a luta pelo passe livre sob a perspectiva do direito à cidade no distrito federal

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  • 8/2/2019 A luta pelo Passe Livre sob a perspectiva do Direito Cidade no Distrito Federal

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    VI ENCONTRO ANUAL DA ANDHEP

    Direitos Humanos, Cidades e Desenvolvimento.

    16 a 18 de setembro de 2010, UnB, Braslia (DF)

    Grupo de Trabalho:EXPERINCIAS DE LUTA PELA REALIZAO DOS DIREITOS HUMANOS NAS CIDADES

    A LUTA PELO PASSE LIVRE SOB A PERSPECTIVA DO DIREITO

    CIDADE NO DISTRITO FEDERAL

    Gabriel Santos Elias (IPOL-UnB)

    Joo Telsforo Medeiros Filho (FD-UnB)

    Braslia, 2010.

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    A LUTA PELO PASSE LIVRE SOB A PERSPECTIVA DO DIREITO CIDADE NO DISTRITO

    FEDERAL1

    Gabriel Santos Elias2

    Joo Telsforo Medeiros Filho3

    I. Introduo

    Dois grandes desafios se apresentam na elaborao deste artigo.

    Primeiramente, a reflexo acerca do transporte pblico e do Direito Cidade, um tema

    to presente no cotidiano da vida das pessoas que sofrem os problemas da

    urbanidade moderna e lutam pela mudana nesse quadro a partir da mobilizao

    popular. justamente nesse contexto que surge tambm o desafio de se elaborar umaanlise crtica com a busca de propostas para a transformao social com base em

    um trabalho acadmico que tem claro propsito poltico. Filiamo-nos, portanto,

    tradio de pensamento cientfico que concebe a realidade como campo de

    possibilidades: a indignao diante do que existe asssume um papel de crtica

    construtiva, sucitando o impulso para teorizar as possibilidades latentes de superao

    daquilo que criticvel4.

    Nesse sentido, foi escolhido o recorte sobre a luta pelo Passe Livre no Distrito

    Federal como crtica ao desenvolvimento da cidade moderna. Analisando a teoria

    modernista do urbanismo, que foi base para o planejamento de Braslia, e o correr da

    histria mais recente, utilizamos como principal referencial terico o Direito Cidade,

    em especial com base no pensamento de Henri Lefebvre. Essa escolha possibilita

    fazer a crtica da lgica excludente do mercado sobre as formaes urbanas, mas

    tambm do vanguardismo e positivismo dos modernistas, ressaltando a importncia da

    participao popular na construo social do espao urbano e na gesto dos bens e

    servios pblicos.

    Com este artigo pretendemos compreender melhor os problemas da cidade

    atravs do processo terico e histrico que atuou sobre o desenvolvimento de Braslia.

    A partir dessa compreenso, buscamos solues j levantadas pela prpria

    1 Agradecemos a Paulo Henrique Santarm por indicaes de bibliografia teis a este trabalho.2 Estudante de Cincia Poltica e bolsista do Programa de Educao Tutorial em Cincia Poltica da UnB.Membro do Grupo Brasil e Desenvolvimento. Contato: [email protected] Estudante de Direito da UnB e bolsista de Iniciao Cientfica do CNPq. Membro do Grupo Brasil eDesenvolvimento. Contato: twitter.com/JTelesforo, [email protected]. Aproveito para registrar oagradecimento a tore Medeiros por ter me levado a conhecer, h vrios anos, por meio de suamilitncia, a luta pelo transporte pblico nas cidades, e posteriormente o MPL-DF (mediante vdeos como

    este, de sua autoria, em que registrou manifestao de 2005:http://www.youtube.com/watch?v=wA2AYyfDS-I).4SANTOS, 2005, p. 36

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    populao, que vem demonstrando potencial para transformar essa realidade. Nesse

    ponto enfatizamos o papel do Direito ao Transporte Pblico como fundamental para a

    construo do Direito Cidade e apresentamos o caso estudado, observando a

    atuao recente do Movimento Passe Livre no DF.

    II. Dupla excluso

    Braslia, cidade modernista por excelncia, tem sua arquitetura e seu urbanismo

    originados dos manifestos dos Congrs Internationaux dArchitecture Moderne. Essa

    escola, de forte influncia desde 1928 at meados da dcada de 1960, buscava criar

    uma nova sociedade, que superasse o capitalismo e a sua expresso na vida nas

    cidades.O papel da arquitetura era considerado essencial pelos modernistas por se

    considerarem possuidores de um perfeito conhecimento do homem5 alm da tcnica

    necessria para a tarefa6. A crtica modernista se centra especialmente sobre os

    efeitos do planejamento urbano baseado nas exigncias da produo industrial e

    sobre os efeitos da propriedade privada sobre o desenvolvimento da cidade. Nessa

    avaliao, a cidade determinada pela lgica do mercado sobre a propriedade

    privada, que molda o espao pblico e limita qualquer alterao proposta pelo bem

    pblico. Portanto, tanto pelo prprio resultado da lgica desorganizada dapropriedade privada sobre a cidade quanto pela limitao imposta por essa lgica

    atuao dos arquitetos, que eles se engajam nesse conflito.

    A crtica cidade capitalista no exclusividade dos tericos modernistas.

    Para Max Weber, a cidade moderna um produto do capitalismo, e, portanto, o

    resultado de determinantes universais de carter mais econmico que cultural7. Marx

    e Engels, em perspectiva complementar, observam que a cidade permitiu a apario

    do capitalismo, por possibilitar a diviso do trabalho e facilitar a acumulao de capital,

    dado seu carter simultneo de produto e produtora8. George Simmel, por sua vez,

    considera a cidade a sede do dinheiro9.

    5 Le Corbusier 1957: art.87

    6 Le Corbusier se refere maquina para expressar a cidade modernista A maquina, esse vastoacontecimento moderno, ser vista como aquilo que de fato, um servo e no um senhor, um trabalhadore no um tirano, uma fonte de unidade e no de conflito, de construo e no de destruio (LeCorbusier 1967: 176). De acordo com esses princpios modernistas no dia em que a sociedadecontempornea, atualmente to enferma, tornar-se verdadeiramente consciente de que apenas aarquitetura e o urbanismo podem receitar o remdio exato para seus males, ter ento chegado o tempode pr a grande mquina em funcionamento (Le Corbusier 1967: 143)7 FREITAG, 2006: p. 41.8 BETTIN, 1982: p. 115.9 SIMMEL apud FREITAG, 2006: p. 41.

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    A cidade moderna forma-se, assim, sob o signo do capital, reproduzindo e

    intensificando todas as suas contradies. A urbanizao acarreta um processo de

    intensa concentrao demogrfica, mas, ao aglomerar pessoas antes mais dispersas

    pelo meio rural, no aumenta a unio ou integrao entre elas. Pelo contrrio:segundo a anlise de Henri Lefebvre, o modo capitalista de produo do espao gera

    homogeneizao e fragmentao. A industrializao tende a formar um s tecido

    urbano que rompe com a separao clara entre meio rural e cidade, organizando

    ambos segundo uma s forma de socializao, a da sociedade burocrtica de

    consumo dirigido10. Porm, ao mesmo tempo em que ocorre essa homogeneizao,

    rompida a unidade orgnica da cidade, a sua caracterstica de lugar de encontro,

    assemblia, simultaneidade. O espao passa a ser fragmentado, espelhando e

    viabilizando o processo econmico de diviso do trabalho, bem como o esforo estatal

    de controlar a populao, o qual utiliza a segregao espacial como um de seus

    meios.

    A cidade reduzida a objeto do mercado e do Estado tcnico-burocrtico, sendo

    suprimida como obra11 conceito que em Lefebvre significa participao simultnea,

    criao conjunta de um locuscomum, de (com)unidade. Torna-se mais agudo o uso

    do espao como instrumento de dominao econmica e poltica: como mercadoria,

    submetido busca do lucro por meio de atividades como o turismo e a especulao

    imobiliria, que empurram as classes populares para a periferia; politicamente, o

    Estado refora esse processo de apartao, dado o seu interesse em afastar do centro

    a presena do proletariado e subproletariado, cuja presena massiva poderia no

    apenas comprometer certas atividades econmicas (como o turismo), mas representar

    uma ameaa ordem pblica.

    No Relatrio do Plano Piloto de Braslia, Lcio Costa no fala em nenhum

    momento de classes no sentido marxista, de mercado, de propriedade privada, ou de

    especulao imobiliria. A crtica cidade capitalista uma agenda oculta no Projeto

    de Braslia12. Mas podemos identificar diversos exemplos dentro do projeto que

    seguem os ideais da arquitetura modernista e de sua perspectiva crtica.

    Primeiramente, o problema da propriedade privada como impedimento

    atividade do planejador no existiu em Braslia. O Estado j havia desapropriado o

    terreno necessrio para a construo da nova capital. Lucio Costa teria, portanto, a

    oportunidade que poucos arquitetos da escola modernista tiveram de construir

    10 LEFEBVRE, 1996: p. 147.11 LEFEBVRE, 1996: p. 66-67.12HOLSTON, 1993

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    totalmente uma cidade sem os impedimentos tpicos das reformas propostas em

    outras grandes cidades.

    O ideal igualitrio modernista, por sua vez, est presente no que Lcio Costa

    chama de unidade residencial coletiva, que segundo ele deveria ser concebida econstruda no em funo do lucro imobilirio, mas em funo da vida harmoniosa e

    melhor do homem e sua famlia13. A ideia do Plano Piloto de Braslia era minimizar as

    desigualdades sociais atravs da socializao das diferentes classes no mesmo

    espao, onde o alto funcionrio do governo fosse vizinho do motorista, seus filhos

    fossem mesma escola e freqentassem o mesmo clube.

    Seguindo a crtica propriedade privada, no plano original de Braslia as

    unidades residenciais seriam todas propriedades do Estado, que disponibilizaria aos

    trabalhadores de acordo com sua necessidade. Nas palavras do prprio Lcio Costa:

    as diferenas de padro de uma quadra a outra sero neutralizadas pelo prprio

    agenciamento urbanstico proposto, e no sero de natureza a afetar o conforto social

    a que todos tm direito. (...) Neste sentido deve-se impedir a enquistao de favelas

    tanto na periferia urbana quanto na rural. Cabe Companhia Urbanizadora prover

    dentro do esquema proposto acomodaes decentes e econmicas para a totalidade

    da populao.14

    Mas se essa era a agenda oculta, qual era o significado do projeto de Lucio

    Costa para a construo da nova capital? O arquiteto e urbanista abusou de

    simbologias para exaltar, atravs da construo de uma nova capital, a construo de

    uma nova nao, uma utopia, um mito.

    Analisando o relatrio apresentado por Lucio Costa para a comisso julgadora

    do concurso Plano Piloto de Braslia, podemos observar que, inicialmente, o autor se

    exclui do processo de elaborao do projeto da nova capital, como se fosse um ato

    natural, que aflora inevitavelmente. Logo ressalta a importncia da Capital como causa

    do desenvolvimento nacional, no consequncia. Coloca esse momento como

    fundador de uma nova era, ignorando o passado e o prprio espao j construdo e

    habitado, trata-se de um ato deliberado de posse, de um gesto de sentido ainda

    desbravador, nos moldes da tradio colonial15.

    Na sua Cidade utpica, La Ville Radieuse (1933), Le Corbusier proclamava a

    morte da rua, espao intil, sem funo, a no ser a circulao de pessoas ociosas,

    errantes, sem rumo. As vias de circulao seriam feitas para servir perfeitamente

    13

    Costa 1962: 23014 Costa, 1957: art. 1715 Costa, 1957: 1

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    finalidade qual devem servir: o transporte de pessoas e bens de um lugar a outro

    ou seja, de uma funo a outra.

    Zygmunt Bauman16 destaca o carter totalitrio dos sonhos do urbanismo

    modernista, manifesto na sua pretenso de construir cidades ex nihil, fora do tempo,sem as mculas e as impurezas da histria das sociedades, que s tinham conseguido

    construir obras insatisfatrias em termos tanto funcionais como estticos. Na cidade

    planejada, os habitantes teriam uma existncia harmoniosa sob o domnio da

    implacvel racionalidade matemtica do Plan Dictateur: o arquiteto seria apenas

    porta-voz da razo natural, tal como constatamos no texto do projeto de Lcio Costa.

    O totalitarismo dessa razo moderna consiste na negao da historicidade do

    homem, na negao da construo social do espao e pela ideia de que o espao e a

    sociedade devem necessariamente adaptar-se aos princpios de uma lgica natural. A

    cidade no feita para comunidades concretas: os homens que devem ser

    instalados nessa cidade perfeita, e fatalmente encontraro sua felicidade vivendo

    perfeitamente de acordo com as funes ditadas pelo seu plano. Essa lgica foi usada

    para legitimar a construo de Braslia, como indutora do desenvolvimento nacional,

    mas ter conseqncias trgicas para a implementao do projeto.

    A histria de Braslia de excluso e extrema desigualdade. No momento de

    inaugurao da capital j havia cem mil pessoas na cidade, eram em sua quase

    totalidade trabalhadores que fugiam da seca e do desemprego nas cidades do

    nordeste, centro-oeste e sudeste do pas em busca das oportunidades oferecidas.

    Muitos tambm eram convencidos pelas diversas propagandas do Governo a respeito

    do dever cvico de participar desse momento histrico, da construo de uma nova

    capital para o pas.

    As condies de trabalho eram terrveis na construo de Braslia. A combinao

    de cansao pelo excesso de horas extras trabalhadas e a ateno reduzida aos

    problemas de segurana levou a ndices extremamente altos de acidentes de

    trabalho17. A situao jurdica peculiar da regio anteriormente inaugurao que

    no pertencia oficialmente a lugar nenhum, pois j havia sido desapropriada de Gois

    e ainda no tinham instituies para o governo local impedia que os trabalhadores

    pudessem se organizar institucionalmente e foi utilizada pelos responsveis pelas

    obras como estratgia para explorar ainda mais os servios dos trabalhadores que

    16 BAUMAN, 1999: p. 49 e seguintes.17 De acordo com os dados do hospital do Instituto de Aposentadorias e Penses dos industririos (IAPI)

    ocorreram 342 acidentes que necessitaram de tratamento mdico-hospitalar em 1957 (um para cada 36pessoas), 1974 em 1958 (um para quinze) e 10927 em 1959 (um para cada sete habitantes de Braslia)(Lins Ribeiro 1980: 92).

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    tinham seu nmero aumentado a cada dia. Alm disso, apesar das condies difceis

    de trabalho, os trabalhadores ficaram apticos diante da sindicalizao, devido

    obstinao por cumprir mais horas extras e tambm a um sentimento de que o esforo

    compensava, pois comparativamente a outros lugares, contando o pagamento dashoras extras, os trabalhadores se sentiam recompensados com o pagamento pelo

    trabalho prestado mesmo com o risco envolvido18.

    De acordo com James Holston (1993) no foi a condio de trabalho o que

    organizou os trabalhadores em torno de interesses comuns. O que os fez definir esses

    interesses e se organizar em torno deles foi a desigualdade das condies de moradia

    dos trabalhadores e a vontade de permanecer vivendo na capital construda por eles

    prprios.

    Fruto da organizao dos trabalhadores, as cidades satlites so verdadeiros

    smbolos de resistncia a um padro social determinado de cima para baixo pelo

    urbanismo modernista, como a eliminao das ruas como conhecidas em outras

    cidades, e tambm prpria expulso imposta aos trabalhadores de Braslia pelos

    coordenadores da sua construo.

    De acordo com o planejamento original de Braslia, as cidades satlites s

    deveriam ser construdas aps a completa construo da capital para evitar a excluso

    dos mais pobres. Mas antes mesmo da inaugurao de Braslia j havia operrios

    vivendo em ocupaes ilegais. Passada a inaugurao, muitos deles no foram

    embora para seus locais de origem como imaginaram os coordenadores do projeto de

    contruo de Braslia. Para resolver o problema, comeou um verdadeiro processo de

    limpeza do Plano Piloto, com a retirada dos habitantes dessas ocupaes.

    Inicialmente foi oferecida a possibilidade de transferncias para novas cidades

    que seriam construdas para aqueles trabalhadores, mas as exigncias burocrticas

    eram muitas para os moradores daqueles espaos, o que invariavelmente limitava

    esse processo. A construo das cidades satlites, portanto, se deu atravs da

    articulao dos ocupantes de terrenos ilegais em associaes que conseguiam

    regularizar suas terras ou pela retirada forada dos habitantes das ocupaes e

    remanejamento para o Centro de Erradicao de Invases, que viria a formar a atual

    cidade de Ceilndia, e para outros locais do Distrito Federal.

    A organizao dos trabalhadores atravs de associaes que pressionavam pelo

    direito regularizao das terras permitiu a legalizao de parte desses habitantes no

    Distrito Federal, mas ao aceitar conseguir a regularizao os habitantes dessas novas

    18 H que se ressaltar aqui que houve mobilizaes durante a construo de Braslia, mas eram esparsase relacionadas s condies de vida nos acampamentos.

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    cidades aceitavam uma incorporao diferenciada ao territrio do Distrito Federal e se

    subordinavam politicamente.19

    Antes mesmo da inaugurao de Braslia, o projeto igualitrio de Lucio Costa j

    se mostrava ineficaz. Dada a insuficincia de unidades habitacionais regularizadas, osapartamentos e casas disponibilizados no Plano Piloto eram direcionados aos

    trabalhadores que tinham maior influncia sobre a administrao pblica. Para piorar,

    em 1965, o Governo vendeu a maior parte das residncias do Plano Piloto aos seus

    ocupantes por um bom preo.20 Enquanto nas residncias funcionais prevalecia a

    influncia poltica, nas demais passou a prevalecer a riqueza pessoal para de fato

    privatizar a propriedade, tal qual temiam os modernos urbanistas.

    A regularizao das ocupaes, ento transformadas em cidades satlites, e sua

    urbanizao, contaram com a valorizao dos imveis e serviu especulao de

    investidores. Como o processo de regularizao comeou a partir das zonas mais

    prximas ao Plano Piloto foi criado um crescimento centrfugo na capital delimitado

    pelo recorte de classes, ou seja, quanto mais pobre, mais distante do centro e dos

    servios pblicos essenciais a pessoa vive.

    Soma-se a esse processo a utilizao da migrao populacional como objeto de

    capital poltico, quando o prprio governo em determinadas ocasies nas dcadas de

    80 e 90 circulou pelas periferias brasileiras promessas de lotes do DF, possivelmente

    com fins eleitorais21. Portanto, nas dcadas seguintes sua construo, a dinmica

    de crescimento do Distrito Federal foi marcada por irresponsabilidade poltica e pela

    especulao imobiliria com a consequente expulso dos pobres para regies cada

    vez mais afastadas do centro e distante de seus Direitos.22

    Nesse contexto, podemos perceber um vis duplamente excludente no Distrito

    Federal. No foi possvel desenvolver uma estrutura igualitria de habitao fora da

    lgica de mercado e da propriedade privada com o controle do Estado, pois este

    servia ao diversos graus de influncia poltica e, ademais, as unidades habitacionais

    foram privatizadas. A estrutura de controle estatal sobre o desenvolvimento urbano

    juntamente com a instituio da lgica de mercado serviu ento para a excluso dos

    trabalhadores da cidade para a periferia, instituindo uma incorporao diferenciada

    destes habitantes e preservando o centro urbano burocrtico das ameaas do povo.

    19 Holston 1993: 28820Holston 1993, 291

    21 Santarm, 2009: 622 Vale pena conferir tambm a situao das cidades do Distrito Federal e do transporte pblico sob orecorte racial em Transporte pblico para um pblico de cor: Mobilidade negra em uma cidade deespaos racialmente marcados (Santarm, 2009)

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    Braslia frustrou as altas expectativas da utopia modernista. O projeto de

    incentivar a vida coletiva e a socializao igualitria entre pessoas de ocupaes e

    classes sociais diferentes fracassou. O Distrito Federal hoje a unidade federativa do

    pas onde h maior desigualdade social23. H fortssima segregao socioespacial,com uma distncia enorme entre os universos socioculturais das diferentes classes,

    distribudas no espao urbano de modo intensamente segmentado24.

    O prprio Niemeyer, um dos pais fundadores da nova capital, chegou a fazer a

    seguinte avaliao: Vejo agora que uma arquitetura social sem uma base socialista

    no leva a nada que voc no pode criar um osis sem classes em uma sociedade

    capitalista, e que tentar isso termina sendo, como disse Engels, uma posio

    paternalista em vez de revolucionria. No possvel criar novas relaes sociais por

    meio do fetichismo do espao e de seu planejamento: lugares e formas no fazem

    nada e no produzem nada por si mesmos somente as pessoas dentro das redes de

    organizao social que possuem esse poder25.

    O fracasso do projeto utpico de Braslia, porm, no se deve somente derrota

    do planejamento urbanstico diante da forma capitalista de produo (ou dominao)

    do espao. Brasilmar Ferreira Nunes observa que o projeto de Lcio Costa era j

    muito excludente, pois a cidade foi pensada para a burocracia, uma categoria scio-

    profissional particular: no se pensou o espao urbano como locus da mistura26. O

    desenho do Plano Piloto, segundo sua anlise, isolaria mais do que aproximaria as

    pessoas, valorizaria a esfera familiar-individual mais do que a comunitria.

    O fato que o projeto de cidade sem cercas nem muros, sem barreiras fsicas

    entre os imveis, com superquadras para em tese estimular a vida comunitria,

    continha tambm diversos aspectos potencialmente excludentes, agravados pelo fato

    de ter sido ocupada segundo o padro capitalista de dominao do espao e por um

    Estado no apenas tcnico-burocrtico, mas autoritrio, durante grande parte de sua

    primeira fase de existncia. No floresceu a o novo homem: prevaleceu a vivncia

    individualista27, de indiferena e segregao.

    Indiferena, aqui, tem sentidos variados, que se alimentam reciprocamente.

    Primeiro, a caracterstica geral diagnosticada por Lefebvre, j citada, da submisso

    capitalista de todo o espao urbano a uma s lgica, a da sociedade burocrtica de

    consumo dirigido, que vai matando a diversidade de valores que orientam a

    23 Segundo a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios) do IBGE de 2008.24 NUNES; BANDEIRA (2010).25 ANDERSON apud GALVO (2007).26 QUEIROZ, 2007: p. 59.27 NUNES; BANDEIRA, 2010: p. 137.

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    convivncia social e a produo do espao. Diferenas histricas, culturais e

    comunitrias entre os espaos vo sendo suprimidas. Um exemplo da ordem do dia,

    em Braslia, acontece com a construo do Setor Noroeste, empreendimento

    imobilirio voltado para criao de um bairro nobre (sic) que, entre outros danos,ameaa a permanncia da Comunidade Indgena Bananal na rea do Santurio dos

    Pajs, habita h dcadas28.

    Num segundo sentido, indiferena diz respeito a um efeito da segregao

    socioespacial: a no-diferena entre as pessoas de cada regio do espao urbano,

    devido sua fragmentao hierarquizadora. No h, a, contradio com a

    homogeneizao da sua forma de dominao. Pelo contrrio: a tendncia de

    trasformao de todos os lugares em mercadoria precisamente o que gera a

    apartao dos (sub)cidados. Observando essa uniformizao das caractersticas dos

    indivduos de cada lugar, Richard Senett29 constata que quanto mais apartadas dos

    pontos de vista racial, tnico e de classe, mais as comunidades so hostis

    alteridade, ao diferente, visto ento como um estranho a ser temido, odiado, banido.

    Aumenta a preocupao com a lei e a ordem, proliferam barreiras e necessidade de

    identificar-se, cercas de segurana e cmeras de vigilncia.

    Essa postura de temor e desconfiana dos cidados uns diante dos outros

    conduz ao terceiro sentido da indiferena do espao urbano capitalista: a fragilidade

    dos laos comunitrios de solidariedade, a apatia com relao coletividade, o pouco

    interesse em participar dos assuntos pblicos. A indiferena que causa e sinal da

    decadncia de qualquer comunidade poltica, segundo clssica lio republicana: da

    cidade, como lugar de cidadania.

    Para Sennett, esses problemas seriam ainda mais graves em cidades cidades

    planificadas racionalmente: seriam ainda maiores a similaridade, regularidade,

    monotonia, enfraquecendo ainda mais o sentimento de responsabilidade dos cidados

    pela construo do espao social e sua abertura para a diferena. Tais planos

    racionalizadores funcionalistas teriam como efeito, assim, danos s vidas de pessoas

    reais em nome da realizao de algum plano abstrato de desenvolvimento ou

    renovao30.

    Esse parece ter sido o caso de Braslia, desigual desde a origem, pela

    marginalizao de seus construtores, sacrificados em nome da pureza do projeto

    original, feito apenas para uma camada de funcionrios pblicos. A utopia do Plano

    28 Para mais informaes, ver: http://foraarrudaetodamafia.wordpress.com/tag/santuario-dos-pajes/.29 SENNETT apud BAUMAN (1999; p. 54).30 SENNETT apud BAUMAN (1999; p. 53).

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    Piloto j nasceu tendo as cidades satlites como seu outro excludo e segregado, sob

    a monumental indiferena da Praa dos Trs Poderes.

    No toa, assim, que, hoje, o Plano Piloto abriga aproximadamente 10% da

    populao e concentra 76,2% dos empregos e renda do Distrito Federal31, numcontnuo e simultneo processo de hierarquizao dos espaos e das relaes sociais,

    agravado pela segregao socioespacial dos moradores, pois as grandes distncias

    que separam o Plano Piloto das outras cidades funcionam como forma sui generis de

    controle e de discriminao, de modo que ocorre a construo de determinados

    espaos pblicos aos quais a maioria da populao jamais teve acesso32.

    III.O direito cidade: a apropriao democrtica do espao social pela cidadania

    CLARO CALAR SOBRE UMACIDADE SEM RUNAS(RUINOGRAMAS)

    Paulo Leminski (Anos 1980)

    Em Braslia, admirei.No a niemeyer lei,a vida das pessoaspenetrando nos esquemascomo a tinta sangueno mata borro,crescendo o vermelho gente,entre pedra e pedra,pela terra a dentro.

    Em Braslia, admirei.O pequeno restaurante clandestino,criminoso por estarfora da quadra permitida.

    Sim, Braslia.Admirei o tempoque j cobre de anostuas impecveis matemticas.

    Adeus, Cidade.O erro, claro, no a lei.

    31CODEPLAN, 2003

    32 NUNES; BANDEIRA (2010).

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    O direito cidade foi pioneiramente concebido como tal por Henri Lefebvre,

    na obra-manifesto Le droit la ville, publicado poucos meses antes de Maio de 1968.

    Lefebvre repudia a postura determinista e metafsica do urbanismo modernista: tem

    cincia de que os problemas da sociedade no podem ser todos reduzidos a questesespaciais, muito menos prancheta de um arquiteto.

    A crtica ao urbanismo positivista, porm, no se reduz questo de que ignora

    os limites da capacidade do planejamento racionalista abstrato transformar a

    realidade. Mais do que apontar a falncia do resultado, Lefebvre repudia o carter

    alienante da prpria pretenso de tornar os problemas urbanos uma questo

    meramente administrativa, tcnica, cientfica, pois ela mantm um aspecto

    fundamental da alienao dos cidados: o fato de serem mais objetos do que sujeitos

    do espao social, fruto de relaes econmicas de dominao e de polticas

    urbansticas por meio das quais o Estado ordena e controla a populao

    O Estado autoritrio planificador pode at eventualmente resolver

    necessidades materiais como moradia e transporte, mas tambm priva as pessoas da

    condio de sujeitos da construo da sua prpria cidade. No livro Contra os

    tecnocratas, de 1967, Lefebvre critica inclusive os regimes do socialismo real, por

    se calcarem numa concepo produtivista que ignora que o direito cidade no se

    realiza simplesmente pela construo de moradias e outros bens materiais, mas de

    uma sociabilidade alternativa da sociedade burocrtica seja a de consumo, seja a

    planificada , dominada por uma racionalizao automatizadora que torna a vida

    cotidiana trivial, desprovida de sentido e autenticidade, mutiladora da personalidade.

    Em oposio a essa perspectiva administrativista, Lefebvre politiza a produo

    social do espao: assume a tica dos cidados33 (e no a da Administrao),

    assentando o direito cidade na sua luta pelo direito de criao e plena fruio do

    espao social. Avana numa concepo de cidadania que vai alm do direito de voto e

    expresso verbal: trata-se de uma forma de democracia direta, pelo controle direto das

    pessoas sobre a forma de habitar a cidade, produzida como obra humana coletiva em

    que cada indivduo e comunidade tem espao para manifestar sua diferena.

    Sua realizao s pode acontecer quando, confrontando a lgica de

    dominao, prevalece a apropriao do espao pelos cidados, sua transfomao

    33 Lefebvre distingue citadins (todos os habitantes da cidade) de citoyens (aqueles a quem o Estadoreconhece a cidadania poltica), esclarecendo que o direito cidade de todos os seus habitantes,independentemente de seu reconhecimento legal como cidados. Nossa compreenso de cidadaniaextrapola o aspecto formal e estatal: reivindicamos a plena cidadania para todos os habitantes da cidade,

    e por isso que aqui os chamamos todos de cidados, independentemente de serem ou no, em maiorou menor extenso, reconhecidos assim pelo sistema jurdico formal (ao qual tampouco reduzimos odireito).

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    para satisfazer e expandir necessidades e possibilidades da coletividade. Apropriao

    no tem a ver com propriedade, mas com o uso, e precisa acontecer coletivamente

    como condio de possibilidade apropriao individual. Lefebvre verifica que essa

    a forma de uso da cidade em perodos nos quais ocorre produo do povo pelo povo,como na experincia da Comuna de Paris, quando os trabalhadores se reapropriaram

    do centro da cidade, aps terem sido jogados para a periferia pelo planejamento

    Haussmanniano.

    Em vez da cincia e da tcnica, Lefebvre prope, assim, outro ator como

    protagonista do processo de transformao do espao urbano: [a] classe trabalhadora

    deve ser agente dessa luta. Aqui e ali ela nega e contesta, aqui e ali, a estratgia de

    classe dirigida contra ela34. O novo urbanismo idealizado por ele o da utopia

    experimental, que parte dos problemas de lugares concretos, onde se desenvolvem

    relaes sociais, e os submete crtica e imaginao de novas possibilidades. O

    papel da cincia auxiliar, cabendo-lhe fazer a crtica da vida cotidianapor meio da

    anlise doritmoda vida diria das pessoas, e estudar as implicaes e consequncias

    das novas formas de apropriao inventadas pelos cidados.

    Lefevbre pensa o espao como a inscrio do tempo no mundo: os ritmos da

    populao urbana definem o cotidiano, formado por uma multiplicidade de momentos,

    com diferentes duraes: trabalho profissional, voluntrio, descanso, arte, jogo, amor,

    luta, conhecimento, lazer, cultura... A nova sociedade urbana nascer da alterao dos

    seus ritmos, de modo a propiciar o uso completo dos lugares, com plena fruio de

    direitos. Para tanto, preciso contrariar o status quode segregao e uniformizao

    do cotidiano (com hipertrofia dos momentos de trabalho alienado), por meio da

    contestao e da vivncia concreta de experincias alternativas, mais espontneas e

    autnticas, propiciadas, por exemplo, pela arte e por atividades ldicas comunitrias,

    como festas e jogos no espao pblico. Para Lefebvre, por meio dessas formas de

    contracultura, de primado da imaginao sobre a razo, da arte sobre a cincia, da

    criao sobre a repetio, possvel restaurar a cidade como obrados cidados.

    Lutar pelo direito cidade romper com a sociedade da indiferena e caminhar

    para um modo diferencial de produo do espao urbano35, marcado pelo

    florescimento e interao igualitria de diversos ritmos de vida, expresso das

    diferentes formas de apropriao do espao. Avesso s impecveis matemticas, ao

    planejamento metafsico que pretende resolver em definitivo os problemas sociais e

    declarar o fim da histria, a interveno transformadora desse espao ciente de sua

    34 LEFEBVRE, 1996: p. 158.35 BETTIN, 1982: p. 118

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    historicidade, procurando no tempo sua reconstruo cotidiana pelas tenses entre as

    experincias do real e as utopias construdas a partir delas.

    Como no poema de Leminski, a luta inclusive contra a lei, ou margem dela

    e a pluralidade das vidas das pessoas vo subvertendo os esquemas de reduo dacomplexidade social, minando, aberta ou clandestinamente, a estratgia dominante de

    sufocar o aparecimento de diferenas autnticas e sua integrao igualitria.

    IV. O papel do transporte pblico: reconstruindo o cotidiano da cidade

    PLANOS PILOTIS

    duas asas partidasduas pistas falsasdois traos invisveis

    minha plataforma poltica a plataformada rodoviria

    Nicolas Behr, Laranja Seleta.Rio de Janeiro: Lngua Geral,2007.

    O espao urbano nasce sempre, historicamente, como um centro social,econmico e poltico. Parte fundamental do direito cidade, assim, o direito a

    participar de seu centro, a no ser periferia: a segregao urbana funciona

    simultaneamente como causa e consequncia da dominao econmica e poltica e

    da desintegrao social, num ciclo vicioso que perpetua a excluso em todas as suas

    formas. Por ser pobre, o sujeito no tem condies econmicas de habitar regies

    centrais, o que, por sua vez, gera novas dificuldades econmicas, devido dificuldade

    de acesso a servios pblicos, ao dinheiro e tempo despendidos para locomover-se

    at o centro e discriminao sofrida pelo fato de habitar a periferia. A apartao

    espacial aumenta tambm a dificuldade de formao de laos comunitrios de

    solidariedade entre pessoas de classes distintas, reforando a imagem dos excludos

    como estranhos a serem desprezados e temidos.

    A luta pelo direito cidade uma forma de combater simultaneamente todas

    essas formas de excluso. A forte interdependncia entre suas diversas facetas leva

    um avano em cada uma das suas diversas dimenses a ajudar a quebrar o ciclo

    vicioso geral. Uma de suas pautas fundamentais, porm, provoca impacto

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    especialmente relevante e disseminado: a do direito mobilidade urbana, a ser

    efetivado por meio da garantia do transporte pblico.

    O cidado que mora na periferia est privado de servios pblicos de qualidade

    ou, ao menos, com a qualidade existente no centro. Para solucionar esse problema, preciso reduzir a desigualdade social e distribuir igualitariamente os servios

    pblicos essenciais, mantendo a qualidade em todas as regies e incentivando a

    produo cultural das regies perifricas para que sejam inteiramente auto-suficientes

    em relao aos centros urbanos. Enquanto isso no acontece, garantir transporte

    pblico a todos ainda mais indispensvel para que um cidado da periferia tenha

    acesso aos seus direitos a sade, educao, cultura e diverso.

    Alm do seu papel na materializao dos demais direitos fundamentais pelo

    acesso a servios pblicos, a garantia da mobilidade urbana avana em duas outras

    dimenses essenciais do direito cidade: na instaurao de um novo ritmo de vida

    diria e na possibilidade de reconstruo da unidade do espao urbano.

    A segregao da periferia agravada, em Braslia, pelas grandes distncias36 e

    pela absoluta centralidade do transporte individual no planejamento da cidade. Antnio

    Carlos Carpintero verifica que o veculo individual mencionado inmeras vezes no

    projeto urbanstico da cidade, aparecendo claramente como o principal elemento de

    organizao, em torno do qual giram todos os outros, enquanto, por outro lado, Lcio

    Costa no falou em nenhum momento, em sua proposta, a respeito de transporte

    coletivo de passageiros, apenas mencionou nibus secundariamente37. Eram os anos

    JK, e Braslia seria a vitrine da poltica de incentivo indstria automobilstica (e, em

    conseqncia, petrolfera).

    O resultado que, segundo informa Carlos Henrique Carvalho, pesquisador do

    IPEA, Braslia tem hoje uma parcela da frota nacional de veculos motorizados duas

    vezes maior do que a proporo de sua populao em relao populao brasileira,

    e a nica das grandes cidades do pas onde o transporte coletivo tem participao

    menor que o individual: "nas cidades com mais de 1 milho de habitantes, em mdia

    36% das viagens so coletivas, e 30% individuais. No Distrito Federal so 33% contra

    37%"38. Carvalho diagnostica que "esta forte vocao ao transporte individual,

    principalmente automveis e motocicletas, gera muitos impactos negativos, como:

    36 NUNES e BANDEIRA apontam que as grandes distncias que separam o Plano Piloto das outrascidades do Distrito Federal funcionam como formas sui generisde controle e de discriminao (2010; p.

    125-6).37 CARPINTERO apud QUEIROZ, 2007: p. 65.38http://desafios2.ipea.gov.br/003/00301009.jsp?ttCD_CHAVE=14329

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    poluio, acidentes, congestionamentos, e aumento no tempo mdio de deslocamento

    entre a casa e o trabalho das pessoas".

    Em Braslia, 70% dos empregos concentram-se no Plano Piloto, enquanto 80%

    da populao mora fora dele39. Devido precariedade da rede de transporte coletivo e hipertrofia do uso do transporte individual, os trabalhadores desperdiam,

    diariamente, vrias horas apenas para irem e voltarem do trabalho: na prtica, so

    horas incorporadas jornada, aumentando a sua explorao e reduzindo o tempo que

    teriam para dedicar vida familiar e comunitria, ao lazer e participao poltica.

    Alm disso, comprometem com os gastos para locomover-se parte substancial de seu

    achatado oramento.

    Como efeito de todos esses condicionantes, o centro atualmente no existe40

    na vida dos excludos. Bauman aponta que a extenso ao longo da qual os de classe

    alta e os de classe baixa se situam numa sociedade de consumo o seu grau de

    mobilidade sua liberdade de escolher onde estar41. Os avanos tecnolgicos tm

    permitido que distncias sejam encurtadas e virtualmente anuladas, em decorrncia

    do desenvolvimento cada vez mais acelerado dos meios de transporte e de

    comunicao. Porm, o acesso mobilidade e aos fluxos de informao tem severas

    restries econmicas: no ano de 2006, computador era um bem presente em apenas

    0,2% das casas de Itapo, regio mais pobre do Distrito Federal, que tinha ento 45

    mil habitantes, renda per capita de R$ 102 e taxa de desemprego de 29,2%42.

    Tambm no difcil imaginar as restries impostas ao uso do transporte pblico

    urbano, nesse contexto: fica dificultada at mesmo a busca de trabalho pelos

    desempregados43, de modo que a segregao espacial e a barreira econmica

    mobilidade reforam a excluso econmica, no ciclo vicioso a que j nos referimos.

    Toda estratgia de dominao consiste em ampliar a liberdade do dominante e

    restringir ao mximo a liberdade de escolha do dominado44 tal como a liberdade de ir

    39http://desafios2.ipea.gov.br/003/00301009.jsp?ttCD_CHAVE=1432940 BAUMAN, 1999: p. 95.41 BAUMAN, 1999: p. 94.42 Dados da Coletnea de informaes socioeconmicas de 2006, feita pela Companhia doDesenvolvimento do Planalto Central (Codeplan). Segundo a mesma fonte, trs regies do DistritoFederal o Sudoeste, o Lago Sul e o Lago Norte tm renda per capita superior a 2 mil reais, ou seja,mais de 20 vezes a renda mdia de quem mora em Itapo. O IDH do Lago Norte de 0,933 maior doque o de pases como Sua, Finlndia, Frana e Reino Unido. O Lago Sul tem IDH ainda maior, de0,945, superior ao de qualquer pas quem mais se aproxima a Noruega, seguida pela Sucia. Odramtico contraste entre essas realidades e a de Itapo mostra bem a brutal territorializao dadesigualdade econmica no DF.43 Os altos custos do transporte transformam automaticamente o morar na periferia um fator dedesemprego, segundo explica Manoel Nascimento, tanto pela dificuldade de locomoo para procur-lo,

    como porque as empresas evitam contratar trabalhadores com quem teriam de gastar mais em vales-transporte.44 Cozier apud BAUMAN, 1999: p. 77.

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    e vir, de apropriar-se do espao, recri-lo segundo seus desejos, utilizar servios

    pblicos, encontrar-se e agir com os outros. Para romper com o controle excludente da

    produo do espao e da mobilidade das pessoas nela, preciso que a cidade, toda

    ela, seja reconstruda como centro e unidade. O direito cidade, diz Lefebvre,depende de seu uso simultneo, requer reunio, encontro, para que se produza uma

    sociabilidade formadora da unidade espao-temporal capaz de construir uma

    comunidade que se autodetermina.

    A garantia da mobilidade urbana indispensvel nesse processo de

    resistncia, na medida em que viabiliza o direito de todos a no permanecerem

    isolados na periferia, a se apropriarem de todo o espao urbano e terem mais controle

    sobre o ritmo de sua vida cotidiana.

    O transporte pblico, hoje, extremamente deficiente nessa funo. Em

    Auditoria Operacional no Sistema de Transporte Pblico do Distrito Federal45 realizada

    em 2008, o Tribunal de Contas do DF verificou que 76% dos usurios avaliaram o

    tempo de espera no ponto de nibus como regular ou ruim (38,2% disseram esperar

    mais de de 30 minutos na parada); a frota de nibus envelhecida, com mais da

    metade dos veculos com idade superior legal mxima para cada tipo de nibus; em

    vrias linhas, o nmero de viagens efetivamente realizadas substancialmente menor

    do que o previsto; as condies de parte significativa das paradas so muito ruins; o

    usurio tem grande dificuldades de obter informaes sobre os itinerrios e horrios

    das linhas; e a empresa Fcil dificulta o uso do passe estudantil, impondo ao

    estudante prejuzo na sua mobilidade, acarretando a piora da qualidade de vida do

    usurio, sobretudo o mais carente. No metr, a auditoria verificou que, apesar de uma

    qualidade razoavelmente melhor e de menor insatisfao do usurio,o intervalo entre

    a passagem dos trens ainda muito maior do que o necessrio, em virtude da

    insuficincia de trens: em Maio de 2008, o metr operava com 17 trens no horrio de

    pico, em vez dos 29 necessrios. Alm disso, tambm no so disponibilizados

    mecanismos que informem em quanto tempo passar o prximo trem. Verificou-se,

    finalmente, que os dados operacionais fornecidos pelos diversos rgos do governo,

    sobre diversos aspectos do funcionamento do sistema (condies da frota, linha,

    custos), so inconsistentes e por vezes contraditrios. Portanto, de baixa

    confiabilidade. E, ainda, que a fiscalizao e efetiva sano das recorrentes

    irregularidades cometidas pelas empresas operadoras so quase inexistentes, o que

    gera prejuzos qualidade do servio e perda de receita para o Estado.

    45 Disponvel em:http://www.tc.df.gov.br/ice5/auditorias/TCDF-AuditoriaTransportes-RelatorioCompleto.pdf.

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    Diante desse quadro, os auditores do TC-DF concluem que muito ainda h

    que melhorar o servio de transporte pblico para oferecer os servios de qualidade

    que a populao merece, cabendo especial papel aos gestores do sistema de

    transporteque, apesar de seus esforos, no tm conseguido cumprir a sua missoinstitucional (grifamos). Fazem uma srie de recomendaes tcnicas aos gestores,

    entre as quais no consta a de tornar participativa a gesto do sistema.

    A qualidade do servio de transporte pblico de fato muito ruim, e essa uma

    grande deficincia. Porm, na nossa perspectiva, o seu maior problema que a

    administrao est na mo das empresas e de uma poltica de Estado nada aberta

    participao das pessoas impactadas pelo servio. Esse o requisito primeiro para

    que o transporte pblico sirva mobilidade urbana numa perspectiva cidad, pois s

    assim possvel que ele funcione voltado para as necessidades e desejos populares,

    tanto nos servios oferecidos, como na forma de se financiar. Castells j observava

    que os modelos de gesto, de cobrana e o prprio meio de transporte esto

    relacionados funo a que servem na conjuntura social, e diferenciao social46.

    Em Braslia, fcil perceber que o transporte serve primordialmente como

    instrumento de produo capitalista. O servio, em si, explorado por grandes

    empresas que priorizam o lucro s necessidades dos usurios (basta ver as crticas

    feitas pelo relatrio do TC-DF), e toda a lgica de funcionamento do sistema voltada

    para transportar os trabalhadores apenas de casa para o trabalho. As limitaes de

    horrio de funcionamento, a falta de qualidade da frota, a demora para utilizar o

    servio e os preos proibitivos so sinais disso. Um dos absurdos mais patentes o

    fato de uma passagem do centro para uma regio perifria custar em geral um real a

    mais (ou 50%) do que entre as regies privilegiadas. Como efeito disso, um morador

    de Itapo, com renda mdia de R$ 102, pagar R$ 3 para ir de Itapo regio central

    da cidade. Obviamente, tender a permanecer ilhado em sua regio.

    No a medida tcnica, a poltica A ou B que ser capaz de reverter essa

    lgica. Ela s pode ser rompida se os prprios habitantes da cidade, organizando-se

    de modo contra-hegemnico, reivindicarem um transporte que sirva sua mobilidade,

    e se apropriarem de sua gesto para abandonar o vis excludente de explorao

    capitalista do servio, e instaurar uma forma de gesto, cobrana e servio adequados

    realizao do direito cidade. justamente isso o que procura fazer o Movimento

    Passe Livre. Por isso, importante observarmos a atuao desse grupo, sua crtica,

    suas propostas e sobretudo suas prticas de resistncia e apropriao do transporte

    coletivo. Essa a maneira pela qual pensamos que a cincia pode cumprir seu papel46 CASTELLS apud NASCIMENTO, p. 4.

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    emancipatrio: estudando os problemas concretos da realidade e observando a luta

    dos movimentos sociais contra eles, bem como os impactos de sua atuao, as

    possibilidades de construo de uma alternativa.

    V. A atuao do Movimento Passe Livre pelo Direito Cidade no DF

    O Movimento Passe Livre surgiu nacionalmente atravs, principalmente, das

    mobilizaes de Salvador contra o aumento de passagens em 2003 mais

    conhecidas como A revolta do buz e de Florianpolis, no ano seguinte, chamada

    de A revolta da Catraca. O Movimento se constituiu como movimento nacional em

    uma plenria convocada no Caracol Intergalactika, realizado no Frum Social Mundial

    de 2005, em Porto Alegre47.

    Em Braslia o movimento se constituiu inicialmente como um espao de

    organizao de grupos autnomos de jovens. Integrantes desse grupo j faziam

    trabalhos de base em escolas do DF sobre o tema do transporte urbano e mantinham

    contato com integrantes do Movimento Passe Livre nacional, inclusive tendo

    participado da plenria do Frum Social Mundial. Entre os anos de 2005 e 2006, sob a

    ameaa de aumento das passagens de nibus, articularam uma jornada de lutas no

    Distrito Federal que contou com intensa mobilizao. Filiaram-se ao Movimento

    nacional em 2006, se comprometendo com a causa e com os princpios do MPL

    nacional48.

    Apesar de ter se iniciado em defesa do Passe Livre estudantil como uma

    pauta interna ao movimento estudantil em defesa do acesso ao Direito educao e

    de ter at hoje uma participao majoritria de jovens estudantes, o MPL se reivindica

    um movimento social mais amplo. Essa reivindicao se deve tambm a uma

    ampliao de suas demandas. A partir da crtica cidade capitalista e forma como o

    transporte serve aos interesses privados que o levam a uma crise49 o movimento

    passa a defender o passe livre universal, tambm conhecido como tarifa zero.

    Alm da ampliao na prpria pauta de transporte urbano, o MPL-DF reivindica

    a luta pelo Direito Cidade, tendo participado inclusive de ocupaes de prdios

    47BRITO, 2009.

    48Carta de adeso do MPL-DF ao Movimento Passe Livre

    49 A crise apontada da seguinte maneira: A passagem a nica financiadora do sistema de transporte.Os empresrios constantemente argumentam que o sistema de transporte d prejuzo e por issonecessitam aumentar as tarifas. A cada aumento, menos pessoas podem utilizar os transportes eprocuram meios alternativos como bicicleta, transporte pirata ou andar trechos a p. Quanto menos

    pessoas utilizam o transporte, mais a passagem precisa aumentar, para no diminuir a arrecadao dasempresas que, supostamente, esto em crise. Ento, a passagem aumenta e mais pessoas soexcludas. um ciclo que tambm envolve o governo que entra com financiamentos. (Mendes, 2007)

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    abandonados para a transformao em centros culturais urbanos. Em um protesto

    contra a desocupao forada de um desses espaos o MPL-DF lanou o seguinte

    manifesto:

    PELO DIREITO DE IR E VIR, MAS TAMBM DE PERMANECER E

    CONSTRUIR: A cidade deve ser das pessoas, e no dos empresrios

    do transporte e da especulao imobiliria. Seu uso no deve ser

    restrito a trabalho e estudo, mas tambm ao lazer, diverso, s

    mobilizaes polticas e culturais. O MPL-DF participou do processo

    de ocupao por crer que a luta pela cidade no se limita a exigir

    melhorias no sistema de transportes, mas tambm uma luta

    cidade por inteira: pelo poder de decidir por onde vamos transitar e o

    que queremos fazer nesses espaos.

    O Passe Livre Estudantil do Distrito Federal.

    Desde a aprovao da lei 239, de 1992, todos os estudantes do Distrito Federal

    que morassem a uma distncia maior que de um quilmetro de suas escolas poderiam

    ganhar desconto de dois teros da passagem de nibus, especificamente nas linhas

    que atendessem escola em que estudassem. Essa concesso foi dada em um

    momento em que se aumentou em 20% o preo das passagens do Distrito Federal, setornando a mais cara do pas. Alm disso, h relatos de longos procedimentos

    burocrticos para a obteno do benefcio e longas filas que evidenciavam uma

    deficincia na sua proviso. Sem contar a possibilidade, vivida por muitos estudantes,

    de ter seu benefcio cancelado sob qualquer suspeita de fraude por venda ou repasse

    do benefcio, mesmo sem qualquer prova (Informao verbal, 2010).

    Em 25 de outubro de 2005, dia nacional da luta pelo Passe livre, o Movimento

    apresentou um projeto de lei para o passe livre estudantil no DF, baseado em

    tentativas semelhantes do movimento em outras cidades do Brasil50

    . A idia era quefosse apresentada pelos prprios estudantes, buscando manter a autonomia do grupo

    e da pauta51. O Deputado Paulo Tadeu (PT/DF) props a lei no ano seguinte (Lei

    3921/2006) na Cmara Legislativa e esta foi recusada em grande parte nessa casa.

    As partes da proposta que foram aceitas acabaram recusadas logo no incio do

    mandato do novo Governador, Jos Roberto Arruda, em janeiro de 200752.

    50 O exemplo mais significativo o de Florianpolis.51 Brito, 200952 Portal CLDF na internet, 31/07/2009

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    No dia 25 de maio de 2009, uma cerimnia muito estranha para quem

    acompanhou essa breve histria do Passe Livre Estudantil no Distrito Federal

    acontecia na Cmara Legislativa. Um Projeto de Lei de autoria do poder executivo,

    ainda sob o comando de Jos Roberto Arruda, era encaminhado ao legislativopropondo a instituio do Passe Livre Estudantil no Distrito Federal. Sobre esse dia, foi

    publicado no weblog do Movimento Passe Livre A repentina proposta do GDF pegou

    muitos e muitas no contrap. O evento fantasioso da entrega do projeto - composto

    por holofotes, paparicagens e tratos falsos - deixou muita gente de queixo cado,

    pensando "caramba, meus inimigos/as agora concordam comigo. Eles e elas

    avanaram ou fui eu que virei conservador (a)?"53. Entre idas e vindas do tema entre

    executivo e legislativo, foram elaborados mais trs projetos de lei (4462, 1588,

    4494/2010) modificando a proposta inicial.

    Apesar de pego de surpresa pela proposta, ao passar na Cmara, o

    movimento teve condies de articular diversas emendas ao projeto, mesmo tendo

    outras tantas propostas recusadas na cmara e/ou vetadas pelo executivo54. Entre a

    presso dos empresrios, uma mudana significativa era instituda, pois eles no mais

    arcariam com o desconto de 2/3 oferecido pela lei de 1993. Com o Passe Livre

    Estudantil, o Governo passaria a pagar a totalidade do benefcio e com isso os

    empresrios aumentariam sua margem de lucro com o transporte dos estudantes.

    Alm disso, o Passe Livre seria controlado pela Fcil, empresa terceirizada da qual

    so scios majoritrios o presidente do Sindicato das Empresas do Transporte Pblico

    do DF, Wagner Canhedo Filho, e tambm Victor Foresti, responsvel pela Viao

    Planeta.

    O resultado do projeto Passe Livre Estudantil apresentado pelo poder executivo

    do Distrito Federal no agradou os usurios. A Fcil no demonstrou possuir estrutura

    suficiente para atender a demanda do servio. A previso de gastos com o benefcio

    para todo o ano foi superado muito antes do previsto. Sem recursos para o pagamento

    a empresa responsvel simplesmente parou de emitir o passe e as filas passaram a

    ser quilomtricas. A cada novo repasse que o GDF realizava empresa, voltava a

    distribuir o passe at que os recursos novamente acabassem e os estudantes

    tivessem que esperar novamente por dias at que fosse normalizada a distribuio do

    benefcio. A situao foi capaz de gerar protestos espontneos dos estudantes, que

    chegaram a ocupar avenidas a partir da concentrao na prpria fila, interrompendo o

    53http://vidasemcatracas.blogspot.com/2009/06/fique-livre-pra-passar-e-ultrapasse-o_11.html54 A maioria dos vetos do executivo foi barrada na Cmara.

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    transito em frente aos postos de atendimento da empresa55. Com essa situao, para

    muitos estudantes o Passe Livre, da forma como foi implementado, representou uma

    piora em relao situao anterior da sua implementao, quando se tinha 2/3 de

    desconto na passagem.As mobilizaes e a evidente insustentabilidade do projeto exigiram uma nova

    mudana na Lei. A lei 4494 de 2010 finalmente mudou o financiamento do Passe

    Livre, cobrando das empresas de transporte os dois teros de cada passagem

    estudantil, da forma como pagavam desde 1992, sendo que o restante (um tero) seria

    pago pelo Governo. A recarga do carto do benefcio passava a ser automtica, sem

    que fosse necessria a participao da empresa terceirizada para o servio. No foi

    aprovado o critrio econmico para limitar o benefcio, que era a proposta inicial do

    executivo para conter os custos.

    Analisando o breve relato sobre o processo de implantao do Passe Livre

    Estudantil podemos perceber alguma relao com a perspectiva crtica cidade

    capitalista a partir do Direito Cidade.

    Primeiramente, vemos o intenso envolvimento de empresrios do transporte

    coletivo nas decises pblicas a respeito das polticas de transporte no Distrito

    Federal. Essa evidncia clara da principal crtica do Direito Cidade, o papel da

    lgica de mercado na substituio da cidade obra56pela cidade objeto. Alm disso, v-

    se a participao do Estado na prevalncia dada aos agentes do mercado, no sentido

    de garantir seus interesses sobre os demais.

    Por outro lado, possvel ver os frutos da organizao e mobilizao popular

    na apresentao de e na luta por alternativas dentro da cidade. Alm da

    possibilidade conquistada de maior mobilidade urbana para uma parcela maior da

    sociedade, foi reconhecido o papel da sociedade civil nesse processo com a criao

    do Comit do Passe Livre Estudantil, com competncias consultivas e fiscalizadoras.

    Para isso o Movimento Passe Livre teve sua atuao e sua importncia reconhecida

    pelo Estado, tendo sua participao regulamentada na Lei 4462/2009. Nesse sentido,

    podemos tambm identificar a importncia da dinmica das instituies polticas para

    a aprovao do Passe Livre Estudantil, j que as duas vezes em que o projeto foi

    apresentado 2006 e 2009 se avizinhavam as eleies. Em outra anlise do

    Movimento possvel perceber essa constatao, quando ironizam: Assim,

    saudamos com nosso sarcasmo todos e todas que, nesse passado, nos chamaram de

    inconseqentes e malucos/as por propormos o passe livre e que hoje abraam com

    55Correio Braziliense - 28MAI10 - Caderno Cidades

    56 Como construo coletiva do espao.

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    unhas e dentes o projeto talvez como nica forma de manterem-se vivos

    politicamente57. Nesse percurso vemos que a idia toma relevncia social atravs das

    diversas estratgias de mobilizao at chegar a ser utilizada como medida eleitoral,

    que de to popular pode gerar aumento de votos nas eleies.No entanto, identificando a importncia central do Direito ao Transporte na

    construo do Direito Cidade, preciso entender o Passe Livre Estudantil, da forma

    como foi aprovado no Distrito Federal, como um avano e um exemplo de como essa

    construo possvel. necessrio entender, porm, como um primeiro passo, pois

    entendendo o Transporte como Direito, deve-se buscar avanar nesse Direito.

    Primeiramente avanando no conceito de Educao, aquela que no se restringe

    Escola, e estabelecer que o Passe Livre Estudantil deve atender necessidade dos

    estudantes por outros servios e pelo acesso cultura e diverso. Mas preciso ir

    alm da ligao entre transporte e educao. Sendo o Direito ao Transporte um Direito

    Fundamental, preciso que seja disponibilizado a todos. Por isso, o critrio excludente

    do mercado no pode servir como base da gesto do Transporte Pblico. O Estado

    deve assumir sua responsabilidade em providenciar os Direitos bsicos da populao,

    garantindo, como um objetivo a ser alcanado, um transporte gratuito, disponvel

    assim a todos. O Passe Livre Estudantil apenas um primeiro passo que nos mostra

    que essa transformao possvel atravs da mobilizao popular.

    VI.CONSIDERAES FINAIS

    dedico estecanteiro de obras(jardim-operrio)aos esquecidos dedeus que construramesta cidade de brasliae que, um dia,construiro comigo,em sonho e sem dor,a cidade de braxlia

    Nicolas Behr, Poeslia

    Poesia Pau-Braslia

    O estudo da experincia urbanstica de Braslia nos permite reafirmar o

    diagnstico de Henri Lefebvre: tcnicos de boa-vontade no podem resolver por si ss

    57http://vidasemcatracas.blogspot.com/2009/06/fique-livre-pra-passar-e-ultrapasse-o_11.html

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    os problemas da cidade, e talvez eles at os agravem ao supor serem capazes de

    faz-lo. Est fadado ao fracasso o urbanismo que assume a postura de um Deus

    Criador, Arquiteto do Mundo58: no possvel criar relaes humanas pela definio

    prvia do seu ambiente, desprezando o papel de formas concretas de vida e dasestruturas sociais na dominao e produo do espao urbano.

    O papel das cincias na tarefa de construo de uma cidade emancipatria

    estudar os movimentos que lutam para romper com a lgica de dominao e instaurar

    a apropriao cidad do espao. A inadequao do modelo de transporte coletivo de

    Braslia um fato inconteste. Ao decidir fazer este trabalho na perspectiva de crtica

    construtiva, no optamos por uma postura que se esgotasse no tecnicismo, mas por

    estudar o ponto de vista do Movimento Passe Livre, movimento social que prope um

    modelo alternativo, apto a efetivar o direito mobilidade urbana. Foi a prpria

    teorizao formulada por esse movimento que despertou nosso interesse pelo

    aprofundamento terico a respeito do direito cidade.

    O MPL, a partir da politizao de sua prpria demanda pelo direito mobilidade,

    no sentido de compreend-la em suas razes e conexes com outros problemas

    urbanos, tem sido um ator importante tambm em diversas outras lutas pelo direito

    cidade, sempre no vis de combater a dominao econmica e a utilizao do Estado

    como seu instrumento. O uso da ao direta, como por exemplo as ocupaes que o

    movimento tem construdo junto a outros movimentos sociais, a forma muitas vezes

    escolhida para a apropriao pblica de espaos de que os moradores da cidade so

    alienados, como o Setor Noroeste, a Cmara Legislativa do DF59 ou mesmo as ruas

    da cidade.

    Henri Lefevbre60 considerava que a maior alienao a perda do sentimento

    utpico. A utopia modernista funcionalista fracassou em Braslia, mas nem por isso

    deve ser abandonado o projeto utpico de transform-la numa cidade emancipatria.

    Talvez o ponto de partida para isso tenha se viabilizado por uma concesso dos

    fundadores, que acabaram no tendo como no admitir, aqui, a presena de

    estudantes e operrios, tal como idealizava Israel Pinheiro, o engenheiro-chefe do

    canteiro de obras da nova capital, para evitar agitaes. a agitao de operrios,

    estudantes e outros grupos ativos na luta por direitos, contra a dominao e a

    opresso, que tem construdo uma Braslia alternativa oficial, uma cidade dos seus

    cidados: a Braxlia sonhada por Nicolas Behr.

    58 LEFEBVRE, 1996, p. 97-98.59 Informaes sobre algumas dessas ocupaes podem ser encontradas no blog do Movimento ForaArruda e Toda Mfia: http://foraarrudaetodamafia.wordpress.com/.60 LEFEBVRE apud KOFMAN; LEBAS, 1996: p. 21.

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