a mesma mão que conferiu a este mortal poderes cognitivos tão incríveis tenha também servido como um peculiar amuleto de sorte, uma garantia de satânica proteção que, se por um lado abria sua mente às letras, fechava seu corpo contra quaisquer riscos. Vai saber.

Deixando essas frívolas especulações de lado e voltando à história (peço desculpas aos leitores por esses meus ocasionais desvios de foco, é mais forte do que eu...ainda sou um neófito na arte da escrita, perdoem-me!), o fato é que, nesse ritmo febril de aquisição de conhecimento, a saúde física de Albuquerque começou a apresentar problemas, tendo em vista que se tornou mais frequente ainda esquecer-se de fazer refeições a fim de que pudesse tocar com sua palma esquerda mais e mais e mais livros novos pela cidade.

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Dormir sempre lhe fora uma perda de tempo, afinal, o tempo em que poderia estar lendo estava…inconsciente! Agora, mais ainda, e ele se rendia ao sono somente quando suas pálpebras de fato se fechavam contra a sua vontade, após dias acordado. As suas dores de cabeça, decorrentes da violenta absorção de tamanho volume de informações, eram diárias, chegando a tomar, por dia, quase dez comprimidos analgésicos, mesclando Aspirina, Neosaldina e Dorflex, sempre, sempre em vão. De que adianta tentar curar uma ferida que você mesmo vai abrir novamente, meu bom Doutor Albuquerque? Mas ele nunca entendeu isso. Nunca, esse cabeça-dura. Sua força em termos de saber era inversamente proporcional à sua fraqueza de vontade, pois, como um triste viciado, Albuquerque não tinha condições de resistir contra sua avassaladora dependência de, por assim dizer, “leitura manual”.

Com o passar do tempo, João Afonso Fonseca Albuquerque ia se tornando o trapo humano mais genial da face da terra. Se deitasse no meio da calçada, nosso doutor decerto ganharia algumas esmolas, dado o seu aspecto de indigente mentecapto. Não que as pessoas na faculdade tivessem perdido o respeito por ele, ora, isso seria impossível: ele estava mais e mais brilhante, se é que isso era humanamente possível na concepção de seres humanos normais. Mas era impossível não se sentir, no mínimo, incomodado na presença daquele homem malvestido, de barbas longas e grotescamente irregulares, frequentemente sujismundo (às vezes, fétido), com cabelos completamente despenteados, sebentos e na altura dos ombros, um visual que mais o encaixava no estereótipo de novo-messias-insano-arauto-do-fim-dos tempos do que um distinto scholar.

Há um fato que acabo de me lembrar. Se vocês acham que com esse progressivo isolamento social nosso herói se sentia como o mais desgraçado dos homens, a vítima de uma grandiosa tragédia, vocês se enganam. Apesar do preço que pagava por seu desvario, por seu pathos, Albuquerque jamais se sentira tão realizado em vida. Ele não precisava do convívio das pessoas bajulando-o. Ele não queria impor seu poder, se o fazia não era por megalomania, era algo natural. Como poderia a estrela-da-manhã parar de cegar os demais com seu brilho natural? Tudo o que ele queria era saber – e nada mais que isso, nada mais o faria e o fazia tão feliz.

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Mas essa felicidade, como seria de se esperar, estava com seus dias contados – A essa altura do campeonato meus leitores já podem deduzir isso, pois uma história dessas terminar aqui, dessa forma, seria, no mínimo, inverossímil...

É difícil precisar quando foi que aconteceu, mas posso tentar. Deixe-me ver, foi durante uma de suas aulas? Já sei, eu me recordo agora: foi em um importantíssimo congresso de Literatura Comparada, onde centenas de pessoas do país todo se reuniram para discutir os mais variados tópicos. Claro que um dos maiores palestrantes foi nosso bom Doutor Albuquerque. Ainda que muitos nutrissem por João os já mencionados sentimentos de pavor e até de repulsa, a veneração por seu monstruoso intelecto ainda era inegável, inescapável. Essa (tão típica dos seres humanos) relação de amor-ódio foi, talvez, uma das razões para o auditório principal ter ficado abarrotado de gente para assistir à palestra de Albuquerque. Eu contei mais de seiscentas pessoas ali, sendo que diversas não conseguiram um lugar para sentar e estavam de pé, tais como eu, sem mencionar as dezenas que ficaram do lado de fora, na esperança de pelo menos ouvirem o lendário Dr. Albuquerque proferir suas palavras. Ao ser anunciado, ainda subindo as escadas que davam para o palanque onde a mesa com o microfone estava montada, já era aplaudido com vigor. Pouco antes de tomar seu lugar na mesa para dar início a seu discurso, João quis cumprimentar seu colega que havia tão gentilmente anunciado sua entrada. Por uma esmagadora força do hábito, vejam só, ele estendeu não a sua mão direita, mas a esquerda para cumprimentar o distinto anfitrião, talvez pela quase total desimportância que dava para sua mão direita nesse momento de sua vida.

E foi quando as palmas se tocaram que a mágica aconteceu. João já vinha cumprimentando as pessoas com sua mão esquerda há algum tempo, mas até então nada como aquilo tinha lhe acontecido. Ele sentiu, em uma parcela de segundos, aquela mesma queimação de ideias, viu aquela mesma explosão de imagens, teve aquela mesma avalanche de sensações de quando tocou a mão esquerda do demônio pela primeira vez, em sua casa. Mais do que isso, sentiu a mesmíssima coisa que sentia sempre ao tocar as capas dos livros. João compreendeu tudo de imediato: havia absorvido todo o conhecimento de outro ser humano.

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Não pôde conter seu sorriso imenso no decorrer de sua grandiloquente explanação. Enquanto falava sobre a questão da narrativa histórica em nossas letras, esmiuçando com segurança vários exemplos em que a ficção e a historiografia se mesclavam na literatura, refletia sobre o conhecimento adquirido de seu colega, sentado a seu lado direito na mesa (João sempre tivera essa habilidade de compartimentação de linhas de racionício, a ponto de estar discorrendo com sólida segurança sobre um tema e pensando ao mesmo tempo em outros, de forma focada, como um malabarista manipulando com destreza várias bolas). Ao tocar a mão daquele professor, Joãozinho leu, por tabela, todos os livros lidos por seu agora devassado colega. Ficou sabendo de seus segredos mais íntimos. Armazenou todas as suas memórias pessoais. Aprendeu tudo que ele sabia. Até mesmo absorveu ideias para um fabuloso livro que o assaltado professor estava para escrever. Ao terminar, aplaudido de pé, João sentiu-se ainda mais poderoso. E essa sensação de poder apenas foi mais saliente para o bom doutor quando, ao descer do palanque, viu inúmeras pessoas que queriam lhe fazer algum questionamento, o bajular ou simplesmente lhe pedir um autógrafo. E todas lhe estenderiam suas mãos, num desejo incontrolável de tocar aquela divindade do saber que estava diante deles, mal sabendo esses pobres seguidores desse novo arauto do conhecimento letrado que eles mesmos, em sua ânsia de cumprimentar o bom doutor, estavam contribuindo para seu engrandecimento, para a construção do mito chamado João Albuquerque.

Arrepio-me ao pensar o quanto seu cérebro enriqueceu às custas dos outros naquele dia. Até que ponto você chegou, Albuquerque? Até quão baixo você desceu só para fomentar suas fáusticas ambições homo lattes? Se bem que não sei por que motivo eu me impressiono com isso. Tal conduta era previsível, até mesmo para um homem tão singular quanto você. A partir de então você podia apertar a mão das pessoas e “lê-las”, como se elas fossem tão frágeis quanto as páginas do fino papel que você tanto venera. Nesse dia você foi capaz de sugar em um milésimo de segundo décadas de estudos e pesquisas de um outro professor doutor. Você encheu sua mente com ideias geniais para trabalhos futuros, os quais não seriam mais escritos por essas pessoas que formularam essas interessantes questões, mas por você, vil ladrão de pensamentos! Você entupiu sua mente com os

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segredos mais íntimos de dezenas e dezenas de estranhos, que apenas cometeram o simples erro de…apertar a sua mão. Seu notório semblante de felicidade quando você saía do grande salão era, no mínimo, medonho. Aterrador. Diabólico – na pior acepção do termo.

E o tempo assim se passou. Nos turbulentos anos que seguiram, João Albuquerque produziu substancialmente mais que o mais prolífico dos acadêmicos. E não me refiro aqui àquela prática nefasta, àquela malandragem textual, àquela picaretagem acadêmica-mor que um ou outro pseudocientista usa apenas para aumentar sua listinha de publicações no Currículo Lattes: A artimanha de apenas alterar o título, as palavras-chave e o resumo de um artigo científico já publicado, e submetê-lo para outra revista acadêmica como se fosse um texto totalmente novo. Simplesmente assim: O mesmo texto, com outro título e outro resumo, e assim aumenta-se o currículo. João Albuquerque sempre tivera ânsia de vômito com essa postura a la João-sem-braço, essa desfaçatez, essa desonestidade que fazia com que esses tratantes ficassem na frente em processos de seleção de bolsas, bem como em eventuais aferições por produtividade tão cruelmente impostas ao ambiente de pesquisas. Não, nada disso. Essa forma de desonestidade Albuquerque jamais praticaria – Não essa. Mediante suas novas habilidades, nosso doutor foi capaz de redigir centenas de artigos inteiramente inéditos, diferentes entre si, todos publicados em revistas dos mais variados tipos, além de tecer comentários elaborados em jornais, suplementos literários e páginas várias da internet no mundo todo, em diversos idiomas, isso sem contar cinco robustos livros publicados e um sexto já no prelo. Sem dúvidas, uma celebridade acadêmica, um intelectual efervescente. Claro que o Doutor Albuquerque já tinha seu nome feito no meio universitário, mas não havia se tornado, digamos, um intelectual pop star. Já tinha até proferido comentários no rádio e na televisão. Chegou a ter uma página oficial na internet, um canal no Youtube e uma conta no Twitter (que ele raríssimamente usava: Além de ser avesso às redes sociais digitais, preferia dedicar seu tempo em sua eterna voragem por mais e mais conhecimento). A perplexidade era unânime: como aquele homem havia conseguido arranjar tempo para acumular tanto conhecimento e ainda escrever tanto?

Ora, é muito fácil pesquisar quando você pode ler, por exemplo, uns cinco livros em um segundo, dependendo da velocidade de seus

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dedos não em folhear, mas sim em apenas tocar as lombadas dos tais volumes. E é mais simples ainda escrever quando as ideias já estão absolutamente prontas em sua cabeça: basta sentar e voilá, metralhar o teclado do computador com tudo que está borbulhando em sua mente. Claro, é extremamente amoral, imoral e cafajeste, como narrei linhas atrás, usar pensamentos roubados dos outros através de um gesto tão afetuoso quanto o apertar de duas mãos. Mas o vocábulo moral já havia, há muito, sido esquecido por esse devoto da palavra. Não tenho como não me recordar da forma como o aperto de mão surgiu entre os homens. Desde os primórdios da raça humana, os homens já tinham o gosto por portar armas. Sendo assim, estender a mão, simbolicamente, seria uma indicação de que se estaria desarmado – uma teoria discutível, já que se pode perfeitamente cumprimentar com uma mão e, de forma traiçoeira, estar portando uma arma com outra. A grande verdade é que os seres humanos de alguma forma sempre entenderam o punho cerrado como a arma mais letal que o homem possuía, pois já nascia com ela, até o mais reles infante poderia fechar suas mãos e ferir alguém. Esmurrar alguém tendo como combustível a fúria mais animal sempre foi e será um terrível risco e uma tentação para as pessoas. Pois o ato de abrir sua mão, estendê-la a outro ser e daí ambos apertarem as mãos representa, nessa ótica, um gesto de paz, uma maneira simbólica de “dar as armas”, de desarmar-se, de mostrar-se disposto a (perdão pelo lamentável trocadilho) abrir mão de sua arma inata. E eis que de uma atitude tão bela João Afonso Albuquerque ergueu boa parte dos alicerces de seu império, de sua fama. É óbvio que muitas das ideias sensacionais expostas em suas entrevistas e em seus textos eram de mérito próprio, associações feitas a partir dos livros que ele “leu”. Mas há uma parcela bem considerável que foi solenemente roubada, plagiada, pilhada, saqueada, gatunada de outros profissionais, como aquele mesmo bom anfitrião que apresentou Albuquerque no congresso, o primeiro pobre-coitado a ter seu saber copiado pela mão esquerda de João. Qual não foi o espanto deste vitimado acadêmico ao ler, um mês depois, um extenso artigo redigido pelo Dr. João Albuquerque no qual eram feitas as mesmas análises, eram expostas as mesmas ideias que esta ingênua vítima ainda estava amadurecendo em sua mente? E vejam que situação delicada: ele nem poderia acusar ninguém de plágio, pois ninguém, ninguém havia sequer o ouvido

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falar sobre suas ideias. Afinal, não existe no código penal um artigo que possibilite um processo por plágio prefigurativo. Triste, mas real.

E, seja de forma coincidente ou cabalista, foi exatamente no dia em que completavam sete anos desde que João adquirira sua nova mão que o inevitável aconteceu. E foi da pior forma possível: em rede nacional.

Foi num renomado programa de entrevistas de considerável audiência. João ia ser entrevistado a respeito de seu novo livro, uma extensa e aprofundada análise sobre a relação entre o homem e o poder na literatura mundial. Bem apropriado, não? A obra, dividida em três grossos tomos, impressionava pelas inter-relações feitas entre literaturas de todo o mundo, até mesmo algumas não tão comumente contempladas pelo nosso meio acadêmico de orientação ideológica mais ocidentalizante, como as eslavas, a japonesa, a chinesa e a árabe, além de outras esferas do conhecimento, como a Política, a Antropologia, a Sociologia e a Filosofia. O texto impressionou críticos do mundo todo por sua erudição cristalina, profundidade assombrosa e segurança invejável em discorrer sobre tal tese, o preciosismo nos detalhes citados nas análises e, claro, a vastíssima bibliografia. Seria um trabalho espantoso para um ser humano normal, mas para João, convenhamos, não era mais do que sua obrigação. Ainda assim, dei-me ao trabalho de ir até o auditório do estúdio de onde seria transmitida, para a TV e para a internet, ao vivo, a entrevista. Parecia que eu previa o horror que estava para acontecer.

João mal tinha acabado de engolir sua quinta dosagem diária de seu coquetel analgésico, seu combo medicamentoso composto por um punhado de comprimidos de Aspirina, Neosaldina, Dorflex, Advil, Tylenol, Naramig e Cefalium quando foi anunciado pelo carismático entrevistador. Após a saudação para a plateia, os aplausos, o cumprimento manual – no qual João, evidentemente, absorveu de uma vez todas as entrevistas já feitas naquele programa – e uma piada sem-graça seguida de risos forçados, João recebeu a primeira indagação a respeito de sua obra. Sorriu, deu uma golada na canequinha de água que lhe foi disposta, e, como se fosse o rei do planeta, preparando-se para despejar ao mundo sua vastíssima gama de conhecimentos, falou:

– Em meu livro, podemos ver claramente como as relações de poder afetaram o homem através da literatura. A origem da vida é um

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objeto de pesquisa pródigo, embora, especulativo. Afinal, o mundo estava triste desde terça-feira. O céu e o mar eram uma só coisa cinza, e as areias da praia, que em março fulguravam como poeira de luz, converteram-se num caldo de lodo e mariscos podres. E, obviamente, como todos sabemos, a química é principalmente uma função de seu DNA e, quando eu me levantar, o céu estará morto e saqueado.

Mal proferiu essas palavras, se deu conta do absurdo que havia dito. Que diabos significava aquilo? Que amontoado de frases desconexas haviam sido aquelas? A indisfarçável interrogação que se formou no rosto do caricato apresentador teria sido, no mínimo, cômica, se não fosse o que se seguiu:

– Os nossos sentidos não nos mostram apenas o aqui e agora; eles nos apresentam o aqui e agora em LETRAS MAIÚSCULAS. Todas as estrofes são construídas de modo absolutamente igual (salvo a de ligação): quatro versos formando um período + dois versos formando um período= quatro + dois. Como una música distante, estas palabras que le había escrito años acudieron a su memoria desde las sombras del pasado. De que moléstia padecia? Ce qui est à moi: c´est un homme seul emprisonné deblanc, c´est un homme seul qui défie les cris blancs de la morte blanche. A resposta para nosso problema não pode ser nem particularista nem pré-moderna. Ela deve ser buscada no próprio terreno em que surge o globalismo: o terreno da modernidade internacionalizada. Sometimes I rambled to pine groves, standing like temples, or like fleets at sea, full-rigged. With wavy boughs, and ripling with light, so soft and green and shady that the druids would have forsaken their oaks to worship them. Com respeito à arte antiga ou primitiva, e com respeito à arte ingênua ou popular (Азбука -- к мудрости ступенька!!!), quando o historiador ou o museu se apoderam delas, o sujeito da enunciação e da apropriação é um sujeito culto e moderno. Quali dal vento le gonfiate vele caggiono avvolte, poi che l'alber fiacca, tal cadde a terra la fiera crudele. Hier Arzt sein, hier unerbittlich sein, hier das Messer führen – das gehört zu uns, das ist unsre Art Menschenliebe, damit sind wir Philosophen, wir Hyperboreer! Desonrado, desmerecido, marcado a ferro feito rês, será que eu posso mesmo entrar no Céu?!

É bastante comum no meio acadêmico um determinado e respeitabilíssimo PhD, em alguma aula, conferência, seminário, entrevista ou o que for, vociferar os mais inflamados discursos

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expondo suas teorias cheias de citações, palavras consideradas “difíceis” e os famosos “academicismos”, de modo que a compreensão se torna uma tarefa hercúlea, para não dizer impossível. Mas mesmo mediante tal muralha de palavras onde cada tijolo ergue essa construção de insofismável incompreensão, é interessante perceber como inúmeras pessoas levantam-se e batem palmas para aquele monte de baboseiras proferidas pelo distinto figurão, apenas porque foram ditas justamente por um distinto figurão. Se fossem ditas por um zé-ninguém, elas seriam motivo de chacota. Simples assim. Chega a ser risível observar essa estirpe de acadêmicos, com suas mãos apoiadas em seus queixos, fazendo a famosa “cara de quem está entendendo tudo”, como se estivessem ouvindo uma revelação milagrosa de um emissário divino do saber, testemunhando um momento epifânico acadêmico, quando, em verdade, estão fingindo que estão compreendendo tudo, pois um suposto respeitável professor ou estudioso jamais, jamais, sob hipótese alguma, deve admitir que não entendeu algo. Tal sensação de humana impotência deve ser deixada para os ignorantes alunos, pobres e néscios mortais.

Pois bem. Ao início do discurso de Albuquerque, muitos na plateia adotaram tal postura. Alguns até chegaram a pensar que eram burros demais para entender tamanha genialidade, tal avalanche de citações, tal saraivada de metáforas literárias complexas, tal nível quase cataclísmico de agudeza e engenho. Julgaram-se incapazes de sustentar palavras tão sólidas e pesadas como blocos de concreto. Entretanto, em poucos segundos essa fátua cortina caiu, e todos perceberam o óbvio ululante: O distinto professor João Afonso Albuquerque estava, de fato, falando um monte de frases que não tinham sentido algum umas com as outras. Era loucura. Desconexão. Incoerência. Um monte de merda. E à medida que a perplexidade e o embaraço cresciam na plateia e no apresentador do programa, o desespero dominava esse gênio miserável chamado João, que percebia claramente o que estava acontecendo: estava perdendo o controle sobre o conhecimento que habitava seu cérebro! Estava vomitando na frente de todos os espectadores, ao vivo, vários trechos de diversos livros, misturados, como legumes e frutas dos mais diferentes tipos e tamanhos jogados a esmo dentro de um liquidificador para preparar o maior sopão-vitamina-purê de todos os tempos, sendo que o aparelho não tem como comportar e processar

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tantos alimentos assim. João não conseguia formar uma frase lógica sequer: recitava passagens de livros de diferentes gêneros em qualquer idioma. Imagine, em cinco segundos, falar sobre História Antiga, Biologia, Sociologia, Literatura Russa, Cultura Brasileira, Culinária Japonesa, Semiologia, Antropologia, Matemática, Poesia Francesa e Política, sem que ninguém compreenda uma vírgula que você disse? Pois era exatamente isso que ocorria naquele momento com João, que já estava de pé, aos urros, chorando, pulando e gesticulando muito, tendo perdido totalmente o controle de si mesmo, babando e gritando as combinações de frases mais sem-sentido da face da terra, em diferentes idiomas. O mais surpreendente é que ninguém teve vontade de rir com aquela cena dantesca. Nem mesmo quando membros da equipe da televisão tiraram o professor dali do estúdio, à força, contendo-o como enfermeiros fariam com um louco em estado de surto, enquanto ele, apoplético, vomitava aquelas confusas toneladas de erudição que soterravam suas mais humanas súplicas por socorro. A dramática transmissão foi cortada nesse momento.

“Triste fim de João Fonseca Albuquerque”, alguém poderia dizer. Mas quem disse que isso foi o fim? Ao levantar de minha cadeira e dirigir-me até a saída, ouvindo os murmurinhos atônitos de todos aqueles bobalhões que haviam testemunhado aquela tétrica cena, eu sabia que aquilo era apenas o começo. Imagine que cada livro que João “leu” com sua milagrosa mão esquerda fosse uma gota caindo num copo. Este copo, como podemos deduzir, é a mente de João. Não é preciso ser um gênio para entender que nesse instante o copo havia transbordado, e transbordado feio, molhando tudo ao seu redor. Agora imagine que o dono deste copo tentou pegá-lo, num ato de desespero, e derrubou-o, fazendo-o em mil pedaços. Pois a mente de João estava assim agora: despedaçada. Com os olhos irremediavelmente esbugalhados, incapaz de estabelecer comunicação verbal com qualquer ser humano de maneira minimamente compreensível, João era a personificação da ruína. Em estado logorréico, com a respiração ofegante, sentia dores de cabeça ainda mais acachapantes do que aquelas que costumava sentir, tendo em vista que, com frequência, tinha sua mente bombardeada, metralhada, esfaqueada e esfacelada por centenas de linhas de livros que havia devorado.

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É de se deduzir que ele estava incapaz de lecionar, e começou a faltar ao trabalho (praxe entre alguns de seus colegas que aprovavam alunos tendo ministrado duas ou três aulas no semestre inteiro). Mas todos sabiam que o estranho caso do Dr. Albuquerque era diferente. Não era a famosa picaretagem presente entre um ou outro acadêmico bam-bam-bam da universidade pública, e sim uma fadiga em um grau extremo que seria o assunto na universidade nas semanas seguintes. Alguns afirmavam que era a síndrome de burnout, o famoso estresse. Outros diziam que era loucura mesmo, que o “Doutor estava lelé”! Outros, de maneira curiosa, juravam que aquilo era a mais perfeita e brilhante encenação teatral já feita, pois, ironicamente, as vendas de seus livros triplicaram após a transmissão de seu ataque histérico – A mentalidade mercadocêntrica aplicada ao seio acadêmico. Marketing puro. A despeito da lógica proveniente desse terceiro interessante argumento, você, leitor, cúmplice dessa história decadente, sabe bem que nosso já não tão bom Doutor em momento algum planejou essa exposição constrangedora de sua figura na mídia das grandes massas. Trancou-se em casa e, na esperança de se curar, decidiu não tocar em nenhum livro. Não conseguia dormir, pois os livros, urrando dentro de sua mente, não o permitiam. Foram horas e mais horas bem duras. Quando o conhecimento vulcânico não borbulhava freneticamente nos corredores de sua cabeça, derretendo seus neurônios, como dezenas de jovens viciadíssimos em cocaína, em estado de abstinência, trancafiados dentro de uma minúscula quitinete, João era assolado por sentimentos estranhos. Por duas vezes pegou o telefone e quis telefonar para Paulo e Roberta, seus filhos, que estavam na Bélgica há três anos. Chorou pela morte de sua mãe. Quis levantar-se e ir matar seu pai, que abusara sexualmente dele na adolescência. Quis saber onde estava sua esposa, Cléria. Golpeava a própria cabeça, gritando, em desespero: nada aquilo havia acontecido. Não era casado, não teve um pai pervertido, não tinha uma mãe morta, muito menos filhos! Eram as memórias de outros, de todos os infelizes cujo conhecimento havia fotocopiado, lembranças de dias que não foram seus, confundindo ainda mais seu pobre e frágil pensar.

Ainda assim, resistiu e foi forte, e conseguiu ficar vinte e quatro horas sem encostar em um mísero livro sequer, fato inédito em sua vida. Precisava ficar são de novo, precisava de novo ser o bom doutor. Já não sabia mais direito quem era, que memórias eram suas e quais

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eram dos outros, era incapaz de discernir de maneira racional a respeito de tudo que sabia, ou simplesmente de pensar por dois segundos em um idioma apenas! Quando os primeiros raios de sol tocaram o seu rosto, João, fedendo a suor e vômito, morrendo de fome e sede, tontíssimo, exaurido dessa batalha contra si mesmo e com a pior dor de cabeça de sua vida, ergueu sua mão para pegar uma caixa de analgésicos (seus melhores e únicos amigos) na gaveta de seu criado-mudo. Como já seria de se esperar, ele ergueu sua mão esquerda. Seu breve momento de lucidez veio abaixo ao encostar seus dedos na alça da gaveta. Gritou como se alguém enfiasse cem agulhas em seus olhos. Num micro milésimo de segundo sua mente fez uma viagem insólita pela madeira da gaveta, passando pelas mãos de todas as visitas que já tocaram nela, pelas mãos dos carregadores da loja de artigos do lar onde ela foi comprada, pelas mãos dos vendedores que a acariciaram tantas vezes, pelas mãos do marceneiro que a fez, pelas mãos dos lenhadores que cortavam a árvore de onde veio sua madeira. Sua mão agora, além de absorver o conhecimento de páginas de livros e de mãos de pessoas, era capaz de absorver qualquer coisa que tivesse acontecido a qualquer objeto, transferindo para sua mente todo o saber, o mínimo que fosse, de qualquer pessoa que tivesse tido contato com aquilo. Ao tocar a fria madeira de sua gaveta foi envolvido em imagens, vozes, sensações e palavras de dezenas e dezenas de pessoas que tiveram alguma relação com aquela ignóbil madeira. O mesmo ocorreu ao se levantar da cama, apoiando suas duas mãos no colchão, e ao empurrar a porta com sua mão esquerda, e ao cair novamente no chão, tocando acidentalmente o solo com sua maldita mão esquerda. Informações, informações, informações! A maldita mão esquerda, a maldita mão esquerda, a razão de toda aquela ruína! Albuquerque havia se tornado um buraco negro que sugava todo o conhecimento por causa daquela soturna manopla. Empregando os últimos pedaços remanescentes de algo que um dia pôde ser chamado de sanidade, João, ignorando as toneladas de conhecimento que caíam sobre sua cabeça, que perfuravam seus tímpanos e que vazavam seus olhos, correu heroicamente até a cozinha e apanhou, desta vez com a mão direita, a maior e mais afiada faca que possuía. Precisava cortar o mal pela raiz, ou, melhor dizendo, pelo pulso, e salvar a si mesmo. Não hesitou em erguer a lâmina até a altura de seus olhos e lançá-la, chorando e gritando, com toda a força

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possível, sobre seu pulso esquerdo estendido sobre a mesa, resoluto a livrar-se de tão vil inimigo instaurado em seu próprio corpo.

E o grande silêncio veio logo em seguida, abraçado à escuridão. Alguns médicos afirmam que foi um gravíssimo choque

anafilático. Outros, que foi um tipo raro de surto. Ouvi falar de um que estuda a possibilidade de ser uma nova forma de doença mental e que a catalogará com seu próprio nome. Olhando nesse exato instante para o bom Doutor Albuquerque em seu leito de hospital, em coma profundo, penso em tudo pelo que ele passou. Sinto pena, sentimento raro em minha pessoa, já que mal sinto compaixão por mim mesmo, quanto mais de pessoas que sofreram as consequências de suas próprias escolhas. Acho que estou amolecendo com a idade, sei lá. Olho para o relógio na parede. Coincidentemente, ele marca o mesmo horário do dia em que fui até a casa do Dr. Albuquerque, naquela triste madrugada em que ele permitiu que suas ambições lhe subissem à cabeça como o alpinista escalando a montanha, ávido para conquistá-la. Contemplo seu pulso esquerdo, enfaixado, resultado de um corte profundo, porém, incompleto. Lá está ela, minha mão esquerda, ainda no pulso deste homem. Puxo a faca dourada mais uma vez e desfaço a troca. Antes de sair, olho mais uma vez para ele, com seus olhos avermelhados eternamente abertos, respirando de forma profunda, em absoluta catatonia. O que estará se passando dentro de sua cabeça? Prefiro não saber, honestamente. Já tive demais de meu experimento de conhecer o humano, assim como João teve demais de seu experimento de conhecer inumano. Estamos exaustos, cada um à sua maneira. Dou um último adeus a este mortal, esse sábio, esse louco, esse quase-amigo, e penso que seria justo registrar em fria folha essa notável história para que alguém um dia venha a lê-la. Pensei em nomeá-la de O estranho caso do Dr. Albuquerque, A triste história de João Fonseca ou A tragédia do bom Doutor, mas, convenhamos, seriam títulos de pouca criatividade, de um caráter de inegável cliché. Decidi batizar esse modesto relato de A mão esquerda, tendo sido precisamente ela o começo e o fim dessa história ao mesmo tempo tão verídica e tão irreal.

O que concluir disso tudo? Deixo isso para você que lê essas

mal traçadas linhas, com calma ou com pressa, com prazer ou com

tédio. Afinal de contas, como sempre bradou aos quatro ventos um

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certo Dr. João Afonso Albuquerque, é no exercício da leitura que o

leitor tem a chance de encontrar a si mesmo.