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A ÚLTIMA CAÇADA Euclides Neto e-book.br EDITORA UNIVERSITÁRIA DO LIVRO DIGITAL (contos ) issuu.com/euclides-neto/docs/1 Euclides Neto

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  • A ÚLTIMA CAÇADA

    Euclides Neto

    e-book.brEDITORA UNIVERSITÁRIA

    DO L IVRO DIGITAL

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    Euclides Neto

  • O Acervo Euclides Neto foicriado a pela e-book.br, EditoraUniversitária do Livro Digital, como fim de disponibilizar na internettextos desse admirável ficcionistabaiano. Embora a sua obra comple-ta tenha sido publicada no ano de2013 pela Edufba, a distribuição pre-cária por uma editora de pequena cir-culação impede que o leitor brasilei-ro tenha acesso a esse pouco difun-dido patrimônio da moderna litera-tura brasileira.

    Mediante autorização da famíliado autor, os seus textos serão publi-cados em formato digital para leitu-ra gratuita, sem prejuizo de novoslivros impressos que venham a apa-recer, para satisfação do público in-teressado nas edições gráficas, comseus encantos e vantagens.

    A última caçada é uma seleçãotanto de contos publicados em vidapelo autor quanto daqueles só co-nhecidos após a sua morte, em Otempo é chegado, reunião dos con-tos completos de Euclides Neto.

    Outros livros virão enriqueceresta coleção, enquanto se plenejapara breve a fortuna crítica do au-tor, permitindo aos estudiosos umavisão diversificada do legado literá-rio de Euclides Neto.

    Em seguida, romances e outrosgêneros de obras completarão esteprojeto de inserção do autor nocotidiano do grande público leitor.

  • A ÚLTIMA CAÇADA

  • Endereços deste e-book:https://issuu.com/euclides-neto/docs/1

    www.e-book.uefs.br/euclides_netowww.linguagens.ufba.br

    Berimbau (1946)Vida Morta (1947)Os Magros (1961)O Patrão (1978)

    Comercinho do Poço Fundo (1979)Os Genros (1981)

    64: Um Prefeito, a Revolução e os Jumentos (1983)Machombongo (1986)

    O Menino Traquino (1994)A Enxada (1996)

    Dicionareco das Roças de Cacau e Arredores (1997)Trilhas da Reforma Agrária (1999)

    O Tempo é Chegado (2001)

    E-BOOKSA última Caçada (2017)

    O Advogado e o Burro Ladrão (2017)Cinco histórias da roça (2017)

    LIVROS DO AUTOR

  • A ÚLTIMA CAÇADA(contos)

    e-book.brEDITORA UNIVERSITÁRIA

    DO L IVRO DIGITAL

    Euclides Neto

    Seleção e organização:Cid Seixas

  • CONSELHO EDITORIAL:Cid Seixas (UFBA | UEFS)Denise Coutinho (UFSB)Denise Teixeira (LITERA)

    Gilca Machado Seidinger (UFSB)Maria Luíza Nora (UESC)Vitor Hugo Martins (UNEB)

    2017

    Obras de Euclides NetoVolume 1

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    SUMÁRIO

    O Contista Euclides Netopor Cid Seixas ........................................................ 9

    OS CONTOSA última caçada .................................................... 15Chico Zoim .......................................................... 23Briga de galo ......................................................... 37Retrato de general ................................................ 47Marido Moderno ................................................. 57Conversão do vigário .......................................... 65Amores da puberdade ......................................... 75

    SOBRE UM MESTRE DO CONTOOrelha da Primeira edição (2001)por Júlia Teixeira Bussius ................................... 83

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    euclides ne to

    Euclides, o mais próximo de machadopor Jorge Medauar .............................................. 87

    Tempo de EuclidesHélio Pólvora ...................................................... 91

    O tempo é chegadoGerana Damulakis .............................................. 97

    Posfácio da segunda ediçãoCid Seixas ............................................................ 101

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    O CONTISTAEUCLIDES NETO

    por Cid Seixas

    No caso, a letra inicial da palavra Contista deveser escrita com maiúscula, por uma exigência daqualidade dos textos curtos desse memorável es-critor grapiúna. Embora só tenha organizado seuprimeiro livro de contos em 1999, aos 72 anos deidade, depois de ter legado 12 títulos à LiteraturaBrasileira, Euclides Neto deve ser incluído na pri-meira linha dos modernos contistas da Bahia, aexemplo de Adonias Filho, Hélio Pólvora, Vas-concelos Maia e outros grandes nomes.

    Já foi dito que, se a indesejada das gentes não otivesse colhido um ano depois de concluir O tem-po é chegado, interrompendo esta bem urdidavertente da sua escrita criativa, Euclides Neto te-ria plenas chances de ser reconhecido entre osmelhores contistas brasileiros.

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    euclides ne to

    A narrativa longa foi o seu espaço inicial decriação, tendo publicado o primeiro romance –Birimbau – em 1946, em plena efervescência dasobras modelares da geração de 45. No ano seguin-te, apareceria Vida morta, girando em torno dasdesventuras de um estudante pobre e, somente em1960 Euclides estabeleceria um frutífero diálogointertextual com Graciliano Ramos, através doromance Os Magros. Até hoje essa obra reverbe-ra o seu canto solo que sugere um dueto com aconcisão admirável de Vidas secas.

    Outros romances, entre os quais se destaca, emplena maturidade – Macombongo –, de 1986,confirmariam a qualidade da produção literária dopersonalíssimo criador de histórias das terras docacau.

    Não se pode dizer que Euclides Neto só tenhapraticado o conto no final do século XX. Era umcontista bissexto, com presença notável e destaca-da em antologias regionais. Entre essas pequenaspeças, convém ressaltar o admirável conto “A úl-tima caçada”, que agora dá título ao presente vo-lume.

    Não se pode deixar de buscar uma analogiatemática entre essa narrativa euclidiana e o conto

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    a última caçada

    “O caçador”, de Miguel Torga. Ambos os auto-res, o português das montanhas e o brasileiro dasroças de cacau, guardam entre si uma clara identi-dade telúrica: a vivência mais densa e substancialda realidade ficcionalmente recriada. Torga eEuclides têm lugar ímpar nas literaturas de Portu-gal e do Brasil como escritores que deram voz amilhares de homens e mulheres silenciados pelamiséria e pela opressão do contexto social.

    * * *

    A coleção Acervo Euclides Neto foi criada pelae-book.br, Editora Universitária do Livro Digi-tal, com o fim de disponibilizar na internet textosdesse admirável ficcionista baiano. Embora a suaobra completa tenha sido publicada no ano de2013 pela Edufba, a distribuição precária por umaeditora de pequena circulação impede que o leitorbrasileiro tenha acesso a esse pouco difundidopatrimônio da moderna literatura brasileira.

    Mediante autorização da família do autor, osseus textos serão aqui publicados em formato di-gital para leitura gratuita, sem prejuízo de novoslivros impressos que venham a aparecer, para sa-

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    euclides ne to

    A Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides NetoA Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides NetoA Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides NetoA Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides NetoA Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides NetoA Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides NetoA Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides NetoA Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de EuclidesA Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides NetoA Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides NetoA Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides Neto)

    tisfação do público interessado nas edições gráfi-cas, com seus encantos e vantagens.

    A última caçada é uma seleção de contos, in-cluindo tanto aqueles publicados em vida peloautor, quanto os que se tornaram conhecidos apósa sua morte, em O tempo é chegado; reuniãodos contos completos de Euclides Neto, dada àluz pela Editus, a Editora da Universidade Esta-dual de Santa Cruz (UESB) – que tem o mérito deter publicado, em 1997, o Dicionareco das ro-ças de cacau, no qual o ficcionista dá destaque àterminologia regional da sua gente real e dos seuspersonagens ficcionais.

    Outros livros de contos virão enriquecer esteacervo, enquanto se planeja para breve a publica-ção da fortuna crítica do autor, permitindo aosestudiosos uma visão diversificada do legado lite-rário de Euclides Neto.

    Em seguida, romances e outros gêneros deobras completarão este projeto de inserção doautor no cotidiano do grande público leitor.

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    A Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides Neto)A Última Caçada (Contos de Euclides Neto)

    OS CONTOS

  • Euclides Neto e Angélia Teixeiranas roças que servem de cenário aos seus contos

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    Sentiram o lampejo no olhar um do outro.Entenderam-se tão bem que não precisaram depalavras. Quem seria mais amigo? Dizem que ocão é mais leal que o dono. Não entre o velhoClemente e Surubim. Empatavam sinceridade.Bastou aquele olhar amoroso para que puxassemuma longa conversa, relembrando caçadas.

    Há seis anos viviam no mesmo quarto. O ve-lho em cima da cama, entrevado de uma bandapela doença-do-tempo-que-passou, padecendoseus dias que iam escorrendo dolorosamente. Seestiava, levavam-no a quentar sol no peitoril, suaúnica distração. Assim mesmo, ficava a aparar comum pano, sempre ensopado, a baba viscosa que

    A ÚLTIMA CAÇADA

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    euclides ne to

    escorria pelos lábios desgovernados, mostrandoo velho das gengivas banguelas. Um braço caído,sem ajigo. Inútil a perna do mesmo lado. Os olhosembaçados fitavam por baixo, virando o rosto, cominútil esforço. A cabeça, pendida, parecia suportarinvisível peso. Olhar penoso.

    Surubim, depois que o amigo adoecera, nãoarredava as patas da cabeceira, em sua guarda per-manente. Quando em vez, se fitavam, comunican-do-se. Era uma prosa antiga, lilás, de infinita sau-dade.

    Quiseram proibir a presença de Surubim. Le-varam-no para longe, a mais de cinco léguas. Elevoltou e veio gemer no terreiro, terça noite, lágri-mas pingando. O doente acordou, pediu por tudoque não deixassem o companheiro sofrer tanto.Botaram-lhe um cambão, amarraram-no no fun-do do quintal. Roeu daqui, esticou de lá e a teimo-sa dedicação acabou trazendo-o de volta.

    Houve até quem falasse em matá-lo. Estariamordido por cachorro doido. Pura desculpa paradar-lhe fim. O velho Clemente sentiu a ameaça eapelou na sua fala de palavras tortas, difíceis deserem entendidas:

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    a última caçada

    – Deixem meu bichinho... ou morro mais de-pressa. É o único amigo paciente que não me lar-ga quando fico sozinho, dia e madrugada. Os ou-tros são visitas: chegam, demoram um pouco, porcaridade, ficam cansados e vão embora.

    – Está fedendo a rabugem pistiado com bicho-de-porco. Não deixa ninguém encostar na cama.Mordeu a enfermeira que lhe aplicava injeção -falara o filho.

    Foi feita a vontade e a filha caçula chorou deremorso, porque era ela quem mais reclamava dapresença de Surubim.

    – Por tudo, deixem meu bichinho aí. Não mor-ro sem comer uma paca levantada por ele e abati-da por mim, com a minha espingarda de grandefé que está ali no tomo.

    Surubim ficou definitivamente na camarinha,alforriado, botando sentido ao seu parceiro, estejá de olhos assustados com a morte que o acuava.

    O paqueiro levava suas vilides profissionais,orelhas rasgadas pelos dentes dos caititus, lanhofundo no pescoço. De castanho ficou ruço, cabe-ça de tapioca, feito o dono. De tanto as pessoasverem-no ao lado do doente, já os achavam pare-cidos. O velho Clemente com feições bondosas

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    euclides ne to

    de cachorro, e Surubim apresentava um quê derancor humano.

    O lampejo naquele instante continuava no olhardos dois. Entenderam-se. O velho deve tercatingado como quando ia caçar, só percebido pelocompanheiro. Um ficou encandeado no olhar dooutro, perdidos, na compreensão do que se dizi-am. Silenciosamente Surubim terminou vendo oamigo com a espingarda, e pulou em cima da cama,ganindo, voltando ao chão, correndo até a cozi-nha, retomando, naquele esparrame de cachorrofeliz. Novamente voltou ao colo de Clemente,puxando-o, mordendo o cano da arma, latindosempre, rindo com a cauda, disparando ao quintalcom tal velocidade que lá escorregou, batendo osquartos na terra, riscando-a com os pusemos cres-cidos pela falta de uso, voltando em cima do cor-po, enlouquecido de felicidade. Iam caçar!

    A vontade do bicho fundiu-se tanto na do ho-mem, que este já estava de capanga e cartucheiraao ombro, facão ao cinto, chamando:

    – Cá, nego!Madrugadinha. O sol rompendo as entradas da

    noite, melando de pitanga madura as partes nas-centes. Surubim saiu na frente, na vadiação, fare-

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    a última caçada

    jando o amigo, mordiscando seu rolo. Em cadapé de pau levantava a perna, esguichando gozo.Entraram na capoeira, atravessaram a mata, pega-ram a serra.

    Para o focinho arguto e competente do cachor-ro, a paca poderia ter deixado o faro há três dias.Veado mateiro, corredor fosse, dos que disparamoutro tanto depois de molhar os cascos na águacorrente. Qualquer vicissitude de bicho que pisas-se no chão, mas seu prazer maior era sentir o chei-ro perfumado de folhoso, já meio mofado, no ras-tro de um paca-açu, que alegria de cachorro semostra assim. Fungou em buraco de calango-fudião-do-zói-azul. Correu por baixo de voo denambu-pé-roxo, bestando, gastando liberdade, queele não agasalhava fidalguia pra bicho de pena. Oseu mesmo era o ligeiro da paca, carreira de muitaemoção e risco nos encruado. Labuta fina.

    Lá adiante baixou o focinho, farejou acreditan-do, fungou forte, desentupindo as fuças. Troteou.Levantou os olhos para o alto como se procuras-se uma referência da partida, e pegou a trilha, queparecia um pequeno túnel no trançado do cassassá.Chão limpo, escovado, sem um talo ou cisco quedificultasse a fuga ou viagem. Para tanto, a paca é

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    euclides ne to

    cuidadosa. Ao contrário da cutia que leva comohábito saltar garranchos encontrados pelos cami-nhos. Se a paca topa um gravetinho seco decambará, volta atrás, corta-o com a torquês den-tuça, contanto que o passeio ou a carreira fiquemlivres. Aquela trilha já pertencera aos antepassa-dos de muitas eras. A bichinha andara ali há doisdias. Tinha caído uma uluvaiada de chuva, dificul-tando. Não era nada, não. Daria nos tampos dela.Avançou quase encostando a barriga na terra, queseu tamanho não contava vantagem para a roedo-ra. Qualidade, aliás, do preceito. Sabia destorcer-se das maliçonas, quitaras, tiriricas, manés-veios,fechando os olhos, já tão lapeados. Estava na bati-da certa. Encontrou rastro fresco, da véspera, napaisagem do riacho. Ganiu nervoso, anunciando.

    O velho Clemente estimulou, avisando que es-tava preparado:

    – Ê... ê... pium! Ê... ê... pium!Surubim falou acuado.– Queu! Queu! queu!...Novamente o caçador:– Ê... ô... pium!Sabiam que em pouco a paca escapuliria pela

    espirra. Paca não é inocente de ficar em oco de

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    a última caçada

    pau-d’alho sem prevenir saídas de emergência, sa-bendo dificuldades. Espirrou num pulo, jogandopra cima o folhiço seco do tapume falso. Surubimconhecia tudo e deu carreira, batendo o ganido.

    O velho Clemente puxou o gatilho da espin-garda. Ficou a braça e meia da trilha, bem embai-xo.

    Lá vem, lá vem. Ouviu o grugrunar do animalem disparada, aflito, perseguido: ér... cré... cré...cré... aproximava-se rápido. Os olhos do caçadorgrudados na trilha, por onde passaria a persegui-da como um corisco. Mediu um coito para cima euma chave para frente, descontando a velocidadeda carreira, tudo visando a volta-da-pá. A roda dochumbo cabeça-de-macaco seria pá-casca.

    Há quem diga que houve até um tiro. Tantoque correram ao quarto de onde vinham os lati-dos angustiados de Surubim, que já não era maisna batida da paca. Olhava seu amigo, que foi vi-rando a cabeça, tentando com a mão direita segu-rar o braço esquerdo, derreando o corpo espu-mando, suando muito, até que deitou-se meio debruço, desgovernado, dormindo na mira.

    Foi a última caçada do velho Clemente e seucão Surubim.

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    De tão grande, a divisa da mataria era o hori-zonte cinza. Mais longe ainda, começavam os ser-tões onde o vaqueiro Guimarães Rosa, acompa-nhado da camarada Diadorim (salvo seja), vadea-va o Urucuia, montado no burrinho pedrês, atéchegar às cabeceiras do Cochá, à sombra dosburitis tesudos.

    Apareceu um goiano, andarilho que procuravao destino perdido. Tomou-se político no municí-pio de Manga, que bebia no rio São Francisco.

    Com pouco tempo, brigou com o prefeito, enuma terça, noite de muita escuridão, apanhou (oscontrários diziam roubou) tudo que havia na pre-feitura e sumiu. Pra onde? Pra o miolo das matas,

    CHICO ZOIM

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    euclides ne to

    à beira do rio Cochá, distante do rio Carinhanhauma marcha de vaca parida. No trançado dasaroeiras, paus-d’arco, itapicurus, paineiras prenhase floridas de rosa despejou a tralha oficial – damesa do intendente a uma máquina de escrever, aúnica daqueles franciscanos caminhos d’água.

    Sabia que viriam buscar o que fora trazido.Como esperava, chegaram os homens de confi-ança do chefe de Manga. Houve o tiroteio, quenem vale a pena contar mais, tantos foram os con-tados depois da pólvora. Antônio os mandou devolta, enxaguando com sangue o rastro deles.

    Abriu-se a clareira, ainda na quadra sem chuva.Nem casas precisavam para abrigar os trastes egente. Pensar nelas só quando os relâmpagos etrovoadas mandassem positivo anunciando osaguaceiros, lá para o mês de outubro. Era junho.Muito tempo ainda pela dianteira.

    Os tais pés-d’água já encontraram casas, que anotícia andou de três pés e muito vivente apare-ceu em procura de um taco de terra. Batizou-se deMontalvânia o novo arrabalde, festejando Antô-nio Montalvão, o que agora achara o destino.

    Novas correndo trilhas, no lombo dos cavalos,na canela dos homens, na barriga dos barcos e

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    a última caçada

    canoas. A mando de Deus estão distribuindo asmatas. Tem arrancho pra todo mundo. Em notí-cia boa, todo desesperado acredita.

    Estou me apressando no contado, porque temmuita coisa pra dizer e o que interessa mesmo éChico Zoim.

    Mas, aconteceram coisas que não podem serguardadas. Uma delas é que Montalvão resolveuemendar o seu arruado à Brasília, caminho de cemléguas bem puxadas. E o que resolvia estava feito.Convocou vinte homens de muque e valentia e láse foi desconhecido adentro, abrindo o vaquejador.Levava machados, facões, foices, enxadetas, pancasde aço, picaretas, para abrir a rodagem. O destinoestava de um lado do sol e Montalvânia do outro.Para chegar lá, farejava o poente e, na volta, raste-jaria o nascente.

    Farinha de milho carregava num jegue e o res-to da bagagem em outro. Sem falar na jeguinhafelpuda e doce, de nome Corrupio, que trazia ra-padura. Os dois animais eram capados para nãoesguritar no alvoroço das trovoadas. Carne, pou-ca, pra não fazer peso e volume. No roteiro, oscaititus, veados, tatus, tamanduás. Sem falar nosovos de ema que não se contavam. Era a natureza

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    euclides ne to

    sem medo da presença dos primeiros homens,bichos também.

    Logo depois do Cochá, cochilava a planície dosgerais sem fim, coberta com o mato fino e ralo,facilitando o serviço.

    Passou um ano. Dois. De fêmea, só Corrupio.Faceira e dócil. Também ela não precisava deesguritar no mundo, atrás de amante. Tantos ho-mens existiam ali, fu riosos como jumentoscolhudos. Apagavam os seus calores e os deles.Montalvão previra tudo. Mesmo assim, os com-panheiros queriam voltar. Deixaram filhos, mu-lheres, namoradas, pais e amigos. Alguém falouem fugir, o chefe soube e sentenciou: vou nos tam-pos e mato. Já comiam somente carne de caça.Faziam café com cipó. Venda, naquele ermo, nempensar. Se pelo menos topassem a bagagem deRiobaldo e seu Guimarães Rosa sabiam que umpouco de açúcar, sal e fumo de rolo teriam. E es-poleta, chumbo e pólvora, pois que só tinham ago-ra comida com as armadilhas de laço e de bater.Mas aqueles sertões e veredas dos buritis ficavamdistantes dos pousos do boiadeiro.

    Não era o medo da pistola de Montalvão quesegurava a sua tropa. Pela arma, bastava tomá-la.

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    a última caçada

    Dezenove cabras contra um. Mas a força do goianoestava na fama de corpo fechado, capaz de tudo, econtra quem seria impossível lutar. Do homem quesaía pelas serras, invadindo as grutas mais fundase perigosas, moradas de onças, cavando e desco-brindo garatujas de outras eras, mostrando aoshomens o caminho do umbigo do mundo –Montalvânia. Todos acreditavam. Tinha poderesencantados, Antônio Montalvão.

    Levaram três anos até o fim da empreitada. E ojipe saiu de Brasília e chegou de volta, já encon-trando uma capela, ruas, escola, cumprindo ordensdeixadas. Outra coisa que não vou descrever é achegada do pioneiro. Se quando aparece um polí-tico qualquer, é aquele foguetório e discurso ebandeirola, imagine-se Montalvão aparecendo emquatro pneus depois de tanta saudade. Corrupio,que saíra donzela, estava mulher feita e, como osjumentos, foi enfeitada com flores. Até apareceuum patriota mais afoito que sugeriu cobri-la coma bandeira nacional. O padre alemão não deixou.Também foi o religioso quem apartou uma brigafeia: um mais patriota, quando ouviu o hino naci-onal da vitrola, pegou uma moça e saiu dançando;outro herói, emocionado, chamou a atenção do

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    euclides ne to

    desrespeitoso dançarino e partiu pra cima dele, jáde pistola em riste, aos berros:

    – Você não sabe que é minha dona? Quem vaidançar com ela sou eu.

    Apaziguado o desentendimento, todos baila-ram o ouviram do Ipiranga.

    Terras fortes, antes sem dono, foram abertas aperder nos seténs de mundo. Chegaram João Soa-res, Chico Reis, José Crispim, Juarez, Cachuíte.Derruba da mata, queima, plantação de milho ecapim na mesma cova. Um e outro saíam no des-tempero da sustança do chão. Correram as cercasde achas de aroeira, currais de âmagos escolhidospara nunca mais acabarem. As sedes das fazendas,já podendo até hospedar gerentes de bancos, quelogo começaram a aparecer juntos com as lagartascortadeiras. O milho ninguém colhia, porque nãohavia comércio. Somente se quebrava o necessá-rio para as criações miúdas e seus donos. O gadoé que enchia a pança com tudo, misturado com ocoloinha e jitiranas, engordando, parindo comonunca se viu. A fartura era tanta que não se comiafato e os couros ficavam onde eram sangradas asreses. Também não se engordava boiada, nem vacatinha preço, nem bezerras fêmeas. Não valiam nada

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    a última caçada

    naqueles perdidos. Só os bezerros machos eramvendidos para a recria nas invernadas dos outrosestados. Nas panelas de ferro cozinhavam os boismansos que não aguentavam mais trabalhar degordura, empurrando virilha, criados aos milha-res para puxar carros, madeiras e pedras. Tambémse aproveitavam novilhas maninhas, se maninhashavia naqueles climas em que a reprodução ex-plodia em todos os viventes, pela força de todasas luas – podia ser também bicho-gente.

    Depois chegou a riqueza. Muitos automóveis,deixando para trás a cantilena dos carros de bois,que percorriam até sessenta marchas. Vaqueirotocava boi hoje, amanhã entrava num pedaço demata. Daí a pouco tinha pasto e criações. Era sóaumentar a gleba e virar fazendeiro. Chuva nãofaltava: seis meses de molhação e a outra metadedo ano estiado, o que facilitava o trabalho. Nuncaninguém viu, nem por castigo, chover quandodevia estar seco e chuva deixar de cair no tempocerto.

    Aí é que aparece a nossa personagem ChicoZoim. Não foi pra lá porque fugia de crime demorte, o que começou com o goiano, e era muitocomum, dado aos escondidos da margem do

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    euclides ne to

    Cochá e lapas de pedra. Dizia-se que o chegante,ali corrido, podia até dar o endereço, que ninguémachava. Exagero. Mas quem fosse para os lados daSerra do Ramalho não seria encontrado mesmo.Chegados por lá, recebiam agasalho. Ladrão é quenão aparecesse. Quem roubava tinha o destino deporca que come galinha. Depois, nem se comen-tava quem, por quem, por que e onde. As casaspodiam dormir escancaradas, o gado solto nasmatas, para descansar os pastos. Os porcos desa-pareciam nos umbus e voltavam no tempo certo.Nada sumia, salvo pelos dentes das pintadas, queoutra história já daria se delas fosse falar – tal aquantidade que trilhava por aqueles mundos.

    Fama de riqueza. Ficar milionário, tocar o ber-rante chamando os ambiciosos.

    Chico Zoim não escapou. Ouviu a notícia. Játem muito carro, tratores. E, por falar em tratorde esteira, a distração preferida da cidade era apre-ciar a briga deles, batendo lâminas comomarroeiros, medindo forças. Na praça principal.Esporte inventado ali, por falta de outro. Mas sóaos domingos.

    Zoim era mecânico. Aprendera a arte com seuirmão Alírio, o maior que já existira em Ipiaú e

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    a última caçada

    léguas em volta. Bastava ouvir a virada de umachave ou silêncio de um arranque preguiçoso e jádiagnosticava onde a máquina sofria. Até gostavamais de defeito complicado, para mostrar ciência.

    Surgiu em Montalvânia como um herói. Lá nãoexistia nenhum mecânico de verdade. Passou a sera criatura mais importante do lugar. Deram-lhe casapara morar, galpão para a oficina, afeição comoos do lugar sabiam distribuir. Pagavam o que Chicoentendesse. Compraria fazenda, certamente. Osmais ligas indicavam umas. Propriedade feita ouainda em mata, com poucas abertas, que sairia maisbarata. Surgiam as perguntas. Onde ele guardavatanto dinheiro? No banco não era, pois ficavamuito longe dali. Na mala poderia ser. Enterrava?Só gente velha, fazendo véspera para voltar à ter-ra, imagina que o dinheiro enfincado no chão seráencontrado depois da morte.

    O que mais intrigava é que Chico continuavacom a mesma roupa que trouxera. A graxa já ti-nha mudado a cor do tecido grosso. Ficara negroe seboso. A camisa, de tão rasgada, nem mais eravestida. O luxo, uma sandália de couro, tambémcurtida no óleo. Bebia cada vez mais. Chegava acair na rua, mastigar copo de vidro e boca de gar-

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    rafa. Felizmente, responsável pelo zelo do seu ofí-cio, quando estava de fogo respeitava os pacientesde ferro e aço. Esperava passar a carraspana e vol-tava ao que sempre fora e amava com muito gozo.

    Tem tanta coisa para contar de Montalvânia quea gente vai se esquecendo de muitos importantes.No mesmo dia de Chico, apareceu um cidadãolorde, se dizendo doutor. Como quem não temcachorro caça com gato, e ali nem gato existia nooficio, salvo as parteiras, curadores e rezadeiras, odoutor Virgílio começou a exercer o ofício de sa-rar gente. Pegava parelha com Chico na compe-tência. Tanto que fizera uma cesariana com a pa-ciente em cima de um carro de boi, debaixo dojuazeiro da estrada. Salvou mãe e filho. Temposapós, quando apareceu um médico formado deverdade e mandou levar uma mulher para Brasília,com o filho atravessado na madre, e ela morreuno caminho, teve de ir embora. Médico mesmoera o doutor Virgílio, que não escolhia onde e olugar do corpo do doente para meter o canivete.

    Volto atrás. Chico ganhava o que queria. Só eledava jeito nas cesárias das máquinas, das bombasde puxar água, arrancando as enfermidades.

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    Como a humanidade é assim mesmo, passa-ram a falar dele por inveja – porco, que nem ba-nho tomava, unhas encardidas e sovina. Faziam afesta. Não compra roupa porque quer adquirir afazendona de João Soares, como chegou a dizerem uma das suas bebedeiras no Boteco do Feroz.Estava ali a razão de tanta economia e mão depapagaio no arame.

    Um dia Zoim resolveu voltar a Ipiaú para visi-tar os parentes, disse ele. Comprou roupa e carrodo ano. Já estava casado e levou também a minei-ra para conhecer os seus. Moça prendada, de bor-dado fino e costura, como as outras do lugar, ca-pazes de lavrar o algodão, fiá-lo na roca, tecê-lo ecosturar toda a roupa da família - roupa do corpo,cama e rede. Ficaram com medo que Chico Zoim,portador de uma instalação do olho quebrada, daíseu nome, não voltasse. Estava rico, comprariafazenda na sua terra. Nem precisava mais de pe-gar na chave de fenda.

    A conversa em Ipiaú era que o ajudante de ofi-cina de mestre Alírio chegara sem ter onde botarmais dinheiro, montado em carro novo, mulherfilha de fazendeiro de gado do Norte de MinasGerais. Sabiam-no tão afortunado que as ofertas

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    de roças de cacau choveram. Até gente muito im-portante, que não achava mais negócio pelas suasterras, o procurava, insistindo. A riqueza toda quedeixara, cacauicultores (antes passaram a ser as-sim, por fidalguia), com aviões no hangar, casasde luxo na cidade e mais ainda nas fazendas, semcontar apartamentos de cobertura em Salvador,desapareceu. Encontrou um cemitério de tristes,angustiados, fantasmas queixando-se nas esquinas,nas portas dos bancos praticamente fechados esem funcionários, que as demissões jogaram nacesta de lixo. As ruas vazias. Muitos nem saíammais, nem iam às fazendas, ficando em casa cur-tindo a desdita. Só o pessoal dos cargos públicoscomprava nas lojas e supermercados. Asfazendeiras e filhas, antes passeando no exterior,dirigindo carrões com luvas de pelica, abriam ne-gócios modestos que apelidavam de butiques, logofalidas. Os rapazes inauguravam barzinhos naspontas de rua, quebrando também. Muitas casas,inclusive comerciais, com a placa na frente: “ven-de-se”. Quem imaginaria que a crise prolongadadestruísse cidade tão próspera, onde o Banco doBrasil tivera a Carteira Agrícola mais movimenta-da do estado?

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    Em momento de muito copo engolido, passoupela cabeça de Chico comprar uma das maioresfazendas da região. Se todos ofereciam, é porquesabiam que ele tinha recursos para tanto. Mas sóqueria a melhor de todas: palacete na sede, quinzebarcaças, duas estufas, mangueiras para gado deleite e animais de serviço, asfalto na porta, luz elé-trica, mobiliário feito com carvalho vindo de Por-tugal. E podia comprar mesmo.

    Resolveu voltar a Montalvânia. Do que adian-tava aquela riqueza toda do cacau antes, se a misé-ria agora farejava exatamente os mais ricos? Eraum pesadelo. Seus companheiros mecânicos esta-vam parados, todos os trabalhadores sem o quefazer. Postos de gasolina também fechando. Umcemitério de vivos, pensando que ainda existiam.

    No retomo, teve até almoço e discurso pararecebê-lo. Não fosse a sovinice e a cachaça, bemque poderia ser prefeito.

    Chico Zoim deixou de beber. Um milagre. Di-ziam que foi uma rezadeira baiana, de nomeMineirinha, quem tirara o vício. Deu para andarlimpo, pensativo, sério. Tinha alguma coisa demuita dúvida na alma. Não queria terras, gado,fortuna. Para viver feliz, desejava somente a famí-

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    lia, os amigos, uma casinha, a oficina e que nãome falte serviço, repetia. Me deu muito trabalho esofrimento não ficar rico. Venci.

    Agora, no jardim, feito de um pedaço da anti-ga mata, para que todo mundo arregalasse os olhosde espanto, puxava cédulas do bolso, e dizia mui-to manso:

    – Não preciso de tanto dinheiro. Ganhei du-zentos. Só vou precisar de cem.

    E rasgava o resto em folhinhas de angico.

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    Construída a rinha, esporte e jogo mais apreci-ados em Ipiaú. Sem a grandeza dos tempos dassafras ricas do cacau, continua frequentada. O pa-vilhão, doado pelo fazendeiro Ananias, vende osbilhetes de entrada por um buraco que se abre emmeia-lua na parede da frente. Quem atravessa aporta dá logo com a cadeira do juiz sobre um es-trado alto e estreito – um trono. À frente dele, aarquibancada circular em volta do rebolo maior,parecendo um prato fundo, piso e encosto acol-choados para aliviar os choques dos lutadores. Jun-to ao rebolo onde se iniciam as disputas, ficamdois menores. Ao fundo, o terreiro, cercado dejigos (apartamentos individuais para agasalhar asaves que pernoitam antes dos embates), e as gaio-

    BRIGA DE GALO

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    las para que as aves quentem, tomem sol no gra-mado. Aí ficam sempre sob a vigilância dos do-nos ou tratadores, que recebem um cadeado e cha-ve, a fim de evitar malvadeza dos adversários.

    Gladiadores que aparecem ali já estão consa-grados. Não era pra qualquer galinho-terra. Na-quele dia, além de muitos, dois chamavam a aten-ção: um pela qualidade da fama e raça, o outropelo dinheiro que o dono arriscaria nas apostas,segundo correu logo a notícia. Arranca-olho eLampião iriam se enfrentar.

    O primeiro vinha de linhagem pura, japonês,elegante e fidalgo. Desde os avós. Nasceu em cho-cadeira, passou ao berçário, luz elétrica no lugardo calor cheiroso da mãe, ração no balanço dealimentos finos. Ainda buguelo, foi separado dosirmãos, porque brigavam entre si de arrancar ocouro da cabeça, até aparecer o miolo – raça fe-roz. Quando chegou o tempo, já de espora, can-tando limpo, começou a testar, usando buchas decouro nos esporões. Minutos de briga no treinosemanal, já de coxas despenadas, comida de man-dioca pancaré, no capricho, tomando o sol conve-niente, amarrado no tarugo enfincado no chão.Enrijecendo e avermelhando o couro. Assim cres-

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    ceu, se preparando para grandes enfrentamentos,quando iria desmanchar os outros em duas bati-das, como um marrão em rocha, fosse. Mas sem-pre aparecia um teimoso ou desavisado, sonhan-do em derrubar o bruto. Vinham de longe, tra-zendo os afamados. Arranca-olho também viajarade avião no tempo que fazendeiro de cacau eragente e tinha bimotor cruzando os ares como an-dorinhas, nas traquinices de mostrar dinheiro efazer figura. Foi a Barreiras, bateu-se com outroimportante. O de lá não aguentou dois paus. Nempassou ao segundo rebolo. No primeiro mesmo,Arranca-olho enfincou as armas no bugalho doadversário que só fez dar o quiau! da covardia. Caiuadiante, já lavando os pés.

    Chegou a um ponto que ninguém competiamais com o perverso. A notícia correu seténs demundo. O dono, o orgulhoso seu Afonso, cortavapenas de um lado, sujava outras, mudava a espora,aparava o cabo, para despistar. Mesmo pelas re-dondezas mais distantes não conseguia enganar.Os ingênuos perdiam apostas, coculando os bol-sos do galista e o peito do herói de medalhas. Fe-lizmente havia os que o identificavam até pelamaneira brutal de cravar os punhais no gogó dooutro, descangotando, escorrendo o mel.

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    Lampião nasceu no mato, atrás de umas pe-dras, no escondido do trançado da moita de juá-mirim. Quando a galinha mãe chegou ao terreirocom a ninhada, a dona, agregada do seu Joventino,só fez jogar uns punhados de crueira já fermenta-da. Bem verdade que era filho de um pernam-bucano posto na criação, mais pra botar carne quepara deixar raça de briga. Era de ver o zelo comque a choca agasalhava seus lanzudinhos. Parafortalecê-los e livrá-los das malditas pixilingas,continuou dormindo no lugar da tiração.

    Imagine-se, então, o que não aconteceu com otolo que levou Lampião, galo-terra, à Ipiaú. Nãosabendo de nada, assistiu à pesada dos lutadores.O seu, um pouco mais leve que Arranca-olho,porém mais parrudo. Colocaram os dois em cimada mesa. O japonês arrepiou as asas, crescendo naaltura. Seu contendor, menor ainda, na sonsidadee treta. O juiz, como todo magistrado justo, pas-sando a mão no pescoço das aves para conferir sepassaram óleo. Alertou que ambos deviam ter omesmo peso.

    A regra aceitava diferença de alguns gramas.Mas havia, realmente, quase meia libra contra Lam-pião. O dono, coitado, sem nada saber, aceitou as

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    condições da briga. Só ele tinha fé no seu galocaboclo, bico curto, crista em serrilha das não re-comendadas, cauda arrebitada sem estar na alturae prolongamento, em linha reta, do encontro dasasas. Até arrastava uma meia foice. Nem tivera aprecaução de operar aquela crista, tirando-lhe oexcesso. O pé-duro chegou seguro por baixo dospeitos, com as pernas caídas, deslembradas. Vieranuma veraneio nova, fedendo a alho, que riscouos quatro cascos na frente da rinha. Pelo carro, seavaliava a fortuna do galista, ainda que cacau jáestivesse desaparecendo. Placa de Camacã. Doisquebra-facas do patrão, que só faziam tratar dosgalos, inclusive dos mais de duzentos que ele cria-va na fazenda, e acompanhá-lo nas valentias daslutas. Em volta, a gritaria das ofertas, para casar asapostas.

    Antes, estranharam que ele – o galista de fora -não hospedasse o animal em um dos alojamentos.Soltou-o ali mesmo na grama, deixando-o ciscar eabaixar duas galinhas do vigia da ExposiçãoAgropecuária, onde ficava a rinha.

    Será que o coronel, apesar daquele brilhanteolho-de-boi no dedo, tem coragem de botar essecome na garrafa pra desafiar Arranca-olho? Mais

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    admiração causou quando ele jogou o chapéu cheiode dinheiro no meio da arena. Colocaram emArranca-olho os punhais de aço no lugar dos es-porões. Forraram o bico no mesmo consoante.Lampião mal levava a devoção a São Francisco deAssis.

    Quando os lutadores foram colocados cuida-dosamente no tambor, não teve esse negócio debaixar a cabeça, fingindo procurar o que não per-deu, medindo o inimigo. Jogaram bico. Começoua pauleira. As apostas choveram. Joventino deCamacã pagando dobrado, cobrindo-as naquelaalgazarra que só os apostadores entendiam, pare-cendo, com licença da ousadia, a bolsa de NovaIorque:

    – Vinte pra dez.– Quarenta pra vinte.– Cem pra quarenta.Rolaram quinze minutos. Os lutadores foram

    borrifados com água pelos jóqueis. Todos toma-vam nota em papeizinhos das apostas fechadas.

    O juiz já tinha recebido as duas primeiras e atéseparara os dez por cento da rinha. Agora, só fa-zia presidir a luta.

    Joventino arreliou:

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    – Quem quiser ganhar dinheiro aposte no meugalo. Pago dobrado qualquer lance. Já que aqui nãotem homem pra sair comigo... pensei que ia en-contrar galista de coragem...

    Os brios dos da terra se incendiaram. Coitadodo mestição. Arranca- -olho lhe aplicou uma pe-gada no pescoço e ele já sentiu a esguichada desangue tapando-lhe a vista. O malvado caiu emcima como carcará estraçalhando a presa.

    As apostas por fora, que não pagavam as por-centagens da rinha, eram muito maiores.

    Nesse meio tempo, um gaiato denunciou queviu o galo de fora tomando uma pílula. Confirma-da a mentira, foi expulso, obedecendo a rigorosaética daquele pretório.

    – Nem adianta apostar nesse troço, agrediu al-guém. - Esse velho tá louco!

    Já corria muito dinheiro nas apostas. Os deBeira Rio não entendiam mais nada. Começarama arriscar pesado contra o forasteiro. Seu Joventinosó acreditava em dinheiro casado na mão do juiz.Ou cheque garantido.

    Não podia ser. O pior é que os empregados dofazendeiro começaram a apostar contra Lampiãoconfundindo os apostadores ou, quem sabe, para

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    compensar a derrota, truque muito usado naque-las ocasiões. Tudo de língua passada. Nada disso.Arranca-olho também arrancava o bico do outro.Foi o que fez agora, engolindo uma das armasprincipais do adversário. O magistrado permitiuque o ferido fosse cuidado pelo jóquei, que fezum implante com uma peça de aço.

    Nada foi nada. Já no segundo rebolo, se venciao tempo. O segundo, já estava sendo ocupado pornovo par. Ninguém assistia nem apostava nele. Osprimeiros galos, barrufados dentro do preceito.Lampião se sentou em cima da cauda, tática ma-landra, e esperou o outro. Aí é que foi a perdedeira.

    O tataú, já sabido campeão, cravou os punhaisno olho do infeliz e presunçoso filho de Camacã.Este caiu, dado como morto. O jóquei tirou Ar-ranca-olho e o juiz marcou um minuto para o der-rotado ficar em pé. Quem nunca viu coisa rezadaem rinha de galo, assistiu: Lampião aprumou-se,ficou orando, bico voltado para o telhado. Logodepois, conseguiu meter a cabeça entre a asa e ocorpo do outro, usando sua técnica costumeira,chopando com um golpe desmarcado o tutano doinimigo. Ouviu-se o quiau! do derrotado, já lavan-do os pés no meio do rebolo. Mas galo daquela

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    raça não corre. Mesmo assim, levantou-se aos tom-bos e não teve tempo de sentir a desgraça que lheacontecia. Lampião o aprisionou pelo cocuruto,fê-lo (em rinha se usa verbo assim?) deitar-se comoas galinhas que há pouco cobrira.

    Aconteceu a mais vergonhosa derrota que jáse viu em briga de galo. Arranca-olho, já agoraarranca-coisa-nenhuma, sendo abaixado comouma franga donzela. Lampião soltou o canto maislongo e forte da sua vida. Nem o pessoalzinho daponta de rua que levava as vítimas às panelas quiscomer aquela carne desmoralizada.

    A epopeia termina aqui, contudo é bom con-tar como Lampião foi criado. Começou a voar aopoleiro, quando os irmãos nem alcançavam aindao galho mais baixo do cacaueiro. Ainda novinho,no instante em que os irmãos eram perseguidospor cururu, papa-pinto, rato-bandola, sariguê nemse fala, gavião de toda vicissitude (o nanico ripina,o peneira e até o carcará que não tinha vergonhade matar e voar pelos ares com as criaturinhas deDeus), ele já sabia ficar rente com a terra, debaixodas ramas, se escondendo deles, como a mãe ensi-nava naqueles piados aflitos. Ela, bem verdade, eravalente. Gato-do-mato, e levantado de casa, até

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    pior, enfrentou. Brigava com raposa e cachorro.Arregaçava as asas e era cacetada para todos oslados. Até que Lampião começou a lutar também,ajudando. Um dia, foi com uma rabo-branco,cobrinha do tamanho de uma isca de pescar, noentanto capaz de derrubar com seu veneno umboi. Já tinha aprendido todas as negaças da mãe(com l icença do modo de falar). Pegou ajararaquinha pelo meio, desviando-se dos peque-nos botes e, com duas sacudidelas firmes, a divi-diu em dois espinhaços presos somente pelo cou-ro. Não contou prosa: passou-a no grelão, engas-gando e desengasgando, engolindo e desengolin-do. Aprendeu a arte: jararaca-do-campo, duas-ca-beças, cobra-cipó, coral, mesmo das brabas, ia tudopra moela. Quando cresceu, Lampião foi vendidopara o patrão da sua dona, que o viu brigando comperu e terminou derramando o papo do orgulho-so no terreiro. Ao falarem em apartar, o fazendei-ro, galista como se sabe, disse que pagava o galo eo peru morto. Bicho daquele não podia ir à pane-la, só porque matava pato, ganso e peru de pesco-ço pelado de gordo e erado.

    Hoje se quer saber o mistério. Ora, ora, foimuito veneno que comeu quando buguelo, e, de-pois, já de canto rouco. Encantou.

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    Saiu da cidade de Beira Rio ainda rapaz mo-derno. Sonhava com horizontes de astronauta. Odestino lhe reservava um futuro que ali não reali-zaria.

    Partiu, deixando as lágrimas dos parentes, dapobre mãe viúva, que não suportaria a separação,sobretudo sabendo que o filho abraçaria a voca-ção das armas, sujeito aos riscos dos campos debatalha. Ninguém segurou o afoito Hermógenes– afoito e determinado. Mas era o destino, o cha-mado imperioso da Pátria, mais forte que qual-quer outro sentimento.

    Quando chegou a São Paulo, alistou-se. Tinhaporte suficiente e até desenvoltura para cumprir anobilitante tarefa.

    RETRATO DE GENERAL

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    Passaram-se anos. Cartas vasqueiras para a fa-mília, que só faziam arroxear as saudades e o de-sejo de revê-lo, contando o sucesso nas trinchei-ras, com vitórias sempre minuciosamente descri-tas. Se mais não escrevia, justificava-se: era devidoà constante remoção para frentes de operações,cada vez mais distantes e perigosas. A velha mãeorgulhosa do filho, que se celebrizava. Graças aDeus viveu ela o suficiente para vê-lo retornarcoberto de glórias.

    A prova do sucesso ali, no retrato que trouxe-ra, mostrado na moldura doirada e oval, medindo,sem exagero, quatro palmos de comprimento etrês de largura. O troféu tomou imediatamentelugar de destaque na sala de visitas, bem no cen-tro, entre os avós enterrados lá fora, numa fazen-da chamada Jenipapo. Até uma bela imagem doSenhor do Bonfim foi deslocada do seu aposentopara agasalhar o ora vizinho de parede, em toda asua pompa, honrando o espaço.

    A cidade, que deixara acanhada, duas ou trêsruas compridas, beirando ou paralelas ao rio deContas, crescera: novos bairros, casas comerciaise bancos, clubes, antes inexistentes. Também elemudara: encorpou, mais corado, nariz forte de

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    a última caçada

    boxeador. Como relíquia dos campos de batalha,uma cicatriz na sobrancelha esquerda e outra, bemmais funda, na queixada. Orgulho de um militarque arriscara a própria vida em defesa da pátriaestremecida.

    O retrato não era uma fotografia comum. Ves-tia-se com farda de gala, botões rebrilhantes quese encarreiravam do gogó às partes baixas do pente.Olhar de Napoleão montado à frente das tropasvitoriosas. Os alamares combinavam com os bo-tões. Na gola, os ramalhetes também de ouro.Caindo dos ombros para os braços, os trancelinsvermelhos. Não levava quepe. Mostrava um cabe-lo repartido e engomado. E o bigodinho em li-nha.

    Como todo guerreiro que volta à casa materna,desfiava as lutas, o matraquear das metralhadoras,os atos de bravura. Tudo confirmado pelas meda-lhas que se dependuravam do peito – de todos ostamanhos e cores.

    Retrato de general. Só podia ser.Quem visitava a família, era logo conduzido à

    sala e ouvia os relatos dos feitos consagradores.Como quem conta um caso aumenta um tanto, afama de Hermógenes foi crescendo, disparou nos

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    lábios de quem os recontava. Houve homenagens,almoços, discursos inflamados no Rotary, glorifi-cando o filho da terra, orgulho da sua história. Umvereador entusiasmado sapecou o projeto do seunome em logradouro público, que começou embeco General Hermógenes, e passou a praça demuito destaque na cidade. Escolas também forambatizadas. Se aparecia autoridade de fora, ou acon-teciam reuniões de mesas floridas, o ilustre ho-mem era o primeiro a ser chamado para compô-las. E não era esse negócio de ser incluído no bolode autoridades representadas, civis, militares e ecle-siásticas. Nunca. O nome era citado com a cadên-cia e sonoridade da sua magnitude, com adjetivoscoloridos. Houve até quem o convidasse à mesacom um honroso: Magnífico Hermógenes CaldasValverde. Esse negócio de general ficara pouco.

    Nessas ocasiões trovejavam as palmas, quasesempre de pé. Garboso, lá se ia a figura tomar as-sento à mesa, ao lado do presidente, quando nãoo substituía, em subida honra.

    Conquanto a cidade tenha crescido, entravaagora na dura dificuldade do sol, das doenças docacaueiro, dos fazendeiros nas teias dos débitos.

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    O graduado militar aumentava mais o seu prestí-gio pela decadência reinante.

    Terra dos genros, dos ricos e afamados casa-mentos, automóveis de luxo, dos aviões para visi-tar as propriedades agrícolas (nem se chamavammais fazendas), tudo parecia um tempo vencido,como sempre acontece na decadência das nobre-zas.

    Com a chegada da quase miséria, os genrosforam largando as filhas dos cacauicultores (nometambém inventado, para indicar os nababos). Res-taram os netos dos desenlaces. Muitas mulheres,retomando do Rio de Janeiro ou de Salvador, so-bravam, atrás de novo casamento ou mesmo deaventuras amorosas, já que a carne gania. Decaí-das, nem tanto. Invés de contas bancárias rechon-chudas passaram a minguados reais conseguidoscom a venda de joias, mobília e o que mais pudes-sem passar adiante. Como não mais podiam com-prar roupa, mesmo as singelas, era comum vê-lasde paetês e sedas finas, nas reuniões da cooperati-va dos cacauicultores, também falida, usando osvestidos de grife, usados nos salões da Corte. Al-gumas até sofriam a humilhação de trabalhar parasobreviver. Os maridos, rapagões de cabeleira

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    pintando a idade, desapareceram, sem nenhumacondição de dar mesada à mulher e filhos. Se elesviveram até ali dos cheques do sogro, como pode-riam tê-los agora quando as estufas e barcaças es-tavam vazias? Queriam se ver livres do fardo in-cômodo das esposas já envelhecidas e, sobretudo,pobres.

    Sobrava, portanto, mulher largada. Algumasainda aproveitáveis, mas machucadas pelosdesregramentos da cidade grande. Como vivercomo se viúvas fossem, algumas até honestamen-te, mas ainda apaixonadas, saudosas, minando aslágrimas? Outras, logo tiravam o luto e caíam nagandaia, conseguindo horas extras no colchão dosrufiões.

    No entanto, o que nos interessa é o briosoHermógenes. Voltara com os cinquenta anos, ca-belos já alvaçãos. Seu nariz de lutador de boxe e acompetente barriguinha de militar descansado atra-íam a cobiça das mulheres dos genros.

    Até que se aproximara de uma delas. Queriaconstruir um lar. Em São Paulo, justiça se lhe faça,não era muito de procurar as sirigaitas, conquantoalgumas tenham passado pelas suas aventuras nacama.

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    Agora, não. Seu nome famoso cobrava casa,esposa e filhos. Daí as mulheres largadas, pencasdelas, apaixonadas pelos seus galões. Uma maispoética tentou conquistá-lo lembrando que a na-tureza enfeitava os pavões, galos e aves machos,para atrair as fêmeas. Estava deslumbrada com omilitar coberto de glórias e medalhas. Chegou a seinstalar uma discreta guerra fria entre o mulherio,cada uma disputando mais o oficial. E ele, sobran-ceiro, altivo, não se deixava levar pelas doidivanaspassadas pelo cabo da mula ruça. Recusava-as comdesdém, ainda que delicadamente, como mandavaa boa educação. Despeitadas, chegaram a levantarsuspeitas pela integridade masculina do cobiçadovarão. Vingança besta, já se vê, de mulher rejeitada.

    Assim não aconteceu com Julieta. Assim, não,minto. Julieta não era mulher largada. Fazia partede uma ninhada de irmãs, ela já na beira dos trintaanos, de beleza indefinida como essas de pinturamoderna, que a gente não sabe se é o belo ou bor-rão de tinta. Simpática e prendada, moça de basti-dor e agulha de crochê na mão a completar o or-çamento doméstico com seus rococós. Longe deser janeleira. Tímida, não correspondeu às insis-tências de Hermógenes – era gente importante

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    demais para o seu bico de costureira. Mas um dia– tudo tem um dia – passou pelo passeio da casadele e olhou para dentro da sala, cujas janelas seescancaravam para a rua. Lá estava o retrato.Irresistível. Foi a perdedeira. Aliás, mulher algu-ma resistiria à farda resplandecente. Era tarde. Elese lamuriava, queixando-se que o interesse acon-tecia pelo seu posto, que as levava a desejá-lo tan-to. Não existia amor.

    Com Julieta foi diferente. Incendiou o que sechamava paixão no tempo que existia tal boba-gem. Daí veio o casamento. Festão. Filhos.

    Não se sabe bem por que, o tempo apagou ofogo do amor. Dizia-se que as largadas pelos gen-ros caíam em cima dele com tal fúria que o nobremilitar não tinha como resistir. Mais uma abando-nada. Julieta, injuriada, foi morar longe, nos con-fins do Pará, chamada por um tio. Fugia do ingra-to que lhe dera, não a felicidade, mas a desdita devê-lo atrás dos rabos de saia.

    Pena que não se possa narrar os detalhes dessalonga epopeia, que encheria um gordo romancede fôlego, lágrimas e aventuras.

    Por lá, Julieta, ainda carnuda e suculenta, co-nheceu um fazendeiro solitário, com quem se ca-

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    sou na tinta e papel, ajudada pelo divórcio quedeixara para trás. Não tivera mais filhos. Os deHermógenes cresciam, foram à escola, frequenta-ram a Universidade em Belém e se formaram,adotados pelo padrasto.

    Um dos rapazes, médico psiquiatra, sofria dasíndrome de quem não conhecia o pai e o procu-rava. Ainda menino, perguntava insistentementeonde ele estava. Com o tempo, engoliu a desilu-são de encontrá-lo. Nem uma fotografia, um ob-jeto que o lembrasse. Julieta não guardara nada.Cortara a decepção pela cepa. Honestamente di-zia, sem maiores explicações, que não valia a penaconhecer o pai, já que agora, sim, agora tinha quemverdadeiramente cuidava deles.

    Mesmo assim, o psiquiatra escrevia para BeiraRio, procurando desvendar seu mistério maior epedia uma lembrança, qualquer coisa que lhe des-se a presença material do progenitor.

    O tio mandou-lhe o retrato de general, em todaa sua pompa. Nada mais significativo. Infelizmen-te demorou de chegar. Quando o psiquiatra o re-cebeu, tinha descoberto nas suas buscas ansiosas,já fazendo mal juízo da própria mãe, toda a verda-de sobre Hermógenes. A moldura comprovava

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    euclides ne to

    tudo. Nos arquivos da Polícia Montada de SãoPaulo constava o nome de um soldado, de nomeHermógenes Pereira Gonzaga, natural de BeiraRio, expulso da corporação por desvio de condu-ta. E as medalhas no peito? Bem, todos sabemque existem nos estúdios dos retratistas, desde ocavalinho de madeira para os meninos tirarem re-tratos vestidos de caubói, até fardas com meda-lhas para os vaidosos que pretendam ser promo-vidos, com os galões e insígnias ao gosto do fre-guês.

    Triste sina de um garboso retrato de general:virou labaredas.

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    Compadres. Os dois estavam no gabinete doque era casado e juiz de direito. O outro, comerci-ante de tecidos, bem posto na praça. Jogavam ba-ralho juntos, aos domingos e feriados, quando osdeveres o permitiam, e era obrigatório o almoçodo lojista, chamado Adamastor, na casa do magis-trado, de nome José Estandislau. Adamastor con-tinuava solteiro, no viço dos quarenta anos. Nãose casara até ali por absoluta inibição. Vergonhade dirigir-se a uma moça, mesmo bem-intencio-nado. Salvo aqueles almoços e encontros na casado compadre, vivia esquentando o caminho doapartamento para a loja.

    Doutor Estandislau, ao contrário, era munda-no. Alegria às gaitadas, mantendo amante em cada

    MARIDO MODERNO

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    euclides ne to

    escondido da cidade. Dançava nas casas livres atéa noite pegar o rabo do dia, sem nenhum cons-trangimento da respeitável posição social .Pagodeiro. Sua mulher, dona Neusa, prima docompadre, submissa, aceitando tudo como Deusera servido. Se o esposo chegava às tantas da ma-drugada, nem precisava explicar-se. Ela mesmaqueria acreditar que ele estava no Fórum,prolatando sentenças. Gostava de lavrá-las no sos-sego do seu gabinete, onde poderia consultar abiblioteca do tribunal.

    Dona Neusa pariu três filhos, que puxaram asua família, e nada ao pai, com aquele semblanteabigodado de mexicano dono de cabaré. Sem vai-dades, a jovem e tranquila mãe amamentava atéque escorria a derradeira gota de leite. Jamais foraa uma festa dançante. Seu trabalho era no lar, co-mandando as empregadas, fazendo arranjo paraos jarros, lavando, ela mesma, a louça fina. Suadistração, como moça prendada, estava no borda-do de bastidor, a mão ou a máquina, cobrindo osdebuxos caprichosos. Seu riso, apagado. Mal en-treabria os lábios. As roupas, na discrição das co-res murchas. Nem um brinco ou volta de ouro,muito menos brilhantes.

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    a última caçada

    Se usava uma joia, era de prata, encastoandouma pundonorosa pérola. Não saía, salvo à missana contrição de terços rezados todo santo dia. Sómuito amor para suportar o afogueado doutorEstandislau.

    Possivelmente tenha nascido daí a fuga do in-satisfeito marido às mulheres árdegas, de melhordesempenho nas cavalgadas dos lençóis. Conquis-tava-as com facilidade, aproveitando-se da posi-ção de magistrado, carro estrangeiro, generososcartões de crédito para as rodadas de vinho e uís-ques, com as idas aos motéis, que davam um quêde proibido. Saboreava o risco de ser pegado noflagrante do pecado. Caprichava nas emoções,pedindo à amante do momento que fosse dirigin-do, enquanto ele se escondia, abaixando-se nocoxim. Ou divertia-se despistado de motorista,com quepe, paletó de botões dourados, levando abeldade no banco traseiro.

    Ante as brasas vivas e a cinza fria de dona Neu-sa, ele preferiu o divórcio fácil, que ela, passiva-mente, aceitou, sem nada exigir. Por dever de cons-ciência, deu-lhe o apartamento da família e a me-sada pródiga. Sentia piedade por quem o acompa-

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    nhara pelos sertões, até chegar à capital, na posi-ção de destaque que hoje o aureolava.

    A cada promoção de comarca do doutorEstandislau, o fiel compadre dava balanço na loja,até com prejuízo, e mudava de praça, acompanhan-do-o. Não podia viver sem o amigo, que o ampa-rava na crescente timidez. Quando o magistradose ausentava e, às vezes, fazia viagens a Paris, nãopelo Museu do Louvre, mas pela libertinagem, oprestimoso Adamastor visitava diariamente donaNeusa. O mesmo acontecia quando, ainda nascomarcas do interior, a rotina de ouvir partes, tes-temunhas e acompanhar vistorias, levava o dili-gente homem de letras jurídicas aos fins de sema-na prolongados, até quarta-feira, à capital.

    Agora vem o lado humano do ex-marido.Como cidadão compreensivo, admitindo a evolu-ção dos tempos, não queria que dona Neusa, ain-da tão jovem e bonita, continuasse na solidão dasmulheres abandonadas. Sabia que ela, uma santa,não teria temperamento para procurar matrimô-nio, muito menos um namorado eventual.

    Decorridos quase dois anos, doutor Estandislauainda a visitava, levando-lhe caramelos e chocola-tes, mimando o resto de menina inocente que vi-

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    a última caçada

    via nela. Seu sentimento de culpa reconhecia a in-gratidão que praticara.

    Compadre Adamastor continuava o mesmo.Agora dividia a atenção com ambos. Mas vamosao começo da história. Sentavam-se os dois com-padres no gabinete, e o amigo comerciante, abis-mado, ouviu:

    – Vocês são parecidos. Ela está desimpedida,porque divorciada. Dão-se muito bem. Que tal seucasamento com Neusa, meu compadre? Já faleicom ela. Não respondeu nada. Baixou a cabeça.

    – Compadre, o que você me propõe é um hor-ror. Um desrespeito. Com que cara falarei... senunca tive jeito para procurar outras moças, comome encaminhar à comadre e pedir-lhe a mão?

    – Ora, compadre, deixe de bobagens. Por cau-sa do seu acanhamento, você perdeu os maioresprazeres da vida.

    – Não, compadre, dez vezes não.– Vamos fazer um trato. Você não precisa to-

    mar nenhuma iniciativa. Eu me encarrego de tudo.Depois de muita insistência, Adamastor relu-

    tava com as palavras gaguejadas:– Poderia até pensar nesse disparate se for ca-

    samento de verdade. Não quero que nossos co-

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    euclides ne to

    nhecidos digam que me aproveitei da comadre, nadificuldade que está passando, desencaminhando-a. Seria uma traição à nossa amizade. Mas como évocê que está lembrando...

    – Ainda hoje vou mandar preparar os papéis.Nem preciso falar com ela. Faz o que mando equero. Sempre me teve como pai e marido. Conti-nua a ser filha. Como você, ouve os meus conse-lhos.

    Acabou dando certo. Doutor Estandislau vol-tou para casa feliz. Amparava mais uma vez suaex-esposa. Por ser juiz da vara de família, tinhaobrigação de assim proceder.

    Depois do casamento, tendo doutorEstandislau entre os ilustres padrinhos, dona Neu-sa e Adamastor procuraram um apagado hotel,onde passaram três dias em lua de mel.

    Após o ato, sim, ia me esquecendo, o magistra-do ofereceu banquete para os amigos comuns,gente do comércio, desembargadores, colegas,advogados. Até deputados apareceram. DoutorEstandislau divertia-se. E contava sorridentecomo se dera o enlace. Mas também desejavamostrar a sua grandeza de espírito.

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    a última caçada

    Passados alguns dias, doutor Estandislau en-controu uma carta esquecida dentro do pecami-noso romance Madame Bovary. De Adamastorpara a comadre. Carta discreta, sem maioresefusões d’alma, como aliás, era o temperamentode ambos.

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    CONVERSÃODO VIGÁRIO

    Caatinga enfezada. Lugar por onde passarammuitos heróis de Canudos. Lá em cima, nococuruto do morro empinado, atrás da cidade, acruz - símbolo da paz e da guerra. A cidadezinhaacanhada, sobrevivendo da lavra de cereais, tãovasqueira quanto as chuvas. E das cabras. As casasparece que escorreram do alto, como rolavam pe-dras nas enxurradas dos aguaceiros. Tudo sufoca-do pelos verões de alguma fornalha das profun-das. Os vaqueiros passavam encourados nos cava-linhos castanhos, seguidos pelos cães magros, os-sos riscando a forma dos bichos e dos homens.Andavam lerdos e sem pressa. Como se soubes-sem onde estaria o fim e retardassem para chegarlá. O tempo é longo, distante. Não sabem quando

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    euclides ne to

    voltam, nem até aonde vão. Depende da rês arri-bada, do marroeiro sumido, que anda procurandoamante naquelas noites fofas de alecrim cheiroso.

    Ali chegou o padre Antero, barba encapoeirada,olhos entrincheirados no fundo das órbitas. Ti-rasse a batina e vestisse os couros, seria um dolugar. Piedade. Desejos e pecados recolhidos nosacrário do catecismo. Alugou a casinha porta-ja-nela, na rua do Umbuzeiro, quintalzinho cercadocom garranchos de jurema e macambiras. Chega-va para ficar, casamentar as virgens, que ali aindaas havia, batizar os pagãos, levar os santos óleosàs ovelhas do Senhor. Se possível, enxaguar aque-les miolos das palavras do perigoso Conselheiro esua gentinha miúda, que morreram sem se entre-gar, lutando contra os graúdos, pois o beato-guer-reiro era o próprio Satanás. O primeiro-cujo,aprendiz do segundo nas artes da escuridão.

    O bom pastor de ovelhas (melhor dito, de ca-bras) viveria nas virtudes da Igreja, cuidando dosafazeres da fé, das roseiras para o altar – seu lazer.E do canarinho-terra, na falta de um cravo paratocar as músicas sacras. Assim, também escorra-çaria as tentações dos solutos ermos. Sabia que asolidão era alcova das tentações. Nem queria

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    a última caçada

    zeladora do altar. Para que os olhos curiosos e aslínguas-de-navalha ficassem silentes sobre a suavida. Batina! Nada de short e camisa xadrez comoo malandréu do antecessor, jogando perna,dominó na porta do cabeleireiro Epaminondas,dando gargalhadas no deboche da guitarra,engraçando-se com as meninas, emborcandocopo; e, além de tais pecados, se enlameava noscapitais, ao frequentar as mulheres alegres, sob adesculpa de trazê-las ao cercado de porcas, já queao redil de cordeiras não podia ser. Um pai dechiqueiro, o outro padre. A paz do Senhor estejaconvosco! Da política, pecado mais grave ainda,nem ouvir falar. Visitou o prefeito, o juiz, o dele-gado. Cumpriu o preceito.

    Contratou marmita a uma velhinha, somentecom feijão gurutuba, farinha e ensopado de bode.O café da manhã e da noite, ele mesmo o resolve-ria, estrelando os ovos das poedeiras. Mulher den-tro de casa, nem ver. Só a imagem da Santa da suadevoção. Ao rezar aos seus pés, encantava-se coma beleza dela, um estranho sentimento o possuía.Chorava em desespero. Terminou levando a ima-gem em procissão à capelinha da Várzea do Sapo.Preferiu ficar com sua alma sempre arrependida

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    pelos pecados nos momentos da saudade. Quan-to mais longe das tentações, melhor. Mesmo as-sim, celebrava mais missas na igrejinha, como queatraído pelas forças do sujo Conselheiro.

    Padre Antero cresceu a barba, encovou maisos olhos, puiu a única batina. A fé lhe deu aquelesemblante de santo. Santo, realmente, passou a serpara os do lugar. Arrastou à missa domingueira,além do povinho de Deus, todas as autoridades edonos das extensas terras que se derramavam emvolta. Muita ovelha suja voltou ao rebanho, dei-xando o pastor da Igreja Batista sem uma marrã.Praticamente fechou a do Sétimo Dia.

    A paróquia virou Terra Santificada. As procis-sões que marinhavam o morro na penitênciaencorpou fileiras. Aparecia novamente um beatonaqueles sertões! O povinho não se contentavacom os padroeiros do céu, invisíveis. Era da sualenda beatificar alguém em vida, para sentir-se pro-tegido e perto de Deus. A presença do vigário eramais um milagre.

    Se por onde corre a veadinha arisca, passa onçaferoz, assim, também, na trilha do homem virtuo-so viaja o Esconjuro.

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    a última caçada

    Chegou o sucesso à cidade. O coronel Nico-demo da Ponta da Pedra mandou cercar o fundode pasto que pertencia a mais de trinta famílias.Correu o farpado e garganteou que se qualquercriame passasse para dentro da sua terra levariachumbo. Como bode não respeita dez fios de ara-me, quanto mais quatro da promulgada Lei dosquatro fios, veio o destempero. Cinco criaçõesbaleadas, ficando logo três mortas, e as outrasforam se acabar no terreiro, junto às crias no-vas. Os donos reclamaram. Tiveram o mesmodestino.

    Durante eras, desde o nascimento do século, jácaído na idade, que não se ouvia falar em brigamaior por aquelas bandas. A mortandade de Ca-nudos gastara a violência por muito tempo. Osanos correram mansos até ali. Mas a raça era amesma.

    Apareceram os filhos que escaparam e a viúvado assassinado, moradores das terras soltas. Pro-curaram o delegado, não o encontraram. O pre-feito, fora, em Salvador. Juiz e promotor há tem-pos não compareciam à comarca, que ali não eralugar para doutores formados, de rubis brilhan-tes. Os dois soldados e o cabo, em diligência.

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    euclides ne to

    Três catingueiros ficaram no chão exempladospelos cartuchos da 12: o pai, com os dois pés de-cepados. A família agoniada, sem encontrar comquem se entender. E não adiantava chorar ao pédo cruzeiro lá do alto. Alguém se lembrou do pa-dre.

    Por mais que o já beato Antero se desculpasse,alegando que o caso pertencia às autoridades tem-porais, dando a César o que era do rei, não con-vencia.

    Disseram que um dos baleados estava bulindo,já no cirro da morte, carecendo de ser encomen-dado. Não se tratava, pois, de assumir as respon-sabilidades terrenas. Era uma alma esperando aextrema-unção para entrar no reino celestial. Foià igreja, apanhou uma hóstia. Piedosamente aco-modou-a numa caixinha, com os santos óleos etomou o caminho do sucesso. Chegou já sol vi-rando cinzas. Não era do seu desejo aquela visão:à beira da encruzilhada, os corpos, os pés um pou-co adiante. Parentes botavam sentido, entoandoas rezas molhadas de lágrimas, acompanhando asalmas que ainda não tinham chegado ao céu.Aguardavam a autoridade e montavam guarda,evitando os urubus gulosos, que já festejavam em

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    a última caçada

    voos baixos. Esconjurados! Já tinham feito muitobanquete em outras criaturas, também abatidaspelas mesmas razões. Só deixavam as cazumbas.

    Padre Antero, na volta, deu um pulo na capelada Santa. Ajoelhou-se e praticou a maior contriçãoda sua vida. Pediu a ela que o amparasse dos mauspensamentos. Não pretendia seguir os passos dospadres comunistas. Buscava a senda do amor e doperdão. Da paz e da cordura. Que lhe tirasse doslábios a caneca coculada de amargor, demasiada-mente cheia para a sua fé.

    Qual foi a resposta da Milagrosa, adjutoradapor Jesus, não sabemos. O amanhecer do dia se-guinte encontrou um vigário sem dormir, olhosentrincheirados mais ainda, fixos na estátua deAntônio Conselheiro, carrancudo, que parecia pre-gar no meio da praça a mensagem dos passadostempos.

    Domingo. A capela da Santa, tibi de cheia, nãocabia a gente das redondezas. As autoridades bemdo seu. Pilatos entrou em julgamento. As palavrasem ponta de faca caíam sobre os omissos. O co-ronel desviava as vistas do pregador, mas os olhosterríveis da ira dos bons o seguiam. Virou-se paratrás. O religioso deixou o altar, percorreu o espa-

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    euclides ne to

    ço que os separava, postando-se à sua frente. Re-tomou. Os fiéis entenderam. Nem precisava dizerque aquela missa era a do Sétimo Dia pelas almasdo pai e dos filhos. Todos os olhares se fixaramno coronel. E também nas autoridades que se au-sentaram no dia do sucesso.

    Mirou a querida imagem. A Santa lembravamesmo a menina da escola primária, já mocinha.Ele buçando bigode, ela estufando os botões derosa da blusa, noivando outro, levando-o desgos-toso ao seminário.

    Começou a respeitar a vida do Conselheiro.Estava na fala dos mais velhos. Teria que resgatara memória do santo homem. Disso não fazia se-gredo. Organizara os trabalhadores. Resistiu àfeitura da cerca da Ponta da Serra, mandando cor-tar os farpados e soltar o criame. A notícia correuterreiros e encruzilhadas. Foi esbarrar no rio SãoFrancisco, atrás do horizonte. Foi expulso da Igre-ja. Continuou celebrando missa, casando, batizan-do, distribuindo o pão das almas e lutando pelafarinha do estômago dos homens. Sua fé era pro-funda, convicta. Tirou a batina, vestiu-se de traba-lhador: alpercata de couro cru, calça remendada,camisa de xadrez, jaleco, crucifixo de umburana

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    a última caçada

    feito a canivete por ele, que também esculpia san-tas e as colecionava com devoção, enchendo oscômodos da casa. Beato nos limites do ódio e doamor, em luta com os próprios sentimentos, semsaber até onde chegaria.

    Certo dia, foi ao mato cortar uma tora fornidade umburana de cheiro. Amarrou-a pela cinturacom corda de caroá, para puxá-la. Quando o vi-ram parecendo um boi de arrasto, suando bagas,lábios contorcidos pelo esforço e dor, sangrandopela autoflagelação, tentaram ajudá-lo. Não acei-tou. Carregava o seu madeiro – mais uma peni-tência do santo homem. Foi juntando fiéis, fiéis,debulhando terços, e longa procissão se formou.Ladainhas, velas acesas, acompanhando-o. Subiua ladeira da entrada da rua. Tropeçou e caiu algu-mas vezes no percurso do calvário. Quando es-barrou na porta da sua casa, desfaleceu. Deram-lhe água com açúcar. Voltou a si. No mesmo dia,começou a esculpir a Santa no tamanho natural.Levou meses na enxó, na goiva, dando forma àmadeira macia como as carnes de uma virgem.Descobriu assustado que a imagem ficava cada vezmais parecida com a menina da escola, confun-dindo-se também com Afrodite – mãe do outro

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    Antero, o da mitologia. Trazia, pois, do batismo, oestigma de todos os pecados. Temia vestir tam-bém a umburana perfumada como a deusa do de-sejo e do amor, que o mármore parecia cobrir como finíssimo manto transparente os seios mimososda grega.

    A imagem ficou perfeita. Pensou em benzê-lae colocá-la, na praça, ao lado do Conselheiro. Mas,sentiu ciúmes. E nas noites mormacentas da car-ne, se levantava, acendia muitas velas e ficava acontemplar a sua devoção. Punha as flores quecultivava com tanto carinho em seus pés. Só haviaum meio de castigar-se. Saía ao relento e apagavao seu próprio fogo com água e sal, depois de fe-rir-se com os espinhos da roseira.

    A dúvida era não distinguir mais os pecados dacarne e os das novas convicções religiosas. Con-vertera-se à fé possível.

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    AMORES DA PUBERDADE

    Doutora Belanice não lhe saía dos desejos.Noites enormes a pensar nela, revendo as esqui-nas arredondadas do seu corpo. Andar elegantede garça no cio. Mas impossível. Nem por isso alembrança do seu odor o abandonava. Sentia-otoda vez que a encontrava, ao apertar-lhe a mão.A vergonha e o marido, sempre presentes, não lhepermitiam beijá-la. Mesmo quando ela se inclina-va para frente no gesto de quem entregava a faceao afeto do cumprimento. Arrependia-se. Perdiasempre a oportunidade de aliviar a sua paixão nocontato dos lábios sôfregos naquelas bochechasde covinhas morenas. Mesmo sabendo que eranormal e que jamais alguém desconfiaria dos seussentimentos.

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    Temia que seus olhos gulosos o traíssem. Todoo semblante se modificava ao vê-la. Sentia que asnarinas se arregaçavam animalescamente. A bocafranzia-se numa comissura imoral. Ora empalide-cia, ora ficava escarlate.

    Precisava ter cuidado quando a doutora apare-cia. Receara completar o desejo naquele dia dachegada na fazenda, a única oportunidade que ti-vera. Deveria tê-la beijado, e até tocar-lhe o rostocom os lábios semiabertos. Agora chegava amar-gura com arrependimento. Conquistar aquela mu-lher, bem-casada, lindíssima, rica, diplomada emeconomia, graduação em Harvard... Ele, seu pri-mo (não direi o nome porque me contou tudo epediu segredo), um bisonho estudante secunda-rista, quase um menino, passando as férias na fa-zenda do tio, também primo dela.

    O que se chama amor impossível seria aquele.Não tanto pelo parentesco, mas pela diferença deidade. Ele com catorze anos e ela no esplendordos trinta e cinco.

    O mais grave é que começava a ter ciúmes. Nãosó do marido, mas de qualquer homem que seaproximava de Belanice. Passou a vigiá-la, aindaque de longe. Disfarçava-se atrás das portas e

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    a última caçada

    móveis a espreitar os passos da amada, conferin-do seus movimentos. Se ela entrava no banheiro,esperava a água jorrar, escorrendo sobre o seucorpo. Maldava coisas. Quando ela resolveu pas-sear na mata do fundo da sede, viu-a atravessar orio, levantando exageradamente a saia. Felizmentesó o marido a acompanhava. Menos mal. Mesmoassim, sofreu. Quando eles sumiram entre os ar-voredos, não se conteve. Também entrou no ma-tagal. Paralelamente, andava a certa distância, semser notado, mas ouvindo as vozes deles. Receavaque naquele escondido... Porque se beijavamdespudoradamente. Morreria se os visse no ato.Não se conteve. Apanhou uma pedra e jogou-ana direção dos desavergonhados. Assustaram-se,voltando por onde chegaram.

    Na noite daquele dia procurou o quarto vizi-nho ao do casal. Não dormiu, tentando ouvir ru-ídos daquilo que imaginava, dolorosamente. Nãodemorou muito. Lá estavam os dois gemendo efungando, antes do fim da sem-vergonhice. Deuum pontapé tão forte na parede que se largaram.O marido ainda pilheriou:

    – Estamos dando azar. Na mata houve aquelavisagem, agora também aparece assombração.

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    euclides ne to

    Escuta, o galo está cantando fora de tempo. Podeser arte de alma, pilheriou ele.

    Saíram os dois ao terreiro. A noite silenciosatomou-se mais enluarada para que a doutora e seucompanheiro ficassem mais à vontade. Procura-ram o pé da escada. Ela e ele quase despidos. Ar-maram-se. Ajeitaram os corpos um no outro. Ago-ra caía atrás dos dois uma lata, que os amedron-tou. Retomaram assustados ao quarto.

    No dia seguinte, o menino foi à mata. Queriaao menos beijar os passos de Belanice no cami-nho arenoso. Saiu identificando as marcas da bo-tinha de salto alto. Abaixava-se, tocando os lábiosno chão, delirando. Adiante a surpresa. Encon-trou-a nua, em coxas, nádegas, odor e cabelos, noexato momento em que pulava uma madeira gros-sa, tombada no chão. Parou de repente. Olhou paratrás. Os dois naquela sombra verde e fresca. Sozi-nhos. Podia pensar no seu amor, agora possível.Mais fácil que imaginara. Certamente ela fora alipara tomar banho no ribeirão, refrescar-se, ouquem sabe... desconfiara dos seus olhares pidões.Ouvira falar de mulheres afogueadas que procura-vam rapazinhos da sua idade. Aproximou-se. Elaquieta e dócil.

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    a última caçada

    Sem qualquer acanhamento, aproximou-se.Parecia até um experiente amante. O corpo, maisbonito que imaginara. Estava tonto. Enlouquecia.Precisava conter-se. Queria auferir todo o perfu-me da mulher há tanto tempo desejada. Ela conti-nuava imóvel. Não aguentava mais. Debruçou-sesobre os quadris exuberantes. O tempo parado.Somente sua cabeça funcionava. Abraçou-a deli-cadamente e sentiu que penetrava a greta mornade uma flor. Nem uma palavra para não perturbartanta felicidade. Satisfazia os desejos há tanto tem-po reprimidos. Esqueceu-se do marido importu-no, dos parentes comuns. Ela é que viera por as-sim o entender. Aparecesse naquele instante quemaparecesse, pouco se lhe dava. Não se contentoucom uma vez. Foi até cansar. Tanta espera. Talveza oportunidade, a única.

    As flores se abriam mais coloridas e belas. Ospassarinhos faziam festa sobre o casal. Zonzas, asborboletas alvas pousavam sobre o corpo da ama-da, tomando-a lanzudinha como o arminho.

    Daí em diante, todos os dias voltava à mata. Sóse juntavam a partir da volta do caminho, escon-dendo o pecado. Será que alguém desconfiava?Quando se encontravam, sempre na árvore caída,

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    euclides ne to

    ela ficava passivamente a receber as suas carícias.E tudo acontecia deslumbradamente. Como daprimeira vez, repetia:

    – És bela e perfumada como as flores da mata.As guriatãs cantadeiras repetem a tua voz.

    O ribeirão corria manso, testemunhando oamor dos apaixonados.

    Ela saiu correndo elegantemente como umagarça no cio, deixando-o com os desejos satisfei-tos.

    Além dos passarinhos, das flores e do ribeirão,apareceu uma jumentinha cavaleira, aindavagalumeando, coberta com borboletas iguais apétalas de rosas alvas.

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    SOBRE UM MESTREDO CONTO

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    ORELHA DA PRIMEIRAEDIÇÃO (2001)

    Júlia Teixeira Bussius

    Nascido no povoado de Jenipapo, distrito deAreias (hoje Ubaíra), no interior da Bahia, no anode 1925, Euclides criou-se na roça, fazendo lámesmo seus primeiros estudos em escola de pro-fessora leiga. Mais tarde segue para Salvador in-gressando no Colégio Padre Antônio Vieira paracursar o ginásio, resultado de imenso esforço fi-nanceiro feito por seu pai.

    Forma-se advogado, na UFBA, em 1949, e as-sim segue por anos e anos defendendo todo tipode causa justa (principalmente as dos maisnecessitados). Passa em Ipiaú (região do cacau) amaior parte de sua vida, cidade onde se elegeuprefeito, à beira do golpe de 1964. Comunista de-

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    euclides ne to

    clarado, bateu-se com o novo governo ao criar a“Fazenda do Povo”, primeira experiência socia-lista de distribuição de terras no Estado. Após osquatro anos de mandato, só volta à política nogoverno já democrático de Waldir Pires, quandoocupou a Secretaria da Reforma Agrária, causa quesempre defendeu incondicionalmente.

    Neste meio tempo casou-se e multiplicou-seem cinco, que se multiplicaram muitas vezes mais(quinze netos). Nas poucas horas livres escreveuuns tantos livros, alguns artigos e cuidou de suasroças e cabras. Mais tarde, quando o tempo se fezmaior, dedicou-se exclusivamente a essas últimastarefas, o que lhe era sempre muito prazeroso.

    Entre seus escritos estão romances, contos,crônicas e artigos de jornal, em sua maioria liga-dos aos temas da terra, dos trabalhadores rurais eda região do cacau. Assuntos aparentemente semmaior importância para os letrados são tratadospor ele de forma belíssima e quase cinematográfi-ca, sensibilizando desde o leitor mais urbanoideaté aquele ligado ao campo.

    Quando se pensa no ser humano EuclidesNeto, faz-se uma ligação direta a relação homem/ética. Os caminhos que percorreu não deixam es-

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    a última caçada

    paço algum para qualquer dúvida no que diz res-peito a sua conduta humana em toda a trajetóriavivida. Princípios como a tolerância e o respeitoao próximo foram sempre pregados e realizadosem tudo que fez.

    Uma vida tão intensa, sempre tão requisitada,fez com que o corpo não pudesse acompanhar avelocidade do espírito. Com o coração debilitadodesde cedo e mais tarde tendo que lutar contraum mal maior, acabou tendo sua força consumidapor essas doenças, vindo a falecer em abril do úl-timo ano do século XX, aos 74 anos.

    Tal perda demora-se a assimilar. Porém, comessa publicação póstuma vê-se certa prediçãodaquilo que ele imaginava acontecer... O tempo échegado soa como um final satisfeito, concluindouma vida plena, sem lugar para arrependimentosou pesares. É como se ele dissesse: “Pronto, jáposso descansar. Nada mais me falta”.

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    EUCLIDES, O MAISPRÓXIMO DE MACHADO

    Se Machado de Assis é tomado como modeloliterário, pela limpidez e clareza de seu texto,Euclides Neto, pelas mesmas virtudes, é um dosescritores brasileiros que mais se aproximam domestre do Cosme Velho. Sua frase é muito cuida-da. E as palavras que nela se articulam são muitobem apropriadas para expressar o pensamento ouos sentimentos deste que é, sem favor, um dosmelhores escritores da Bahia e do país. Vindo comsua enorme experiência literária, tanto de roman-cista, como de ensaísta ou articulista, sem que seesqueça do dicionarista, agora se inaugura na his-tória curta, dando-nos os belíssimos contos desteseu O tempo é chegado, um punhado – ou na sua pró-pria linguagem – um caçuá repleto de causos que

    por Jorge Medauar(Prefácio da 1a edição)

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    euclides ne to

    vão além de meras histórias com começo, meio efim, porque neles há que se apreciar o estilista e otécnico que conduz a trama da história com segu-rança e maestria. Em nenhum momento, nesseesplêndido tecido da melhor composição literá-ria, o romancista de Os genros faz a menor conces-são ao mau gosto ou lugar-comum, oferecendoao leitor uma sequência homogênea de criaçãoficcional, no geral o artista está vigilante para re-solver os problemas que sempre ocorrem no cur-so de uma narrativa, sobretudo vernaculares. MasEuclides Neto vai contando com muita pessoa-lidade, passando por cima dos mata-burros ou dasarmadilhas de nossa língua, aliás eivada de aciden-tes que desafiam os menos preparados. E semprecuidadoso, como o era o velho Machado, desfiasuas histórias como as contas de um rosário. Seriamuito difícil apontar como exemplo um únicoconto – antes fora necessário apresentá-los todospara que se possa avaliar a importância desse vo-lume de pequenas obras-primas. Mas, além da pa-lavra precisa, da frase aprimorada, do estilo genu-inamente pessoal, sem ranço de influências subal-ternas, é preciso atentar para os temas, que sãonascidos da terra que ele tanto conhece, se dela

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    a última caçada

    não fosse filho. Tem-se assim o que se poderiachamar a “universalidade” da obra, quando o au-tor canta bem a sua aldeia... para não deixar delembrar Tolstoi. Passeia pelas ruas, pelas vilas, pelacaatinga, pelas roças e povoados e conta o que vêno tabaréu, nos bichos domésticos, na simplicida-de das mulheres, nos riachos e rios. Tudo lhe éfamiliar. Mas nem por isso descamba para a pie-guice ou vulgaridade. Aí, sem dúvida, reside o va-lor do verdadeiro escritor, que sabe transformar ocomum ou o simples em riquezas literárias.

    Euclides Neto é escritor que não precisa deapresentação. Ele mesmo se apresenta com os cré-ditos que possui, dando portanto melhor oportu-nidade para que se lhe conheçam as qualidades.Mal comparando, mas apenas lembrando, José deAlencar pretendeu apresentar Castro Alves a Ma-chado de Assis! Pode? O maior poeta brasileiro jávinha com sua genialidade – e qualquer apresen-tação seria inútil ou banal. Apresentar EuclidesNeto é ficar sempre distante de suas qualidades.Para que ele seja melhor apreciado, é preciso reti-rar da verdade nua e crua o manto da fantasia.

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    TEMPO DE EUCLIDES

    Hélio Pólvora(A Tarde, 20 de janeiro de 2002)

    O tempo é chegado, assim se intitula o último livro,edição póstuma, de Euclides Neto. Acham uns queo título é premonitório, tal e qual os sonhospremonitórios de que nos fala Jung. Não sei, nãosou dado a esoterismos. Tenho outra explicação,menos misteriosa, mas igualmente com um toquepoético. É esta: Euclides, a maior referência cultu-ral de Ipiaú, sempre foi romancista. Eu mesmo,nas minhas aventuras editoriais, cheguei a editar-lhe Comercinho do Poço Fundo e Machombongo, roman-ces que, como os demais do autor, refletem as-pectos da paisagem, do tecido socioecon�