a m e d id a d e in t e r n a Ç Ã o : in )e f ic Á c ia ...siaibib01.univali.br/pdf/leandra cunha...
TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO SÃO JOSÉ CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA
A MEDIDA DE INTERNAÇÃO: (IN)EFICÁCIA DA EXECUÇÃO E O
DESCUMPRIMENTO DAS GARANTIAS INERENTES AO ADOLESCENTE INTERNO NO CENTRO EDUCACIONAL SÃO
LUCAS
ACADÊMICA: LEANDRA CUNHA LIMA
São José (SC), junho de 2007.
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO SÃO JOSÉ CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA
A MEDIDA DE INTERNAÇÃO: (IN)EFICÁCIA DA EXECUÇÃO E O
DESCUMPRIMENTO DAS GARANTIAS INERENTES AO ADOLESCENTE INTERNO NO CENTRO EDUCACIONAL SÃO LUCAS
Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Direito na Universidade do Vale do Itajaí. ACADÊMICA: LEANDRA CUNHA LIMA
São José (SC), junho de 2007.
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO SÃO JOSÉ CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA
A MEDIDA DE INTERNAÇÃO: (IN)EFICÁCIA DA EXECUÇÃO E O
DESCUMPRIMENTO DAS GARANTIAS INERENTES AO ADOLESCENTE INTERNO NO CENTRO EDUCACIONAL SÃO LUCAS
Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito, sob orientação do Prof. Mestre Giovani de Paula.
ACADÊMICA: LEANDRA CUNHA LIMA
São José (SC), junho de 2007.
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO SÃO JOSÉ CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA
A MEDIDA DE INTERNAÇÃO: (IN)EFICÁCIA DA EXECUÇÃO E O DESCUMPRIMENTO DAS GARANTIAS INERENTES AO ADOLESCENTE
INTERNO NO CENTRO EDUCACIONAL SÃO LUCAS
LEANDRA CUNHA LIMA
A presente monografia foi aprovada como requisito para a obtenção do grau de bacharel em Direito no curso de Direito na Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. São José, junho de 2007.
Banca Examinadora:
_______________________________________________________ Professor Mestre Giovani de Paula - Orientador
_______________________________________________________ Professora Mestre Marilene do Espírito Santo - Membro
_______________________________________________________ Professor Mestre Rodrigo Mioto - Membro
AGRADECIMENTOS
Ao Senhor JESUS CRISTO, no qual deposito minha fé e atribuo toda felicidade
alcançada.
A Elizabeth Cunha, muito mais que um exemplo de mãe, mas de uma mulher
inteligente, corajosa, determinada e batalhadora que dedicou seu carinho e compreensão em
todos os momentos de minha vida, sendo de fundamental inspiração para meu sucesso pessoal
e acadêmico.
Ao meu noivo, Vandervan Nivaldo da Silva Vidal, por fazer parte da minha vida e
a cada dia me ensinar a ser uma pessoa melhor, através de seu amor, respeito, estímulo,
confiança e incentivos materiais, que contribuíram para a realização de um sonho.
Ao meu pai, Osmar Othon Barbosa Lima, pelo amor e confiança.
A minha prima, Ana Claudia Furtado Vidal, pelos momentos disponibilizados
que tanto enriqueceram meus conhecimentos, além do exemplo de profissional competente e
vitoriosa.
A grande amiga, Jaqueline Reginato Sousa, por ser tão presente em minha vida,
além de trazer momentos alegres, de companheirismo e fidelidade, pela atenção à revisão
metodológica.
Ao Professor Giovani de Paula, meu orientador, pela disponibilidade, paciência,
apoio constantes e pela orientação segura e competente.
E aos professores e colegas, que compartilharam ao longo desta trajetória seus
conhecimentos e experiências, possibilitando enriquecer-me muito mais que somente estudos.
SUMÁRIO
RESUMO ........................................................................................................................... 07
LISTA DE ABREVIATURAS........................................................................................... 08
INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 10
1 OS DIREITOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE ......................................... 12
1.1 BREVE HISTÓRICO............................................................................................. 12
1.1.1 Ordenamento Internacional ................................................................................. 15
1.1.2 Princípios Balizadores........................................................................................... 18
1.1.3 Doutrina da Proteção Integral.............................................................................. 18
1.2 O ATO INFRACIONAL E A DISTINÇÃO ENTRE CRIANÇA E
ADOLESCENTES............................................................................................................... 20
1.3 MEDIDAS DE PROTEÇÃO E SÓCIO-EDUCATIVAS......................................... 21
1.3.1 Das Medidas de Proteção...................................................................................... 22
1.3.2 Das Medidas Sócio-educativas.............................................................................. 24
1.4 CONCESSÃO DA REMISSÃO.............................................................................. 27
2 A MEDIDA DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE DO ADOLESCENTE
INFRATOR: ASPECTOS JURÍDICOS ........................................................................... 30
2.1 MEDIDA DE INTERNAÇÃO: ASPECTOS GERAIS ........................................... 30
2.2 PRINCÍPIOS NORTEADORES DA MEDIDA PRIVATIVA DE LIBERDADE ... 31
2.3 GARANTIAS INDIVIDUAIS................................................................................ 32
2.3.1 Internação Provisória ........................................................................................... 34
2.4 GARANTIAS PROCESSUAIS EXPLICITADAS NO ECA................................... 36
2.5 A AVALIAÇÃO INTERDISCIPLINAR E A REAVALIÇÃO SEMESTRAL ........ 41
2.6 APLICAÇÃO DA MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA AO MAIOR DE 18 ANOS .... 42
2.7 CARÁTER INDETERMINADO DA MEDIDA DE INTERNAÇÃO E A
INTERNAÇÃO SANÇÃO................................................................................................... 44
3 INEFICÁCIA DA EXECUÇÃO DA MEDIDA DE INTERNAÇÃO: O
EXEMPLO DO CENTRO EDUCACIONAL SÃO LUCAS............................................ 47
3.1 LOCAL DA INTERNAÇÃO.................................................................................. 48
3.2 OS DIREITOS INERENTES AOS ADOLESCENTES PRIVADOS DE
LIBERDADE....................................................................................................................... 51
3.3 DESCUMPRIMENTO DOS DIREITOS RELATIVOS AOS ADOLESCENTES
INTERNOS OCORRDOS NO CENTRO EDUCACIONAL SÃO LUCAS.......................... 52
3.3.1 Análise dos Direitos do Adolescente Interno e sua aplicaçã no Centro Educacional
São Lucas....................... ...................................................................................................... 53
3.4 UMA LEITURA MULTIFACETADA: OUVINDO A REALIDADE..................... 57
3.5 BREVE ANÁLISE SOBRE A QUESTÃO DA REDUÇÃO DA IDADE PENAL E
SUAS IMPLICAÇÕES........................................................................................................ 61
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................. 64
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 67
ANEXO 1 - INSPEÇÃO NACIONAL ÀS UNIDADES DE INTERNAÇÃO DE
ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI
7
RESUMO
A monografia que ora se apresenta versa sobre a efetividade da medida sócio-educativa de internação, imposta aos adolescentes em conflito com a lei. O cerne da questão tem por objetivo averiguar se tal medida, aplicada pelo Juizado da Infância e da Juventude, está atingindo ou não aos fins a que se destinam, quais sejam reeducar e ressocializar os infratores, no Centro Educacional São Lucas. Verifica-se a inobservância dos princípios garantistas relativos aos adolescentes privados de liberdade, que são colocados em condições de total desacordo com os padrões estabelecidos na legislação vigente. Tal constatação utilizou como referência o Relatório Nacional de Inspeção às Unidades de Internação de adolescentes em conflito com a lei. A pesquisa se faz relevante, como forma de evitar que os adolescentes infratores se tornem delinqüentes contumazes no futuro, já que a internação não possui caráter punitivo, mas educacional.
Palavras-chave: adolescentes, medida de internação, garantias.
8
LISTA DE ABREVIATURAS
ACr Apelação Criminal
art (s). artigo (s)
ABMP Associação Brasileira de Magistrados e Promotores
abr. Abril
CEPEC Centro de Estudos e Projetos Educacionais e Culturais
CF Constituição Federal
Cf. Conforme (confronte-se , confira)
cit. Citação
Coord. (s) Coordenador (s)
CPP Código de Processo Penal
Des. Desembargador
ECA Estatuto da Criança e do Adolescente
ed. Edição
etc. e outras coisas mais
FEBEM Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor
FUCABEM Fundação Catarinense do Bem-Estar do Menor
FUNABEM Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor
IEPC Instituto de Ensino e Pesquisa Científica
inc (s). inciso (s)
jan. janeiro
jul. julho
n. número
n.º número
nov. novembro
ONG (s) Organização (s) Não Governamental (s)
ONU Organização das Nações Unidas
Org. organizador
out. outubro
p. página
p.ex. por exemplo
PNBEM Política Nacional de Bem-Estar do Menor
prof. Professor
9
Rel. Relator
SAM Serviço de Assistência ao Menor
SC Santa Catarina
TJSC Tribunal de Justiça de Santa Catarina
TJRS Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
10
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa monográfica surge da necessidade de resposta para uma das
questões sociais que têm sido objeto de relevantes discussões na sociedade brasileira, sobre a
(in)eficácia da aplicação da medida de internação como resposta ao grande número de atos
infracionais cometidos por adolescentes.
A escolha do tema deve-se ao interesse pelo direito da criança e do adolescente após
ter cursado a referida matéria, objetivando compreender o tratamento dispensado ao
adolescente infrator no que tange à medida de internação, como forma eficaz de
responsabilização.
Neste momento discute-se a questão do rebaixamento da idade penal, com base em
informações desvirtuadas veiculadas pela mídia, devido acontecimentos recentes que
chocaram a sociedade, as quais afirmam que o adolescente não é responsabilizado pelas
infrações cometidas. O “senso comum” da sociedade é o de lançar o adolescente aos auspícios
do Código Penal como forma de reduzir o índice de criminalidade entre os jovens, adotando a
“terapia” penal como resposta, mas esquecem de avaliar a falência do sistema carcerário.
Como hipótese central, relaciona-se a questão da medida de internação não ser
viabilizada de forma satisfatória por incapacidade ou omissão dos órgãos públicos
responsáveis, bem como pela falta de estrutura da família e da sociedade. Partindo-se dessa
hipótese buscou-se a necessidade de demonstrar que a medida de internação necessita ser
revista para que consiga alcançar os resultados pretendidos quanto à “reeducação e
ressocialização”, tendo como princípio a proteção integral do adolescente.
A estrutura básica da monografia conta com três capítulos. O primeiro aponta a
trajetória da legislação dispensada à criança e ao adolescente, a partir do século XX, o
ordenamento internacional, seguido dos princípios balizadores até a Doutrina de Proteção
Integral disposta na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e no Estatuto da
Criança e do Adolescente. E ainda, trata das medidas de proteção e sócio-educativas, com
breve apontamento para a questão da remissão.
O segundo capítulo estuda a medida de internação, explicitando os princípios
norteadores, a avaliação interdisciplinar e reavaliação semestral do adolescente, bem como as
garantias individuais e processuais estabelecidas pelo Estatuto e seu caráter indeterminado.
11
O terceiro capítulo situa o debate acerca do Centro Educacional São Lucas,
explanando sobre os direitos específicos do adolescente interno e sobre o local da internação,
além da análise da aplicabilidade da norma vigente, baseados no relatório de Inspeção
Nacional ás Unidades de Internação de Adolescentes em Conflito com a Lei, resultado da
relevante parceria entre Conselho Federal de Psicologia e Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil, e ainda, breve comentário sobre a questão da redução da idade penal.
As fontes de pesquisa foram baseadas em doutrinas, legislações, jurisprudências e
pesquisa in loco, no Centro Educacional São Lucas.
O método empregado foi o dedutivo. Tal escolha deve-se a existência de
posicionamentos consolidados em trajetórias bem definidas acerca do objeto da pesquisa. Tal
método abordará a questão da medida de internação, sua (in)eficácia e o descumprimento das
garantias inerentes ao adolescente interno no Centro Educacional São Lucas.
Espera-se que a pesquisa possa contribuir para o melhor entendimento da
interpretação da medida de internação, mostrando a possibilidade de reeducação e
ressocialização do adolescente infrator após o cumprimento da mesma, além de tentar
desmistificar a visão deturpada da sociedade em relação a tais jovens.
12
1 OS DIREITOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
O tema ora em estudo, exige necessariamente a busca a fatos históricos, sociais e
políticos, por intermédio de consultas bibliográficas, doutrinárias e jurisprudenciais, que
contribuíram para o contexto jurídico atual. Inicialmente, neste primeiro capítulo, cabe
dissertar a respeito do surgimento da Lei n.º 8.069/90, sua finalidade e os principais aspectos.
Elaborar-se-á assim, uma breve retrospectiva sobre a legislação pertinente ao direito da
criança e do adolescente.
Conseqüentemente, abordar-se-á a conceituação das medidas de proteção e sócio-
educativas, seus principais apontamentos, além do instituto da remissão.
1.1 ASPECTOS HISTÓRICOS
Necessário se faz entender a finalidade da Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990, no
qual dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, que “tem sua origem,
enquanto trabalho de cunho político-social, na constatação da amarga realidade brasileira, das
afrontas à cidadania”1, como ensina Josiane Rose Petry Veronese e prossegue: [...] crianças e os adolescentes foram historicamente tratados pela legislação como meros objetos de intervenção tutelados pela lei e pela justiça, situação essa que pouco a pouco, desejamos que se transforme, haja vista as garantias dadas pela Constituição Federativa do Brasil de 1988 e regulamentadas pelo Estatuto [...].2
A intervenção e a preocupação do Estado em relação à infância têm início na
passagem para o século XX, sendo que somente em 1924, foi criado o primeiro Juizado de
Menores do Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, através do Decreto n.º 16.272, de 20 de
dezembro de 1923. Tal decreto determinava a existência de um abrigo subordinado ao
juizado, que seria subdividido em seções de abandonados e delinqüentes. Dentre as funções
do Juízo, estavam à completa orientação e assistência a todas as ações judiciais que
envolvessem interesse de menor, bem como, o papel do juiz determinado por lei, em educar
todas as espécies de menores que se encontravam órfãos, abandonados, pervertidos, etc. Uma
vez instalado o Juízo Privativo de Menores, foi inevitável a constatação da sua
descredibilidade, já que faltava organização técnico-administrativa.3
1 VERONESE, Josiane Rose Petry. Os Direitos da Criança e do Adolescente. São Paulo: LTr, 1999. p. 09. 2 VERONESE, Josiane Rose Petry. Os Direitos da Criança e do Adolescente, p. 09. 3 Cf. VERONESE, Josiane Rose Petry. Os Direitos da Criança e do Adolescente, p. 23-24.
13
De maneira sintetizada e aperfeiçoada, o juiz de menores do Rio de Janeiro, José
Cândido de Albuquerque de Mello Mattos, conseguiu reunir leis e decretos que desde 1902,
visavam à criação de um mecanismo legal voltado à criança e ao adolescente. Consolidou
assim, o Código de Menores, através do Decreto n.° 17.943, de 12 de dezembro de 1927.4
A respeito completa Darlene de Moraes Silveira e Giovani de Paula: Observa-se que o Decreto n. 17.943 de 1927, chamado de Mello Matos em sua homenagem, sai-se da esfera punitiva para esfera educacional e a dimensão da importância de proteção às crianças e adolescentes passa a emergir no contexto jurídico. Exemplo disso é a figura do ‘pátrio-poder’, que, de modelo de poder e controle passa a ser de ‘pátrio-dever’, ou seja, uma série de atributos e responsabilidades dos pais visando a dar melhores condições de vida as crianças.5
Salienta Ana Lúcia Bentes que o Código de Menores foi debatido por figuras
proeminentes à época, nos meios jurídicos, legislativos, assistenciais e políticos, contendo 231
(duzentos e trinta e um) artigos. O poder de decisão para definir as trajetórias institucionais de
crianças, adolescentes e suas famílias era concentrado nas mãos do Juiz de Menores, que
baseava-se na índole dos mesmos. O código “apontava uma visão jurídica, repressiva e
moralista, prevendo repreensão e internamento, e, em caso de abandono físico e moral das
crianças, o pátrio poder suspenso ou perdido por falta dos pais”.6 Com o aumento expressivo
de menores nas ruas, a condição de exclusão social era diretamente associada à condição de
delinqüência e de ameaça social, passando a criminalizar e psiquiatrizar os menores
considerados delinqüentes.7
Segundo Luiz Cavalieri Bazílio e Sonia Kremer, são marcos desta época a iniciativa
de grupos religiosos ou de boa vontade, criando diversos patronatos de menores, e a criação,
vinculação e financiamento pelo Estado de diversos internatos, sendo os mais visíveis o
Serviço de Assistência ao Menor – SAM, a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor –
FUNABEM e a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor – FEBEM.8
A implantação do SAM em 1941 possuía além da perspectiva corretiva, alguns
objetivos de natureza assistencial, quando enfatizava a importância de estudos, pesquisas,
atendimento psicopedagógico às crianças e adolescentes carentes e com problemas de
conduta. No entanto, estes objetivos não conseguiram ser cumpridos devido a diversos
4 Cf. VERONESE, Josiane Rose Petry. Os Direitos da Criança e do Adolescente, p. 26. 5 SILVEIRA, Darlene de Moraes; PAULA, Giovani de. Direitos da Criança e do Adolescente: prevenção da violência e da exclusão social. Palhoça: Unisul Virtual, 2006. p. 24. 6 VERONESE, Josiane Rose Petry. Os Direitos da Criança e do Adolescente, p. 25. 7 Cf. BENTES, Ana Lúcia apud SILVEIRA, Darlene de Moraes; PAULA, Giovani de. Direitos da Criança e do Adolescente: prevenção da violência e da exclusão social, p. 25. 8 Cf. BAZÍLIO, Luiz Cavalieri; KREMER, Sonia. Infância, Educação e Direitos Humanos. São Paulo: Cortez, 2003. p. 19-20.
14
problemas, como “a sua estrutura emperrada, sem autonomia e sem flexibilidade e a métodos
inadequados de atendimento, que geraram revoltas naqueles que deveriam ser amparados e
orientados”.9 Em 1961, o SAM passa a ser investigada após inúmeras críticas advindas de
diversos setores da sociedade, sendo que os resultados demonstraram ser o sistema ineficaz e
perverso, além de não possuir condições adequadas de higiene e espaço físico apropriado.
Assim, um novo projeto é aprovado, causando a extinção do SAM: trata-se da Fundação
Nacional do Bem Estar do Menor – FUNABEM.10
Aprovada em 01 de novembro de 1964 pelo Congresso Nacional, a FUNABEM,
como leciona Josiane Rose Petry Veronesse, foi criada para: [...] responder ao clamor público que passou a exigir, por parte do Governo, alguma solução diante do descrédito que se tornou o SAM, a própria percepção das elites frente ao problema da infância, bem como aos desajustes interburocráticos nas instituições estaduais de atendimento, juizados de menores e policiais, haja vista a ausência de uma política, além das prescrições do Código de Menores, que estabelecesse uma linguagem comum e específica para tal atuação.11
Com o advento do acelerado processo de urbanização das cidades, marcada pela
revolução industrial, se faz necessário que as políticas sociais atenuem as seqüelas do
desenvolvimento, marcadas pela desigualdade da distribuição de renda. Foi então criada a
Política Nacional de Bem-Estar do Menor – PNBEM, “viabilizada e implementada pela
recém criada FUNABEM, como organismo federal normativo responsável pela execução da
política e os órgãos estaduais executores, geralmente sob a denominação de FEBEM’s”.12
Dentro deste panorama surge a Lei n.º 6.697, de 10 de outubro de 1979, mais
conhecida como o Código de Menores de 1979, baseada na doutrina da situação irregular que
“dizia respeito ao menor de 18 anos de idade que se encontrava abandonado materialmente,
vítima de maus tratos, em perigo moral, desassistido juridicamente, com desvio de conduta e
ainda autor de infração penal”.13
Sobre tal doutrina, critica Antônio Fernando Amaral e Silva: [...] confunde na mesma situação irregular, abandonados, maltratados, vítimas e infratores. Causa perplexidade que se considerasse em situação irregular o menino abandonado ou maltratado pelo pai, ou aquele privado de saúde ou da educação por incúria do Estado. [...] Está em situação irregular o pai que abandona ou o Estado que negligência, nunca o abandonado, a vítima.14
9 VERONESE, Josiane Rose Petry. Os Direitos da Criança e do Adolescente, p. 32. 10 Cf. SILVEIRA, Darlene de Moraes; PAULA, Giovani de. Direitos da Criança e do Adolescente: prevenção da violência e da exclusão social, p. 29. 11 VERONESE, Josiane Rose Petry. Os Direitos da Criança e do Adolescente, p. 32-33. 12 SILVEIRA, Darlene de Moraes; PAULA, Giovani de. Direitos da Criança e do Adolescente: prevenção da violência e da exclusão social, p. 30. 13 VERONESE, Josiane Rose Petry. Os Direitos da Criança e do Adolescente, p. 35. 14 AMARAL E SILVA, Antônio Fernando. Comentários do debatedor. In: SIMONETTI, C. (Org.) et al. Do avesso ao Direito. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 37.
15
Sustenta Agop Kayayan: Anteriormente à elaboração do ECA, as políticas jurídicas e sócio-educativas tinham como pano de fundo a doutrina da situação irregular, na qual o Código de Menores brasileiro era baseado. Naquela época, as políticas não eram dirigidas ao conjunto da população infanto-juvenil, mas apenas aos ‘menores em situação irregular’. [...] as políticas não eram dirigidas ao conjunto da população infanto-juvenil, mas apenas aos ‘menores em situação irregular’.15
Dessa forma, é possível observar que a PNBEM passa a “agonizar diante das
exigências sociais. Cresce o número de crianças em situação de abandono e semi-abandono, e
a proposta de internamento não mais responde as necessidades sociais, deflagrando-se um
processo de denúncias contra a violência e a repressão existentes”16, é o que constava nas
avaliações feitas pela FUNABEM.
Embora o Código de Menores de 1979 abrangesse em seu texto um grande elenco de
medidas a serem aplicadas ao jovem infrator, como por exemplo, o encaminhamento a
atendimento psicológico ou a liberdade assistida, o que aparece de fato após a criação da
FUNABEM (1964) e da FEBEM (por volta de 1968 onde a maioria de suas unidades foi
implantada) é a massificação da internação. Em 1980, surgiu um intenso movimento social
que criticou duramente esta política de segregação, através de denuncias de abusos e
violações aos direitos humanos ocorridos no interior dessas instituições, que buscavam novas
formas de atendimento a esses adolescentes.17
1.1.1 Ordenamento Internacional: Influências no Direito Pátrio
Foram nos primeiros anos da década de 80 que as iniciativas no território nacional
por parte de diversas entidades cresceram, promovendo trabalhos com crianças e
adolescentes. Tais entidades criticaram duramente a forma de intervenção adotada pelo
Estado, através de diversas publicações no mercado editorial sobre o assunto, sem
participação ou financiamento de entidades oficiais.18
O resultado desses movimentos traduziu-se num texto constitucional que construído
por meio de “mecanismos de embate e negociação, contém expressivas transformações 15 KAYAYAN, Agop. Análise situacional e algumas experiências inovadoras no atendimento sócio-educativo aos adolescentes autores de ato infracional no Brasil. Disponível em: <http://www.socialtec.org.br/Downloads/InfanciaJuventude/AgopKayayan_AdolescentesInfratores.doc.>. Acesso em: 24 jan. 2007. 16 SILVEIRA, Darlene de Moraes; PAULA, Giovani de. Direitos da Criança e do Adolescente: prevenção da violência e da exclusão social, p. 34. 17 Cf. BAZÍLIO, Luiz Cavalieri; KREMER, Sonia. Infância, Educação e Direitos Humanos, p. 42. 18 Cf. BAZÍLIO, Luiz Cavalieri; KREMER, Sonia. Infância, Educação e Direitos Humanos, p. 19-20.
16
obtidas pelos setores populares”. Após o término dos trabalhos da Constituição Federal de
1988, o ECA é debatido, escrito e promulgado, influenciado por vários documentos
internacionais, tais como: a Declaração dos Direitos da Criança; as Regras Mínimas das
Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude; as Regras de
Beijing; as Diretrizes das Nações Unidas para Prevenção da Delinqüência Juvenil; as Regras
Mínimas das Nações Unidas para Proteção dos Jovens Privados de Liberdade; as Diretrizes de
Riad e a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças em 1989.19
Em 1959, foi aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas a Declaração sobre
os Direitos da Criança, que conforme Gilberto Dimenstein, continha dez pontos: 1 Direito à igualdade, sem distinção de raça, religião ou nacionalidade. 2 Direito à proteção especial para seu desenvolvimento físico, mental e social. 3 Direito a um nome e uma nacionalidade. 4 Direito à alimentação, à moradia e à assistência médica adequadas para a criança e a mãe. 5 Direito à educação e a cuidados especiais para a criança física ou mentalmente deficiente. 6 Direito ao amor e a compreensão por parte dos pais e da sociedade. 7 Direito à educação gratuita e ao lazer. 8 Direito a ser socorrido em primeiro lugar, em caso de catástrofe. 9 Direito a ser protegido contra o abandono e a exploração no trabalho. 10 Direito a crescer dentro de um espírito de solidariedade, compreensão, amizade e justiça entre os povos. 20
Antes de sua consolidação, a Convenção dos Direitos da Criança passou por uma
longa trajetória, com o surgimento de diversos tratados acerca da matéria, como: Primeira
Declaração dos Direitos da Criança, elaborado pela Liga das Nações em 1924; Carta das
Nações Unidas, de 1945; Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948; Segunda
Declaração dos Direitos da Criança, em 1948 e a terceira em 1957. Assim, com base em tais
documentos, a Polônia propôs à Organização das Nações Unidas – ONU, em 1978, um
projeto de Convenção dos Direitos da Criança, sendo formado um grupo de trabalho que
contava com representantes de diversas culturas e raças, das agências da ONU e de
Organizações Não Governamentais (ONG’s) independentes.21 Finalmente, em 20 de
novembro de 1989, foi aprovada por unanimidade pela ONU. Nesse contexto, Guilherme
Assis de Almeida, Cláudia Perrone e Moisés Perrone, comentam a matéria: Este constitui o primeiro instrumento que regulamenta todos os direitos básicos infantis, quer sejam estes de caráter civil, econômico, social ou cultural. Todos esses
19 Cf. BAZÍLIO, Luiz Cavalieri; KREMER, Sonia. Infância, Educação e Direitos Humanos, p. 22-23. 20 DIMENSTEIN, Gilberto. O Cidadão de Papel. São Paulo: Ática, 2001. p. 31. 21 Cf. ALMEIDA, Guilherme Assis de; PERRONE, Cláudia; PERRONE, Moisés (Coords.). Direito Internacional dos Direitos Humanos. São Paulo: Atlas, 2002. p. 77.
17
direitos são considerados igualmente importantes, indivisíveis e inter-relacionados e deverão ser respeitados para toda e qualquer criança.22
A Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), composta por 54 (cinqüenta e
quatro) artigos, dividida em 3 (três) partes e precedida de um preâmbulo, define o conceito de
criança e estabelece parâmetros de orientação e atuação política de seus Estados-partes para a
consecução dos princípios nela estabelecidos, visando ao desenvolvimento individual e social
saudável da infância, tendo em vista ser este o período basilar da formação do caráter e da
personalidade humana.
Em seu contexto, importante se faz destacar: [...] a importância assinalada à unidade familiar como suporte para o crescimento social e emocional, harmônico e saudável da criança atribuindo aos pais ou outras pessoas encarregadas, a responsabilidade primordial de proporcionar, de acordo com suas possibilidades e meios financeiros, as condições de vida necessárias ao desenvolvimento da criança (art. 27, item 2), cabendo ao Estado-parte, de acordo com as condições nacionais e dentro de suas possibilidades, adotar medidas apropriadas a fim de ajudar os pais e outras pessoas responsáveis pela criança a tornar efetivo este direito e caso necessário proporcionando assistência material e programas de apoio [...]. [...] A partir do artigo 2º, a Convenção passa a discorrer sobre os direitos fundamentais da criança, é dizer, direito a vida (art. 6º), à integridade física e moral (art. 19), à privacidade e à honra (art.16), à imagem, à igualdade, à liberdade (art. 37), o direito de expressão (arts. 12 e 13), de manifestação de pensamento (art. 14), sem distinção de qualquer natureza (raça, cor, sexo, língua, religião, convicções filosóficas ou políticas origem étnica ou social etc), estabelecendo diretrizes para adoção e efetivação de medidas que garantam estes direitos por parte dos Estados convencionados, objetivando garantir a proteção das crianças de qualquer forma de discriminação ou punição injusta. Para tanto, nos termos do artigo 4º, os Estados-partes deverão tomar todas as medidas administrativas, legislativas para a implementação dos direitos reconhecidos na Convenção [...].23
A Convenção Internacional dos Direitos da Criança das Organizações das Nações
Unidas marcou definitivamente a transformação das políticas públicas voltadas a essa
população, culminando assim, na criação do Estatuto da Criança e do Adolescente.24
Nesse norte, nas palavras de Esperidião Amin: O Congresso Nacional agiu com sabedoria ao aprovar a Lei, eis que o Estatuto contempla a situação brasileira da criança e do adolescente, colocando-as como
22 ALMEIDA, Guilherme Assis de; PERRONE, Cláudia; PERRONE, Moisés (Coords.). Direito Internacional dos Direitos Humanos, p. 77. 23 ALBERNAZ JÚNIOR, Victor Hugo; FERREIRA, Paulo Roberto Vaz. Convenção Sobre os Direitos da Criança. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/textos/tratado11.htm>. Acesso em: 24 out. 2006. 24 Cf. ALBERNAZ JÚNIOR, Victor Hugo; FERREIRA, Paulo Roberto Vaz. Convenção Sobre os Direitos da Criança. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/textos/tratado11.htm>. Acesso em: 24 out. 2006.
18
princípio e fim de toda a ação, de forma a retratar as contravenções e apontar o caminho para superá-las.25
O ECA surge com uma perspectiva de mudança na maneira de olhar a criança e o
adolescente, em que deixam de ser considerados objetos e passam a ser contemplados como
sujeitos histórico e social de direito, em suas várias dimensões humanas.
Vejam-se a seguir as normas básicas sobre as quais se disciplinou o Estatuto.
1.1.2 Princípios Balizadores
Ensina Luiz Cavalieri Bazílio e Sonia Kremer, os 3 (três) princípios gerais que
balizaram a redação do ECA:
a) A criança e o adolescente como pessoas e condição particular de desenvolvimento; b) A garantia por meio de responsabilidades e mecanismos amplamente descritos da condição de sujeitos de direitos fundamentais e individuais; c) Direitos assegurados pelo Estado e conjunto da sociedade com absoluta prioridade. O objetivo do novo texto tem a concepção da criança e do adolescente como sujeitos de direitos, e não mais como objeto.26
A nova legislação veio a proteger integralmente a criança até 12 anos de idade e o
adolescente entre 12 e 18 anos, e excepcionalmente, os menores na faixa etária entre 18 e 21
anos, assegurando-lhes todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, que
deverão ser respeitados não só pela família e pela sociedade, como também pelo Estado, sob
pena de responderem pelos danos causados. 27
1.1.3 Doutrina da Proteção Integral
De acordo com Luiz Cavalieri Bazílio e Sonia Kremer, conta-se que a primeira
versão realizada pela equipe responsável pela redação do Estatuto, não agradou muito por se
tratar de uma revisão do Código de Menores, sendo reprovado. Logo, a equipe pensou em
realizar algo mais ousado, o que culminou primeiramente na substituição da doutrina. A nova
lei deveria abranger não apenas as crianças vítimas da ação ou da omissão que se
encontravam em situação de abandono, fome, desrespeito ou autores de infração, mas de
todas as crianças, independente de classe social.28
25 SANTA CATARINA. Secretaria de Estado do Desenvolvimento Social e da Família. AMIN, Esperidião. O Estatuto da Criança e do Adolescente. Florianópolis, 1999. 26 BAZÍLIO, Luiz Cavalieri; KREMER, Sonia. Infância, Educação e Direitos Humanos, p. 23-24. 27 BAZÍLIO, Luiz Cavalieri; KREMER, Sonia. Infância, Educação e Direitos Humanos, p. 24. 28 Cf. BAZÍLIO, Luiz Cavalieri; KREMER, Sonia. Infância, Educação e Direitos Humanos, p. 34-35.
19
A Doutrina da Proteção Integral “é aquela que abrange todas as necessidades do ser
humano para o pleno desenvolvimento de sua personalidade [...], sendo-lhes asseguradas
todas as oportunidades para seu desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social”.29
Cumpre salientar a afirmação de Roberto João Elias, que o Estatuto tem por objetivo
a proteção integral à criança e ao adolescente, “além de responsabilizar os pais ou
responsáveis pela situação irregular do menor, outorga-se a este uma série de direitos
necessários ao seu pleno desenvolvimento”.30
E ainda, prossegue: Antes, a intervenção do Estado na esfera familiar ocorria quando esta falhava na assistência que deveria prestar ao menor. Embora isso ainda possa ocorrer, agora também o Estado pode ser demandado se não prestar ao menor aquilo que lhe é devido na área da saúde e da educação, principalmente.31
Adverte o referido autor, que toda assistência deve ser ofertada no seio de uma
família, sendo biológica ou substituta.32 A propósito, corroborando com tal afirmação: O dispositivo ora em exame é síntese do pensamento do legislador constituinte, expresso na consagração do preceito de que “os direitos de todas as crianças e adolescentes devem ser universalmente reconhecidos. São direitos especiais e específicos, pela condição de pessoas em desenvolvimento. Assim, as leis internas e o direito de cada sistema nacional devem garantir a satisfação de todas as necessidades das pessoas de até 18 anos, não incluindo apenas o aspecto penal do ato praticado pela ou contra a criança, mas o seu direito à vida, saúde, educação, convivência, lazer, profissionalização, liberdade e outros”.33
A Doutrina da Proteção Integral se contrapôs a ao tratamento histórico de exclusão
social, apresentando um conjunto conceitual, metodológico e jurídico que possibilitou a
compreensão para abordar as questões relativas às crianças e aos adolescentes com dignidade
e respeito, sob a ótica dos direitos humanos.34
Torna-se pertinente ilustrar o final deste tema com o depoimento dado por João
Batista Costa Saraiva: Em uma viagem, por acaso, caiu em minhas mãos um jornal de grande circulação do Estado do Paraná. Naquela interminável jornada, na busca de passar o tempo, não só li aquilo que normalmente me interessa em um jornal, como acabei me deparando com a indefectível página policial dos periódicos, local antigamente destinado às
29 SMANIO, Gianpaolo Poggio. Interesses Difusos e Coletivos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1999. p. 13. 30 ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 1-2. 31 ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 1-2. 32 Cf. ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 2. 33 COELHO, João Gilberto Lucas. Criança e Adolescente: a Convenção da ONU e a Constituição Brasileira. United Nations Children’s Fundation. p. 3 apud CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 15. 34 Cf. VOLPI, Mário (Org.). O adolescente e o ato infracional. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1999 apud SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e o ato infracional – garantias processuais e medidas socioeducativas. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 9.
20
tragédias do cotidiano. Digo antigamente porque hoje o jornalismo se faz quase somente de desgraças, não escapando dessas nem as futilidades das colunas sociais. A manchete da página policial, porém, por seu conteúdo ideológico, até hoje me serve como exemplo emblemático de parcela significativa de nossa cultura brasileira: ‘Menor assalta criança na frente da escola’. Menor era infrator; criança, a vítima. Nisso pode ser resumida toda a dificuldade para a completa efetividade da doutrina da proteção integral preconizada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Ainda se raciocina no sentido de que crianças são os filhos bem nascidos, e menores são os outros: os pobres, os negros, os meninos de rua, os excluídos.35
Afirma João Batista Costa Saraiva com o referido depoimento, a dificuldade ainda
encontrada na interpretação e aplicação da citada doutrina, ocorrida em 2002, após 12 (doze)
anos de sua implementação.
1.2 O ATO INFRACIONAL E A DISTINÇÃO ENTRE CRIANÇA E ADOLESCENTE
A distinção entre criança e adolescente, como diferentes etapas da vida humana têm
grande importância no Estatuto. Apesar de ambos gozarem dos mesmos direitos
fundamentais, reconhecendo sua condição de pessoas em desenvolvimento, o tratamento será
diferenciado quando incorrerem em atos de conduta descritos como delitos ou contravenções
pela lei penal.36 Em seu art. 2º, “Considera-se criança para os efeitos dessa lei, a pessoa até
doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade”.37
Define também o art. 103, que “ato infracional é a conduta descrita como crime ou
contravenção penal”, ou seja, quando praticado por adolescente chama-se ato, em relação ao
adulto é considerado crime. Em análise feita a respeito, Napoleão Xavier do Amarante,
notadamente do constante no referido artigo, assim pronunciou-se: A infração penal, como gênero, no sistema jurídico nacional, das espécies de crime ou delito e contravenção, só pode ser atribuída, para efeito da respectiva pena, às pessoas imputáveis, que são, em regra, no Brasil, os maiores de 18 anos. [...] Significa dizer que o fato atribuído à criança ou adolescente, embora enquadrável como crime ou contravenção, só pela circunstância de sua idade, não constituiu crime ou contravenção, mas, na linguagem do legislador, simples ato infracional. O desajuste existe, mas, na acepção técnico-jurídica, a conduta do seu agente não configura uma ou outra daquelas modalidades de infração, por se tratar simplesmente de uma realidade diversa. Não se cuida de uma ficção, mas de uma
35 SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e o ato infracional – garantias processuais e medidas socioeducativas, p. 22. 36 Cf. SOLARI, Ubaldino Calvento apud CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 19. 37 BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
21
entidade jurídica a encerrar a idéia de que também o tratamento a ser deferido ao seu agente é próprio e específico.38
No momento em que o Estatuto estava sendo debatido e rascunhado, o grupo
hegemônico incorporava a idéia de desjudicialização, passando o texto a conter uma
caracterização geral com dois tipos de medidas distintas: as medidas sócio-educativas, cujas
decisões competiam aos magistrados, e as medidas protetivas, que seriam desempenhadas
pelos conselhos tutelares (nova figura desta política), não mais pelos Tribunais. Evidenciam-
se assim, dois momentos importantes na imposição de limites à ação dos juízes: introdução do
contraditório, com a presença obrigatória do advogado defendendo o adolescente acusado de
autoria de infração penal, já que anteriormente cabia ao Ministério Público a função de acusar
e defender; e, especificidade das medidas protetivas, atribuindo maior responsabilidade para
sua aplicação aos conselhos tutelares.39
A prática de ato infracional cometida por criança, estará sujeita a 8 (oito) diferentes
medidas de proteção (art. 101, do ECA), que vão desde o encaminhamento aos pais ou
responsável, passando por obrigação de matrícula na escola, tratamento médico ou
psiquiátrico, abrigo ou colocação em família substituta. Já o adolescente responsável pela
referida conduta, poderá sofrer medidas sócio-educativas (art. 112, do ECA) que podem
ocorrer desde uma advertência até uma internação.
Acerca dessa temática, leciona Mario Volpi: Estabelecer em lei apenas punição aos crimes e esquecer as medidas de ressocialização não vai diminuir a violência. O controle do delito se faz através de um conjunto de atividades de caráter pedagógico, impostas coercitivamente pelo ECA, que reorganizem a vida do jovem infrator de maneira que ele possa perceber a importância do respeito ao bem comum.40
Para o adolescente, autor de ato infracional, a proposta é que o mesmo receba
medidas sócio-educativas, portanto, não punitivas, conforme o contexto da proteção integral.
1.3 MEDIDAS DE PROTEÇÃO E MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
Embora o Estatuto seja aplicado a todas as crianças e adolescentes, em regra, há
algumas medidas, denominadas medidas de proteção, que são aplicadas a certos menores, nas
38 AMARANTE, Napoleão Xavier do. Comentário ao art. 103 do ECA. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 339. 39 Cf. BAZÍLIO, Luiz Cavalieri; KREMER, Sonia. Infância, Educação e Direitos Humanos, p. 37. 40 VOLPI, Mario (Org.). O adolescente e o ato infracional. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1999. p. 37.
22
circunstâncias previstas na Lei, denominadas por alguns autores de ‘situações de risco’,
pretendendo fugir da decantada ‘situação irregular’. Já as medidas sócio-educativas serão
aplicadas somente aos adolescentes que cometerem atos catalogados como crime ou
contravenção penal, denominados atos infracionais.41
1.3.1 Das Medidas de Proteção
Definidas no art. 98, do ECA, as medidas de proteção tem como destinatários
crianças e adolescentes, sempre que seus direitos, reconhecidos por Lei, forem ameaçados ou
violados por ação ou omissão da sociedade ou do Estado, por falta, omissão, abuso dos pais
ou responsável, ou ainda, em razão de sua conduta.42
As medidas de proteção previstas no artigo 101, do ECA, são: Art. 101. I – encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; II – orientação, apoio e acompanhamento temporários; III – matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; IV – inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; V – requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; VI – inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; VII – abrigo em entidade; VIII – colocação em família substituta.
Observa Roberto João Elias, que o Juiz da Infância e da Juventude antes de
determinar qual a melhor medida a ser aplicada, deverá por cautela, ouvir os pais ou
responsáveis, e se necessário, outras pessoas que possam esclarecer os fatos que originaram a
sindicância. No caso do inciso I, os pais ou responsáveis deverão ser advertidos,
especialmente se deixarem de cumprir com seus deveres, poderão perder o pátrio poder, a
tutela ou a guarda, e ainda, sofrer ação penal (conforme arts. 244 a 246, do Código Penal).43
As medidas do inciso I ao VI, poderão ser aplicadas aos adolescentes infratores, além
das previstas no art. 98, do ECA, em face do disposto no art. 112, VII44.
41 Cf. ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 103-110. 42 Cf. SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e o ato infracional – garantias processuais e medidas sócio-educativas, p. 29. 43 Cf. ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 107. 44 Art. 112. Verificada a prática do ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas: [...] VII - qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI.
23
Aos menores de 12 anos de idade, incurso na prática de ato infracional, serão
aplicadas as medidas de proteção, conforme artigo in verbis: “Art. 105. Ao ato infracional
praticado por criança corresponderão às medidas previstas no art. 101”. No caso em que a
criança esteja envolvida com a prática infracional, vem-se mostrando a cada dia a necessidade
de aplicá-la conjugadamente com orientação, apoio e acompanhamento temporários (inc. II),
bem como, inclusão em programa específico ou auxílio à família (incs. IV, V e VI), já que
uma considerável parcela de nossas crianças infratoras possui famílias desestruturadas,
carecedoras de ajuda.45
O inciso III será aplicado nos casos de negligência dos responsáveis, por omissão do
Estado, ou ainda, quando o menor se recusa a ir à escola, tendo presente sempre um dos
princípios do sistema de proteção integral que é a obrigatoriedade do ensino fundamental,
essencial ao desenvolvimento da criança e do adolescente.46
No caso da medida do abrigo em entidade, acentua Estela Scheinvar: No caso específico do abrigo (medida VI) este é definido através do parágrafo único do art. 101 como uma medida provisória e excepcional, portanto, uma opção extrema, embora imprescindível, por ser uma retaguarda para a devida aplicação das medidas. [...] O abrigo caracteriza-se por ser apenas um recurso no qual se permanecerá o menor tempo possível. Suas funções são limitadas, já que se coloca como uma etapa eventual no processo de assistência conduzido pelo Conselho Tutelar. O abrigo não é o responsável pela execução das medidas específicas de proteção, mas uma resposta a situações de fato, onde a criança ou o adolescente não contam com um lugar seguro para permanecer momentaneamente. [...] Caso se constate a necessidade de dar abrigo à pessoa por tempo prolongado ou de maneira permanente, esta medida provisória há de ser utilizada como ‘forma de transição para colocação em família substituta’.47
No que tange ao inciso VIII, a família substituta é a melhor opção para o menor que
não pode retornar ou permanecer à sua família de sangue, configurando um novo lar, o que
compele a cogitar o pleno desenvolvimento de sua personalidade.48
De acordo com cada caso concreto, algumas medidas poderão ser substituídas a
qualquer tempo, podendo ocorrer quando elas não atingirem o objetivo ou pelo agravamento
da situação, bem como, cessar de acordo com o progresso realizado. Necessário se faz
considerar na aplicação de qualquer medida de proteção, “o universo bio-psicossocial
45 Cf. MOUSNIER, Conceição. Comentário ao art. 101 do ECA. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 323-324. 46 Cf. ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 108. 47 SCHEINVAR, Estela. Comentário ao art. 101 do ECA. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 325. 48 Cf. ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 108.
24
daqueles que a sofrerão, bem como as questões estruturais do País, para não a encararmos
como a solucionadora dos problemas sociais concernentes à criança e ao adolescente”.49
1.3.2 Das Medidas Sócio-Educativas
Para os adolescentes autores de ato infracional são aplicadas as medidas previstas no
art. 112, do ECA, denominadas sócio-educativas, são elas: Art. 112. I – advertência; II – obrigação de reparar o dano; III – prestação de serviço à comunidade; IV – liberdade assistida; V – inserção em regime de semiliberdade; VI – internação em estabelecimento educacional; VII – qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI.
A advertência (art. 115, do ECA50) é a medida mais simples e usual aplicada ao
menor, sendo contudo, revestida de formalidades: feita verbalmente pelo Juiz da Infância e da
Juventude – não podendo delegar tal função a quem quer que seja – deve ser reduzida a termo
e assinada. O ideal é que estejam presentes além do adolescente, os pais e o responsável. A
admoestação em questão deve respeitar o adolescente, sendo esclarecedora, ressaltando as
conseqüências caso seja reincidente na prática de atos infracionais, bem como, esclarecer aos
pais ou responsáveis a possibilidade de perder o pátrio-poder ou serem destituídos da tutela ou
da guarda. Cabe a estes prestar toda a assistência material, moral e educacional ao menor.51
Poderá ser aplicada desde que existam provas suficientes da materialidade e da
autoria (art. 114, parágrafo único52).
Via de regra, a advertência deve destinar-se em casos de infrações leves, tanto quanto
à sua natureza ou quanto às suas conseqüências, e para adolescentes que não registrem
antecedentes infracionais.53
49 CASTRO, Lúcia Maria Xavier de. Comentário aos arts. 99 e 100 do ECA. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 320. 50 Art. 115. A advertência consistirá em admoestação verbal, que será reduzida a termo e assinada. 51 Cf. ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 124. 52 Art. 114. A imposição das medidas previstas nos incisos II a VI do art. 112 pressupõe a existência de provas suficientes da autoria e da materialidade da infração, ressalvada a hipótese de remissão, nos termos do art. 127. Parágrafo único. A advertência poderá ser aplicada sempre que houver prova suficiente da materialidade e indícios suficientes da autoria. 53 Cf. LIMA, Miguel Moacyr Alves. Comentário ao art. 115 do ECA. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 390.
25
A obrigação de reparar o dano (art. 116, do ECA54) pressupõe um prejuízo
material a vítima. A propriedade é um direito garantido pela Constituição, sendo que,
qualquer ato ilícito causador de prejuízos deve ser ressarcido a vítima. Quando for possível, o
objeto da infração deverá ser restituído, porém, se o ato causou algum dano é natural que haja
uma compensação em dinheiro, evidentemente se o adolescente possuir bens. Caso contrário,
poderá o Juiz aplicar outra medida sócio-educativa, como prestar serviços à vítima, sem
prejuízo ao disposto no art. 112, § 2º, que dispõe: “Em hipótese alguma e sob pretexto algum,
será admitida a prestação de trabalho forçado”.55
No que concerne ao ato infracional cometido pelo menor, responderão pela reparação
civil os pais, tutores ou curadores, nos termos do art. 932, I e II, do Código Civil56, nada
impedindo que sejam acionados pela vítima prejudicada, por danos causados tanto por
crianças como por adolescentes. Encontra-se neste dispositivo, de acordo com Roberto João
Elias, uma exceção em que se pode aplicar medida sócio-educativa à criança.57
A prestação de serviços à comunidade (art. 117, do ECA58), como comenta
Augusto César da Luz Cavalcante: [...] é uma das medidas sócio-educativas que se reveste, hoje, de um grande e profundo significado pessoal e social para o (a) adolescente autor (a) de ato infracional. É interessante notar quanto à abrangência educativa e social da medida, a sua contemporaneidade com relação à profunda e fértil discussão que hoje se delineia e que diz respeito à prevalência da caracterização da pena, de maneira diversa da privação de liberdade, considerada no teor de diversos estudos e pesquisas como falida e ineficaz no bojo dos atuais sistemas penais. 59
A medida não poderá exceder o período de seis meses, nada impedindo que sofra
cumulativamente outra medida idêntica se praticar outra ação no período, sendo cumprida em
seguida à primeira. O artigo indica os locais onde os serviços deverão ser prestados, evitando
lugares que por qualquer razão sejam maléficos ao adolescente, tanto no ponto de vista físico
54 Art. 116. Em se tratando de ato infracional com reflexos patrimoniais, a autoridade poderá determinar, se for o caso, que o adolescente restitua a coisa, promova o ressarcimento do dano, ou, por outra forma, compense o prejuízo da vítima. Parágrafo único. Havendo manifesta impossibilidade, a medida poderá ser substituída por outra adequada. 55 Cf. ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 124. 56 Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil: I – os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia; II – o tutor e o curador, pelos pupilos curatelados, que se acharem nas mesmas condições; 57 Cf. ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 125. 58 Art. 117. A prestação de serviços comunitários consiste na realização de tarefas gratuitas de interesse geral, por período não excedente a 6 (seis) meses, junto a entidades assistenciais, hospitais, escolas e outros estabelecimentos congêneres, bem como em programas comunitários ou governamentais. Parágrafo único. As tarefas serão atribuídas conforme as aptidões do adolescente, devendo ser cumpridas durante jornada máxima de 8 (oito) horas semanais, aos sábados, domingos e feriados ou em dias úteis, de modo a não prejudicar a freqüência à escola ou à jornada normal de trabalho. 59 CAVALCANTE, Augusto César da Luz. Comentário ao art. 112 do ECA. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 400.
26
como moral. Deverão ser observadas as aptidões de cada adolescente, restringindo
obrigatoriamente há oito horas semanais, em horários que não venham prejudicar a escola ou
a jornada de trabalho.60
Outra medida sócio-educativa prevista é a liberdade assistida (art. 118, do ECA61),
geralmente aplicada a menores reincidentes em infrações leves, visando a manutenção do
adolescente com sua família. O acompanhamento é feito geralmente por psicólogos ou
assistentes sociais, designados pelo Juiz, podendo ser substituídos a qualquer tempo caso não
cumpram suas obrigações.62
Seguindo esta esteira, veja-se ensinamento de Roberto João Elias: Ao se preceituar somente sobre o prazo mínimo, presume-se que a medida poderá ser fixada por quanto tempo o Juiz da Infância e da Juventude considerar necessário. [...] Se por ventura, a medida não produzir os efeitos desejados, e o adolescente incidir em práticas infracionais, dever-se-á aplicar-lhe, se for o caso, a semiliberdade ou a internação [...].63
A semiliberdade (art. 120, do ECA64) é o regime previsto onde o adolescente
permanece internado, podendo entretanto, realizar atividades externas, como: escolarização e
profissionalização. Tais atividades são inerentes a esta espécie de medida, independente de
autorização judicial, baseada em estudo multiprofissional que observará sua conveniência.65
A medida poderá ser aplicada desde o início ou como forma de transição para o meio
aberto, caso o adolescente tenha sofrido a medida de internação. Por implicar privação de
liberdade, só pode ser aplicada mediante o devido processo legal. O § 2° se refere à questão
do prazo da medida de semiliberdade não ser determinado, aplicando-se, no que couber, as
disposições referentes à internação.66
60 Cf. ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 126. 61 Art. 118. A liberdade assistida será adotada sempre que se afigurar a medida mais adequada para o fim de acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente. § 1° A autoridade designará pessoa capacitada para acompanhar o caso, a qual poderá ser recomendada por entidade ou programa de atendimento. § 2º A liberdade assistida será fixada pelo prazo mínimo de 6 (seis) meses, podendo a qualquer tempo ser prorrogada, revogada ou substituída por outra medida, ouvido o orientador, o Ministério Público e o defensor. 62 Cf. SMANIO, Gianpaolo Poggio. Interesses Difusos e Coletivos, p. 33. 63 ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 128. 64 Art. 120. O regime de semiliberdade pode ser determinado desde o início, ou como forma de transição para o meio aberto, possibilitada a realização de atividades externas, independentemente de autorização judicial. § 1° É obrigatória a escolarização e a profissionalização, devendo, sempre que possível, ser utilizados os recursos existentes na comunidade. § 2º A medida não comporta prazo determinado, aplicando-se, no que couber, as disposições relativas à internação. 65 Cf. ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 131. 66 Cf. ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 130-131.
27
O art. 121, do ECA, trata da medida de internação. É aplicada quando o menor
comete uma infração de maior gravidade ou é reincidente. Assim dispõe: Art. 121. A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. § 1º Será permitida a realização de atividades externas, a critério da equipe técnica da entidade, salvo expressa determinação judicial em contrário. § 2º A medida não comporta prazo determinado, devendo sua manutenção ser reavaliada, mediante decisão fundamentada, no máximo a cada seis meses. § 3º Em nenhuma hipótese o período máximo de internação excederá a três anos. § 4º Atingido o limite estabelecido no parágrafo anterior, o adolescente deverá ser liberado, colocado em regime de semi-liberdade ou de liberdade assistida. § 5º A liberação será compulsória aos vinte e um anos de idade. § 6º Em qualquer hipótese a desinternação será precedida de autorização judicial, ouvido o Ministério Público.
Conforme leciona Antônio Carlos Gomes da Costa: “O grande avanço deste artigo
está na definição da internação como ‘medida privativa da liberdade’, ou seja, o educando
submetido a esta modalidade de ação sócio-educativa está privado do direito de ir e vir”.67
É medida excepcional, aplicada de forma restrita em casos específicos, de cunho
pedagógico e não punitivo, cumprida por longo tempo e devendo ser reavaliada a cada 6 (seis)
meses, não podendo exceder o período máximo de 3 (três) anos. Aos 21 anos de idade a
liberação será compulsória advertem Munir Cury, Paulo Affonso Garrido e Jurandir Norberto
Marçura: “Diferente, contudo, é o caso do adolescente que, internado, comete outra infração
penal grave. Aí, então, parece-nos que, tratando-se de outro ato, seja conveniente aplicar
medida de internação, que, somada à primeira, pode exceder o período de três anos”.68
É permitida a realização de atividades externas, desde que a decisão que determinou
a internação não dispôs em contrário, cabendo a equipe técnica a faculdade de decidir pelas
atividades adequadas a cada adolescente. A desinternação só poderá ser autorizada pelo Juiz
da Infância e da Juventude, sendo que o Ministério Público sempre deverá ser ouvido.69
1.4 CONCESSÃO DA REMISSÃO
67 COSTA, Antônio Carlos Gomes da. Comentário ao art. 121 do ECA. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 414-415. 68 CURY, Munir; GARRIDO, Paulo Affonso; MAÇURA, Jurandir Norberto. Estatuto da Criança e do Adolescente anotado. São Paulo: Revista dos Tribunais apud ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 133. 69 Cf. ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 121-122.
28
O Estatuto da Criança e do Adolescente estabeleceu a figura da remissão sob duas
modalidades, sendo uma de atribuição do Ministério Público (art. 126, caput) e outra de
competência do juiz (arts. 126, parágrafo único e 127).
Trata o art. 126, do ECA70 sobre o instituto da remissão. O instituto é facultado ao
representante do Ministério Público, o Curador da Infância e da Juventude, a sua concessão,
antes de iniciado o procedimento judicial. O curador, ao examinar a sindicância ou inquérito
policial, observando a participação do adolescente e as circunstâncias do fato, deverá aplicar
ou não o instituto.71
Sob esse pálio, transcreve-se a lição de Jurandir Norberto Marçura: A apresentação do adolescente é feita diretamente ao representante do Ministério Público, juntamente com o auto de apreensão, boletim de ocorrência ou relatório policial, sendo ouvido informalmente, assim como seus pais, vítima e testemunhas. Em seguida, poderá o promotor tomar uma dentre as seguintes providências: a) promover o arquivamento dos autos; b) conceder a remissão, com ou sem inclusão de medida; e c) representar à autoridade judiciária para efeito da aplicação de medida sócio-educativa.72
Ensina Júlio Fabbrini Mirabete: “Com tal prática procura-se, em casos especiais,
evitar ou atenuar os efeitos negativos da instauração ou continuação do procedimento na
administração da Justiça de Menores, como, p.ex., o estigma da sentença”.73
A remissão, nessa hipótese, tem sentido de exclusão do procedimento, quer dizer,
uma espécie de perdão concedido pelo Ministério Público (art. 201, I, do ECA74). Reserva-se
a remissão às hipóteses em que a infração cometida não possui caráter grave, quando o menor
não apresentar antecedentes e quando a família, escola e outras instituições de controle social
não institucional já tiverem reagido de forma construtiva, ou venham a agir dessa forma.75
A segunda, de competência exclusiva do Poder Judiciário implica, necessariamente,
no início do procedimento, concedida como forma de suspender ou extinguir o processo.
70 Art. 126. Antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de ato infracional, o representante do Ministério Público poderá conceder remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e conseqüências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional. Parágrafo único. Iniciado o procedimento, a concessão da remissão pela autoridade judiciária importará na suspensão ou extinção do processo. 71 Cf. ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 140. 72 MARÇURA, Jurandir Norberto. A remissão no Estatuto da Criança In: PEREIRA, Tânia da Silva. Estatuto da Criança e do Adolescente: estudos sócio-jurídicos. São Paulo: Renovar, 1992. p. 218 apud ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 141. 73 MIRABETE, Júlio Fabbrini. . Comentário ao art. 126 do ECA. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 425. 74 Art. 201. Compete ao Ministério Público: I - conceder a remissão como forma de exclusão do processo. 75 Cf. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Comentário ao art. 126 do ECA. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 425.
29
Nessa hipótese, conforme dispõe o art. 148, II, do ECA76, a concessão da remissão com ou
sem aplicação das medidas previstas em lei será da autoridade judiciária, ouvindo o
representante do Ministério Público (art. 186, § 1º77), podendo ser aplicada em qualquer fase
do processo.78
76 Art. 148. A Justiça da Infância e da Juventude é competente para: [...] II - conceder a remissão, como forma de suspensão ou extinção do processo; 77 Art. 186. Comparecendo o adolescente, seus pais ou responsável, a autoridade judiciária procederá à oitiva dos mesmos, podendo solicitar opinião de profissional qualificado. § 1º Se a autoridade judiciária entender adequada a remissão, ouvirá o representante do Ministério Público, proferindo decisão. 78 Cf. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Comentário ao art. 126 do ECA. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 426.
30
2 A MEDIDA DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE DO ADOLESCENTE INFRATOR:
ASPECTOS JURÍDICOS
Este capítulo tem como objetivo principal tratar da medida sócio-educativa de
internação aplicada ao adolescente que praticar ato infracional, assim definido na legislação
estatutária como sendo as condutas típicas descritas como crime ou contravenção no Código
Penal. Cuida-se também em explicitar os princípios e as características do Estatuto da Criança
e do Adolescente, bem como as garantias individuais e processuais inerentes ao adolescente
interno.
2.1 MEDIDA DE INTERNAÇÃO: ASPECTOS GERAIS
Quando o ato infracional é cometido com violência ou grave ameaça à pessoa,
resultado das características do fato apurado e não das características subjetivas da
personalidade do autor, aplicar-se-á tal medida.79 Difere o Estatuto do Código de Menores,
quando a referida medida poderia ser aplicada em qualquer infração cometida ou até, por
desvio de conduta.80
O art. 122, do ECA81, estabelece taxativamente as hipóteses em que a medida
privativa de liberdade poderá ser aplicada, quais sejam: ato infracional com grave ameaça ou
violência; adolescente reincidente em cometimento de infrações graves, e; descumprimento
reiterado e injustificável de outra medida sócio-educativa anteriormente aplicada (exceto
medida de advertência, que esgota-se por si mesma).82
Por tratar a internação de medida extrema, só será aplicada quando não houver outra
medida sócio-educativa mais adequada, quando cumpridas as condições elencadas no art. 122,
do ECA.
Nessa esteira, Roberto João Elias:
79 Cf. MENDES, Emílio García. Comentário ao art. 121 do ECA. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 416. 80 Cf. ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 134. 81 Art. 122. A medida de internação só poderá ser aplicada quando: I - tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência a pessoa; II - por reiteração no cometimento de outras infrações graves; III - por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta. § 1º O prazo de internação na hipótese do inciso III deste artigo não poderá ser superior a três meses. § 2º Em nenhuma hipótese será aplicada a internação, havendo outra medida adequada. 82 Cf. ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 135.
31
Se houver desrespeito à legislação, decretando-se a medida em casos indevidos, é cabível o habeas corpus para corrigir a injustiça. É que, conquanto a medida deva sempre ter o caráter pedagógico, mesmo assim, pelo fato de ser privativa de liberdade, representa uma violação ao princípio da legalidade. Assim, ela só poderá ser aplicada mediante o devido processo legal e obedecendo aos tipos indicados na lei.83
Na lição de Jurandir Norberto Maçura, Munir Cury e Paulo Affonso Garrido é
exaustivo o rol do art. 122, não sendo possível a internação fora das hipóteses consignadas.84
2.2 PRINCÍPIOS NORTEADORES DA MEDIDA PRIVATIVA DE LIBERDADE
Posiciona-se Antônio Carlos Gomes da Costa sobre os princípios norteadores da
medida de internação: Três são os princípios que condicionam a aplicação da medida privativa de liberdade: o princípio da brevidade enquanto limite cronológico; o princípio da excepcionalidade, enquanto limite lógico no processo decisório acerca de sua aplicação; e o princípio do respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, enquanto limite ontológico, a ser considerado na decisão e na implementação da medida.85
No mesmo diapasão, completa Valter Kenji Ishida: [...] (1) o da brevidade, no sentido de que a medida deve perdurar tão somente para a necessidade de readaptação do adolescente; (2) o da excepcionalidade, no sentido que deve ser a última medida a ser aplicada pelo Juiz quando da ineficácia de outras; e (3) o do respeito a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, visando manter condições gerais para o desenvolvimento do adolescente, por exemplo, garantindo seu ensino e profissionalização.86
O caráter excepcional e breve da medida surge dos provados efeitos negativos da
privação de liberdade dos adolescentes que se encontram em condição peculiar de
desenvolvimento.87
Sendo medida restritiva de liberdade, a internação se subordina aos princípios da
excepcionalidade e da brevidade por tratar-se da mais severa dentre todas as medidas sócio-
83 ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 135. 84 Cf. MAÇURA, Jurandir Norberto; CURY, Munir; GARRIDO, Paulo Affonso. Estatuto da Criança e do Adolescente. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 65 apud ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: doutrina e jurisprudência, p. 194. 85 COSTA, Antônio Carlos Gomes da. Comentário ao art. 121 do ECA. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 415. 86 ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: doutrina e jurisprudência. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 186. 87 Cf. MENDES, Emílio García. Comentário ao art. 121 do ECA. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 413.
32
educativas, e é certo que, na prática, acaba sendo mais rigorosa que o cumprimento de certas
penas criminais, como a pena de multa, as penas alternativas e o regime aberto.88
2.3 GARANTIAS INDIVIDUAIS
O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê em seu art. 106, a possibilidade de
internamento cautelar: Art. 106. Nenhum adolescente será privado de sua liberdade senão em flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente. Parágrafo único. O adolescente tem direito à identificação dos responsáveis pela sua apreensão, devendo ser informado acerca de seus direitos.
Somente o adolescente será passível de tal medida, já que a criança jamais será
privada de sua liberdade. O dispositivo em questão tem base no art. 5º, inc. LXI, da Carta
Magna que expressa: “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita
fundamentada de autoridade judiciária competente [...]”. Tal garantia estende-se ao menor,
embora seja ele inimputável e não responda por crime.89
Sob esse pálio, comenta Péricles Prade: Houve no caput do art. 106, evidente adaptação do texto transcrito, já que, em relação ao adolescente, por ser inimputável, em se tratando de pessoa entre doze e dezoito anos (ECA, art. 2º), não pode ser preso em flagrante delito, ocorrendo, tão só, flagrância de ato infracional, conquanto seja a correlata conduta anti-social descrita como crime ou contravenção. Demais disso, não se refere o artigo em comento a preso em flagrante, uma vez que inexiste voz de prisão [...].90
Oportuno, a respeito do flagrante, ensina Edgard Magalhães Noronha: “[...] é o caso
em que o detido é aquele que está praticando infração ou que acaba de praticá-la, assim como
aquele que é perseguido após o ato e detido, embora tenha passado razoável lapso de tempo,
sendo que alguns doutrinadores fixam em vinte e quatro horas”.91
Respeitando à ordem escrita, o flagrante deve partir da autoridade judiciária
competente, no caso, o Juiz da Infância e da Juventude, deve-se obrigatoriamente
fundamentar, explicitando os motivos relevantes que levaram a sua aplicação, como a
88 Cf. QUEIROZ, Ari Ferreira de. Direito da Criança e do Adolescente. 5. ed. Goiânia: Instituto de Ensino e Pesquisa Científica, 2005. p. 141. 89 Cf. ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 113. 90 PRADE, Péricles. Direitos e Garantias Individuais da Criança e do Adolescente. Florianópolis: Obra Jurídica, 1995. p. 18. 91 NORONHA, Edgard Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva. p. 153-155 apud ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 113.
33
presença de provas da prática do ato infracional e indícios suficientes de autoria.92 A ausência
de fundamentação desta decisão levará a sua nulidade, já que devem ficar claros os motivos
de fato e de direito que levaram o magistrado a tomar tal deliberação, que tem caráter
excepcional.93
A identificação dos responsáveis por sua apreensão indica diretamente à
respeitabilidade de que o adolescente deve ser alvo, assim como, ser informado de seus
direitos, podendo exigir que seus pais ou responsáveis sejam comunicados ou que lhe seja
nomeado um advogado, para pugnar por sua libertação.94
O art. 107, do Estatuto, trata das comunicações devidas, dispondo: Art. 107. A apreensão de qualquer adolescente e o local onde se encontra recolhido serão incontinenti comunicados à autoridade judiciária competente e a família do apreendido ou à pessoa por ele indicada. Parágrafo único. Examinar-se-á, desde logo e sob pena de responsabilidade, a possibilidade de liberação imediata.
Cumpre, por derradeiro, destacar o ensinamento de Péricles Prade: O art. 107, em seu caput, ao convalidar a garantia-direito da comunicabilidade (de natureza criminal preventiva), ou seja, pertinente à comunicação da constrição da liberdade física e do local onde se encontra o constrito, virtualiza uma réplica do inc. LXIII, do art. 5º da CF, mas não se limita a substituir os termos ‘prisão’ por apreensão, ‘qualquer pessoa’ por qualquer adolescente, ‘preso’ por apreendido, em atenção à tecnicidade afeiçoada ao singular ramo do Direito que trata dos interesses das pessoas de idade inferior a 18 anos. Foi além, dando ao advérbio de modo ‘imediatamente’ um sentido temporal ainda mais restrito, ao se utilizar da expressão incontinenti no que se refere à obrigação do autor da apreensão de comunicá-la (bem assim o local do recolhimento) à autoridade judiciária competente. [...] A comunicação há de ser feita com a máxima celeridade, a fim de não se prolongar coação eventualmente injusta ao estado de liberdade do indivíduo.95
As comunicações são devidas buscando propiciar, imediatamente, uma proteção ao
adolescente, cabendo ao Juiz da Infância e da Juventude observar a legalidade da apreensão,
caso não seja, de pronto deverá liberar o menor. Também deverá a autoridade policial,
dependendo do ato praticado e das circunstâncias, examinar a possibilidade de liberação
imediata. Nos casos menos graves, não haverá razão para mantê-lo detido, quando os pais ou
responsáveis se comprometem a apresentar o menor em juízo. Em caso de criança, a mesma
deverá ser encaminhada ao Conselho Tutelar.96
92 Cf. ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 114. 93 Cf. SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e o ato infracional – garantias processuais e medidas sócio-educativas, p. 51. 94 Cf. ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 114. 95 PRADE, Péricles. Comentário ao art. 107 do ECA. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 356. 96 Cf. ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 115.
34
Outra garantia individual encontra-se elencada no art. 109, do ECA, e assim
prescreve: “O adolescente civilmente identificado não será submetido a identificação
compulsória pelos órgãos policiais, de proteção e judiciais, salvo para efeito de confrontação,
havendo dúvida fundada”.
Deverá o referido artigo ser interpretado à luz do art. 5º, inc. LVIII, da CF97, que ao
ser editado, superou a aplicação da Súmula 568 do Supremo Tribunal Federal, que
mencionava: “A identificação criminal não constitui constrangimento ilegal, ainda que o
indiciado já tenha sido identificado civilmente”.98
A exceção permitida, quando se refere à confrontação, destina-se ao caso de
adolescentes que já escolados na senda dos atos infracionais, utilizam-se de falsa
identificação. Ao mesmo tempo em que deverá ser evitado o estado vexatório ao adolescente,
não se pode, em caso de dúvida, deixar de tomar as medidas necessárias para identificá-lo
corretamente.99
Assim, em face deste dispositivo, adverte Péricles Prade: Lamenta-se que o Estatuto da Criança e do Adolescente, justamente, tenha inaugurado o rol das possíveis exceções à regra geral, previsto na parte final do inc. LVIII, do art. 5º da CF. E note-se que, nos termos do art. 109, quando ocorrerem tais hipóteses, a identificação será compulsória, com o gravame de constrição moral superior à época do inaplicável art. 6° (inc. VIII) do CPP, cuja providência era facultativa, como se deduz da interpretação literal do verbo ‘poderá’.100 (grifo nosso)
Por existir certa subjetividade no artigo 109 do ECA, no que tange a expressão
‘dúvida fundada’, se faz necessário maior atenção por parte do Ministério Público e demais
movimentos de defesa, para assegurar a garantia dos direitos individuais.101
2.3.1 Internação Provisória
97 Art. 5° Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] LVIII - o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei; [...] 98 PRADE, Péricles. Comentário ao art. 109 do ECA. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 363. 99 Cf. SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e o ato infracional – garantias processuais e medidas sócio-educativas, p. 50. 100 PRADE, Péricles. Comentário ao art. 109 do ECA. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 363. 101 Cf. VOLPI, Mário. Comentário ao art. 109 do ECA. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 365.
35
Além da internação como medida sócio-educativa, admite-se a internação provisória,
de natureza cautelar, para que o adolescente aguarde o julgamento em estabelecimento
adequado.102
Relativamente ao prazo de internamento provisório, estabelece o ECA: Art. 108. A internação, antes da sentença, pode ser determinada pelo prazo máximo de quarenta e cinco dias. Parágrafo único. A decisão deverá ser fundamentada e basear-se em indícios suficientes de autoria e materialidade, demonstrada a necessidade imperiosa da medida. Art. 183. O prazo máximo e improrrogável para a conclusão do procedimento, estando o adolescente internado provisoriamente, será de quarenta e cinco dias.
Leciona Válter Kenji Ishida: “Tecnicamente, a internação provisória denomina-se
‘atendimento acautelatório para adolescentes em conflito com a lei’”. Ao estipular o prazo
máximo de 45 (quarenta e cinco) dias para a internação provisória, o ECA dimensionou o
período para finalizar o procedimento (sindicância) para a aplicação da medida sócio-
educativa, equiparando-se ao prazo de 81 (oitenta e um) dias do processo penal para o réu
preso.103
Este prazo é concernente à liberação do menor anterior à sentença, que é proferida no
procedimento de apuração do ato infracional. O prazo máximo de 45 (quarenta e cinco) dias é
improrrogável e tem como dies a quo a data da apreensão do adolescente.104
Nesse contexto, comenta Mário Volpi: A determinação de permitir a internação de adolescente acusado de ato infracional mesmo antes de definida a sentença é uma medida, de certo modo, preventiva, pois visa a assegurar a integridade física e moral do acusado e, há quem diga, proteger a sociedade. Sabendo-se da lentidão da Justiça, esta medida poderia ser pretexto para legitimar a arbitrariedade; entretanto, fica assegurado o prazo máximo de 45 dias para a definição da sentença.105
O parágrafo único, do art. 108, enfatiza uma exigência constitucional que não é um
direito individual propriamente típico, assegurado no art. 93, inc. IX, da Constituição da
República, no qual dispõe: “[...] serão públicos e fundamentadas todas as decisões, sob pena
de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em
determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes”. Deverá ainda,
102 Cf. QUEIROZ, Ari Ferreira de. Direito da Criança e do Adolescente, p. 153. 103 Cf. ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: doutrina e jurisprudência, p. 163. 104 Cf. PRADE, Péricles. Direitos e Garantias Individuais da Criança e do Adolescente, p. 37-38. 105 VOLPI, Mário. Comentário ao art. 108 do ECA. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 361.
36
basear-se em indícios suficientes de autoria e materialidade, demonstrada a necessidade
imperiosa da medida.106
A fundamentação torna-se relevante já que determinará a legalidade da internação
provisória. Caso esta seja ilegal, pode-se impetrar o habeas corpus, em defesa a liberdade do
menor, baseado no art. 5º, inc. LVIII, da CF, sendo concedido sempre que alguém sofrer
coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. A internação
poderá ser determinada de ofício ou a requerimento do Ministério Público.107
Dentro deste período, 45 dias, considerando o caráter impositivo da norma, cria-se o
compromisso com a conclusão do processo, tendo o Estatuto elevado à condição de crime o
descumprimento, injustificado, de qualquer espécie de prazo fixado em benefício ao
adolescente privado de liberdade, impondo o Estatuto no art. 235108, a cominação de pena de
6 (seis) meses a 2 (dois) anos para a autoridade que desrespeitar.109
2.4 GARANTIAS PROCESSUAIS EXPLICITADAS NO ECA
O art. 110, do ECA, estatui que: “Nenhum adolescente será privado de sua liberdade
sem o devido processo legal”. O princípio do devido processo legal é uma garantia processual
de natureza penal, sendo reprodução literal do art. 5º, LIV, da CF/88, limitando-se a privação
de liberdade. Exclui-se a privação dos bens, porque na maioria dos casos o adolescente não os
possui. Caso os possua, o preceito constitucional o alcança, já que o Estatuto não faz
referência.110
Como leciona Vicente Greco Filho: A garantia do due process of law é dupla. O processo, em primeiro lugar, é indispensável à aplicação de qualquer pena, conforme a regra nulla poena sine judicio, significando o devido processo como o processo necessário. Em segundo lugar o devido processo legal significa o adequado processo, ou seja, o processo que assegure a igualdade das partes, o contraditório e a ampla defesa.111
106 Cf. PRADE, Péricles. Direitos e Garantias Individuais da Criança e do Adolescente, p. 39. 107 Cf. ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 115. 108 Art. 235. Descumprir, injustificadamente, prazo fixado nesta Lei em benefício de adolescente privado de liberdade: Pena - detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos. 109 Cf. SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e o ato infracional – garantias processuais e medidas sócio-educativas, p. 50. 110 Cf. PRADE, Péricles. Direitos e Garantias Individuais da Criança e do Adolescente, p. 49-50. 111 GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 54 apud ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: doutrina e jurisprudência, p. 166.
37
E ainda, considerando o ensinamento de Celso Bastos: “O direito ao devido processo
legal é mais uma garantia do que propriamente um direito. Por ele visa-se proteger a pessoa
contra a ação arbitrária do Estado. Colima-se, portanto, a aplicação da lei”.112
Isso pressupõe que ninguém, por mais relevantes que sejam as razões fáticas, pode
ser afetado em sua esfera jurídica, deixando de receber completa proteção por meio do
indispensável processo legal. Eis a importância postulada no art. 110, do ECA. Do contrário,
admitir-se-á a aplicação de uma medida grave, como a internação ou mesmo uma simples
reavaliação, sem o pressuposto da verificação da existência da própria infração.113
De acordo com o princípio do devido processo legal, entende o Superior Tribunal de
Justiça à necessidade da oitiva do menor infrator para regressão da medida sócio-educativa,
de acordo com a Súmula 265: “É necessária a oitiva do menor infrator antes de decretar-se a
regressão da medida sócioeducativa”.114
À respeito do devido processo legal, apreciou o Egrégio TJSC: ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ATO INFRACIONAL. FURTO. PRETENSÃO SÓCIO-EDUCATIVA PRESCRITA. RECONHECIMENTO DE OFÍCIO. RECURSO PREJUDICADO. "Submetendo os infratores a princípios e normas penais comuns para a caracterização do ato infracional (ECA, art. 103), sujeitando-os a medidas restritivas de direitos e privativas de liberdade (CF, art. 227, § 3º, V), seria a negação dos princípios garantistas do Estatuto (arts. 6º e 110) e da Constituição (CF, art. 227) recusar-lhes benefícios e causas que extinguem a punibilidade. A ação de pretensão sócio-educativa que visa a imposição de medidas restritivas de direito e, até privativas de liberdade, à semelhança da ação de pretensão punitiva, é prescritível. Não admitir a prescrição na órbita dos atos infracionais implicaria tratar adolescentes inimputáveis penalmente com maior rigor que os adultos" (Apelação Criminal n. 99.000762-6, Rel. Des. Amaral e Silva).115
A lei, atendendo ao princípio do devido processo legal, da igualdade das partes, do
contraditório e da ampla defesa, estipulou mecanismos para que o adolescente sindicado possa
alegar e provar sua inocência.116
Assim, nos incisos do art. 111, do ECA117, estão relacionadas 6 (seis) garantias
processuais específicas. Conforme lição de Ana Beatriz Braga:
112 BASTOS, Celso. Comentário à Constituição Federal. São Paulo: Saraiva. p. 261 apud PRADE, Péricles. Direitos e Garantias Individuais da Criança e do Adolescente, p. 53. 113 Cf. ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: doutrina e jurisprudência, p. 167. 114 Cf. ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: doutrina e jurisprudência, p. 166. 115 SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação n.º 2002.018089-6, Primeira Câmara Criminal, Relator Desembargadora Maria do Rocio Luz Santa Ritta. Data da Decisão: 29 de out. de 2002. Data da Publicação: 14 de nov. de 2002. 116 Cf. ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: doutrina e jurisprudência, p. 169. 117 Art. 111. São asseguradas ao adolescente, entre outras, as seguintes garantias: I - pleno e formal conhecimento da atribuição do ato infracional, mediante citação ou meio equivalente; II - igualdade na relação processual, podendo confrontar-se com vítimas e testemunhas e produzir todas as provas necessárias à sua defesa;
38
Tais garantias, por não serem numerus clausus, são exemplificativas e põem ênfase no sistema processual protetor do adolescente, o que possibilita, sempre que necessário, a aplicação de outras admitidas pelo nosso ordenamento jurídico ou adotadas por declarações, pactos, convenções ou tratados cujos textos foram aprovados internamente pelo Brasil. Garantias que, quase sempre, de forma simultânea integram diplomas distintos.118
Veja-se, em seguida, por ordem, as referidas garantias.
A primeira delas diz respeito à garantia processual (art. 111, I) do pleno e formal
conhecimento da atribuição de ato infracional, mediante citação ou meio equivalente. Decorre
da garantia constitucional prevista na primeira parte do inc. IV, do § 3°, art. 227, da Carta
Magna.119
A citação, mais do que uma garantia processual é uma garantia constitucional.
Apóia-se como forma de efetivar as regras do Código de Processo Penal, sem prejuízo a
aplicação supletiva do Código de Processo Civil, no que couber.120
Dispondo sobre a citação, salienta Marcel Hope: A lei processual prevê citações pelo Oficial de Justiça, pelo correio e ainda por edital. Em todas elas a ordem de citação deverá conter vários requisitos; identificação do juízo, partes e demanda; finalidade da citação, prazo, etc., de modo a deixar inequívoca a ciência do demandado. Nada obsta, ainda, que o próprio Escrivão proceda a citação quando já houver ordem neste sentido e o citando encontrar-se em Cartório.121
Outro meio equivalente poderá ser a notificação ou diversa forma que possibilite a
ciência total do ato atribuído, dispondo o art. 184, § 1°, que após o oferecimento da
representação do Ministério Público, tanto o adolescente quanto seus pais ou responsável
serão cientificados e notificados a comparecer à audiência, acompanhados por advogado.122
III - defesa técnica por advogado; IV - assistência judiciária gratuita e integral aos necessitados, na forma da lei; V - direito de ser ouvido pessoalmente pela autoridade competente; VI - direito de solicitar a presença de seus pais ou responsável em qualquer fase do procedimento. 118 BRAGA, Ana Beatriz. Comentário ao art. 111 do ECA. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 369. 119 [...] § 3º O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos: [...] IV - a garantia do pleno e formal conhecimento da atribuição do ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica; 120 Cf. SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e o ato infracional – garantias processuais e medidas sócio-educativas, p. 68. 121 HOPE, Marcel et al. O Estatuto Passado a Limpo: Juizado da Infância e da Juventude. Porto Alegre: Diretoria de Revista e Jurisprudência e outros Impressos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 1992 apud SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e o ato infracional – garantias processuais e medidas sócio-educativas, p. 68. 122 Cf. SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e o ato infracional – garantias processuais e medidas sócio-educativas, p. 68.
39
A segunda garantia processual (art. 111, II) concerne à igualdade da relação
processual decorrente dos princípios do contraditório e da ampla defesa, também assegurada
pelo preceito constitucional supra referido, podendo o adolescente produzir toda espécie de
prova em direito admitida para se defender.123
Sobre o Princípio do Contraditório, importante se faz ressaltar o ensinamento de
Fernando da Costa Tourinho Filho: [...] em todo processo acusatório, como nosso, vigora tal princípio, segundo o qual o acusado, isto é, a pessoa contra quem se propõe a ação penal, goza de direito ‘primário e absoluto’ da defesa. O réu deve conhecer a acusação que se lhe imputa para poder contrariá-la, evitando assim, que possa ser condenado sem ser ouvido. [...] Assim, de acordo com tal princípio, a defesa não pode sofrer restrições, mesmo porque o princípio supõe completa igualdade entre acusação e defesa.124
Harmoniza-se tal artigo com “o disposto na parte final da regra 7.1 de Beijing,
estatuindo ‘o direito de confrontação com testemunhas e interrogá-las’, estando incluso neste
rol as vítimas, sem prejuízo do mandamento da ampla dilação probatória que lhe está
assegurada”.125
A terceira garantia processual (art. 111, III) é pertinente à defesa técnica por
advogado, tendo também suporte no já referido art. 227, § 3°, inc. IV, da Constituição Federal
e repetido no ECA, em seu art. 207, que impõe a defesa do adolescente por advogado sempre
que lhe for atribuída a autoria de ato infracional. Esta regra parece sobressaltar-se daquela do
art. 186, § 2°, do mesmo ECA, no qual sugere que apenas nos casos de infração grave haverá
necessidade de nomeação de defensor ao adolescente, se este estiver desacompanhado de
advogado.126
A propósito do tema, posiciona-se Paulo Afonso Garrido de Paula: Com efeito, o Estatuto garante ao adolescente defesa técnica por advogado (art. 111, III), bem como estabelece a regra de que nenhum adolescente a quem se atribua a prática do ato infracional, ainda que ausente ou foragido, será processado sem defensor (art. 207, caput). Diz a lei, ainda, que, se o adolescente não tiver defensor, ser-lhe-á nomeado pelo juiz (art. cit., §1º). Tais normas decorrem do princípio do contraditório, inserido na Constituição Federal mediante fórmula explicativa de seus elementos integrantes, resumida na expressão defesa técnica por profissional habilitado, contida no art. 227, §3°, IV, da Carta Magna.127
123 Cf. ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 119. 124 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1986. p. 47 apud SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e o ato infracional – garantias processuais e medidas sócio-educativas, p. 69. 125 SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e o ato infracional – garantias processuais e medidas sócio-educativas, p. 69. 126 Cf. SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e o ato infracional – garantias processuais e medidas sócio-educativas, p. 70. 127 PAULA, Paulo Afonso Garrido de apud SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e o ato infracional – garantias processuais e medidas sócio-educativas, p. 71.
40
A quarta garantia (art. 111, IV) compreende a assistência judiciária gratuita e integral
àqueles desprovidos de recursos materiais que não podem suportar o pagamento dos
honorários advocatícios e o ônus do processo. Por isso, jungi-se o dispositivo mencionado ao
inciso LXXIV, do art. 5º, da Carta da República, impondo que “o Estado prestará assistência
jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”, bem como ao
inciso VI, § 3°, art. 227, da CF, no qual estabelece que o direito à proteção abrangerá, entre
outros, o estímulo do Poder Público por meio da assistência jurídica.128
Cabe ao Estado suplementar a carência, equilibrando a relação processual entre as
partes, já que o adolescente pobre, pode ficar sem assistência técnica, tornando o julgamento
injusto e sem imparcialidade, ofendendo diretamente o princípio da igualdade de todos
perante a lei. Além do artigo em questão, o ECA faz referência a tal garantia nos arts. 141, §
1º e 206, parágrafo único129, versam também sobre a matéria, as Regras Mínimas de Beijing,
o Código de Processo Civil, dentre outros.130
A quinta garantia processual (art. 111, IV) instrumentaliza o direito do adolescente
“ser ouvido pessoalmente pela autoridade competente”, que não se restringe apenas ao juiz,
mas ao representante do Ministério Público e ao Defensor Público.131 Tem amparo no
mandamento do amplo acesso á Justiça, art. 141, do ECA e o art. 5º, XXXV, da CF132,
assegurando ao adolescente o direito de ser ouvido, como ato de vontade, para efeito do
exercício de ampla defesa e contraditório.133
A sexta garantia processual (art. 111, VI) corresponde ao direito de, em qualquer fase
do processo, o adolescente solicitar a presença de seus pais ou responsável, devendo ser
atendida “tanto para prestar os esclarecimentos a que se fizerem necessários, como para
128 Cf. PRADE, Péricles. Direitos e Garantias Individuais da Criança e do Adolescente, p. 67-68. 129 Art. 141. É garantido o acesso de toda criança ou adolescente à Defensoria Pública, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, por qualquer de seus órgãos. § 1° A assistência judiciária gratuita será prestada aos que dela necessitarem, através de defensor público ou advogado nomeado. Art. 206. [...] Parágrafo único. Será prestada assistência judiciária integral e gratuita àqueles que dela necessitarem. 130 Cf. PRADE, Péricles. Direitos e Garantias Individuais da Criança e do Adolescente, p. 72. 131 Cf. PRADE, Péricles. Comentário ao art. 111 do ECA. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 374. 132 Art. 5° [...] XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; [...] 133 Cf. SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e o ato infracional – garantias processuais e medidas sócio-educativas, p. 74.
41
prestar a devida assistência moral” imprescindível, tendo em vista a condição peculiar de
pessoa em desenvolvimento.134
2.5 A AVALIAÇÃO INTERDISCIPLINAR E A REAVALIAÇÃO SEMESTRAL
O perfil interdisciplinar do processo de apuração de ato infracional decorre da
própria aplicação da Doutrina da Proteção Integral, já que um laudo técnico com a
intervenção de profissionais de outras áreas de conhecimento, visa dar condições ao Juiz para
melhor decidir a questão e avaliar com segurança sobre a medida sócio-educativa adequada.
Evidentemente, poderá haver circunstâncias que tal providência seja quase inviável, mas a
regra é que haja a intervenção de equipe técnica.135
Tem tomado corpo o entendimento da indispensabilidade do laudo interprofissional,
pronunciando-se a respeito o Desembargador Irineu João da Silva: À equipe interprofissional, órgão auxiliar do Juizado da Infância e da Juventude, formada por médicos, psicólogos, psiquiatras, pedagogos, assistentes sociais, compete, dentre outras atribuições legais, emitir laudos, escritos ou verbais, que possibilitem a melhor adequação entre as medidas sócio-educativas e a conduta censurada do adolescente. Atuando de forma integrada com o Juiz, pode e deve acrescentar as considerações que julgar relevantes ao diagnóstico da mais adequada medida de recuperação e reinserção do jovem ao saudável convívio social, consoante a filosofia da doutrina da proteção integral.136
É o teor do art. 151, do Estatuto da Criança e do Adolescente: Art. 151. Compete à equipe interprofissional, dentre outras atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito, mediante laudos, ou verbalmente, na audiência, e bem assim desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção e outros, tudo sob a imediata subordinação á autoridade judiciária, assegurada a livre manifestação do ponto de vista técnico.
O caráter facultativo da utilização da avaliação há que ceder ante o superior interesse
posto em julgamento, não podendo o julgador negar ao adolescente a “[...] oportunidade de,
através da intervenção de técnicos, verificar-se, sob um olhar psicossocial, suas condições
pessoais e sociais face à decisão que necessariamente será lançada”.137
134 Cf. ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 120. 135 Cf. SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e o ato infracional: garantias processuais e medidas sócio-educativas, p. 86. 136 SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de instrumento n.º 2003.017668-3, Segunda Câmara Criminal, Relator Desembargador Irineu João da Silva. Data da Decisão: 28 de set. de 2004. Data da Publicação: 20 de out. de 2004. 137 SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e o ato infracional: garantias processuais e medidas sócio-educativas, p. 86.
42
Fica estabelecido ainda, que a cada 3 (três) meses, no máximo, a situação de cada
internado deverá ser revista, devendo a Autoridade Judiciária estabelecer ou não a
necessidade da manutenção da internação, em decisão fundamentada. Nada obsta que o
período máximo preconizado pela lei (art. 121, § 2°, do ECA) tenha periodicidade menor que
a semestral, onde o Juízo responsável após ouvir a equipe técnica da unidade de internamento
de seu próprio quadro do juizado, o Ministério Público e a defesa, em audiências de avaliação,
decida pela progressão da medida.138
Nestas audiências realizadas com todos os autores do processo, geram documentos
que são apresentados ao jovem pontuando sua conduta institucional (progressos e méritos ou
não), possibilitando ao internado avaliar a si mesmo, onde foi considerado insuficiente, onde
deve melhorar, bem como, reforçar seus méritos e progressos.139
2.6 APLICAÇÃO DA MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA AO MAIOR DE 18 ANOS
A doutrina e a jurisprudência divergem a respeito da interpretação da possibilidade
de aplicação de medida sócio-educativa para infratores que completaram 18 anos.
Para alguns intérpretes, a entrada em vigor do novo Código Civil interferiu na
aplicação das regras relativas ao ato infracional, consistentes em impedir a aplicação de
qualquer medida sócio-educativa ao maior de 18 anos. Tacitamente, teria revogado o art. 2º,
parágrafo único, do ECA, conseqüentemente, não poderia remanescer a regra excepcional
contida no art. 104, parágrafo único, também do ECA.140 Dispõe os artigos referidos: Art. 2º [...] Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte um anos de idade. Art. 104. São penalmente inimputáveis os menores de 18 (dezoito) anos, sujeitos às medidas previstas nesta Lei. Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, deve ser considerada a idade do adolescente à data do fato.
De acordo com este entendimento, quando da entrada em vigor do ECA, vigia o
antigo Código Civil (Lei n.º 3.071/16) que previa em seu art. 9º a cessação da menoridade aos
138 Cf. SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e o ato infracional: garantias processuais e medidas sócio-educativas, p. 115-116. 139 Cf. SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e o ato infracional: garantias processuais e medidas sócio-educativas, p. 115. 140 ALVES, Roberto Barbosa. Comentário ao art. 2º do ECA. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 22.
43
21 anos completos. Ocorre que com o advento do novo Código Civil (Lei n.º 10.406/02) a
maioridade foi alterada para os 18 anos de idade, ocasionando a impossibilidade da aplicação
da medida de internação.141
Entretanto, uma outra corrente, majoritária, posiciona-se no sentido de admitir a
internação até os 21 anos de idade. No dizer de Valter Kenji Ishida: De acordo com o § 2º do art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, ‘A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior’. Ademais, interpretação diversa permitiria que menores cometessem graves atos infracionais, às vésperas de completar dezoito anos, sem que a sociedade, representada pelo Estado-Juiz, pudesse lhes impor qualquer tipo de medida penal (já que inimputáveis na esfera penal) ou educativa (pois as medidas do ECA somente seriam executáveis até completarem 18 anos).142
Neste sentido, comenta Roberto João Elias: É óbvio que há de se ter em conta a idade do adolescente à data do fato para se lhe aplicar as medidas sócio-educativas. Destarte, se à época da decisão o menor já atingiu a idade de dezoito anos, nada impede que sofra uma das medidas do art. 112, só que, como preceitua o art. 121, § 5º, com relação à internação, a liberação será compulsória aos vinte e um anos. É uma das exceções a que se refere o parágrafo único do art. 2º do Estatuto. De forma alguma se aplicará ao adolescente que completou dezoito anos, mas que cometeu o ato antes desta idade, outra medida que não seja uma das catalogadas no art. 112.143
Esse é o entendimento dominante do Egrégio Tribunal de Justiça de Santa Catarina: ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - DIREITO PENAL JUVENIL - ATO INFRACIONAL - ADVENTO DA MAIORIDADE - ALEGADA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE - INADMISSIBILIDADE - FURTO QUALIFICADO PELO CONCURSO DE AGENTES - CONFISSÃO CORROBORADA PELAS DECLARAÇÕES DO CO-AUTOR E PELA APREENSÃO DA RES FURTIVA NA POSSE DO APELANTE - PROVA ROBUSTA - IMPOSIÇÃO DE MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE - NECESSIDADE DE VIOLÊNCIA OU GRAVE AMEAÇA - REITERAÇÃO NO COMETIMENTO DE OUTRAS INFRAÇÕES GRAVES - SUBSTITUIÇÃO POR OUTRA MAIS BRANDA - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. O Estatuto da Criança e do Adolescente se aplica excepcionalmente às pessoas com idade entre 18 e 21 anos (art. 2º, parágrafo único), sendo que em se tratando de medida sócio-educativa, deve ser considerada a idade do autor à época do fato (art. 104, parágrafo único, do ECA). A apreensão do produto do furto com o representado, aliada à confissão e às declarações do co-autor, torna certa a autoria. Não havendo violência ou grave ameaça, a medida sócio-educativa de internação deve ser substituída por outra mais branda.144
E ainda:
141 Cf. ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: doutrina e jurisprudência, p. 189. 142 ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: doutrina e jurisprudência, p. 190. 143 ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 111-112. 144 SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação n.º 2005.005234-1, Primeira Câmara Criminal, Relator Desembargador Amaral e Silva. Data da decisão: 12 de abril de 2005. Data da Publicação: 12 de maio de 2005.
44
APELAÇÃO CRIMINAL. RECURSO INTERPOSTO PELO REPRESENTANTE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. REPRESENTAÇÃO REJEITADA. MEDIDAS PROTETIVAS E SÓCIO-EDUCATIVAS. APLICABILIDADE AOS MAIORES DE 18 ANOS. DIREITO DO MENOR. RECURSO PROVIDO. “Da interpretação conjunta dos arts. 121, § 3º, e 122, § 1º, ambos do Estatuto da Criança e do Adolescente, se conclui que as medias sócio-educativas têm vigência até o momento em que o representado completar vinte e um anos de idade. Assim, ainda que conte com dezoito anos quando da prolação da sentença, é viável a aplicação de quaisquer das medidas indicadas no estatuto mencionado, não sendo de ingerência alguma a alteração da maioridade civil, considerado o caráter especial da medida” (ACr n. 03.021813-0, de Chapecó, Relator Desembargador Maurílio Moreira Leite).145
Assim, a imposição da medida sócio-educativa aos infratores maiores de 18 anos não
sofre interferência da regras estabelecidas no novo Código Civil, já que possui seu
fundamento no próprio sistema do ECA, baseado na proteção integral e na necessidade do
infrator que delinqüir às vésperas da maioridade penal, não venha a ser excluído de um
ambiente jurisdicional que lhe é mais adequado.146
2.7 CARÁTER INDETERMINADO DA MEDIDA PRIVATIVA DE LIBERDADE E A
INTERNAÇÃO-SANÇÃO
Dispõe o ECA, de forma expressa, sobre o caráter indeterminado da medida privativa
de liberdade, no seu aspecto temporal, observado o prazo máximo de internamento em 3 (três)
anos, sendo compulsória sua desinternação aos 21 anos de idade.147
O início do cumprimento da internação será sempre o marco inicial para fixação do
prazo máximo de 3 (três) anos. Para Nazir David Milano Filho e Rodolfo César Milano Filho,
a forma da contagem de prazo se dá da seguinte maneira: Apreendido o adolescente, será retomado o período anterior para todos os fins, o que já não poderá ocorrer quando o adolescente, durante o período de fuga, cometer novo ato infracional, pois, neste caso, novo período de internação deve iniciar-se, contado desde a apreensão o mesmo ocorrendo, ainda, na hipótese de ato infracional cometido no interior da entidade.148
145 SANTA CATARINA. Apelação n.º 2003.007104-0, Segunda Câmara Criminal, Relator Desembargador Sérgio Paladino. Data da Decisão: 25 de maio de 2004. Data de Publicação: 04 de junho de 2004. 146 Cf. ALVES, Roberto Barbosa. Comentário ao art. 2º do ECA. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 31. 147 Cf. SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e o ato infracional: garantias processuais e medidas sócio-educativas, p. 112. 148 MILANO FILHO, Nazir David; MILANO, Rodolfo César. Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 145.
45
Ou seja, sobrevindo à aplicação de uma nova medida privativa de liberdade pela
prática de ato infracional anterior ao início do cumprimento da internação, a execução desta
nova medida sócio-educativa ficará subsumida até o limite de 3 (três) anos.149
No caso de sobrevir sentença aplicando nova medida de internação, após ou durante
o cumprimento daquela, evidentemente que o limite temporal a que alude o art. 121, § 3° do
ECA150, passará a fluir da data do cumprimento dessa nova medida.151
Leciona João Batista Costa Saraiva: Deste entendimento – de que por fato anterior ao início de cumprimento da medida socioeducativa de internação não se pode superar o módulo de três anos, e que somente novo ato infracional praticado após o início da medida socioeducativa de internação se permite a retomada do módulo máximo de três anos a partir da nova internação – se extrai outra conseqüência. Não há razão, do ponto de vista do interesse jurídico de agir, de manter em andamento procedimentos relativos a atos infracionais praticados antes do início da medida socioeducativa de internação.152
Dar-se-á a possibilidade de limitação prévia apenas nos casos da chamada
internação sanção quando da regressão, por injustificado e reiterado descumprimento de
medida anteriormente imposta (hipótese do art. 122, inc. III, do ECA), quando poderá ser
decidido o internamento por até 3 (três) meses. Assim, visa impor ao adolescente o
restabelecimento das metas impostas na execução da medida sócio-educativa descumprida em
meio aberto.153
Não cabe a internação-sanção como medida principal, mas somente em caráter
cumulativo com medida anterior aplicada ao adolescente infrator, a qual não tenha sido
cumprida reiterada e injustificadamente.154
Cumpre, por derradeiro, destacar o ensinamento de Ari Ferreira de Queiroz sobre
reiteração: Para que se configure a reiteração é necessário que o adolescente tenha descumprido a medida por pelo menos três vezes, sendo insuficientes apenas uma ou duas. Por outro lado, o descumprimento, ainda que reiterado, deve ser injustificável. Por isso, é necessário que antes de decidir o juiz oportunize ao adolescente infrator se manifestar por meio de seu advogado acerca dos motivos que o levaram a descumprir a medida que lhe foi aplicada. Se o juiz considerar os motivos justificáveis, como falta de dinheiro para se locomover até o local onde deve prestar serviços à comunidade, doença do
149 Cf. SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e o ato infracional: garantias processuais e medidas sócio-educativas, p. 113. 150 [...] § 3º Em nenhuma hipótese o período máximo de internação excederá a três anos. 151 Cf. SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e o ato infracional: garantias processuais e medidas sócio-educativas, p. 114. 152 SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e o ato infracional: garantias processuais e medidas sócio-educativas, p. 114. 153 Cf. QUEIROZ, Ari Ferreira de. Direito da Criança e do Adolescente, p. 148. 154 Cf. QUEIROZ, Ari Ferreira de. Direito da Criança e do Adolescente, p. 149.
46
adolescente ou em pessoa da família, [...], o juiz não poderá decretar a internação sanção, sob pena de caracterizar abuso de poder reparável até mesmo por hábeas corpus.155
Na prática, não há como descumprir medida sócio-educativa de advertência, que por
ser mera admoestação verbal, se esgota no ato de sua aplicação. Por outro lado, é possível
descumprir medida sócio-educativa de internação quando o adolescente empreende fuga do
local onde deveria permanecer recolhido.156
155 QUEIROZ, Ari Ferreira de. Direito da Criança e do Adolescente, p. 149. 156 Cf. QUEIROZ, Ari Ferreira de. Direito da Criança e do Adolescente, p. 149.
47
3 (IN)EFICÁCIA DA EXECUÇÃO DA MEDIDA DE INTERNAÇÃO: O EXEMPLO
DO CENTRO EDUCACIONAL SÃO LUCAS
No processo de efetividade do Estatuto da Criança e do Adolescente, no que tange ao
ato infracional, o que se tem analisado, de uma maneira geral, é o descumprimento do
mandamento constitucional, o qual dispõe que crianças e adolescentes são prioridade absoluta
para o Estado Brasileiro.164 Sobre a dimensão da expressão ‘prioridade’, leciona João Batista
da Costa Saraiva: [...] é oportuno refletir que a língua portuguesa é uma das mais ricas em expressões capazes de definir a idéia que se pretenda expor. Daí existirem termos que apenas em português se conhece (como saudade, que a língua inglesa, por exemplo, desconhece). Pois bem, prioridade, que Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, nosso renomado filólogo, define como qualidade do que está em primeiro lugar, ou de que aparece primeiro; primazia, e que por si só designa algo que deve, pois, vir antes de qualquer outra atividade, recebeu de nosso legislador constituinte o adjetivo ‘absoluta’ no art. 227 da CF, quando trata da criança e do adolescente. Portanto, Criança e Adolescente é prioridade absoluta do Brasil (aliás a expressão prioridade absoluta não é utilizada em nenhum outro dispositivo Constitucional). É assim, prioridade das prioridades do Estado.165
Questão tormentuosa e desafiante é a eficácia da sentença na jurisdição dos atos
infracionais em relação a seus propósitos, notadamente a proteção. Alguns especialistas no
assunto são céticos em relação aos resultados dessa medida, como Antônio Fernando do
Amaral e Silva, que comenta: “Embora não se possa avaliar com a necessária segurança, o
fato é que informações disponíveis deixam antever a probabilidade de se prosseguir com
resultados pouco animadores”.166
Os resultados negativos da sentença na fase executória têm como causa não só o
desaparelhamento do sistema administrativo, mas também a interpretação equivocada das
normas do Estatuto da Criança e do Adolescente. Disso decorre que, em muitos casos, a
imposição de medidas sócio-educativas continuará embasada nos princípios enviesados da
164 Cf. SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e o ato infracional: garantias processuais e medidas sócio-educativas, p. 118. 165 SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e o ato infracional: garantias processuais e medidas sócio-educativas, p. 118-119. 166 Cf. AMARAL E SILVA, Antônio Fernando do. O Controle Judicial da Execução das Medidas Sócio-Educativas. In: ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE MAGISTRADOS E PROMOTORES DE JUSTIÇA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE. Cadernos de Direitos da Criança e do Adolescente 2. 2. ed. Recife: Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e da Juventude, 1998. p. 23.
48
‘Doutrina da Situação Irregular’, pois as práticas pedagógicas de reinserção do adolescente
infrator praticamente inexistem.167
Para Antônio Fernando do Amaral e Silva: Promotores, advogados, técnicos e juízes persistem no viés da ‘tutela’, da ‘proteção’, do ‘melhor interesse’, sem atentarem para as novidades das garantias constitucionais e processuais. São ignorados os princípios da legalidade, da proporcionalidade, da individualização da medida, bem como a desmistificação do ‘sistema protetivo’. [...] A inexistência ou a oferta irregular de propostas pedagógicas fazem com que as medidas sócio-educativas resultem impostas apenas no aspecto repressivo e, o que é pior, sem observância no critério da proporcionalidade.168
Analisar estes aspectos é o que será feito neste capítulo, que abordará os direitos do
adolescente interno, o local para o cumprimento da medida de internação, sua aplicação no
Centro Educacional São Lucas, as principais causas de ineficácia do sistema, dando ênfase
aos princípios garantistas previstos na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do
Adolescente, além das questões acerca da redução da idade penal.
3.1 LOCAL DA INTERNAÇÃO
A internação deverá ser cumprida em local exclusivo para adolescentes infratores,
obedecida a separação por idade, compleição física e gravidade da infração, conforme dispõe
o art. 123, do ECA.169 Visa a referida norma separar os adolescentes internados daqueles
abrigados em uma das situações do art. 98, do Estatuto (sempre que os direitos reconhecidos
pelo ECA forem ameaçados ou violados por ação ou omissão do Estado, pais ou responsável,
ou ainda, em razão de sua conduta). Segundo Antônio Carlos Gomes da Costa: “A mistura
167 Cf. AMARAL E SILVA, Antônio Fernando do. O Controle Judicial da Execução das Medidas Sócio-Educativas. In: ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE MAGISTRADOS E PROMOTORES DE JUSTIÇA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE. Cadernos de Direitos da Criança e do Adolescente 2, p. 23. 168 Cf. AMARAL E SILVA, Antônio Fernando do. O Controle Judicial da Execução das Medidas Sócio-Educativas. In: ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE MAGISTRADOS E PROMOTORES DE JUSTIÇA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE. Cadernos de Direitos da Criança e do Adolescente 2, p. 23-24. 169 Art. 123. A internação deverá ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, em local distinto daquele destinado ao abrigo, obedecida rigorosa separação por critérios de idade, compleição física e gravidade da infração. Parágrafo único. Durante o período de internação, inclusive provisória, serão obrigatórias atividades pedagógicas.
49
arbitrária de adolescentes infratores e não infratores é uma das mazelas mais antigas e
perniciosas do nosso sistema de ação social especializada”.170
Também visando à reintegração social, estabelece a separação por critérios, posto
que pode evitar prevalência de uns adolescentes sobre os outros, como abusos sexuais e outros
crimes, que acabam sucedendo nestes estabelecimentos.171
A respeito, o já citado Antônio Carlos Gomes da Costa comenta: Estes cuidados, evidentemente, estão voltados para a prevenção, ou pelo menos a contenção em limites mínimos, de violência cometida pelos adolescentes, uns contra os outros. É importante, nesse particular, que tenhamos em vista as Regras Mínimas das Nações Unidas para os Jovens Privados de Liberdade. É com base nelas que deveremos não só decidir acerca da estrutura física dos estabelecimentos destinados a esse tipo de atendimento como, também, definir os fins e os meios do programa sócio-educativo a ser desenvolvido no seu interior.172
Conforme atesta o artigo supra citado, durante o período de internação será
obrigatória à realização de atividades pedagógicas, tendo em vista o caráter ressocializador da
medida, que “[...] sem este aspecto, ainda que cercada de todos os demais cuidados na sua
aplicação, a internação seria uma mera detenção”.173 Obedecendo aos princípios da brevidade
e da excepcionalidade, deverá o adolescente retornar ao seio familiar quanto mais cedo se
tornar possível, já que este deve ser o objetivo final, por ser o lugar natural do menor.174
Cumpre salientar que as entidades governamentais ou não-governamentais que
desenvolvem programas de internação se submetem a uma série de obrigações, todas
dispostas no art. 94, do ECA, quais sejam: [...] I - observar os direitos e garantias de que são titulares os adolescentes; II - não restringir nenhum direito que não tenha sido objeto de restrição na decisão de internação; III - oferecer atendimento personalizado, em pequenas unidades e grupos reduzidos; IV - preservar a identidade e oferecer ambiente de respeito e dignidade ao adolescente; V - diligenciar no sentido do restabelecimento e da preservação dos vínculos familiares; VI - comunicar à autoridade judiciária, periodicamente, os casos em que se mostre inviável ou impossível o reatamento dos vínculos familiares; VII - oferecer instalações físicas em condições adequadas de habitabilidade, higiene, salubridade e segurança e os objetos necessários à higiene pessoal; VIII - oferecer vestuário e alimentação suficientes e adequados à faixa etária dos adolescentes atendidos;
170 COSTA, Antônio Carlos Gomes da. Comentário ao art. 121 do ECA. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 419. 171 Cf. ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 136. 172 COSTA, Antônio Carlos Gomes da. Comentário ao art. 121 do ECA. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 419. 173 COSTA, Antônio Carlos Gomes da. Comentário ao art. 121 do ECA. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 419. 174 Cf. ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 136.
50
IX - oferecer cuidados médicos, psicológicos, odontológicos e farmacêuticos; X - propiciar escolarização e profissionalização; XI - propiciar atividades culturais, esportivas e de lazer; XII - propiciar assistência religiosa àqueles que desejarem, de acordo com suas crenças; XIII - proceder a estudo social e pessoal de cada caso; XIV - reavaliar periodicamente cada caso, com intervalo máximo de seis meses, dando ciência dos resultados à autoridade competente; XV - informar, periodicamente, o adolescente internado sobre sua situação processual; XVI - comunicar às autoridades competentes todos os casos de adolescentes portadores de moléstias infecto-contagiosas; XVII - fornecer comprovante de depósito dos pertences dos adolescentes; XVIII - manter programas destinados ao apoio e acompanhamento de egressos; XIX - providenciar os documentos necessários ao exercício da cidadania àqueles que não os tiverem; XX - manter arquivo de anotações onde constem data e circunstâncias do atendimento, nome do adolescente, seus pais ou responsável, parentes, endereços, sexo, idade, acompanhamento da sua formação, relação de seus pertences e demais dados que possibilitem sua identificação e a individualização do atendimento.
Dispõe o art. 95, do ECA175, que encarregam-se de fiscalizar as entidades de
atendimento: o Poder Judiciário, através do juiz da infância e da juventude, o Ministério
Público, por meio das promotorias de justiça e os Conselhos Tutelares, se houver. A
fiscalização compreende a aplicação de medidas punitivas por infração, que poderá ser o
fechamento ou a cassação de registro, previstas no art. 97, do ECA176, para os casos de
descumprimento, inclusive para as reiterações de comportamento.177
A desobediência às obrigações elencadas no art. 94, constatadas por meio de
fiscalização, pode levar à propositura de ação civil pública, visando obrigar o poder público a
cumpri-las.178
175 Art. 95. As entidades governamentais e não-governamentais referidas no art. 90 serão fiscalizadas pelo Judiciário, pelo Ministério Público e pelos Conselhos Tutelares. 176 Art. 97. São medidas aplicáveis às entidades de atendimento que descumprirem obrigação constante do art. 94, sem prejuízo da responsabilidade civil e criminal de seus dirigentes ou prepostos: I - às entidades governamentais: a) advertência; b) afastamento provisório de seus dirigentes; c) afastamento definitivo de seus dirigentes; d) fechamento de unidade ou interdição de programa. II - às entidades não-governamentais: a) advertência; b) suspensão total ou parcial do repasse de verbas públicas; c) interdição de unidades ou suspensão de programa; d) cassação do registro. Parágrafo único. Em caso de reiteradas infrações cometidas por entidades de atendimento, que coloquem em risco os direitos assegurados nesta Lei, deverá ser o fato comunicado ao Ministério Público ou representado perante autoridade judiciária competente para as providências cabíveis, inclusive suspensão das atividades ou dissolução da entidade. 177 Cf. QUEIROZ, Ari Ferreira de. Direito da Criança e do Adolescente. 5. ed. Goiânia: Instituto de Ensino e Pesquisa Científica, 2005. p. 95-96. 178 Cf. ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: doutrina e jurisprudência, p. 139.
51
3.2 OS DIREITOS INERENTES AOS ADOLESCENTES PRIVADOS DE LIBERDADE
O art. 124, do ECA, enumera os direitos assegurados aos adolescentes privados de
liberdade. “Em se tratando de menores, é preciso sempre recordar que estes são sujeitos e não
objetos. Na frase de Jean Chasal, ‘L’enfant est sujet et non objet’”.179
Poderá o internado entrevistar-se pessoalmente com o representante do Ministério
Público, momento em que este explicará toda a situação processual, bem como comunicará ao
internado seu direito de petição a qualquer autoridade, a contato com seu defensor e as
informações a respeito de sua situação processual, sempre que desejar, direitos estes que serão
explanados tanto pelo Ministério Público como pelo Poder Judiciário.180
O internado tem direito a ser tratado com respeito e dignidade, respeitada sua
condição pessoal de adolescente. Terá também direito de permanecer internado na localidade
de seu domicílio ou naquela mais próxima, a receber visitas semanais e, corresponder-se via
carta com amigos e familiares, respeitando a indeclinável norma que trata da convivência
familiar (art. 19, do ECA181, e art. 227, da Constituição Federal182).183 Adverte Antônio Carlos
Gomes da Costa: A restrição temporária do direito de visita, se constatada sua prejudicialidade aos interesses do adolescente, poderá ser imposta pela autoridade judiciária. Em nenhum caso, entretanto, haverá incomunicabilidade. A possibilidade de restrição do direito de visita e, ao mesmo tempo, a proibição da incomunicabilidade evidenciam a linha de equilíbrio adotada pelo Estatuto em relação ao adolescente privado de liberdade.184
Imprescindíveis os direitos que tratam do acesso a objetos de higiene pessoal, ao
alojamento adequado, acesso aos meios de comunicação social e, a realização de atividades
culturais, esportivas e de lazer, que vão ao encontro ao seu desenvolvimento sadio, bem como
a escolarização e profissionalização, também com base no art. 227, da CF/88, por serem
elementos necessários para o desenvolvimento intelectual e futura colocação no mercado de
179 MORAES, Walter. Programa de Direito do Menor. São Paulo: Cultural Paulista, 1984. p. 127 apud ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 137. 180 Cf. ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: doutrina e jurisprudência, p. 199. 181 Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes. 182 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, a profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 183 COSTA, Antônio Carlos Gomes da. Comentário ao art. 121 do ECA. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 422. 184 COSTA, Antônio Carlos Gomes da. Comentário ao art. 121 do ECA. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 422.
52
trabalho. No que tange ao recebimento de assistência religiosa, esta será atendida quando o
internado assim o desejar. Poderão manter a posse de seus objetos pessoais, quando estes não
oferecem perigo algum, que não possam ser utilizados como armas, ainda que sirvam para
outra utilidade.185
Quando for desinternado deverá receber os documentos pessoais indispensáveis para
sua reintegração à sociedade.
3.3 DESCUMPRIMENTO DOS DIREITOS RELATIVOS AOS ADOLESCENTES
INTERNOS OCORRIDOS NO CENTRO EDUCACIONAL SÃO LUCAS
Da relevante parceria entre o Conselho Federal de Psicologia e o Conselho Federal
da Ordem dos Advogados do Brasil resultou um único relatório realizado a partir de uma
pesquisa simultânea em 21 (vinte e um) Estados e o Distrito Federal, em 15 de março de
2006, onde se analisou as unidades de privação de liberdade de adolescentes, o qual se
chamou de ‘Inspeções de Direitos Humanos’. Tal inspeção teve como objetivo avaliar os
níveis de efetivação dos direitos deferidos aos jovens nestas condições, denunciar as
violações, suscitar os debates e propor ações.186
Do corpo da apresentação do relatório, colhe-se: O formato escolhido, com incursões simultâneas aos centros de internação de praticamente todas as unidades da federação, foi especialmente feliz. Fornece uma leitura comum das diferenças e invariâncias da experiência de privação de liberdade de adolescentes em nível nacional. Ambas, semelhanças e diferenças, são eloqüentes. Como invariância, tem-se a significativa constatação de que o ideal sócio-educativo do regime persiste, de fato, ainda como ideal. O inconsistente delineamento de uma estratégia pedagógica objetivada a inspirar e significar todas as ações concretas dirigidas em face do interno e a dificuldade de compatibilizar garantia de direitos com os reclamos da disciplina, da ordem e da segurança, restam como um desafio ainda intransposto.187
Para esta análise, destacamos a primeira dentre as normativas fundamentais, que trata
sobre as ‘Regras Mínimas das Nações Unidas’ para a proteção dos jovens privados de
liberdade, no qual dispõe: “O sistema de justiça da infância e da juventude deverá respeitar os
direitos e a segurança dos jovens e fomentar seu bem-estar físico e mental”. O Brasil é
signatário desse tratado, especificando através do Estatuto da Criança e do Adolescente, 185 Cf. ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 138. 186 Inspeção Nacional às Unidades de Internação de Adolescentes em Conflito com a Lei. Disponível em: <http://www.crpsp.org.br/relatorio_oab.pdf>. Acesso em: 29 abr. 2007. p. 7. 187 Inspeção Nacional às Unidades de Internação de Adolescentes em Conflito com a Lei. Disponível em: <http://www.crpsp.org.br/relatorio_oab.pdf>. Acesso em: 29 abr. 2007. p. 7.
53
modelos de unidades de internação pautadas nas obrigações do artigo 94 e no respeito aos
direitos do artigo 124 e, logo depois, vem afirmar que tal medida é providência de exceção, só
aplicável em último caso e pelo menor tempo de duração possível.188
As comparações entre as realidades locais existentes têm demonstrado que os
adolescentes têm sido tratados de forma absolutamente desumanizantes, fato que pode ser
creditado à inconsistência dos investimentos ou à incompetência do gerenciamento, alçada à
condição de política pública executada ou não executada.189
Dentre as unidades visitadas e avaliadas encontra-se o Centro Educacional São
Lucas, localizado em São José, criado na época da ditadura militar com o nome de Fundação
Catarinense do Bem-Estar do Menor – FUCABEM. Na época da inspeção contava com 52
(cinqüenta e dois) adolescentes, apesar de possuir 40 (quarenta) vagas.190 Para a análise das
condições de aplicabilidade da medida sócio-educativa de internamento, será utilizado como
referência básica o relatório de ‘Inspeção Nacional’ das unidades de internação de
adolescentes em conflito com a lei, comparando-o com a previsão normativa do direito
brasileiro.
3.3.1 Análise dos direitos do adolescente interno e sua aplicação no Centro Educacional
São Lucas
Analisa-se a distorção da unidade de internação Centro Educacional São Lucas, em
relação aos direitos relativos aos adolescentes internos.
Como visto no item 3.1 deste capítulo, o Estatuto enumera no art. 124, uma série de
direitos inerentes ao adolescente privado de liberdade, como habitar alojamento em condições
adequadas de higiene e salubridade (inc. X), também citada no art. 94, inc. VII, como
obrigação da instituição, bem como as Regras n.ºs 33 e 34, das Nações Unidas, para a
proteção dos jovens privados de liberdade191, que dispõem:
188 Inspeção Nacional às Unidades de Internação de Adolescentes em Conflito com a Lei. Disponível em: <http://www.crpsp.org.br/relatorio_oab.pdf> Acesso em: 29 de abr. de 2007. p.9. 189 Inspeção Nacional às Unidades de Internação de Adolescentes em Conflito com a Lei. Disponível em: <http://www.crpsp.org.br/relatorio_oab.pdf> Acesso em: 29 de abr. de 2007. p.7. 190 Inspeção Nacional às Unidades de Internação de Adolescentes em Conflito com a Lei. Disponível em: <http://www.crpsp.org.br/relatorio_oab.pdf> Acesso em: 29 de abr. de 2007.p.43. 191 “As Regras mínimas das Nações Unidas para proteção dos jovens privados de liberdade foram aprovadas no ‘Oitavo Congresso das Nações Unidas sobre a prevenção do delito e do tratamento do delinqüente’, tendo presentes a Declaração Universal dos Direitos Humanos, Convenção Sobre os Direitos da Criança, as Regras Mínimas das Nações Unidas para Administração da Justiça da Infância e da Juventude (Regras de Beijing), como também outros instrumentos internacionais relativos à proteção dos direitos e bem-estar dos jovens”. VOLPI, Mario (Org.); SARAIVA, João Batista; KOERNER JÚNIOR, Rolf. Adolescentes Privados de
54
33. [...]. O isolamento em celas individuais, durante a noite, só poderá ser imposto em casos excepcionais e unicamente pelo menor espaço de tempo possível. [...]. 34. As instalações sanitárias deverão ser de um nível adequado e estar localizadas de maneira que o jovem possa satisfazer suas necessidades físicas na intimidade e de forma asseada e decente.192
De acordo com o relatório de inspeção sobre o local do cumprimento da internação,
extrai-se: [...] Os alojamentos são precários, existindo apenas um adolescente por ‘quarto’. Não há superlotação. Os alojamentos assemelham-se a celas, fora do padrão internacional exigido pela ONU. Condições de ventilação (uma só entrada de ar, com portas de ferro), aclimatização (as entradas de ar são desprotegidas do frio e da chuva) e higiene (os ‘quartos’ são próximos a terrenos baldios, há relatos de convívio com insetos e roedores e a maioria dos ‘quartos’ não conta com vasos sanitários) precárias, sendo que estes jovens são obrigados, no período da noite, a fazer suas necessidades em sacos plásticos ou garrafas. [...].193
No que tange aos cuidados com a saúde do adolescente, estabelecem as Regras
Mínimas das Nações Unidas supra citadas: 33. [...] Cada jovem terá, segundo os costumes locais ou nacionais, roupa de cama individual e suficiente, que deverá ser entregue limpa, mantida em bom estado e trocada regularmente por motivo de asseio. [...] 49. Todo jovem deverá receber atenção médica adequada, tanto preventiva como corretiva, incluída a atenção odontológica, oftalmológica e de saúde mental, assim como os produtos farmacêuticos e dietas especiais que tenham sido receitados pelo médico. [...] [...] 51. [...] Todo centro de detenção de jovens deverá ter acesso imediato a instalações e equipamentos médicos adequados que tenham relação com o número e as necessidades de seus residentes, assim como pessoal capacitado em saúde preventiva e em tratamento de urgências médicas. [...]194
Na prática, a constatação da realidade é completamente oposta aos direitos que
deveriam ser assegurados ao interno: O número de profissionais da saúde é insuficiente para atender às demandas. A equipe de saúde é reduzida a uma psicóloga, uma assistente social, um médico, um dentista, uma agente de saúde, uma enfermeira.[...] Na noite anterior à nossa visita, um jovem passou mal, fizeram cuidados paliativos e somente no dia seguinte este pôde ser encaminhado a um hospital. [...] As principais queixas dos adolescentes na área da saúde referem-se à falta de ginecologista, coceiras e sarnas, estas em função de colchões velhos, encardidos e sem roupas de cama.
Liberdade: A normativa Nacional e Internacional e Reflexões acerca da responsabilidade penal. São Paulo: Cortez, 1997. p. 53-54. 192 VOLPI, Mario (Org.); SARAIVA, João Batista; KOERNER JÚNIOR, Rolf. Adolescentes Privados de Liberdade: A normativa Nacional e Internacional e Reflexões acerca da responsabilidade penal, p. 65. 193 Inspeção Nacional às Unidades de Internação de Adolescentes em Conflito com a Lei. Disponível em: <http://www.crpsp.org.br/relatorio_oab.pdf>. Acesso em: 29 abr. 2007. p. 43. 194 VOLPI, Mario (Org.); SARAIVA, João Batista; KOERNER JÚNIOR, Rolf. Adolescentes Privados de Liberdade: A normativa Nacional e Internacional e Reflexões acerca da responsabilidade penal, p. 69-70.
55
[...] atendimentos da psicóloga e da assistente social são quinzenais. A freqüência do atendimento de outros profissionais não foi informada.195
Quanto aos procedimentos disciplinares aplicados, determinam as Regras Mínimas
das Nações Unidas que devem ser compatíveis com o respeito à dignidade inerente ao jovem
e com o objetivo fundamental do tratamento institucional (Regra n.° 66)196, e também: 67. Todas as medidas disciplinares que sejam cruéis, desumanas ou degradantes, estarão estritamente proibidas, incluídos os castigos corporais, o recolhimento em cela escura e as penalidades de isolamento ou de solitária [...]. A redução de alimentos e a restrição ou proibição de contato com familiares estarão proibidas, seja qual for à finalidade. [...].197
Transcreve-se do relatório de inspeção a inaceitável constatação em relação às
medidas disciplinares aplicadas no Centro Educacional São Lucas, que afrontam diretamente
o art. 124, inc. V, do Estatuto, o qual determina ao adolescente internado o direito de ser
tratado com respeito e dignidade: Os monitores gerenciam pequenos conflitos entre os jovens. Comunicada, a diretoria da unidade aplica ‘medidas’, quais sejam: dias em confinamento no quarto e transferência do adolescente em conflito para outra ala da unidade. Durante a visita pudemos perceber que o controle sobre os horários e sobre possíveis privações assume caráter de ameaça na rotina dos adolescentes. [...]. Os próprios ‘quartos’ dos adolescentes são utilizados para isolamento e punição. Segundo relato de alguns adolescentes, o colchão do ‘quarto’ é retirado como medida de punição. [...]. [...] O isolamento pode variar de um a três dias. Ocorrem restrições de qualquer atividade (inclusive alimentação) fora do ‘quarto’.
Sobre a alimentação, relatou a inspeção: “As principais queixas dos adolescentes em
relação à alimentação são a fome durante a noite, pois, antes de serem recolhidos (às 19:00h),
só podem alimentar-se de frutas”.198 A Regra n.° 37 das Nações Unidas estipula que: “Todos
os centros de detenção devem garantir que todo jovem terá uma alimentação adequadamente
preparada e servida nas horas habituais, em qualidade e quantidade que satisfaçam as normas
da dietética, da higiene e da saúde [...]”.199 O ECA prevê como obrigação das instituições,
195 Inspeção Nacional às Unidades de Internação de Adolescentes em Conflito com a Lei. Disponível em: <http://www.crpsp.org.br/relatorio_oab.pdf>. Acesso em: 29 abr. 2007. p. 44. 196 Cf. VOLPI, Mario (Org.); SARAIVA, João Batista; KOERNER JÚNIOR, Rolf. Adolescentes Privados de Liberdade: A normativa Nacional e Internacional e Reflexões acerca da responsabilidade penal, p. 73. 197 VOLPI, Mario (Org.); SARAIVA, João Batista; KOERNER JÚNIOR, Rolf. Adolescentes Privados de Liberdade: A normativa Nacional e Internacional e Reflexões acerca da responsabilidade penal, p. 73. 198 Inspeção Nacional às Unidades de Internação de Adolescentes em Conflito com a Lei. Disponível em: <http://www.crpsp.org.br/relatorio_oab.pdf>. Acesso em: 29 abr. 2007. p. 44. 199 VOLPI, Mario (Org.); SARAIVA, João Batista; KOERNER JÚNIOR, Rolf. Adolescentes Privados de Liberdade: A normativa Nacional e Internacional e Reflexões acerca da responsabilidade penal, p. 66.
56
“oferecer vestuário e alimentação suficientes e adequadas à faixa etária dos adolescentes
atendidos” (art. 94, inc. VIII).200
A comunicação adequada dos jovens com o mundo exterior é parte integrante do
direito a um tratamento justo e humanitário, sendo indispensável para a reintegração com a
sociedade dos jovens privados de liberdade, conforme dispõe a Regra n.° 59, ao tratar acerca
dos contatos com a comunidade em geral.201 Ainda nesse contexto, de acordo com as Regras: 60. Todo jovem deverá ter o direito de receber visitas regulares e freqüentes, a princípio uma vez por semana e, pelo menos, uma vez por mês, em condições que respeitem a necessidade de intimidade do jovem, o contato e a comunicação, sem restrições, com a família e com o advogado de defesa. 61. Todo jovem terá o direito de se comunicar por escrito ou por telefone, pelo menos duas vezes por semana, com a pessoa de sua escolha, salvo se, legalmente, não puder fazer uso desse direito, e deverá receber assistência necessária para que possa exercer eficazmente esse direito. [...].202
A esse respeito, foi constatado na inspeção: Em horários restritos é permitido que os adolescentes tenham acesso à TV. Segundo a informação de uma adolescente, pode-se telefonar a qualquer momento para o advogado nomeado e, para familiares, quinzenalmente. Os adolescentes em ‘castigo’ também são punidos de quaisquer meios de comunicação. [...] Os adolescentes podem comunicar-se com seus familiares pessoalmente somente nos dias de visita.203
Sobre os projetos pedagógico-profissionalizantes, o relatório de inspeção afirma não
ter tido acesso às informações. O acesso à educação é feito através do programa do Centro de
Educação de Jovens e Adultos, o CEJA, com oficinas de marcenaria.204
Conforme explanado anteriormente, o ECA determina no art. 124, inc. XI, que
deverão ser ofertadas a escolarização e a profissionalização ao adolescente internado. As
Regras Mínimas estabelecem: 38. Todo jovem em idade de escolaridade obrigatória terá o direito de receber um ensino adaptado as suas necessidades e capacidades e destinado a prepará-lo para sua reintegração na sociedade. [...]. [...] 42. Todo jovem terá direito a receber formação para exercer uma profissão que o prepare para um futuro emprego. 205
200 ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: doutrina e jurisprudência, p. 138. 201 VOLPI, Mario (Org.); SARAIVA, João Batista; KOERNER JÚNIOR, Rolf. Adolescentes Privados de Liberdade: A normativa Nacional e Internacional e Reflexões acerca da responsabilidade penal, p. 71. 202 VOLPI, Mario (Org.); SARAIVA, João Batista; KOERNER JÚNIOR, Rolf. Adolescentes Privados de Liberdade: A normativa Nacional e Internacional e Reflexões acerca da responsabilidade penal, p. 72. 203 Inspeção Nacional às Unidades de Internação de Adolescentes em Conflito com a Lei. Disponível em: <http://www.crpsp.org.br/relatorio_oab.pdf>. Acesso em: 29 abr. 2007. p. 45. 204 Inspeção Nacional às Unidades de Internação de Adolescentes em Conflito com a Lei. Disponível em: <http://www.crpsp.org.br/relatorio_oab.pdf>. Acesso em: 29 abr. 2007. p. 44. 205 VOLPI, Mario (Org.); SARAIVA, João Batista; KOERNER JÚNIOR, Rolf. Adolescentes Privados de Liberdade: A normativa Nacional e Internacional e Reflexões acerca da responsabilidade penal, p. 66-67.
57
Cabe ainda destacar, a observação contida no relatório de inspeção sobre a atividade
laboral exercida na unidade: O Centro já contou com horta e laboratório de ervas fitoterápicas e conta, atualmente, com ampla área verde, com estalagem de animais (galinhas, coelhos, porcos e vacas) e lago artificial, espaços estes que são capinados pelos adolescentes como atividade ‘laboral’. Segundo o relato da diretora, alguns funcionários e adolescentes internos, com experiência rural, cuidam dos animais que ainda restam.206
A Regra n.° 45 dispõe: Sempre que possível, deverá ser dada aos jovens a oportunidade de realizar um trabalho remunerado e, se for factível, no âmbito da comunidade local, que complemente a formação profissional realizada, com o objetivo de aumentar a possibilidade de que encontrem um trabalho conveniente quando se reintegrarem às suas comunidades. 207
Quanto ao lazer, consta no relatório que é “restrito a jogo de baralho, conversas, TV
(em horários restritos) e há um pequeno grupo de música RAP, em que uma minoria
participa”208, sendo que os esportes são realizados em horários livres, na quadra coberta e no
campo de futebol.
A última observação constante no relatório trata sobre o índice de reincidência, que
chega a 60% (sessenta por cento), concluindo: “Se o local re-socializasse o adolescente,
trazendo condições de uma vida digna e sem riscos de exclusão, conforme prevê o Estatuto da
Criança e do Adolescente, talvez este percentual fosse menor”.209 Torna-se clara a “posição
do relatório em relação a ineficácia do tratamento aplicado aos jovens internos.
3.4 UMA LEITURA MULTIFACETADA: OUVINDO A REALIDADE
Face à abordagem feita sobre a análise dos direitos do adolescente interno e sua
aplicação no Centro Educacional São Lucas, oportuno se faz destacar, os principais pontos da
entrevista realizada em 17 de maio de 2007 no referido Centro com uma assistente social e
uma psicóloga.
206 Inspeção Nacional às Unidades de Internação de Adolescentes em Conflito com a Lei. Disponível em: <http://www.crpsp.org.br/relatorio_oab.pdf>. Acesso em: 29 abr. 2007. p. 46. 207 VOLPI, Mario (Org.); SARAIVA, João Batista; KOERNER JÚNIOR, Rolf. Adolescentes Privados de Liberdade: A normativa Nacional e Internacional e Reflexões acerca da responsabilidade penal, p. 67. 208 Inspeção Nacional às Unidades de Internação de Adolescentes em Conflito com a Lei. Disponível em: <http://www.crpsp.org.br/relatorio_oab.pdf>. Acesso em: 29 abr. 2007. p. 44. 209 Inspeção Nacional às Unidades de Internação de Adolescentes em Conflito com a Lei. Disponível em: <http://www.crpsp.org.br/relatorio_oab.pdf>. Acesso em: 29 abr. 2007. p. 46.
58
A entrevista foi baseada no Relatório das Inspeções de Direitos Humanos, realizado
há pouco mais de 1 (um) ano na instituição e teve como finalidade verificar in loco, se tal
relatório condiz ou não com a realidade, do ponto de vista daqueles que fazem cumprir o
principal objetivo da medida de internação: a ressocialização.
Sobre o título dado ao relatório à instituição, ‘Herança da Unidade Prisional’,
transcreve-se: “[...] O Centro está pautado pelo modelo carcerário, assemelha-se a um mini-
presídio. E, em regaste à história do espaço físico, ressaltamos que a estrutura atual da
unidade é herança de uma antiga unidade prisional”.210 Questionadas a respeito, afirmam que
a instituição nunca foi um presídio, mas um abrigo para menores, dividido em 2 (duas)
unidades, São Lucas e São Mateus nos pisos superiores e, no piso inferior à antiga Fundação
Catarinense do Bem-Estar do Menor - FUCABEM.
Quando perguntada sobre as instalações, a assistente social comentou que em todo
país há apenas uma unidade de internação, localizada no Estado do Paraná, que serve como
modelo de adequação das regras internacionais. Explica que as condições da unidade são
precárias, mas aceitáveis. Os quartos são individuais e muito semelhantes à celas. Contém
problemas com insetos devido aos terrenos baldios e banhados que circundam a unidade, bem
como a existência de ratos, já que o prédio é muito antigo e possui buracos que permitem
infiltrações. Existe controle e dedetização periódicos. No que tange ao acesso noturno ao
banheiro, limitou-se a dizer que hoje a situação está diferente.
Quanto à incidência de sarna, afirma a assistente que em algumas épocas do ano,
como no verão, é normal ocorrer epidemias em locais com alojamentos coletivos. Todas as
providências são tomadas a respeito, já que possuem um enfermeiro de plantão.
Comenta que a alimentação é muito satisfatória e que nos próximos dias será
preparada com a orientação de uma nutricionista.
Na época da realização do relatório a equipe técnica estava defasada, mas logo após
foi realizado um concurso público para o preenchimento destas vagas, porém, a vaga para
médico não foi preenchida por ausência de inscritos, sendo essa deficiência suprida com a
utilização dos serviços do Sistema de Atendimento Médico de Urgência – SAMU. Também
não conta com advogado, pois foi transferido. Atualmente o centro educacional possui
assistentes sociais, psicólogos, pedagogos, dentistas, agentes de saúde e monitores, todos
concursados.
210 Inspeção Nacional às Unidades de Internação de Adolescentes em Conflito com a Lei. Disponível em: <http://www.crpsp.org.br/relatorio_oab.pdf>. Acesso em: 29 abr. 2007. p. 46.
59
Quanto às atividades pedagógicas, a assistente social afirma ser o maior problema da
instituição, já que o concurso não contemplou a contratação de mais profissionais. O São
Lucas possui atualmente as mesmas atividades constantes no relatório. As aulas de educação
física são ministradas por monitores, pois desde dezembro de 2006 são analisados convênios e
parcerias com faculdades e universidades, porém ainda não foram firmados, o que acarretou
no desvio de função desses funcionários.
Sobre as medidas disciplinares, alegou que estão dispostas no regimento interno,
normas relativas às sanções. Para a assistente, à questão mais comentada quando o assunto
são as ‘correções’ é a retirada dos colchões. Explicou que esta era uma medida aplicada pela
antiga administração. Na coordenação vigente, tal medida ocorre apenas como segurança, por
indicação da equipe técnica, como forma de conter casos de suspeita de tentativa de suicídio,
rebelião, etc., e ocorrem apenas durante o dia, pois à noite os colchões são devolvidos.
Ainda em relação ao regimento interno do Centro Educacional, não foi possível ter
acesso a uma cópia, já que o mesmo está sofrendo alterações pela nova equipe técnica, que
anteriormente não estava completa. Essa nova equipe é quem deverá fazer a reformulação do
regimento, para posterior aprovação da Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa
do Cidadão e Ministério Público, pois atualmente tal regimento serve apenas para
direcionamento ao trabalho interno da instituição.
Relativamente ao contado com parentes, é permitida visita até 2 (duas) vezes na
semana, além de contato telefônico semanal, controlado pelas assistentes sociais..
Tanto a assistente social como a psicóloga afirmaram que a mídia e a sociedade,
possuem uma visão deturpada ao acreditarem que o adolescente que pratica o ato infracional
não é responsabilizado.
O problema do adolescente infrator é a estrutura em que o mesmo está inserido, com
problemas diversos, como: carências afetivas, de cultura, noções de cidadania, etc.
Sobre o índice de reincidência citado no relatório (60%), a assistente comenta a
dificuldade em estabelecer dados precisos, devido o elevado número de adolescentes
assassinados por gangues após o cumprimento da medida de internação, estando os mesmos
‘marcados para morrer’. Segundo a assistente social, o problema com as gangues das
periferias e morros, da capital e da região metropolitana, são temas de constantes reuniões
entre a equipe técnica, pois além do crescente número de homicídios após o internamento, os
funcionários da instituição não podem realizar a separação dos internos de acordo com o que
preconiza o art. 123, do ECA (por idade, compleição física e gravidade da infração), e sim por
gangues.
60
O que acontece dentro do centro educacional nada mais é que o reflexo do que está
acontecendo na sociedade. Observa a psicóloga, que a valorização da vida está totalmente
banalizada na sociedade, fato esse perceptível, tendo em vista que para alguns adolescentes
matar para roubar, por exemplo, não é um fator de importância. Para esses jovens, os valores
básicos para o convívio em sociedade estão deturpados. Acrescenta ainda, que após todo
trabalho em busca da ressocialização do adolescente, ao sair da instituição o mesmo depara-se
com a mesma realidade em que se encontrava antes da internação, já que a comunidade em
que vivem não oferece infra-estrutura nem oportunidade. Exemplo do fracasso é o fato dos
adolescentes internos já terem passado por medidas mais brandas, como a liberdade assistida,
mas a carência de cursos, área de lazer e condições indignas de moradia, resulta nos atrasados
e falidos modelos educacionais, que não conseguem ‘conter’ a propagação da violência.
A entrevista foi encerrada com a presença de Nadir Esperança Azibeiro, umas das
atuais diretoras do centro. A mesma explica que o maior desafio da nova direção é o de
transformar a parte pedagógica do São Lucas, visando à concreta reintegração social do
adolescente interno após o cumprimento da medida. A base para essa transformação será o
Projeto Aroeira.
A respeito do Projeto Aroeira, destaca-se: [...] o Aroeira – Consórcio Social da Juventude da Região da Grande Florianópolis, que se configura como forma de atuação do Programa Nacional de Estímulo ao Primeiro Emprego (PNPE) do Governo Federal, em convênio com uma entidade-âncora local, no caso o Centro Cultural Escrava Anastácia, e vinte e seis entidades-executoras escolhidas entre organizações da sociedade civil com atuação na região. Esse programa tem como objetivo principal promover criação de oportunidades de trabalho, emprego e renda para jovens – mulheres e homens – em situação de maior vulnerabilidade social, por meio da mobilização e articulação das várias forças da sociedade civil e do Estado. O Aroeira atendeu, entre outubro de 2005 e março de 2006, a 1200 jovens com idades entre 16 e 24 anos, com baixa renda familiar [...] moradores de áreas de risco e jovens em conflitos com a lei. [...]. O processo de capacitação se organizou em três etapas: uma primeira, denominada qualificação básica, [...] nas quais foram implementadas oficinas de elevação da escolaridade [...], inclusão digital [...], valores humanos, ética e cidadania [...], educação ambiental [...] com o objetivo de proporcionar conhecimentos básicos aos jovens para que pudessem vir a qualificar sua atuação cidadã tanto nas empresas quanto na sociedade. Na segunda etapa, denominada oficina-escola, foram desenvolvidos conteúdos de cunho profissionalizante [...]. As áreas de profissionalização foram escolhidas buscando-se a adequação entre o que os jovens gostariam de fazer e o que o mercado profissional carece, procurando aliar necessidades a interesses. Finalmente a terceira fase do curso compreendeu a formação específica [...]. Aí foram abordados temas referentes à inserção dos jovens no mercado de trabalho, bem como a integração em diversas comunidades de periferia, rompendo territórios cujas fronteiras se achavam cristalizadas, quer por rixas históricas, quer
61
por demarcações mais recentes oriundas dos patrões do tráfico. [...].211 (grifo do autor)
De acordo com Nadir, a nova coordenação do centro pretende trabalhar o conceito
pedagógico da instituição, com a participação da equipe técnica e monitorias, conversando e
debatendo sobre as experiências de cada um e seus objetivos, visando primeiramente capacitar
esses profissionais para uma visão diferenciada de atendimento aos adolescentes. Ao mesmo
tempo, serão chamados os internos para conversar sobre uma relação com os profissionais e
as suas expectativas durante o tempo de permanência na instituição, para que aqueles
compreendam a dimensão da medida, não apenas como um castigo, mas como meio de
profissionalização e ressocialização. Anuncia que alguns internos já estão fazendo curso de
informática fora do centro educacional e, ainda naquela tarde, deveriam chegar 6 (seis)
computadores para a instalação de um laboratório de informática.
O propósito da nova coordenação é mudar a visão carcerária existente na própria
equipe técnica do São Lucas, para que possa refletir diretamente na relação com os internos.
3. 5 BREVE ANÁLISE SOBRE A QUESTÃO DA REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL
Numa breve análise sobre a questão da redução da idade penal, a proposta
reducionista aparece na contramão da história. O projeto do Brasil, de reduzir para 16
(dezesseis) anos a imputabilidade penal, está diretamente relacionada com a absoluta
desconsideração com o cumprimento das regras de responsabilização previstas no ECA.212
Em decorrência disso, brada-se como solução para o enfrentamento da criminalidade que “[...]
lançando-se jovens de 16 anos no falido sistema (?) penitenciário brasileiro, se estará
contribuindo para o resgate da cidadania nacional”.213
Enfatiza João Batista da Costa Saraiva, a necessária distinção a qual impõe que se
faça, entre inimputabilidade penal e impunidade: “A inimputabilidade - causa de exclusão da
211 AZIBEIRO, Nadir Esperança. Que cara tem o Aroeira? Florianópolis: Centro de Estudos e Projetos Educacionais e Culturais, 2006, p. 16-20. 212 Cf. SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e o ato infracional: garantias processuais e medidas sócio-educativas, p. 122. 213 SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e o ato infracional: garantias processuais e medidas sócio-educativas, p. 122.
62
responsabilidade penal - não significa, absolutamente, irresponsabilidade pessoal ou
social”.214
Para alguns setores da sociedade, a solução no combate à criminalidade seria a
redução da idade de imputabilidade penal, hoje fixada em 18 (dezoito) anos para 16
(dezesseis) anos de idade. A ênfase dada a esta proposta é tamanha, “[...] que induzem a
opinião pública a crer que seria a solução mágica na problemática da segurança pública, capaz
de devolver a paz social tão almejada por todos”.215 Recentemente foi aprovado no Congresso
Nacional um Projeto de Emenda Constitucional que pretende alterar a maioridade penal para
os 16 (dezesseis) anos.
O clamor social em relação ao jovem infrator surge da equivocada sensação de que
nada lhe acontece quando é autor de infração penal, noção errônea de impunidade que se têm
revelado um maior obstáculo à plena efetivação do ECA, principalmente diante da crescente
onda de violência, em níveis alarmantes.216
Seguindo esta esteira, completa Ari Ferreira de Queiroz: [...] é fácil perceber que o legislador ‘fantasiou’ certos termos para dar a impressão de que não se aplicam penas ao adolescente infrator, como ‘ato infracional’, ‘medida sócio-educativa’, ‘apreensão’ ou ‘liberação’, que, em casos envolvendo pessoa com mais de dezoito anos, seriam, respectivamente, ‘crime’, ‘pena’, ‘prisão’ ou ‘soltura’. [...] Outra ironia é dizer que o menor de dezoito (18) anos é inimputável, sujeitando-se somente às medidas previstas no Estatuto, pois algumas delas, como a internação, são mais severas do que a própria pena de detenção em regime aberto ou não, porquanto deve ser cumprida em regime fechado.217
De acordo com a pesquisa realizada por Kathie Njaine e Maria Cecília de Souza
Minayo sobre a análise do discurso da imprensa escrita em relação às rebeliões e fugas de
adolescentes em conflito com a lei, extraí-se: [...] o estado real de precariedade do cumprimento das medidas socioeducativas contribui para o quadro atual de questionamento, discriminação e, por vezes, de rejeição por parte de vários segmentos da sociedade, às propostas constitucionais de direitos das crianças e dos adolescentes. No caso da imprensa, há duas tendências mais evidentes em relação à infração juvenil, tal como tratada pelo ECA. Uma afirma a incapacidade do Estatuto para resolver o problema da criminalidade. A segunda busca ressaltar a complexa
214 VOLPI, Mario (Org.); SARAIVA, João Batista; KOERNER JÚNIOR, Rolf. Adolescentes Privados de Liberdade: A normativa Nacional e Internacional e Reflexões acerca da responsabilidade penal, p. 158. 215 Cf. VOLPI, Mario (Org.); SARAIVA, João Batista; KOERNER JÚNIOR, Rolf. Adolescentes Privados de Liberdade: A normativa Nacional e Internacional e Reflexões acerca da responsabilidade penal, p. 157. 216 Cf. VOLPI, Mario (Org.); SARAIVA, João Batista; KOERNER JÚNIOR, Rolf. Adolescentes Privados de Liberdade: A normativa Nacional e Internacional e Reflexões acerca da responsabilidade penal, p. 158. 217 QUEIROZ, Ari Ferreira de. Direito da Criança e do Adolescente, p. 110.
63
realidade da infância e da juventude brasileiras, sobretudo os problemas dos segmentos empobrecidos e miseráveis.218
As referidas autoras afirmam que a imprensa apenas tende a repercutir as idéias
dominantes na sociedade e o quanto à mesma está arraigada na idéia de que mais repressão
diminui a violência.219
As soluções dos problemas derivados da criminalidade juvenil não residem nas
fórmulas autoritárias de redução da menoridade penal nem da internação habitual dos
adolescentes infratores, mas da imposição ao poder público de identificar os fatores sociais
que geram o abandono material e a situação de exclusão social dos mesmos.220
218 NJAINE, Kathie; MINAYO, Maria Cecília de Souza. Análise do discurso da imprensa sobre rebeliões de jovens infratores em regime de privação de liberdade. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/csc/v7n2/10248.pdf >. Acesso em: 26 jul. 2006. 219 NJAINE, Kathie ; MINAYO, Maria Cecília de Souza. Análise do discurso da imprensa sobre rebeliões de jovens infratores em regime de privação de liberdade. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/csc/v7n2/10248.pdf>. Acesso em: 26 jul. 2006. 220 Cf. MELO FILHO, José Celso de apud SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e o ato infracional – garantias processuais e medidas sócio-educativas, p. 123.
64
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como ficou evidenciado, a ineficácia da aplicação da medida de internação está
necessariamente interligada à violência estrutural na qual o Estado e a sociedade estão
inseridos, e em que uma parcela considerável da população sequer pode ser conceituada de
cidadãos, pois vivem às margens do sistema social, pois são submetidos às mais variadas
formas e processos de exclusão. É neste contexto torna-se visível que as crianças e os
adolescentes acabam sendo a parte mais sensível e ao mesmo tempo mais exposta às
influências degradantes desta crise.
Pode-se constatar durante as pesquisas realizadas para esta monografia, que a
aplicação da medida de internação aos adolescentes, como resposta a um ato infracional
cometido, não possui o cunho pedagógico objetivado pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente, mas a repressão carcerária.
Esses adolescentes são na verdade vítimas de um sistema falido, que não lhes deu a
menor oportunidade de acesso social, além de sofrerem privação dos seus direitos primordiais
de saúde, educação e moradia. Essa situação é a mesma encontrada após o cumprimento da
medida, conforme constado em entrevista no Centro Educacional São Lucas, motivo este que
acaba por justificar o elevado grau de reincidência e morte de ex-internos.
No primeiro capítulo buscou-se situar o tema da criação do Estatuto da Criança e do
Adolescente, além de contextualizar as principais definições existentes no mesmo sobre as
medidas de proteção e as medidas sócio-educativas. Ressaltamos a conceituação diferenciada
que o ECA dispõe, objetivando reconhecer os direitos especiais e específicos relativos às
crianças e aos adolescentes por se tratarem de pessoas em desenvolvimento.
Já no segundo capítulo explanamos sobre a medida de internação e as garantias
individuais e processuais pertinentes, demonstrando o cuidado do legislador ao assegurar tais
direitos ao adolescente sujeito a medida de internação, bem como os princípios norteadores de
dessa medida, quais sejam o da excepcionalidade e o da brevidade. O caráter excepcional e
breve da medida fundamenta-se nos provados efeitos negativos oriundos da internação dos
adolescentes que se encontram em condições peculiares de desenvolvimento.
Finalmente no último capítulo, buscou-se avaliar a aplicação da medida de
internação no Centro Educacional São Lucas. Após verificação in loco, foi possível ratificar
vários descumprimentos garantistas constantes no relatório de “Inspeção Nacional às unidades
de internação de adolescentes em conflito com a lei”, utilizado como base para avaliar a
65
aplicação da medida no referido local, tais como a inexistência de programas pedagógicos, a
falta de propostas de preservação ou restabelecimento de vínculos familiares e comunitários,
carência e despreparo da equipe técnica, instalações físicas inadequadas, a pálida ou até
mesmo inexiste participação de advogado, etc.
Estes adolescentes, em sua maioria, presenciaram ou foram vítimas de violência em
seu lar (se é possível chamar de lar lugares onde além da pobreza inexistem laços de afeto e
respeito), que os condicionam a atitudes de agressividade e violência como resposta a falta de
estrutura psicológica, material e de cultura social de inserção, já que a sociedade (hipócrita)
apenas discrimina, sem pensar em oferecer oportunidades.
Essa sociedade, da qual todos nós e principalmente nossos governantes fazemos
parte, debatem a redução da maioridade penal, propagando a idéia de que mais repressão
diminui a violência. Visão deteriorada. É clara a prova desse fato quando observamos os
presídios brasileiros abarrotados de gente sem a menor perspectiva de reinserção social pelos
estigmas a que estão submetidos e que se perpetuam, decorrentes das condições desumanas de
nossas prisões e de sua passagem por elas.
E essa forma discriminatória e de exclusão também atinge os adolescentes infratores
que muitas vezes são rotulados de “delinqüentes”, “marginais”, “perigosos”. A sociedade
fecha a esses adolescentes quaisquer possibilidades de recuperação de re-inserção social,
condenando-os “sem dó, nem piedade” a futuros ocupantes do sistema prisional “falido”
brasileiro. Numa linguagem metafórica, transformamo-os em “demônios” na medida em que
acabamos por sentenciá-los a uma vida marcada pela internação.
Esse quadro preocupante não será resolvido com a redução da idade penal. É
necessário que o Estado consiga assegurar maior igualdade entre a população, e depois,
talvez, terá alguma legitimação para tratar de responsabilidade individual e alteração de leis
como vem sugerindo.
Há que se respeitar à condição do adolescente, e também da criança, como pessoas
em desenvolvimento e lhes garantir prioridade no atendimento como dispõe o Estatuto,
interpretando-o com seriedade e acreditando não ser uma legislação utópica, condição
indispensável à consciência e responsabilidade social. É fundamental que o projeto político-
pedagógico das instituições responsáveis pela internação reconheça as desigualdades sociais
para que possam ser combatidas não apenas a partir de análises subjetivas, mas também de
análises que busquem a compreensão da origem desses infratores. Talvez a partir desse
aprofundamento seja possível demonstrar como “responsabilidade” e “moralidade” estão
longe de ser atributos distribuídos aleatoriamente pela sociedade.
66
A sociedade desconhece que o Estatuto possibilita, através das medidas sócio-
educativas, que o jovem possa superar seu envolvimento com o “mundo do crime” e
reingressar na sociedade. Para isso deverá ser interpretado e cumprido de forma fiel aos seus
princípios. Nesse contexto, a aprovação da Proposta de Execução das Medidas Sócio-
Educativas possibilitaria uma melhor aplicação e individualização no atendimento ao
adolescente infrator como resposta justa e adequada. Desde 1998 tem-se discutido a referida
proposta de lei buscando disciplinar o procedimento para a execução das medidas sócio-
educativas, já que da leitura do Estatuto evidencia-se a existência de muitas lacunas no texto
da lei, que não regulamenta o procedimento da execução.
Por que a sociedade não se mobiliza para ajudar esses adolescentes a encontrar uma
alternativa, colaborando com os programas de educação e reinserção social desses
adolescentes? Onde estão as cobranças do Estado nesse sentido, educação de qualidade?
Criação de espaços de lazer?
Cabe a reflexão de que não seria mais fácil e saudável ajudar um adolescente se
tornar um adulto equilibrado e responsável do que ser vítima desses na idade adulta, levando-
o às penitenciárias?
Concluindo, pode-se afirmar que o ECA prevê sanções e medidas de caráter
punitivo-pedagógico para os atos infracionais cometidos por adolescentes. O problema é que a
lei não é aplicada como deveria. O exemplo do Centro Educacional São Lucas é claro ao
demonstrar que, como a maioria das instituições de internação existentes, não consegue
atingir a finalidade da ressocialização e reinserção do jovem, como demanda o Estatuto. Além
da falta de aparato estatal, falta uma visão mais ampla e consciente da sociedade em relação
ao menor infrator, um comprometimento, antes e depois do cumprimento da medida. A
medida de internação, quando necessária, é eficaz na recuperação dos jovens se for aplicada
corretamente e excepcionalmente.
O exemplo do Centro Educacional São Lucas em modificar a visão carcerária
propostas pela atual administração pode ser o caminho para resgatar a dignidade destes
adolescentes e reintegrá-los ao convívio da sociedade.
67
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBERGARIA, Jason. Direito Penitenciário e Direito do Menor. Belo Horizonte: Mandamentos, 1999. ALBERNAZ JÚNIOR, Victor Hugo; FERREIRA, Paulo Roberto Vaz. Convenção Sobre os Direitos da Criança. Disponível em: < http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/textos/tratado11.htm >. Acesso em: 24 out. 2006. ALMEIDA, Guilherme Assis de; Perrone, Cláudia; PERRONE, Moisés (Coords.). Direito Internacional dos Direitos Humanos. São Paulo: Atlas, 2002. AMARAL E SILVA, Antônio Fernando; MENDES, Emílio Garcia. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. AMARAL E SILVA, Antônio Fernando (Coord.). Cadernos de Direito da Criança e do Adolescente 2. 2. ed. Recife: Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e da Juventude, 1998. AZIBEIRO, Nadir Esperança. Que cara tem o Aroeira? Florianópolis: Centro de Estudos e Projetos Educacionais e Culturais, 2006. AZIBEIRO, Nadir Esperança; X, Beatriz; Y, Beatriz: depoimento [maio 2007]. Entrevistadora: Leandra Cunha Lima. São José: Centro Educacional São Lucas, 2007. MP3 (Music Player 3). BAZÍLIO, Luiz Cavalieri; KREMER, Sonia. Infância, Educação e Direitos Humanos. São Paulo: Cortez, 2003. Biblioteca Universal. Disponível em: <http://www.universal.pt/scripts/site/abreviaturas.exe/Lista?i=510.> Acesso em: 20 de maio de 2007. CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. DIMENSTEIN, Gilberto. O Cidadão de Papel. São Paulo: Ática, 2001.
68
____________________. Democracia em Pedaços: Direitos Humanos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: doutrina e jurisprudência. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2006. Inspeção Nacional às Unidades de Internação de Adolescentes em Conflito com a Lei. Disponível em: <http://www.crpsp.org.br/relatorio_oab.pdf>. Acesso em: 29 de abr. de 2007. JOLY, Heloisa. A tribo dos meninos perdidos. Revista Veja, Abril, São Paulo, ano 40, 10 jan. 2007. LEAL, César Barros. Prisão: crepúsculo de uma era. 2. ed. rev. e atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. KAYAYAN, Agop. Análise situacional e algumas experiências inovadoras no atendimento sócio-educativo aos adolescentes autores de ato infracional no Brasil. Disponível em: <http://www.socialtec.org.br/Downloads/InfanciaJuventude/AgopKayayan_AdolescentesInfratores.doc.> Acesso em: 24 jan. 2007. MOROSO, Sônia Maria Mazzetto (Org.). Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei 8.069 de 13 de Julho de 1990. Florianópolis: Tribunal de Justiça de Santa Catarina, 2006. PRADE, Péricles. Direitos e Garantias Individuais da Criança e do Adolescente. Florianópolis: Obra Jurídica, 1995. QUEIROZ, Ari Ferreira de. Direito da Criança e do Adolescente. 5. ed. Goiânia: Instituto de Ensino e Pesquisa Científica, 2005. SANTA CATARINA. Secretaria de Estado do Desenvolvimento Social e da Família. AMIN, Esperidião. O Estatuto da Criança e do Adolescente. Florianópolis, 1999. SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e o ato infracional: garantias processuais e medidas socioeducativas. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
69
SILVEIRA, Darlene de Moraes; PAULA, Giovani de. Direitos da Criança e do Adolescente: prevenção da violência e da exclusão social. Palhoça: Unisul Virtual, 2006. SIMONETTI, C. (Org.) et al. Do avesso ao Direito. São Paulo: Malheiros, 1994. SMANIO, Gianpaolo Poggio. Interesses Difusos e Coletivos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1999. TRINDADE, Jorge. Delinqüência Juvenil: uma abordagem transdisciplinar. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1993. VERONESE, Josiane Rose Petry. Os Direitos da Criança e do Adolescente. São Paulo: LTr, 1999. ___________________________. Entre violentados e violentadores. São Paulo: Cidade Nova, 1998. VOLPI, Mario (Org.). O adolescente e o ato infracional. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1999. VOLPI, Mario (Org.), SARAIVA, João Batista, KOERNER JÚNIOR, Rolf. Adolescentes Privados de Liberdade: A normativa Nacional e Internacional e Reflexões acerca da responsabilidade penal. São Paulo: Cortez, 1997.
ANEXO 1 - INSPEÇÃO NACIONAL ÀS UNIDADES DE INTERNAÇÃO DE ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI
uma retrato das unidades
de internação de adolescentes
em conflito com a lei
uma retrato das unidades
de internação de adolescentes
em conflito com a lei
2
3
- Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFP- Comissões de Direitos Huma-nos dos Conselhos Regionais de Psicologia
Comitê Organizador pelo CFP:Esther M. ArantesMonalisa BarrosYvone Magalhães Duarte
Revisão Técnica:Maria de Nazaré Tavares Zenaide Elisângela Sena Rodrigues
Fotos: acervo do Sistema Conselhos - CFP e OAB
- Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB- Comissão Nacional da Criança e do Adolescente da OAB- Seções da OAB
Comitê Organizador pela OAB:Marta Marília ToninJosé Edísio Simões SoutoJoelson DiasJosé Moura Filho
Revisão Técnica: Paula Inez Cunha Gomide
Organização da Inspeção
4
Inspeção Nacional
às unidades de internação
de adolescentes em
conflito com a lei
Relatório das visitas realizadas simultaneamente em 21 estados brasileiros e no Distrito Federal,
no dia 15 de março de 2006.
5
Sumário
Agradecimento............................................................................................Apresentação...............................................................................................Prefácio......................................................................................................
Região SudesteSão Paulo..............................................................................................Rio de Janeiro........................................................................................Minas Gerais.........................................................................................Espírito Santo.......................................................................................
Região SulParaná..................................................................................................Santa Catarina......................................................................................Rio Grande do Sul.................................................................................
Região NorteAcre.......................................................................................................Amazonas..............................................................................................Pará.......................................................................................................Rondônia...............................................................................................Roraima.................................................................................................
Região Centro-oesteMato Grosso..........................................................................................Mato Grosso do Sul................................................................................Goiás.....................................................................................................Distrito Federal.......................................................................................
Região NordesteBahia.....................................................................................................Ceará.....................................................................................................Paraíba..................................................................................................Piauí......................................................................................................Pernambuco..........................................................................................Sergipe..................................................................................................Conclusões..........................................................................................Recomendações.....................................................................................
6710
16262834
374347
5254586365
67697275
79859598100103107116
6
Agradecimento
A Coordenação Nacional do presente trabalho agradece, mui especialmen-te, ao Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Dr. Roberto Antonio Busato, e à Presidente do Conselho Federal de Psicologia, Drª Ana Mercês Bahia Bock, por terem acatado decisão de suas Comissões de Direi-tos Humanos e Criança e Adolescente, no sentido de promover a realização da Inspeção Nacional às Unidades de Internação de adolescentes em conflito com a lei, e pelo apoio político-financeiro que possibilitou a ocorrência e divulgação da amostragem em caráter inédito no país. Vale salientar que tal Inspeção só pôde ser concretizada porque contou com o decisivo apoio e execução das Comissões de Di-reitos Humanos e Criança e Adolescente das Seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil, dos Conselhos Regionais de Psicologia, do Ministério Público Estadual e das entidades locais.
Brasília, 2 de junho de 2006.Marta Marília Tonin
Presidente da Comissão da Criança e do AdolescenteConselho Federal da OAB
José Edísio Simões SoutoPresidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos
Conselho Federal da OAB
Esther Maria de Magalhães ArantesCoordenadora da Comissão Nacional de Direitos Humanos
Conselho Federal de Psicologia
7
Apresentação
Da relevante parceria entre Conselho Federal de Psicologia e Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil resultaram as Inspeções de Direitos Humanos, simultâneas às unidades de privação de liberdade de adolescentes de todo o país, com o objetivo de avaliar os níveis de efetivação dos direitos deferidos aos jovens nesta condição, denunciar as violações, suscitar o debate e propor ações.
Anima, desde logo, observar o resultado de uma ação combinada entre advoga-dos e psicólogos, simbolicamente como prática compensatória dos serviços prestados pelos saberes psi e jurídico na consolidação e legitimação dos espaços de controle segregado da diferença, como bem demarcou Foucault.
Anima também que os órgãos de classe, despojados das habituais preocupações corporativas, tenham gestado a iniciativa a partir de suas respectivas comissões de Direitos Humanos. A política para a infância e juventude, de uma forma geral, e a segregação juvenil, em especial, encontram seu lugar natural de reflexão e debate na política de Direitos Humanos, donde a obscuridade repressiva, reforçada pela hipocrisia salvacionista, esforçam-se, cotidianamente, para retirá-la, como de fato a retiram. Ainda hoje os direitos parecem pouco relevantes neste âmbito, um misto de assistência social com educação, prevalecendo, como historicamente consagrado, o ideal de bondade do adulto poderoso de plantão (e são muitos) a dizer o que pode e o que deve ser feito para “o bem-estar do menor”.
O formato escolhido, com incursões simultâneas aos centros de internação de praticamente todas as unidades da federação, foi especialmente feliz. Fornece uma leitura comum das diferenças e invariâncias da experiência de privação de liberdade de adolescentes em nível nacional. Ambas, semelhanças e diferenças, são eloqüentes. Como invariância, tem-se a significativa constatação de que o ideal sócio-educativo do regime persiste, de fato, ainda como ideal. O inconsistente delineamento de uma estratégia pedagógica objetivada a inspirar e significar todas as ações concretas dirigidas em face do interno e a dificuldade de compatibilizar garantia de direitos com os reclamos da disciplina, da ordem e da segurança, restam como um desafio ainda intransposto.
De outro lado, a comparação entre as realidades locais mostra que o trato ab-solutamente desumanizante, observado em grandes números e espaços, pode assim não ser e que, onde persiste, pode ser creditado à inconsistência dos investimentos ou à incompetência do gerenciamento alçado à condição de política pública delibe-radamente executada ou não executada.
A par de servir como importante termômetro aos próprios programas inspecio-nados, um olhar crítico externo sempre bem-vindo para um gestor honesto, o tra-
8
balho resulta como precioso subsídio para o desenho das prioridades demandadas a políticas de âmbito nacional: a construção de pautas mínimas de normatização e controle do sistema. Neste passo, o retrato tirado fornece relevante contraponto a instrumentos como o Sinase (Sistema Nacional de Atendimento Sócio-educativo) e ao Projeto de Lei de Execução de Medidas Sócio-educativas, reforçando sua perti-nência e reclamando providências para que, de fato, suas prescrições vigorem e se efetivem. Mais do que isso, e parece inevitável, há que se viabilizar, em casos extre-mos, formas de intervenção federal nos sistemas estaduais aniquiladores dos direitos dos jovens, visando restaurar o mínimo de dignidade tolerável.
Mas o que se nota, da diversificada origem e natureza das violações observadas, é que a tarefa de enfrentá-las requer um esforço coletivo, a começar - numa salutar postura de auto-escrutínio - pelo que caberia aos próprios psicólogos e advogados que capitanearam as inspeções.
No plano jurídico, do ponto de vista teórico, o pano de fundo parece dado, sem maiores dificuldades. A partir das bases construídas pela doutrina das Nações Unidas para proteção integral da criança e do adolescente, sabe-se o que deve e o que não pode ser feito. Falta talvez desenhar-se um maior refinamento dos instrumentos de exigibilidade, ou talvez nem isso: dois terços do Estatuto da Criança e do Adolescente concebem um sofisticado sistema de estratégia de garantia de direitos. O que falta, talvez, seja a constituição de um aparato de profissionais formados em número e pro-fundidade suficiente para compor uma rede eficaz de monitoramento das violações.
Ações civis públicas, procedimentos para apuração de irregularidade em entidades de atendimento, indenizações por danos morais resultantes de maus-tratos, resoluções normatizadoras dos conselhos municipais e estaduais, acionamento de mecanismos in-ternacionais de proteção aos Direitos Humanos, responsabilização administrativa, penal e civil do agente violador ainda despontam como instrumentos sub ou mal utilizados, não obstante as reiteradas iniciativas, aqui ou acolá, de Organizações Não-governamentais, Ministério Público e conselhos. Mas o grande desafio está em conferir efetividade aos mecanismos de controle quando acionados: denúncias, resoluções e decisões judiciais (nem elas) não parecem afetar, como deveriam, a soberba do Executivo deliberada-mente omisso, inconseqüente, incompetente e impermeável à participação popular.
De uns tempos para cá e cada vez mais, de outro lado, a Psicologia, seja pela via aca-dêmica, seja por via dos conselhos Federal e regionais, tem pautado a incessante neces-sidade de balizar-se a atuação profissional na linha do respeito e promoção dos Direitos Humanos. Propõe-se, assim, profunda revisão de práticas psicológicas historicamente naturalizadas, não obstante segregatórias, discriminatórias, docilizadoras. Do diagnóstico ao tratamento, dos testes à Psicoterapia, da pesquisa inovadora às abordagens consagra-das, tudo há de ser filtrado na malha fina da igualdade, dignidade e liberdade humana. Grande parte deste trabalho encontra-se em curso, e o maior desafio, aqui, parece ser o treino crítico do olhar profissional ainda hoje por demais autoconfiante e tecnicista e por de menos consciente dos interesses mediatos ou imediatos a que servem os saberes
9
postos em prática. O que faz um psicólogo em um local como a FEBEM? É a pergunta, propositadamente ambígüa, que fica e que não pode, nunca, calar-se.
Por certo, não há dúvida, da extensão e sofisticação do trabalho apresentado advirão frutos ou pelos menos restarão plantadas mais sementes de indignação necessária ao movimento de mudança.
Uma mudança que se espera caminhe, para além do indispensável esforço de tornar o cárcere juvenil menos desumano, no sentido de entendê-lo, creio eu, como disse Basaglia em relação aos manicômios, jamais plenamente humanizável. A lógica da segregação e da instituição total é ela, sempre, desumanizante. A pretensão de se tornar eficazmente educativa a lição ministrada por detrás das grades é preten-siosa, já que, bem nos lembra Ferrajoli, repressão e educação são definitivamente
incompatíveis, como são a privação de liberdade e a liberdade mesma, que constitui
a substância e o pressuposto da educação, de maneira que a única coisa que se pode
pretender do cárcere é que seja o menos repressivo possível e, por conseguinte, o menos
dessocializador e deseducador possível.
Não é por outra razão que a primeira, dentre as perspectivas fundamentais das Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade, vem assim traduzida: “O sistema de justiça da infância e da juventude deverá respeitar os direitos e a segurança dos jovens e fomentar seu bem-estar físico e mental.” Não deve-
ria ser economizado esforço para abolir, na medida do possível, a prisão de jovens.
Não é por outra razão, também, que o Estatuto da Criança e do Adolescente desenha unidades de contenção verdadeiramente modelares, pautadas nas obrigações do artigo 94 e no respeito aos direitos do artigo 124 e, mesmo assim, logo depois, vem dizer que tal medida é providência de exceção, só aplicável em último caso e pelo menor tempo de duração possível. Não há nem haverá internação boa. Não se pode perder de vista tal horizonte, de modo que, tão relevante quanto as condições em que o Estado mantém o jovem custodiado é a denúncia da pertinência jurídica, psicológica, pedagógica e social da privação de liberdade imposta a cada um deles. Inexistiriam, efetivamente, em face deles, toda e qualquer alternativa sócio-educativa aplicável?
Nesse esforço, que concretamente poderia traduzir-se numa inspeção de pron-tuários (consentida, é claro), apresenta-se, num âmbito mais legal, a tarefa de conceber-se filtros mais rigorosos ao manejo da privação de liberdade, hoje limitada de forma por demais genérica e ampla no artigo 122 do Estatuto.
De outro lado da Psicologia e da Pedagogia reclama-se a desafiadora tarefa de desenhar possibilidades de intervenção, para casos complexos e resistentes, que possam prescindir do confinamento como condição necessária de efetivação. Eis aí um ponto de partida necessário para qualquer mudança.
Flávio Américo FrassetoDefensor Público em São PauloMestre em Psicologia pela USP
10
Prefácio
Durante os primeiros séculos da colonização portuguesa, a prática em relação à criança indígena era a de separá-la de sua família para moldá-la aos costumes ditos civilizados e cristãos, e, em relação à criança negra, era a de sua incorpora-ção como força de trabalho escrava, tão logo atingisse a idade de 7 anos. Quanto à assistência, limitava-se ao recolhimento de expostos e órfãos em instituições cari-tativas. Não existia, àquela época, “a criança”, pensada como categoria genérica, em relação à qual pudéssemos deduzir algum direito universal, pois não existia o pressuposto da igualdade entre as pessoas, sendo a sociedade colonial construída justamente na relação desigual senhor/escravo. O que existiam eram os “filhos de família”, os “meninos da terra”, os “filhos dos escravos”, os “órfãos”, os “expos-tos”, os “desvalidos” ou, ainda, os “pardinhos”, os “cabrinhas”, os “negrinhos”.
Os “filhos legítimos de legítimo matrimônio” não colocavam problemas à ordem social, pois que, justamente, encontravam-se sob o controle do “pai de família”, que tinha poderes quase ilimitados. Da mesma forma, os meninos da “terra”, contidos nos colégios jesuítas, e os “negrinhos”, propriedades do senhor, encontravam-se controlados socialmente através destas relações de posse e assu-jeitamento. Os “expostos” e os “órfãos”, embora sem o suporte familiar, encontra-vam nos estabelecimentos mantidos pela caridade, como as Casas da Roda e os Recolhimentos das Órfãs, o seu guardião legal.
Naquela época, as categorias que colocavam problemas à ordem social eram as gentes “sem-eira-nem-beira” - os mendigos, os viciosos, os vadios - fenômeno tão bem descrito por Laura de Mello e Sousa no livro “Os desclassificados do ouro”. Essa gente desclassificada não tinha como se inserir na estrutura dual da sociedade colonial. Não eram escravos propriamente, porque não haviam sido comprados, e também não eram senhores, não podendo ocupar posições na es-trutura burocrática e administrativa da colônia. Existiam como uma espécie de “mão-de-obra de reserva escrava”, temidos como sendo “a pior raça de gente”, mas, ao mesmo tempo, reserva útil, objeto de recrutamento forçado sempre que o Estado necessitasse de milícias para o combate aos quilombolas e aos índios, ou para a construção de estradas, prisões e demais edificações e serviços.
O problema modifica-se quando os escravos, a partir da Lei do Ventre Livre e da Abolição, adquirem a condição de livres e, portanto, de “filhos” e “pais de família”, sem, contudo, adquirirem as condições materiais para o exercício ple-no da cidadania. Foi quando crianças e adolescentes pobres, agora identificados como “menores”, passaram a ser encontrados nas ruas, brincando, trabalhando, esmolando ou cometendo pequenos furtos.
11
A República, longe de reverter esse processo, buscou instituir uma legislação específica para os menores, visando, sobretudo, o controle daqueles considerados moralmente abandonados. Assim, o Código Penal de 1890, um ano após a pro-clamação, reduziu a idade penal para nove anos, permitindo o envio de crianças e adolescentes para as casas de detenção. Ao não abolir, mas apenas regulamentar o trabalho infantil, a República também permitiu que crianças ficassem fora da escola regular. Construiu-se, desta forma, sobre a base da regulamentação da idade penal e do trabalho infantil, da possibilidade de destituição do pátrio poder e da internação dos menores pobres, um sistema dual no atendimento às crianças, uma vez que, enquanto o Código Civil de 1916 tratava dos “filhos de família”, o 1º Código de Menores (1927) tratava dos menores “em perigo” e “perigosos”, a saber: os “expostos”, “abandonados”, “desvalidos”, “vadios”, “mendigos”, “vi-ciosos” e “libertinos”.
Embora não se possa estabelecer apenas rupturas entre os dois modelos - co-existindo muitas vezes o mesmo propósito de controle social e o mesmo método de confinamento - podemos afirmar, no entanto, que o sistema caritativo, de natureza religiosa e asilar, ocupava-se basicamente da pobreza, motivado prin-cipalmente pelo dever de salvação das almas. Já a filantropia dita esclarecida, de natureza cientificista e favorável a uma assistência estatal, tendeu sempre a uma gestão técnica dos problemas sociais, ordenando os desvios a partir de um modelo de normalidade que, em última instância, revelou-se preconceituoso - pois que definia a criança pobre quase sempre como “anormal”, “deficiente” ou “delin-qüente”.1
Tal a força e abrangência deste sistema dito de proteção à infância que, prati-camente, cobria todo o universo de crianças pobres, pois que à “situação irregular do menor” (categoria do 2º Código de Menores-1979) correspondia uma suposta família “desestruturada” - por oposição ao modelo burguês de família, tomada como norma - à qual a criança sempre escapava: seja porque não tinha família (“órfã” ou “abandonada”); porque a família não podia assumir funções de pro-teção (“carente”); porque não podia controlar os excessos da criança (menor de “conduta anti-social”); porque as ações e envolvimentos da criança ou do adoles-cente colocavam em risco sua segurança, da família ou de terceiros (“infrator”); seja porque a criança era dita portadora de algum desvio ou doença com a qual a família não podia ou sabia lidar (“deficiente”, “doente mental”, com “desvios de conduta”); seja ainda porque, necessitando contribuir para a renda familiar, fazia da rua local de moradia e trabalho (meninos e meninas “de rua”); ou ainda porque, sem um ofício e expulso/evadido da escola ou fugitivo do lar, caminhava ocioso pelas ruas, à cata de um qualquer expediente (“perambulante”).
Foi para romper com esta lógica e com estas práticas que os movimentos sociais, sindicatos, pastorais, partidos políticos e demais grupos e organizações da chamada sociedade civil, no bojo da mobilização pelo fim da Ditadura Militar
1Cf. ARANTES,E.M. ; BRITO, L.T; RODRIGUES,H.C. Adolescência, ato infracional e cidadania no Rio de Ja-neiro: 1900-2000. A construção do ‘’jovem perigoso’. Edital FAPERJ 2003/04 - Direitos Humanos ParaTodos.
12
e pela redemocratização do Brasil, iniciaram ampla mobilização em torno dos Direitos Humanos e de cidadania dos diferentes grupos marginalizados da popu-lação brasileira, entre os quais os chamados “menores”.
Munidos de farta documentação e de pesquisas que evidenciavam a falência do modelo de atendimento “correcional-repressivo”, foi possível aos movimentos sociais, por ocasião da Constituinte em 1987, mostrar: 1) que os internatos não eram o melhor meio de proteção à criança pobre; 2) que o papel do técnico, longe de ser apenas terapêutico e educativo, estava sendo de controle e que, na realida-de, a rotulação da criança (ou o seu “diagnóstico”) já era feito anteriormente pelo policial, no ato mesmo de apreensão da criança na rua; 3) que as famílias, muitas vezes, toleravam as infrações das crianças na medida em que isto significava ren-da familiar, e que o melhor meio para se resolver este problema não seria enviando crianças paras as delegacias policiais; 4) que segmentos da sociedade, preocupa-dos com sua segurança pessoal e com o patrimônio, pressionavam o poder público para punir e confinar o adolescente, sem, contudo, oferecer-lhe alternativas; e, finalmente, 5) que a criança não estava apenas sendo aliciada por adultos para roubos, furtos e venda de drogas, mas estava sendo tomada como mercadoria a qual se podia trocar, vender e mesmo executar.
À medida que se pode efetivamente questionar o modelo de assistência até en-tão vigente, tornou-se possível a emergência de novas proposições. Na redação do artigo 227 da Constituição Federal de 1988, o Brasil adotou não apenas a Decla-ração Universal dos Direitos da Criança, como também o pré-texto da Convenção Internacional da ONU destes mesmos direitos, que, naquela data, ainda não havia sido apresentado à Assembléia Geral das Nações Unidas (foi promulgada em 20/11/1989). Ao assim proceder, aboliu o Código de Menores de 1979 e, em seu lugar, em 1990, promulgou o Estatuto da Criança e do Adolescente / Lei 8.069.
A aprovação desta lei gerou intenso otimismo nos militantes de Direitos Hu-manos, chegando os mais otimistas a afirmarem que o Estatuto representava uma verdadeira revolução nas áreas jurídica, social e política, por considerar a criança como sujeito de direitos, pelo princípio da absoluta prioridade no seu atendimento e pela observância de sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. De-positava-se grande esperança nos Conselhos de Direitos e Conselhos Tutelares, principalmente pelo princípio da participação popular, também estabelecido no Estatuto.
Decorridos quase 16 anos de aprovação do Estatuto, no entanto, forçoso reconhecer que as mudanças até agora obtidas não têm correspondido às nossas esperanças. Em nome do equilíbrio fiscal e do cumprimento de metas pactuadas com organismos internacionais, o Brasil vem, progressivamente, diminuindo o gasto com as políticas sociais básicas, inviabilizando, na prática, o cumprimento da Constituição. A crise que se instala, a partir daí, combina desemprego, deses-perança e violência, onde os jovens pobres do sexo masculino têm sido as maiores
13
vítimas, sendo que grande parte das mortes nesta faixa etária acontece por moti-vos externos: acidentes e assassinatos.
Nesta conjuntura, onde faltam recursos para a garantia dos direitos sociais ou onde tais recursos não são priorizados frente às exigências de controle fiscal, cresce o número de pessoas favoráveis a um endurecimento da legislação. Divulga-se, in-sistentemente, como causa do aumento da violência nos grandes centros urbanos, uma suposta impunidade proporcionada pelo Estatuto, cuja única finalidade seria a de “proteger bandidos”- criando na população uma indiferença face ao trágico destino de milhares de jovens pobres, tanto dos que são executados sumariamente quanto dos que se encontram privados de liberdade.2
Especificamente em relação às unidades de internação para adolescentes em conflito com a lei, forçoso é reconhecer sua inadequação em relação aos parâ-metros do Estatuto, servindo, a grande maioria delas, apenas como contenção e encarceramento para os adolescentes - fato este que tem sido apontado por muitos como constituindo-se em efetiva redução da idade penal no Brasil, uma vez que, a partir dos 12 anos de idade, os adolescentes estariam sendo, na realidade, pro-cessados (condenados), cumprindo medidas de privação de liberdade (penas), em estabelecimentos sócio-educativos (prisões).
Assim, no âmbito da Campanha Nacional de Direitos Humanos “O que é feito para excluir não pode incluir. Pelo fim da violência nas práticas de privação de liberdade”, com o objetivo de conhecer a situação destas unidades de internação, as Comissões de Direitos Humanos do Sistema Conselhos de Psicologia organi-zaram, em parceria com as Comissões de Direitos Humanos e da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil, e com a colaboração de muitas outras entidades e profissionais de outras áreas, a “Inspeção Nacional às Unidades de Internação de Adolescentes em Conflito com a Lei”, que se realizou no dia 15 de março de 2006, em 21 estados da federação e no Distrito Federal. Para este fim, produziu um Manual de Orientação aos participantes, contendo um roteiro para as visitas.
O relatório que ora apresentamos à consideração pública é o resultado desta ação conjunta e reflete, como era de se esperar, as diferentes sensibilidades das equipes formadas em cada estado, sua maior ou menor familiaridade com os pro-cedimentos necessários a uma inspeção atenta e meticulosa, bem como as dificul-dades ou facilidades encontradas para a realização das visitas. No entanto, ainda que com relatos diferenciados, o retrato que emerge desta Inspeção Nacional é de uma realidade muito semelhante: unidades superlotadas, projetos arquitetônicos semelhantes a presídios, presença de celas fortes e castigos corporais, ausência ou precariedade dos projetos sócio-educativos, desconhecimento por parte dos adolescentes de sua situação jurídica, procedimentos vexatórios de revista dos familiares por ocasião das visitas, adolescentes acometidos de sofrimento mental, dentre outros.
2Cf. ARANTES, E. M. Estatuto da Criança e do Adolescente: Doutrina da Proteção Integral é o mesmo que Direito Penal Juvenil? In ZAMORA, M.H. (org.). Para além das grades. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2005.
14
Da mesma forma que na “Inspeção Nacional de Unidades Psiquiátricas em prol dos Direitos Humanos”, igualmente realizada em ação conjunta do CFP com a OAB, no mês de julho de 2004, nem todas as unidades visitadas foram descritas como cárceres imundos e insalubres, ou como apresentando práticas sistemáticas de violação dos direitos dos adolescentes. Tal fato demonstra que, não obstante a predominância do modelo de atendimento correcional-repressivo ao longo de toda a história do Brasil, é possível mudar.
Sabemos das dificuldades que temos pela frente: o enfrentamento da hegemo-nia do mercado, que se torna cada vez mais o centro da vida, colonizando nossa subjetividade e tornando-nos indiferentes ao sofrimento do outro - que, no Brasil, são permanências históricas: a tortura, as execuções, os processos de exclusão. Sa-bemos da necessidade de formularmos alternativas às prisões, dados os equívocos de se pretender recuperação social através de exclusão, de se elevar os padrões de convivência humana pela via da ruptura dos vínculos sociais e de se pretender a promoção da vida através de rituais de mortificação. No entanto, baseadas em suas experiências de lutas pela promoção dos Direitos Humanos, as Comissões da Criança e do Adolescente da OAB e de Direitos Humanos da OAB e CFP concla-mam a todos para, juntos, construirmos um outro mundo possível e necessário.
Esther Maria de Magalhães ArantesCoordenadora da Comissão Nacional de Direitos Humanos
Conselho Federal de Psicologia
Marta Marília ToninPresidente da Comissão da Criança e do Adolescente
Conselho Federal da OAB
43
Santa Catarina
Herança de Unidade Prisional.
A Unidade visitada foi o Centro Educacional São Lucas, no qual estão inter-nados 52 adolescentes, sendo que existem 40 vagas.
Os alojamentos são precários, existindo apenas um adolescente por “quarto”. Não há superlotação.
Os alojamentos assemelham-se a celas, fora do padrão internacional exigido pela ONU. Condições de ventilação (uma só entrada de ar, com portas de ferro), aclimatização (as entradas de ar são desprotegidas do frio e da chuva) e higiene (os “quartos” são próximos a terrenos baldios, há relatos de convívio com insetos e roedores e a maioria dos “quartos” não conta com vasos sanitários) precárias, sendo que estes jovens são obrigados, no período da noite, a fazer suas necessida-des em sacos plásticos ou garrafas.
Os adolescentes têm horários para circular nas alas dentro da unidade, sempre monitorados.
Segundo a diretora, 60% a 70% dos jovens retornam para a própria unidade. Do restante não há registro.
44
O número de profissionais da saúde é insuficiente para atender às demandas. A equipe de saúde é reduzida a uma psicóloga, uma assistente social, um mé-dico, um dentista, uma agente de saúde, uma enfermeira. Pela informação que tivemos, não há regime de plantão dos profissionais da saúde. Na noite anterior à nossa visita, um jovem passou mal, fizeram cuidados paliativos e somente no dia seguinte este pôde ser encaminhado a um hospital.
Os adolescentes não recebem preservativos, medida justificada pela separação física entre os gêneros.
Os soropositivos, segundo a coordenação, recebem medicação e tratamento via SUS.
As principais queixas dos adolescentes na área da saúde referem-se à falta de ginecologista, coceiras e sarnas, estas em função de colchões velhos, encardidos e sem roupas de cama.
As principais queixas dos adolescentes em relação à alimentação são a fome durante a noite, pois, antes de serem recolhidos (às 19:00h), só podem alimentar-se de frutas.
Não tivemos acesso a projeto pedagógico-profissionalizante na unidade.
Observadas as seguintes atividades:
- Educação: aulas ministradas através do programa CEJA. Oficinas de marcenaria.- Esporte: horas livres na quadra coberta e no campo de futebol.- Lazer: restrito a jogo de baralho, conversas, TV (em horários restritos) e há um pequeno grupo de música RAP, em que uma minoria participa.- Saúde: atendimentos da psicóloga e da assistente social são quinzenais. A freqüên-cia do atendimento de outros profissionais não foi informada.
Não foi constatado nenhum indício de mortes na unidade nos últimos 12 meses, porém, houve um caso que está sendo investigado como suicídio, ocorrido há alguns anos, e o inquérito continua em andamento. A Comissão de Direitos Humanos da OAB/SC já recebeu por carta algumas denúncias, sem qualquer apuração mais detalhada.
Os monitores gerenciam pequenos conflitos entre os jovens. Comunicada, a diretoria da unidade aplica “medidas”, quais sejam: dias em confinamento no quarto e transferência do adolescente em conflito para outra ala da unidade.
Durante a visita pudemos perceber que o controle sobre os horários e sobre possí-veis privações assume caráter de ameaça na rotina dos adolescentes. Há as medidas de punição e a precariedade dos “quartos” e da higiene. Os ambientes são humilhan-tes pela privação de direitos, como privacidade, dignidade, lazer, comunicação.
Segundo foi constatado, há a medida de contenção, transferindo o jovem de uma ala para outra até que seu comportamento melhore, este ficando confinado até que se “acalme”.
45
Os próprios “quartos” dos adolescentes são utilizados para isolamento e puni-ção. Segundo relato de alguns adolescentes, o colchão do “quarto” é retirado como medida de punição. Na ala feminina existe, em um corredor isolado, um “quarto” designado para o isolamento em casos de conflitos e para punição, chamado de “triagem”. O isolamento pode variar de um a três dias. Ocorrem restrições de qualquer atividade (inclusive alimentação) fora do “quarto”.
Segundo a diretora da unidade, não há revista de visitantes, pois são usados detectores de metais, entretanto os adolescentes internos são revistados após a visita, nus.
Não há notícia de Ação Civil Pública em andamento. Existe um Centro Ope-racional da Infância e da Juventude como órgão do Ministério Público Estadual. Este estaria encarregado de fazer Ação Civil Pública, nos casos previstos em lei. Na vistoria faltou informação específica sobre a atuação deste órgão.
Não existe Defensoria Pública estadual institucional. Somente há Defensoria Dativa, o que deixa muitas lacunas pela falta de estrutura. Não houve infor-mações sobre o prazo de internação provisória estar sendo respeitado ou sobre o atendimento dos adolescentes por seus advogados.
Em horários restritos é permitido que os adolescentes tenham acesso à TV. Se-gundo a informação de uma adolescente, pode-se telefonar a qualquer momento para o advogado nomeado e, para familiares, quinzenalmente. Os adolescentes em “castigo” também são punidos de quaisquer meios de comunicação. Segundo a diretora da unidade, todos os objetos que entram na unidade são vistoriados, alegando-se ser esta uma medida preventiva contra a entrada de entorpecentes e de armas. Os adolescentes podem comunicar-se com seus familiares pessoalmente somente nos dias de visita.
Observações gerais:
Por medidas sócio-educativas compreendem-se ações que propiciem, ao ado-lescente, desenvolvimento, educação, aprendizagem; ações que possibilitem sua re-inserção na sociedade com mais recursos para superar e transformar os fatos que o levaram aos conflitos com a lei.
No entanto, num ambiente insalubre, com tantas privações, sem acompanha-mento adequado, sem condições de socialização que levem ao desenvolvimento humano, a “recuperação”, o crescimento destes adolescentes, torna-se inviável.
Percebeu-se a disparidade entre o que o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê e o que efetivamente está sendo operacionalizado. O Centro está pautado pelo modelo carcerário, assemelha-se a um mini-presídio. E, em regaste à história do espaço físico, ressaltamos que a estrutura atual da unidade é herança de uma antiga unidade prisional.
A distorção do papel da unidade é flagrada pela má conservação e subuti-
46
lização dos recursos estruturais. O Centro já contou com horta e laboratório de ervas fitoterápicas e conta, atualmente, com ampla área verde, com estalagem de animais (galinhas, coelhos, porcos e vacas) e lago artificial, espaços estes que são capinados pelos adolescentes como atividade “laboral”. Segundo o relato da dire-tora, alguns funcionários e adolescentes internos, com experiência rural, cuidam dos animais que ainda restam.
O índice de reincidência chama a atenção: em torno de 60%. Se o local re-socializasse o adolescente, trazendo condições de uma vida digna
e sem riscos de exclusão, conforme prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente, talvez este percentual fosse menor.
Ficha Técnica:
Identificação da Unidade: Centro Educacional São LucasEndereço: BR 101 - km 202 - BarreirosCidade: São José - SCCEP: 88.111-000Capacidade: 40Lotação: 52Revista íntima (desnudamento): sim, dos internos apenasViolação do sigilo de correspondência: simTrabalho sócio-educativo: simAtenção à saúde: insuficienteAssistência Jurídica: nãoDefensoria Pública: nãoAcesso ao pátio: sim, esporadicamenteVisitas: simVisitas íntimas: -Comida: -Isolamento: simDenúncias de espancamento: nãoAcesso aos meios de comunicação: restritoArmas no interior da unidade: -Coordenação da UI militarizada: não