a linguagem humana do mito à ciência

A linguagem humana: do mito cincia

Jos Luiz Fiorin

No princpio era o Verbo; o Verbo estava em Deus e o verbo era Deus.

Jo I, 1

Linguagem e lngua

A linguagem a capacidade especfica da espcie humana de se comunicar por meio de signos. Entre as ferramentas culturais do ser humano, a linguagem ocupa um lugar parte, porque o homem no est programado para aprender fsica ou matemtica, mas est programado para falar, para aprender lnguas, quaisquer que elas sejam. Todos os seres humanos, independentemente de sua escolaridade ou de sua condio social, a menos que tenham graves problemas psquicos ou neurolgicos, falam. Uma criana, por volta dos trs anos de idade, j domina esse dispositivo extremamente complexo que uma lngua.

A linguagem responde a uma necessidade natural da espcie humana, a de comunicar-se. No entanto, ao contrrio da necessidade de comer, dormir, respirar,

14 Lingustica? Que isso?

manter relaes sexuais, etc., ela no se manifesta de maneira natural. Ela deve ser aprendida. No caso da linguagem verbal, ela deve ser aprendida sob a forma de uma lngua, a fim de se manifestar por meio de atos de fala. A lngua um sistema de signos especficos aos membros de dada comunidade.

A aptido para a linguagem um trao gentico. Sua realizao, no entanto, passa por um aprendizado, que do domnio cultural, como testemunham os casos das crianas selvagens, cuja capacidade de linguagem no se desenvolveu.

Os sentidos podem manifestar-se de diversas maneiras: por meio de sons, como no caso da linguagem verbal, por meio de imagens, como na pintura, por meio de gestos, como nas lnguas de sinais utilizadas pelos surdos. Temos lin-guagens no mistas, cujos significados se manifestam apenas de uma maneira: a escrita, a pintura, a escultura, a lngua de sinais; temos linguagens mistas, cujos significados se manifestam de diferentes maneiras, como o cinema, em que os sentidos so veiculados pelos sons da linguagem verbal e da msica, pelas imagens da linguagem visual, etc. Assim, podemos falar da linguagem como capacidade especfica da espcie humana de produzir sentidos, de se comunicar, mas tambm das linguagens como as diferentes manifestaes dessa capacidade. Uma ordem de parar no trnsito pode concretizar-se por meio da palavra pare pronunciada por um guarda; por um sinal de um apito; pelo gesto de abrir a palma da mo em posio vertical; pela luz vermelha do semforo. So diferentes linguagens que comunicam a mesma significao.

Hjelmslev, no primeiro captulo de seu Prolegmenos a uma teoria da lin-guagem, escreve uma das mais belas pginas sobre o papel da linguagem na vida dos seres humanos:

A linguagem [...] uma inesgotvel riqueza de mltiplos valores. A linguagem inseparvel do homem e segue-o em todos os seus atos. A linguagem o instrumento graas ao qual o homem modela seu pensamento, seus senti-mentos, suas emoes, seus esforos, sua vontade e seus atos, o instrumento graas ao qual ele influencia e influenciado, a base ltima e mais profunda da sociedade humana. Mas tambm o recurso ltimo e indispensvel do homem, seu refgio nas horas solitrias em que o esprito luta com a exis-tncia, e quando o conflito se resolve no monlogo do poeta e na meditao do pensador. Antes mesmo do primeiro despertar de nossa conscincia, as palavras j ressoavam nossa volta, prontas para envolver os primeiros germes frgeis de nosso pensamento e a nos acompanhar inseparavelmente atravs da vida, desde as mais humildes ocupaes da vida cotidiana at os momentos

A linguagem humana 15

mais sublimes e mais ntimos dos quais a vida de todos os dias retira, graas s lembranas encarnadas pela linguagem, fora e calor. A linguagem no um simples acompanhante, mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento: para o indivduo, ela tesouro da memria e a conscincia vigilante transmitida de pai para filho. Para o bem e para o mal, a fala a marca da personalidade, da terra natal e da nao, o ttulo de nobreza da humanidade. O desenvolvimento da linguagem est to inextricavelmente ligado ao da personalidade de cada indivduo, da terra natal, da nao, da humanidade, da prpria vida, que possvel indagar-se se ela no passa de um simples reflexo ou se ela no tudo isso: a prpria fonte de desenvolvimento dessas coisas. (1975: 1-2)

H um provrbio popular que diz: Palavra no quebra osso. Esse ditado quer contrapor a palavra ao, quer dizer que a ao que conta, pois a lin-guagem no tem nenhum poder. Um golpe, mas no uma palavra, que quebra osso. Esse provrbio v as coisas de maneira simplista. Vamos analisar para que serve a linguagem.

Funes da linguagem

Em primeiro lugar, a linguagem uma maneira de perceber o mundo.

Este deve ser o bosque, murmurou pensativamente [Alice], onde as coisas no tm nomes. [...] Ia devaneando dessa maneira, quando chegou entrada do bosque, que parecia muito mido e sombrio. Bom, de qualquer modo um al-vio, disse enquanto avanava em meio s rvores, depois de tanto calor, entrar dentro do... dentro de qu? Estava assombrada de no poder lembrar o nome. Bom, isto , estar debaixo das... debaixo das... debaixo disso aqui, ora, disse colocando a mo no tronco da rvore. Como essa coisa se chama? bem capaz de no ter nome nenhum...ora, com certeza no tem mesmo!Ficou calada durante um minuto, pensando. Ento, de repente, exclamou: Ah, ento isso acabou acontecendo! E agora quem sou eu? Eu quero me lembrar, se puder. (Carroll, 1980: 165-6)

Esse texto, retirado do livro Atravs do espelho e o que Alice encontrou l, mostra que Alice, quando entra no bosque em que as coisas no tm nome, incapaz de apreender a realidade em torno dela, de saber o que as coisas so. Isso significa que as coisas do mundo exterior s tm existncia para os homens quando


so nomeadas. Quando fazemos essa afirmao no estamos querendo dizer que a realidade no existe independentemente das pessoas ou que ela seja uma criao de sua mente, mas que s atentamos para as coisas por intermdio da linguagem. Em outras palavras, s pela linguagem o mundo ganha sentido para ns.

Por outro lado, cada lngua uma forma de interpretar a realidade.

O segundo projeto era representado por um plano de abolir completamente todas as palavras, fossem elas quais fossem [...]. Em vista disso, props-se que, sendo as palavras apenas nomes para as coisas, seria mais conveniente que todos os homens trouxessem consigo as coisas de que precisassem falar ao discorrer sobre determinado assunto [...]. [...] muitos eruditos e sbios aderiram ao novo plano de se expressarem por meio de coisas, cujo nico inconveniente residia em que, se um homem tivesse que falar sobre longos assuntos e de vria espcie, ver-se-ia obrigado, em proporo, a carregar nas costas um grande fardo de coisas, a menos de poder pagar um ou dois criados robustos para acompanh-lo [...].Outra grande vantagem oferecida pela inveno consiste em que ela serviria de lngua universal, compreendida em todas as naes civilizadas, cujos utenslios e objetos so geralmente da mesma espcie, ou to parecidos que o seu emprego pode ser facilmente percebido. (Swift, 1998: 194-5)

Esse trecho do livro Viagens de Gulliver narra uma inveno dos sbios de Balnibarbi. Eles propem substituir as palavras, que, segundo eles, tm o incon-veniente de variar de lngua para lngua, pelas coisas. Quando algum quisesse falar de uma cadeira, mostraria uma cadeira; quem desejasse discorrer sobre uma bolsa apresentaria uma bolsa e assim sucessivamente. A histria narrada por Swift uma ironia s concepes vulgares que imaginam que a compreenso da realidade independe da lngua que a nomeia, que pensam que as palavras so etiquetas que se aplicam a coisas classificadas independentemente da linguagem. A lngua uma forma de categorizar o mundo, de interpret-lo.

A impossibilidade de o sistema imaginado pelos sbios de Balnibarbi funcionar no o inconveniente prtico de que cada um teria que carregar muitos objetos, se fosse falar de muita coisa. As coisas no podem substituir as palavras, porque a lngua no apenas um sistema de mostrao de objetos. As coisas no desig-nam tudo o que uma lngua pode expressar. Mostrar um objeto no indica, por exemplo, sua pertena a uma dada classe. No lxico de uma lngua, agrupamos os nomes em classes. Ma, pera, banana e laranja pertencem classe das frutas. Ao se exibir qualquer fruta, no se pode exprimir a ideia da classe fruta. No se


poderiam expressar ideias mais gerais, apresentando objetos. No produzimos palavras apenas para designar as coisas, mas para estabelecer relaes entre elas e coment-las. Mostrar um objeto no exprime as categorias de quantidade, de gnero, de posse, no permite indicar sua localizao no espao, etc. A lngua no um sistema de mostrao de objetos, porque permite falar do que est presente e do que est ausente, do que existe e do que no existe, porque possibilita at criar novas realidades, mundos no existentes.

A linguagem uma atividade simblica, o que significa que as palavras criam conceitos e eles ordenam a realidade, categorizam o mundo. Por exemplo, cria-mos o conceito de nascer do sol. Sabemos que, do ponto de vista cientfico, no existe nascer do sol, uma vez que a Terra que gira em torno do Sol. Contudo, esse conceito, criado pela linguagem, determina uma realidade que nos encanta a todos. Apagar o que foi escrito no computador visto como uma atividade diferente de apagar o que foi escrito a lpis. Por isso, cria-se uma nova palavra para denominar essa nova realidade, deletar, que considerada diferente de apa-gar. Afinal, o instrumento desta ao uma borracha, enquanto se deleta, com um clique, um texto selecionado. No entanto, se esses vocbulos distintos no existissem, no perceberamos a atividade de escrever no computador como uma ao diferente daquela de escrever mquina. Uma nova realidade, uma nova inveno, uma nova ideia exigem novas palavras, e so os novos termos que lhes conferem existncia para toda a comunidade de falantes.

As palavras formam um sistema independente das coisas nomeadas por elas, o que quer dizer que cada lngua pode ordenar o mundo de maneira diversa, exprimir diferentes modos de ver a realidade. No h uma homologia entre a ordem da lngua e a ordem do mundo. O ingls, por exemplo, tem duas palavras, finger e toe, para expressar aquilo que denominamos dedo. A primeira significa o dedo da mo; a segunda, o do p. Isso quer dizer que, para ns, as extremida-des das mos ou dos ps constituem a mesma parte do corpo. Para os falantes de ingls, so duas coisas muito distintas. O ingls tem dois termos, pig e pork, para designar o que chamamos porco. O primeiro denota o animal vivo, o segundo refere-se ao alimento preparado com a carne do suno. Em portugus, dizemos Havia muitos porcos no chiqueiro e O tempero do porco ficou no ponto certo. Em ingls, no primeiro caso, usa-se pig e, no segundo, pork. A mesma realidade categorizada diferentemente em ingls e em portugus. Naquele, o animal e o alimento feito com a carne do animal so vistos como duas coisas distintas.


Neste, porco indica uma nica coisa, seja vivo, seja morto e preparado para ser consumido. Em portugus, veste-se uma roupa, mas cala-se um sapato ou uma luva. Em ingls, nos dois casos, usa-se to wear. Isso significa que a lngua uma maneira de recortar a realidade, de ordenar o mundo, de categorizar as coisas, as aes, os sentimentos, etc. Por essa razo, a linguagem modela nossa maneira de perceber e de ordenar a realidade.

Vamos explicar melhor o que significa dizer que a linguagem interpreta o mundo. Um tomate uma fruta ou um legume? Do ponto de vista botnico, uma fruta. No entanto, na feira, o tomate est entre os legumes. Nenhum ser do mundo pertence a uma determinada categoria preexistente linguagem. A lngua no uma nomenclatura que se aplica a uma realidade j categorizada. Ela um meio de categorizar o mundo. Ela cria categorias e pe nelas os seres. Isso no ocorre somente com os seres concretos. Tambm acontece com as aes, os processos, etc. Imaginemos que uma pessoa mate outra. Essa ao pode ser categorizada como assassinato, quando algum tira a vida de outrem por vingana; como acidente, quando algum est manuseando uma arma e ela dispara e mata algum; como cumprimento do dever, quando um policial mata um sequestrador que se preparava para atirar na vtima; como um ato de herosmo, quando o soldado mata o inimigo no campo de batalha; como perda temporria da razo, quando algum por uma forte emoo mata uma pessoa. Essa categorizao determina nossas atitudes; prendemos o assassino, perdoamos quem foi vtima das circunstncias; elogiamos o policial que matou o sequestrador; damos uma medalha ao heri.

Mas a lngua no s o instrumento pelo qual percebemos o mundo, no apenas uma forma de interpretar a realidade.1 A lngua tambm o meio pelo qual interagimos socialmente. No texto que segue, temos uma reproduo feita pela revista Veja de um dilogo travado entre Francisco de Paula Medeiros, poca diretor de produo da Petrobras, e alguns reprteres.

Pergunta Qual a finalidade de sua visita a Aracaju?Resposta Que pergunta besta. Rotina.P Que poderia informar sobre a implantao da unidade de amnia e ureia em Sergipe?R No da minha rea.P Quais as perspectivas de aumento da produo petrolfera no Estado?R No sou computador.


P Qual o montante de investimentos que a Petrobras aplicar este ano em Sergipe?R No posso ter na cabea.P Qual a atual produo de Sergipe em terra e no mar?R Vocs no sabem isso? Vocs entendem de metros cbicos?P Foram localizadas novas jazidas de gs natural?R (silncio).(16 de janeiro de 1977: 12)

Na interao entre o diretor da Petrobras e os jornalistas, os reprteres no obtiveram nenhuma informao. O engenheiro da Petrobras transmitiu uma imagem antiptica e prepotente, a ideia de que ele tem total desprezo pela imprensa.

Diz-se que a funo principal da linguagem comunicar. No entanto, h duas questes que devem ser pensadas. De um lado, comunicar no s transmitir informaes, pois as pessoas se comunicam at para no dizer nada. De outro lado, comunicar no um ato unilateral, mas um jogo em que um parceiro da comunicao age sobre o outro. A comunicao , antes de qualquer coisa, relacionamento, interao. Por isso, a linguagem um meio de ao recproca, um meio de interagir com os outros, um lugar de confrontaes, de acordos, de negociaes.

Na interao, usamos a linguagem com diferentes funes.A linguagem serve para informar. Essa funo denominada informativa ou

referencial.

O Conselho Regional de Medicina (Cremerj) proibiu a participao de mdicos em partos domiciliares e nas equipes de sobreaviso, que ficam de planto para o caso de alguma complicao.(O Estado de S. Paulo, 24 de julho de 2012, A 10)

Com a linguagem, armazenamos conhecimentos na memria, transmitimos esses conhecimentos a outras pessoas, ficamos sabendo de experincias bem-sucedidas, somos prevenidos contra as tentativas malsucedidas de fazer alguma coisa. Graas linguagem, um ser humano recebe de outra pessoa conhecimentos, aperfeioa-os e transmite-os.

A funo informativa da linguagem tem uma importncia central na vida das pessoas, consideradas individualmente ou como grupo social. Para cada indiv-


duo, ela permite conhecer o mundo; para o grupo social, possibilita o acmulo de conhecimentos e a transferncia de experincias. Por meio dessa funo, a linguagem modela o intelecto.

a funo informativa que permite que o trabalho conjunto se desenvolva. Operar bem essa funo da linguagem possibilita que cada indivduo continue sempre a aprender.

Alm de prestar-se funo informativa, a linguagem serve para influenciar e ser influenciado. a chamada funo conativa da linguagem.

Vem pra Caixa voc tambm.

Essa frase fazia parte de uma campanha destinada a aumentar o nmero de correntistas da Caixa Econmica Federal. Para persuadir as pessoas a tornarem-se clientes da Caixa, usa-se um convite expresso numa linguagem bastante coloquial. Por exemplo, emprega-se a forma vem, forma de segunda pessoa do imperativo, em lugar de venha, forma de terceira pessoa, que, na norma culta, deveria ser utilizada quando se usa voc.

Com a linguagem, levam-se os outros a fazer determinadas coisas, a crer em determinadas ideias, a sentir determinadas emoes, a ter determinados estados de alma (amor, desprezo, desdm, raiva, etc.). Por isso, pode-se dizer que ela modela sentimentos, emoes, paixes.

No se leva as pessoas a fazer certas coisas, apenas com a ordem, o pedido, a splica. H textos, como o publicitrio, que nos influenciam de maneira bastante sutil, com tentaes e sedues, dizendo-nos como seremos bem-sucedidos, atraentes, charmosos, se usarmos determinadas marcas, se consumirmos certos produtos. A provocao e a ameaa, que so expressas pela linguagem, tambm servem para levar algum a fazer alguma coisa.

A linguagem alivia as dores, consola os aflitos, apazigua a clera, aumenta a coragem e assim por diante.

A linguagem no se destina apenas a informar e a influenciar, ela serve tambm para expressar a subjetividade. a denominada funo emotiva da linguagem.

Eu sem voc Sou s desamorUm barco sem marUm canto sem flor


Tristeza que vaiTristeza que vemSem voc, meu amor,Eu no sou ningum(Baden Powell e Vincius de Moraes. Samba em preldio. Universal, 1963)

Nesse trecho, quem fala est exprimindo seus sentimentos por causa de um rompimento amoroso. Com palavras, objetivamos e expressamos nossos sen-timentos e nossas emoes. Exprimimos a revolta e a alegria, expressamos o sentimento amoroso e explodimos de raiva, manifestamos desespero, desdm, desprezo, admirao, dor, tristeza. Inmeras vezes, contamos coisas que fizemos para afirmarmo-nos perante o grupo, para mostrar nossa valentia ou nossa eru-dio, nossa capacidade intelectual ou nossa competncia na conquista amorosa.

Quando falamos ou escrevemos, transmitimos uma imagem nossa, por meio do tipo de linguagem que usamos, do tom de voz que empregamos, etc.

Com a linguagem, objetivamos os fenmenos subjetivos, exteriorizamos o que estava dentro de ns, libertamo-nos de emoes penosas.

Mas a linguagem no se presta somente a informar, a influenciar, a exprimir as emoes e os sentimentos. Na cano Sinal fechado, Paulinho da Viola ex-plora o tema dos encontros apressados entre velhos amigos que no se veem h muito tempo e so obrigados a conversar, sem ter muito que dizer um ao outro:

Ol, como vai? Eu vou indo, e voc tudo bem?Tudo bem, eu vou indo, correndo, pegar meu lugar no futuro. E voc?Tudo bem, eu vou indo em busca de um sonotranquilo, quem sabe?Quanto tempo...Pois , quanto tempo...(Paulinho da Viola. Sinal fechado. Philips, 1974)

Nesse caso, a linguagem est sendo usada na funo ftica, isto , aquela que serve para criar laos entre as pessoas e mant-los.

Quando estamos num grupo de pessoas, numa festa, por exemplo, no corts manter-nos em silncio, olhando uns para os outros. Nessas ocasies, a conversao obrigatria, porque o silncio poderia parecer hostil. Por isso,


quando no se tem assunto, fala-se do tempo, repetem-se histrias que todos conhecem, contam-se anedotas que todos esto cansados de saber. A linguagem, nesse caso, tem como nica funo manter os laos sociais. Quando encontramos algum e lhe dizemos Tudo bem?, no se quer, de fato, saber se ele est bem, se est doente, se est com problemas. A frmula uma maneira de estabelecer um vnculo social.

Os hinos, como, por exemplo, o hino nacional ou os hinos dos clubes de futebol, tm a funo de criar um vnculo entre os habitantes de um pas ou entre os torcedores. No importa que as pessoas no entendam bem o signi-ficado da letra do hino nacional, pois ele no tem uma funo informativa. O que tem importncia que, ao cant-lo, sentimo-nos participantes da comu-nidade de brasileiros.

A linguagem no se destina somente a informar, a influenciar, a exprimir emoes e sentimentos, a criar ou manter laos sociais, mas ela serve tambm para falar sobre a prpria linguagem, como neste trecho a seguir:

Papai, que plebiscito? [...] Plebiscito uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comcios. (In: Gonalves, 2006: 148-50)

Esse pequeno trecho foi retirado do conto O plebiscito, de Artur Azevedo, em que se satiriza a imagem do pai sabe-tudo. O filho pergunta-lhe o que ple-biscito e, como ele no sabe e no quer confessar sua ignorncia, esbraveja que o filho deveria saber e que ele est perguntando s para testar seus conhecimentos. Depois de fazer uma cena, vai para o quarto onde h um dicionrio. Mais tarde, volta para a sala e explica que plebiscito um sistema de promulgao de leis, inventado pelos romanos, em que o povo vota diretamente determinada proposi-o. Nesse caso, pai e filho estavam usando a linguagem para explicar o sentido produzido pela prpria linguagem.

Quando dizemos frases como A palavra co um substantivo; errado dizer a gente viemos; Estou usando o termo direo em dois sentidos; No mui-to elegante usar palavres, estamos falando no de acontecimentos do mundo, mas estamos tecendo comentrios sobre a prpria linguagem. Em outros termos, estamos usando palavras para referir-nos a palavras. o que se chama funo metalingustica. A atividade metalingustica inseparvel da fala. Mesmo quando


falamos sobre o mundo exterior (os acontecimentos, as coisas) e o mundo interior (os sentimentos, as sensaes, etc.), intercalamos comentrios sobre a nossa fala e a dos outros. Quando dizemos, por exemplo, Desculpe a grosseria da expresso, estamos comentando o que dissemos, estamos dizendo que no temos o hbito de dizer uma coisa to vulgar como a que estamos enunciando. Todos os estudos sobre a linguagem so metalingusticos. A gramtica , assim, a linguagem em funo metalingustica.

As artes so linguagens e, portanto, quando elas falam da prpria arte, temos tambm metalinguagem. A poesia que trata da poesia uma metapoesia, o teatro que trata do teatro um metateatro; o cinema que trata do cinema um metaci-nema e assim por diante.

Vejamos dois exemplos de metapoesia. O primeiro o poema Autopsico-grafia, de Fernando Pessoa, em que o poeta discute o problema do sentimento exposto no poema; o segundo um soneto de Cruz e Sousa, em que o poeta co-menta a elaborao de um soneto, destacando sua forma tradicional (os quartetos e os tercetos) e os recursos poticos (a rima, por exemplo).

O poeta um fingidor.Finge to completamenteQue chega a fingir que dorA dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,Na dor lida sentem bem,No as duas que ele teve,Mas s a que eles no tm.

E assim nas calhas de rodaGira, a entreter razo,Esse comboio de cordaQue se chama corao. (1997: 176)

Nas formas voluptuosas o SonetoTem fascinante, clida fragrnciaE as leves, langues curvas da elegnciaDe extravagante e mrbido esqueleto.


A graa nobre e grave do quartetoRecebe a original intolerncia,Toda a sutil, secreta extravagnciaQue transborda terceto por terceto.

E como um singular polichineloOndula, ondeia, curioso e belo,O Soneto, nas formas caprichosas.

As rimas do-lhe a prpura vetustaE na mais rara procisso augustaSurge o sonho das almas dolorosas... (1965: 190-1)

Dois exemplos de metamsica so os clssicos Samba de uma nota s e Desafinado, ambos de Tom Jobim e Newton Mendona. Tivemos, no Brasil, at mesmo uma metanovela de televiso: a novela Espelho mgico, de Lauro Csar Muniz, apresentada, nos anos 1970, na rede Globo. Nessa novela, havia outra novela, que se chamava Coquetel de amor e que era escrita por uma das personagens, um escritor de telenovelas. O que Lauro Csar Muniz pretendia, ao discutir o fazer novelstico, era mostrar todos os clichs de que uma novela feita. Como h dois nveis de linguagem, a linguagem-objeto e a metalinguagem, as artes falam do mundo e, assim, nos do a conhecer os seres humanos, a Histria, etc. e falam de si mesmas e, assim, nos revelam o prprio fazer artstico.

A linguagem no se presta apenas para informar, influenciar, expressar emo-es e sentimentos, criar e manter laos sociais e falar da prpria linguagem, ela tambm lugar e fonte de prazer.

Brincamos com as palavras. Os jogos com o sentido e os sons so formas de tornar a linguagem um lugar de prazer. Divertimo-nos com eles. Manipulamos os vocbulos para deles extrair satisfao.

Oswald de Andrade, em seu manifesto antropofgico, diz Tupi or not tupi. Trata-se de um jogo com a frase shakespeariana To be or not to be. Conta-se que Emlio de Menezes, quando soube que uma mulher muito gorda sentara-se no banco de um nibus e este quebrara, fez o seguinte trocadilho: a primeira vez que vejo um banco quebrar por excesso de fundos. A palavra banco est usada em dois sentidos: mvel comprido para sentar-se e casa bancria. Tambm est empregado em dois sentidos o termo fundos: ndegas e capital, dinheiro.


Verifica-se que a linguagem pode ser usada utilitria ou esteticamente. No primeiro caso, ela utilizada para informar, para influenciar, para manter os laos sociais, etc. No segundo, para produzir um efeito prazeroso de descoberta de sen-tidos. Quando se usa a linguagem em funo utilitria, importa mais o que se diz. Em funo esttica, o mais importante o como se diz, pois o sentido tambm criado pelo ritmo, pelo arranjo dos sons, pela disposio das palavras, etc.

Na estrofe a seguir, retirada do poema A cavalgada, de Raimundo Correia, a sucesso de sons oclusivos, /p/, /t/, /k/, /b/, /d/, /g/, sugere o patear dos cavalos:

E o bosque estala, move-se, estremece...Da cavalgada o estrpito que aumentaPerde-se aps no centro da montanha...

Observe-se que a maior concentrao de sons oclusivos ocorre no segundo verso, quando se afirma que o barulho dos cavalos aumenta.

Nos versos a seguir, do poema Noite de S. Joo, de Jorge de Lima, o poeta no quer transmitir aos leitores nenhuma informao sobre fogos de artifcio, nem deseja lev-los a tomar cuidado com eles. O que ele quer de fato imitar, nas palavras, o rudo que eles fazem, para descrever seu espetculo nos cus. Da a quantidade de sons sibilantes (s/z) ou chiantes (expressos na escrita por dgrafo ch e pela letra x), que imitam o sibilo e o chiado dos fogos, e a onomatopeia tchi - bum.

O delegado proibiu bombas, foguetes, busca-psChamalotes checoslovacos enchem o cho de chamas rubrasChagas de enxofre chinesas chiam choram cheiramnuma nuvem de chispas,chispas de todos os tonslistas de todas as cores e no fim sempre um Tchi - bum! (1997: 218)


A linguagem no se presta somente para perceber o mundo, para categorizar a realidade, para propiciar a interao social, para informar, para influenciar, para exprimir sentimentos e emoes, para criar e manter laos sociais, para falar da prpria linguagem, para ser fonte e lugar de prazer, mas serve tambm para esta-belecer uma identidade social.

Te abanca, ndio velho, que t includo no preo. Ai diz o paciente. Toma um mate? N-no geme o paciente. Respira fundo, tch. Enche o bucho que passa.O paciente respira fundo. O analista de Bag pergunta: Agora, qual o causo? depresso, doutor.O analista de Bag tira uma palha de trs da orelha e comea a enrolar um cigarro. T te ouvindo diz. uma coisa existencial, entende? Continua, no ms. Comeo a pensar, assim, na finitude humana em contraste com o infinito

csmico... Mas tu mais complicado que receita de creme Assis Brasil. E ento tenho conscincia do vazio da existncia, da desesperana inerente

condio humana. E isso me angustia. Pos vamos dar um jeito nisso agorita diz o analista de Bag, com uma

baforada. O senhor vai curar a minha angstia? No, vou mudar o mundo. Cortar o mal pela mandioca. (Verissimo, 2004: 15-16)

Luis Fernando Verissimo criou uma personagem, que se tornou um clssico do humor brasileiro, o analista de Bag. O analista, embora no seja nada ortodoxo na anlise da alma humana, diz-se um freudiano mais ortodoxo do que caixa de maisena. Trata os problemas dos pacientes como quem amansa cavalo. um gacho de uma franqueza rude, que considera bobagem todos os problemas psquicos. A identidade do analista criada pela linguagem e na linguagem. De um lado, ele usa a variedade regional gacha em sua fala: tratamento com o pro-nome tu, concordando com a terceira pessoa; perda das semivogais em ditongos de palavras como pois e mais, que se tornam pos e mas; lxico regional, como,


por exemplo, abanca, ndio velho, mate, tch. De outro, mostra sua franqueza rude: por exemplo, quando diz que no vai curar angstia do paciente, mas vai mudar o mundo ou quando afirma que o paciente mais complicado que receita de creme Assis Brasil.

O uso de uma determinada variedade lingustica marca a incluso num dado grupo social e d uma identidade a seus membros. Aprendemos a distinguir as diversas variedades e, quando algum comea a falar, sabemos se a pessoa um gacho, um carioca, um paulista e assim por diante. Sabemos que certas expresses pertencem fala dos mais jovens; outras indicam que o falante tem mais idade. As variantes lingusticas conferem uma identidade s pessoas, sejam elas pessoas do mundo real ou personagens, que so pessoas de fico.

Ridicularizar a variante usada por algum uma atitude muito agressiva, pois estamos zombando do prprio ser das pessoas. Existe um julgamento social sobre as variantes: algumas so consideradas elegantes e outras, feias. Do estrito ponto de vista lingustico, no existem formas feias ou bonitas, pois elas se equivalem. Escarnecer de algum, por causa da variante lingustica utilizada, mostra de preconceito, de dificuldade de conviver com as diferenas.

As recorrncias de traos lingusticos da expresso (por exemplo, ritmos, rimas) e do contedo (por exemplo, seleo lexical, construo de personagens), isto , o estilo, criam uma imagem do falante. Paulo Mendes Campos tem uma crnica, em que mostra que um mesmo fato pode ser narrado de diferentes pon-tos de vista, empregando diferentes estilos. O fato o seguinte: o corpo de um homem de quarenta anos presumveis encontrado de madrugada pelo vigia de uma construo, margem da Lagoa Rodrigo de Freitas, no existindo sinais de morte violenta. Observe-se um dos estilos:

Estilo reacionrioOs moradores da Lagoa Rodrigo de Freitas tiveram na manh de hoje o profundo desagrado de deparar com o cadver de um vagabundo que foi logo escolher para morrer (de bbado) um dos bairros mais elegantes desta cidade, como se j no bastasse para enfear aquele local uma srdida favela que nos envergonha aos olhos dos americanos que nos visitam ou que nos do a honra de residir no Rio.(1979: 32)

O mesmo fato, contado por um reacionrio ou por um progressista, muito diferente. Dizer o corpo ficou s margens da Lagoa muito diferente de dizer o


corpo ficou ali entregue s moscas que pululam naquele perigoso foco de epidemia; dizer corpo de um homem distinto de cadver de um vagabundo. A linguagem cria a imagem de um reacionrio ou de um opositor aos governantes.

preciso muito cuidado para no rotular algum disso ou daquilo, pois a identidade mvel, no fixa. Uma pessoa ora reacionria, ora progressista; ora mostra-se durona; ora sensvel. Por outro lado, ela pode simular uma imagem que quer transmitir a seus interlocutores. Por isso, frequente encontrar pessoas que mudam o que dizem conforme o meio em que esto.

A linguagem no se destina apenas a perceber o mundo, a categorizar a realida-de, a servir de instrumento de interao social, a informar, a influenciar, a exprimir sentimentos e emoes, a criar e a manter laos sociais, a falar da prpria linguagem, a ser fonte e lugar de prazer, a forjar uma identidade para o falante, mas tambm uma forma de ao.

a) Depois da chuva, apareceu um bonito arco-ris.b) Peo desculpas por ter chegado atrasado.

A primeira frase fala de um evento do mundo, o aparecimento de um arco-ris depois da chuva. Pode, por isso, ser submetida prova da verdade. O acontecimento mostrado por ela pode estar ou no de acordo com o que acontece no mundo. Se, de fato, apareceu um arco-ris depois da chuva, a frase verdadeira. Em caso contrrio, falsa. J a segunda frase no relata um evento do mundo, a realizao do ato de pedir desculpas. Portanto, ela no pode ser submetida prova da verdade, pois, quando algum pede des-culpas, no se pergunta se o ato verdadeiro ou falso. A pessoa est, de fato, pedindo desculpas. O ato pode ter sucesso ou no. S ter sucesso se forem observadas certas condies: por exemplo, a pessoa que pede desculpas deve ser a mesma que ofendeu algum, porque um pedido de desculpas feito por uma terceira pessoa no vale.

Na lngua, temos enunciados que servem para fazer uma constatao a res-peito dos eventos ou dos estados do mundo e temos outros que so a realizao de um ato. Isso quer dizer que a linguagem tambm uma forma de ao, pois h determinados atos que se realizam quando se diz um determinado enunciado. So exemplos de atos que acontecem ao dizer: Ordeno que voc saia daqui; Aposto dez reais como voc no consegue fazer isso; Declaro aberta a sesso.


A ordem acontece, quando algum enuncia ordeno; a aposta efetiva-se, quando algum declara aposto; a sesso se abre, quando algum diz declaro aberta a sesso. Esses atos se realizam de muitas formas: uma ordem se d tambm quando se usa um imperativo (por exemplo, Saia daqui), um pedido efetua-se quando se diz, por exemplo, Uma esmola pelo amor de Deus. Muitas vezes, esses atos efetivam-se de maneira indireta. Por exemplo, se algum, no inverno, entra numa sala, cujas janelas esto todas abertas, e diz Est muito frio aqui, ele no estar constatando a temperatura ambiente, mas estar certamente pe-dindo que se fechem as janelas. O mesmo acontece quando a me diz ao filho Seu quarto est uma baguna. Nesse caso, ela no estar constatando o estado de arrumao do quarto, mas ordenando que ele seja arrumado. O falante tem uma grande capacidade de compreender esses atos de fala indiretos: se algum pergunta Voc sabe onde fica a estao?, no est solicitando que o outro diga se sabe ou no a localizao desse lugar, mas est pedindo que lhe seja expli-cado onde se localiza. Seria muito estranho que diante de tal pergunta a pessoa respondesse apenas Sei.

Alm dos atos que se realizam ao dizer, h outra forma de agir no mundo pela linguagem. So os atos produzidos no ao dizer, mas em consequncia do dizer. Ceclia Meireles mostra isso no belo poema Romance das palavras areas, de que vamos reproduzir alguns versos:

Ai, palavras, ai, palavras,Que estranha potncia a vossa!Todo sentido da vidaprincipia vossa porta;o mel do amor cristalizaseu perfume em vossa rosa;sois o sonho e sois a audcia,calnia, fria, derrota...

A liberdade das almas,ai, com letras se elabora...E dos venenos humanossois a mais fina retorta [...]Reis, imprios, povos, tempos,Pelo vosso impulso rodam (1985: 493)


A poeta vai, nesse poema, falar do poder da palavra. Ela serve para o bem e para o mal, isto , as consequncias que ela produz so positivas ou negativas. Com a palavra, declaramos amor; com ela, caluniamos e, assim, destrumos o outro; com ela, mostramos nossa audcia; com ela seduzimos e fazemos que o outro se enamore de ns; com ela, ampliamos nossa mente e, assim, liberta-mos nossa alma; com ela, magoamos, espezinhamos, humilhamos e, por isso, ela a mais fina retorta dos venenos humanos; com ela, concebemos novos projetos sociais, novas utopias e, por isso, derrubamos a tirania; alteramos os sistemas polticos, criamos novos tempos; com ela, sonhamos em construir uma nova vida; com ela, fazemos planos; com ela, elogiamos e apoiamos e, assim, incitamos os outros a seguir em frente; com ela, corrigimos; com ela, repreendemos. O que podemos fazer em consequncia daquilo que dizemos ilimitado.

A linguagem uma forma de o homem agir no mundo, porque h aes que se realizam ao dizer e aes que ocorrem em consequncia do que se diz.

A linguagem no se presta apenas para perceber o mundo, para categorizar a realidade, para realizar interaes, para informar, para influenciar, para exprimir sentimentos e emoes, para criar e manter laos sociais, para falar da prpria linguagem, para ser lugar e fonte de prazer, para estabelecer identidades, para agir no mundo, mas tambm para criar novas realidades:

A menina apareceu grvida de um gavio.Veio falou para a me: o gavio me desmoou.A me disse: Voc vai parir uma rvore paraa gente comer goiaba nela.E comeram goiaba.Naquele tempo de dantes no havia limitespara ser.Se a gente encostava em ser ave ganhava opoder de alar.Se a gente falasse a partir de um crregoa gente pegava murmrios.No havia comportamento de estar.Urubus conversavam sobre auroras.Pessoas viravam rvore.Pedras viravam rouxinis.Depois veio a ordem das coisas e as pedras


tm que rolar seu destino de pedra para o restodos tempos.S as palavras no foram castigadas com a ordem natural das coisas.As palavras continuam com seus deslimites.(Barros, 1998: 77)

O poeta Manoel de Barros fala do tempo em que as coisas no tinham limites. Nele, tudo podia acontecer: urubus conversavam sobre auroras, pessoas viravam rvores, pedras se transformavam em rouxinis e assim por diante. O poeta mostra acontecimentos impossveis, como a me dizer filha que ela iria parir uma rvore para que comessem goiaba nela e isso acontecer (e comeram goiaba) ou algum desejar (= encostar em ser) ser ave e ganhar o poder de alar voo, para revelar que no havia limites para os acontecimentos. Depois, veio a ordem natural das coisas e as pedras tm que rolar seu destino de pedra para o resto dos tempos, isto , cada coisa tem uma funo no mundo. No entanto, as palavras no foram castigadas com essa ordem natural, elas continuam, segundo o poeta, com seus deslimites. Nesse belo poema, o que o poeta nos mostra que as palavras, ou seja, a linguagem, no so um decalque do mundo, no se limitam a reproduzir a ordem natural das coisas, mas so um instrumento com que os homens podem criar as realidades que bem entenderem. Esse poder criador da linguagem est presente nas narrativas religiosas. Na Bblia, conta-se que Deus cria o mundo pela linguagem: Deus disse: Faa-se a luz. E a luz foi feita (Gnese, 1,3).

A linguagem no fala apenas daquilo que existe, fala do que nunca existiu. Com ela, imaginamos novos mundos, outras realidades. Essa a grande funo da arte, que um modo de organizao da linguagem: mostrar que outras manei-ras de ser so possveis, que outros universos podem existir. O famoso filme de Woody Allen A rosa prpura do Cairo mostra isso de maneira bem expressiva. Nele, conta-se a histria de uma mulher, que tinha um cotidiano muito sofrido e que era maltratada pelo marido. Por isso, ela refugia-se no cinema, assistindo a filmes de amor, onde a vida glamorosa. Um dia, o gal sai da tela e eles vo viver juntos uma srie de aventuras. Nessa outra realidade, os homens so gentis, a vida no montona, o amor nunca diminui e assim por diante.

Uma funo importante da linguagem seu poder de criar realidades, que revelam os anseios, os temores, as expectativas do homem da poca em que foram criadas. O homem pode criar uma realidade futura, como em muitos fil-


mes de fico cientfica, em que a terra um lugar sombrio, poludo, dominado por gangues que impem a lei do mais forte (veja, por exemplo, o filme Duna). Isso revela a angstia com a destruio do meio ambiente e com a quebra das normas sociais. Pode construir realidades em que os computadores dominam os homens (veja, por exemplo, o filme 2001, uma odisseia no espao), o que mostra a angstia diante das aceleradas mudanas produzidas pelas novas tecno-logias. Tambm o homem pode idealizar o passado. Criar novos espaos, como a Terra Mdia, que aparece no Senhor dos Anis, de Tolkien; a Ilha dos Amores, onde os navegantes portugueses, segundo a epopeia Os Lusadas, de Cames, encontram muitos prazeres e descansam depois das fadigas da expedio de Vasco da Gama. Criam-se com a linguagem personagens, que nos ensinam a conhecer melhor os seres humanos: por exemplo, Dona Flor, de Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado, que mostra o desejo dos seres humanos de conciliar o trabalho e o prazer, pois o primeiro marido Vadinho, o sujeito folgazo, que representa o princpio do prazer, enquanto o segundo, Teodoro, um homem metdico, que a imagem do trabalho. A linguagem permite criar as realidades que quisermos, pois ela no est submetida, como nos diz Manoel de Barros, aos limites da ordem natural das coisas. Ela d ao homem o poder considerado divino de criar universos.

Depois de analisar todas as funes da linguagem, compreende-se por que ela onipresente. Sem ela, no se pode estruturar o mundo do trabalho, pois ela que permite a cooperao entre os homens e a troca de informaes e de experincias. Sem ela, o homem no pode conhecer-se nem conhecer o mundo. Sem ela, no se exerce a cidadania, porque os eleitores no podem influenciar o governo. Sem ela no se pode aprender, sem ela no se podem expressar os sentimentos, sem ela no se podem imaginar outras realidades, sem ela no se constroem as utopias e os sonhos. Sem ela... Sem ela... Sem ela...

A reflexo sobre a linguagem

Por esse papel to importante que sempre a linguagem cativou o homem enquanto objeto de deslumbramento e de descrio na poesia e na cincia (Hjelmslev, 1975: 1-2). Se ela est presente em todas as atividades humanas, se constitutiva do estar do homem no mundo, conhecer a linguagem conhecer


o homem. Nos primrdios da marcha do homem sobre a Terra, os mitos tentam explicar as origens da linguagem e a diversidade das lnguas.

No Gnese, v-se que a linguagem um atributo da divindade, pois o Criador dela se vale, quando realiza sua obra. No primeiro relato da criao, Deus cria o mundo falando. No incio, no havia nada. Depois, h o caos.

No princpio, criou Deus o cu e a terra. A terra, contudo, estava vazia e vaga e as trevas cobriam o abismo e o Esprito de Deus pairava sobre as guas. (I, 1-2)

A passagem do caos ordem (= cosmo) faz-se por meio de um ato de lingua-gem. esta que d sentido ao mundo. O poder criador da divindade exercido pela linguagem, que tem, no mito, um poder ilocucional, j que nela e por ela se ordena o mundo.

Deus disse: Faa-se a luz. E a luz foi feita. E viu Deus que a luz era boa: e separou a luz e as trevas. Deus chamou a luz dia e as trevas noite; fez-se uma tarde e uma manh, primeiro dia. (I, 3-5)

At o quinto dia, o Senhor vai criando linguisticamente o mundo. No sexto, depois de fazer os animais da terra, cria o homem.

Faamos o homem a nossa imagem e semelhana; e que ele domine os peixes do mar, e as aves do cu, e os animais da terra, e todo rptil, que se move na terra. E Deus criou o homem a sua imagem; imagem de Deus criou-o, macho e fmea criou-os. (I, 26-7)

Mas h, no primeiro livro da Bblia, uma segunda narrativa da criao, o ho-mem feito de barro, portanto, no mais com a linguagem, mas com o trabalho das mos:

Ento, o Senhor Deus modelou o homem com o barro da terra, e soprou-lhe no rosto o sopro da vida, e o homem tornou-se um ser vivo. (II, 7)

O mito mostra que as duas categorias fundadoras do cosmo, do sentido, so a linguagem (primeiro relato da criao) e o trabalho (segunda narrativa). Alis, nesta, no s o homem foi feito de barro, mas tambm os outros animais. O que diferencia aquele destes que o homem composto de dois princpios distintos: o barro da terra (corpo) e o sopro de Deus (alma). A mulher foi feita de uma cos-


tela de Ado. Quando o Criador leva a mulher ao homem, este realiza um ato de linguagem, um ato de denominao.

Depois, o Senhor Deus transformou a costela, que tirara de Ado, numa mulher e levou-a para Ado. Este disse: Este o osso de meus ossos, a carne de minha carne: ser chamada mulher, porque foi tirada do homem. por isso que o ho-mem deixar seu pai e sua me e se unir a sua mulher; e eles sero dois numa s carne. (II, 22-4)

A lngua admica uma faculdade divina dada ao homem, para que ele, de-nominando cada uma das coisas criadas, apreenda o Universo. proporo que Ado descobre o mundo, denomina os seres, pois uma coisa s existe na medida em que tem um nome, ou seja, entra no universo da linguagem.

Disse tambm o Senhor Deus: No bom que o homem esteja s, faamos-lhe um auxlio semelhante a ele. Tendo formado o Senhor Deus do barro todos os animais da terra e todas as aves do cu, levou-os para Ado, para que visse como os chamaria; cada um deveria portar o nome que Ado lhe tivesse dado. E chamou Ado por seus nomes todos os animais, e todas as aves do cu, e todas as feras da terra. (II, 18-20)

O episdio da torre de Babel explica o mistrio da diversidade das lnguas. Os homens pretenderam fazer uma torre que chegasse aos cus. Deus foi ver o que eles faziam e no aceitou sua pretenso. Como castigo, provocou a confuso das lnguas. A diversidade lingustica vista, ento, como maldio, como castigo soberba dos homens.

Todos se serviam da mesma lngua e das mesmas palavras. [...] Disseram-se uns aos outros: Vinde, faamos tijolos e cozamo-los no fogo. Os tijolos serviram-lhes de pedra e o betume, de cimento. Disseram: Vinde, faamos uma cidade e uma torre, cujo cume atinja o cu. Celebremos nosso nome antes que nos dispersemos por toda a terra. Ora, Deus desceu para ver a cidade e a torre que os filhos de Ado edificavam e disse: Eis que todos so um s povo e falam uma nica lngua. Comearam a fazer isto e no desistiro, at que tenham completado sua obra. Vamos, desamos e confundamos sua lngua, para que um no entenda mais a voz do outro. (II, 18-9)

No Novo Testamento, aparece o relato do chamado milagre de Pentecostes. A narrativa conta que o Esprito Santo desceu sobre os apstolos sob a forma


de lnguas de fogo. Isso permitiu aos apstolos seja falar todas as lnguas de seus ouvintes, vindos de diferentes pases (... e comearam a falar em vrias lnguas. Atos, II, 4), seja serem compreendidos pelos ouvintes como se falassem a lngua de cada um (porque cada um ouvia-os falar em sua prpria lngua).

Espantavam-se todos e maravilhavam-se, dizendo: Por acaso todos estes homens que falam no so galileus? Como ouvimos cada um nossa lngua materna? Os Partos, e os Medas, e os Elamitas, e os que habitam a Mesopotmia, a Judeia, a Capadcia, o Ponto e a sia, a Frgia e a Panflia, o Egito e a parte da Lbia, que prxima de Cirene, e os Romanos que esto aqui, tambm os Judeus e os Proslitos, e os Cretenses e os rabes: ouvimo-los falar em nossas lnguas as maravilhas de Deus. (Atos, II, 6-11)

Pode-se entender que os apstolos falavam numa espcie de esperanto mstico, numa lngua que reconstitui a lngua admica (Yaguello, 1984: 31). Esse episdio muito importante, porque, se, com a morte de Cristo, os homens receberam a salvao e, assim, tiveram a possibilidade de anular as maldies da primeira queda, com o milagre de Pentecostes, pe-se um termo maldio da segunda queda: diversidade das lnguas ope-se aqui a unidade, e, dessa forma, o ciclo do mito completa-se.

Observe-se a explicao sobre a origem do mundo e da linguagem dada por uma sociedade bem diversa:

Uma das grandes escolas de iniciao da savana sudanesa, o Komo, diz que a palavra (kuma) era um atributo reservado a Deus, que por ela criava as coisas: o que Maa Ngala (Deus) diz . No comeo, s havia um vazio vivo, vivendo da vida do Ser. Um que se chama a si mesmo Maa Ngala. Ento ele criou Fan, o ovo primordial, que, nos seus nove compartimentos, alojava nove estados fundamentais da existncia. Quando esse ovo abriu, as criaturas que da saram eram mudas. Ento para se dar um interlocutor, Maa Ngala tirou uma parcela de cada uma das criaturas, misturou-as e por um sopro de fogo que emanava dele mesmo, constituiu um ser parte: o homem, ao qual deu uma parte de seu prprio nome (Maa). (Petter, 2002: 11)

Os dois mitos expostos anteriormente, engendrados em sociedades muito di-ferentes, narram a origem da linguagem de maneira muito prxima: a linguagem um atributo da divindade, que concedido ao homem. Alis, o mito vai mais


longe. No incio do Evangelho de So Joo, que serve de epgrafe a este texto, diz-se que a linguagem no s estava em Deus, mas ela era o prprio Deus.

Mais tarde aparece a reflexo lingustica, que feita pelos filsofos. Por exemplo, Plato, no Crtilo, estuda o estatuto do nome, algo que no a prpria coisa. Como instrumento e imagem, ele implica a natureza e a conveno. Com isso, comea a delinear-se o problema da significao. Se a linguagem conduz a alguma coisa fora de si, o nome um signo e, portanto, pode-se analisar seu sig-nificado. Em Plato, o nome o lgos da coisa e o discurso o lgos da relao entre as coisas. Surge o problema da adequao entre a linguagem e a realidade. No Crtilo, o nome tem uma relao de semelhana com a coisa nomeada, o que implica certo grau de representao. No Sofista, a adequao no buscada nos termos, mas em sua articulao, que um reflexo do acordo existente entre as espcies. Nesse lgos discursivo, no h conveno, pois a articulao das partes da proposio revela a articulao das essncias. A representao das essncias, feita pelos nomes, permite certo grau de conveno, o que no acontece no dis-curso, pois a relao entre as espcies natural e, por conseguinte, universal (Cf. Neves, 2005).

No perodo helenstico, as condies histricas propiciam a instituciona-lizao de uma disciplina gramatical, pois ele marcado por um intenso plu-rilinguismo, ou seja, um confronto de lnguas e culturas. Ora, esse ambiente plurilngue, ao invs de produzir uma profunda mescla de cultura, intensifica o zelo de preservao da lngua considerada mais pura e elevada, o grego. Exalta-se o ideal helnico contra os brbaroi. Isso implica o exame atento dos fatos lingusticos, aqueles revelados pelo uso concreto da lngua, bem como o estabelecimento de padres normativos para a lngua que constitui, na viso helnica, o modelo mais elevado de analogia, o grego. O helenismo precisa ser difundido; a lngua grega, ensinada, para ser preservada da corrupo. O ensino de padres lingusticos implica o estabelecimento dos quadros da gramtica, que a exposio das analogias no mbito das formas lingusticas. O modelo dessas formas so os autores clssicos. No entanto, curioso o mundo dos conceitos. Assim como nas narrativas s existe o heri porque h o vilo, a analogia s pode ser estabelecida, quando se tem em vista a anomalia. Ambas supem-se e explicam-se. Ademais, a ideia de lngua comum (a koin) est na base da codifi-cao das noes gramaticais e associa-se noo de norma. Estabelecem-se os quadros de flexo como paradigmas; mapeiam-se os desvios e as irregularidades


determinados pelo uso. Assim, est inaugurada a disciplina gramatical, que tem por objeto a sistematizao dos fatos da lngua. A filosofia fornece-lhe as bases tericas. A lngua vai pouco a pouco sendo considerada autnoma: primeiro, da realidade; em seguida, das categorias do pensamento. Isso possibilita, nas con-dies histricas particulares do perodo helenstico, o levantamento dos fatos concretos do uso correto e eficiente da lngua. E, a partir da, o estabelecimento das classes de palavras e de suas flexes no mais como suporte das categorias da lgica, mas como uma realidade em si. Nas condies particulares de sua emergncia, a gramtica normativa. Ela separa-se da filosofia, que fica sendo o domnio dos conceitos, j que a linguagem um domnio especfico, uma vez que ela no uma imagem fiel das relaes dialticas (Cf. Neves, 2005).

A gramtica foi o modelo de reflexo lingustica durante toda a Antiguidade, a Idade Mdia e parte da Idade Moderna. Depois surge a filologia:

J em Alexandria havia uma escola filolgica, mas esse termo se vinculou sobretudo ao movimento criado por Friedrich August Wolf a partir de 1777 e que prossegue at nossos dias. A lngua no o nico objeto da Filologia, que quer, antes de tudo, fixar, interpretar, comentar os textos; esse estudo a leva a se ocupar tambm da histria literria, dos costumes, das instituies, etc.; em toda parte usa seu mtodo prprio, que a crtica. Se aborda questes lingusticas, f-lo sobretudo para comparar textos de diversas pocas, determinar a lngua peculiar de cada autor, decifrar e explicar inscries redigidas numa lngua arcaica ou obscura. (Saussure, 1969: 7-8)

Mais modernamente constitui-se a Lingustica como cincia da linguagem. A Lingustica uma cincia, porque ela, ao contrrio da gramtica, no se pre-tende normativa (no tem por finalidade prescrever como se deve dizer), mas se quer descritiva e explicativa (tem por objetivo dizer o que a lngua e por que assim). Assim como um qumico no diz que uma reao certa ou errada, um bilogo no declara que determinada espcie no deveria existir ou que ela feia, um astrnomo no classifica os corpos celestes em bons e maus, um linguista no condena certas maneiras de falar, no as declara inexistentes, no prescreve como se deve falar, mas procura descrever e explicar as construes, as formas. Por exemplo, explicar por que aparece o chamado gerundismo, por que se usa o pronome lhe em funo de objeto direto em lugar dos pronomes que serviam para expressar essa funo sinttica, o, a, os, as.


A Lingustica, ao contrrio da Filologia, ocupa-se principalmente da linguagem oral. Muitas vezes, pensa-se que a escrita seja uma simples transcrio da fala. Na verdade, a relao entre elas muito mais complexa. So duas modalidades distintas. Cabe lembrar, em primeiro lugar, que a oralidade condio necessria, porm no suficiente, da fala. Quando lemos, por exemplo, um texto previamente escrito, temos manifestao oral da linguagem, mas no temos a construo de um texto falado.

Quando se elabora um texto, ele feito para algum, que seu receptor. O texto falado recebido ao mesmo tempo que elaborado. Enquanto o emissor vai construindo o texto, o receptor vai ouvindo-o. Na escrita, diferente, pois o texto lido s depois de ter sido escrito, depois de estar pronto. Dessa caracterstica resultam vrias distines entre um texto escrito e um texto falado.

a) Na fala, a recepo ocorre no interior de uma situao de interlocuo, ou seja, dentro de uma cena enunciativa, que compreende dois participantes (os interlocutores) e se passa num determinado tempo e num dado lugar. Essa cena a instncia de instaurao de um eu (pessoa que fala), um tu (a pessoa com quem se fala), um aqui (o lugar onde est o eu), um agora (o momento em que o eu toma a palavra). A partir do eu/aqui/agora, ordenam-se todas as pessoas, os tempos e os espaos colocados no discurso. Ora, na fala, no preciso explicar ao interlocutor a que o emissor se refere, quando diz eu, aqui, agora, ontem, hoje, l, ele, etc. O sentido desses elementos lingusticos retirado da prpria situao de interlocuo. Por outro lado, o receptor entende os sentidos que se referem situao. Se algum diante do carro parado, com o cap aberto, diz: Droga! Mandei ver o motor semana passada, no precisa explicar que se trata do motor do carro. Da mesma forma, se isso for dito diante da enceradeira, a referncia do termo motor ser outra. Como a comunicao na escrita se d fora da situao de interlocuo, preciso recriar a cena enunciativa, a situao, para que o receptor compreenda quem est falando, que semana foi mencionada como semana passada, quais so as referncias situacionais dos sentidos. por isso que, numa carta, por exemplo, imprescindvel que se mencionem o lugar e a data em que o texto foi pro-duzido, que se assine o texto e que se contem todos os elementos situacionais cuja omisso no permite entender o sentido do que dito.


b) Na fala, ocorre uma alternncia dos papis de falante e de ouvinte. O receptor pode interromper o emissor a qualquer momento e tomar a pala-vra. Este, por sua vez, usa certas estratgias para manter a palavras (por exemplo, prolongar uma vogal, enquanto procura uma palavra), busca anuncia do interlocutor (diz, por exemplo, n?, certo?, c no acha?), solicita-lhe colaborao (por exemplo, como mesmo que se diz?), etc. Na escrita, no ocorre essa alternncia de papis. Mesmo quando nela se cria um dilogo, trata-se de uma simulao e no de um dilogo real com suas interrupes, superposies de vozes, tentativa de segurar a palavra, marcas da presena do outro, etc.

c) Na fala, o planejamento e a execuo do texto so concomitantes. Por isso, o texto falado caracteriza-se por um grande nmero de pausas, frases truncadas, repeties, correes, perodos comeados e abandonados para iniciar outro, desvios, voltas, aceleraes. O texto escrito no apresenta marcas de planejamento e de execuo. O produto apresentando pronto ao leitor e no em elaborao como na fala. Na verso final do texto escrito, so abandonadas as marcas da construo do texto. Nele, no aparecem hesitaes, truncamentos, correes, etc.

d) Na fala, empregam-se perodos mais curtos e mais simples. Na escrita, eles so mais longos e complexos. Nesta, usam-se mais oraes subordi-nadas. As unidades de sentido de um texto escrito so os pargrafos, os captulos, etc. No texto falado, so os turnos (interveno de cada falante) e os tpicos (assuntos de que se fala).

e) Na fala, h um grande envolvimento do interlocutor no texto do outro. Ele colabora em sua elaborao, participa dela com sugestes, diz que compreendeu, assente na continuao, etc. H uma srie de marcadores conversacionais que servem para indicar esse envolvimento do interlo-cutor: hum, hum!, certo!, claro!, ah, sim!. O falante monitora o acompa-nhamento do interlocutor (por exemplo, voc est me entendendo?). Essa participao do interlocutor to intrnseca ao texto falado que, quando, por exemplo, se fala ao telefone e a outra pessoa no diz nada, imediata-mente se lhe pergunta: al, voc est ouvindo? No texto escrito, no h esse envolvimento da parte de um interlocutor.


Muitas pessoas dizem que, num texto escrito, podem-se admitir quando muito variantes lexicais, mas, em hiptese alguma, variantes de outros planos da lngua, pois elas constituem erro. A questo mais complexa. No trato com as variantes, devemos substituir o par certo/errado pela dicotomia adequado/inadequado. Com efeito, cada variante mais adequada para uma determinada situao de interlocuo e, portanto, a um dado gnero do discurso. Por isso, na construo de uma perso-nagem de um romance, por exemplo, no se pode atribuir-lhe aleatoriamente uma variedade lingustica. As variedades criam uma identidade para o narrador e para as personagens: por exemplo, no se faz um peo da fronteira do extremo sul do pas falar como um adolescente carioca. Uma variedade cria um efeito de sentido, pois se ajusta a um lugar, a um tempo, a uma situao de interlocuo, a um grupo social. Um bom falante da lngua o que sabe usar a variedade adequada situao de comunicao. to inadequado dizer, num bate-papo de botequim, Fi-lo ao meu alvedrio, quanto, num depoimento na Cmara dos Deputados, afirmar Fiz pruque me deu na teia.

Linguagem humana e linguagem animal

Temos ouvido falar de experincias cientficas que comprovam que os animais so dotados de capacidade de linguagem. So primatas que aprendem centenas de palavras, so abelhas que se comunicam, animais domsticos que entendem o que lhes dizemos. Pensemos melhor a questo. Em Atravs do espelho, de Lewis Carroll:

um hbito muito inconveniente dos gatinhos (Alice j tinha observado isso) responderem sempre com um ronrom a qualquer coisa que se diga. Se ao menos eles fizessem rom para sim e miau para no, ou qualquer coisa desse tipo, ela se dizia, ento j se podia continuar uma conversa. Mas como conversar com algum que sempre diz a mesma coisa?. (1980: 245)

No se nega que os animais tenham uma forma de comunicar-se. As abe-lhas, por exemplo, so capazes de produzir e entender uma mensagem, com trs informaes: existncia de uma fonte de alimentos, sua distncia e sua direo. Podem, pois, registrar relaes de posio e distncia, conserv-las na memria, comunic-las por meio de certos movimentos, que so compreendidos pelas ou-


tras abelhas, tornando-se um motor para a ao. Benveniste, num clssico texto intitulado Comunicao animal e linguagem humana (1976: 60-7), diz que as abelhas tm a capacidade de formular e interpretar um signo, que remete a certa realidade; elas tm a memria da experincia e a aptido de decomp-la. No entanto, a comunicao das abelhas no linguagem no sentido humano, aquela que objeto da Lingustica. As abelhas no conhecem o dilogo, que condio da linguagem humana. Assim, suas mensagens no provocam uma resposta lin-gustica, mas uma conduta. No h reao lingustica mensagem: ela no pode ser reproduzida por outra abelha, que v a outra colmeia levar uma mensagem que tenha recebido de outra abelha. Ela no constri uma mensagem a partir de outra mensagem, mas a partir de um dado da realidade. Sua comunicao refere-se sempre a um dado objeto, no h comunicao referente a um dado lingustico, as abelhas no tm metalinguagem. O contedo da mensagem se refere sempre a um dado da realidade, a existncia de uma fonte de alimento. A linguagem humana uma mistura livre e infinita de referncia realidade objetiva e de reao s manifestaes lingusticas. Ela propicia um substituto da experincia que pode ser transmitido indefinidamente no espao e no tempo. Na linguagem humana, no h relao necessria entre referncia objetiva e forma lingustica. A linguagem no fala apenas do que existe, fala tambm do que nunca existiu. A mensagem das abelhas tem um contedo global que no se deixa analisar em unidades menores. A linguagem humana analisvel em elementos menores (uni-dades mnimas dotadas de forma fnica e sentido, que se combinam para formar palavras; sons que se combinam para constituir as unidades dotadas de sentido). O princpio que rege a linguagem humana a criatividade, que est ausente da comunicao animal. Os animais no tm linguagem, tm cdigo de sinais, cujas caractersticas so sentidos fixos, invariabilidade das mensagens, referncia a uma dada realidade, natureza indecomponvel do enunciado e transmisso unilateral. Portanto, a Lingustica no se ocupa da linguagem animal.

A linguagem comum a todos os homens. No h diferena de natureza entre as lnguas. As distines entre elas so culturais. No h lnguas simples e lnguas complexas. Todas so igualmente simples e complexas. Todas as lnguas tm determinadas propriedades e caractersticas, que so universais:

a) tm dupla articulao (poucos sons que se combinam para formar unidades dotadas de sentido, que, por sua vez, se combinam formando enunciados);


b) constituem sistemas cujas unidades se definem umas em relao s outras;c) so convencionais os signos lingusticos;d) comportam redundncia (excesso de meios em relao s informaes

transmitidas);e) apresentam ambiguidades, dissimetrias, irregularidades;f) produzem infinitos enunciados a partir de regras infinitas;g) esto em perptua mudana;h) permitem a inveno, a criatividade, o deslocamento de sentido, o jogo;i) so estruturadas em trs nveis, o dos sons, o da gramtica e o do lxico;j) so lineares os significantes (um som tem que vir depois do outro);k) so constitudas de unidades discretas (unidades distintas umas das outras,

isolveis, segmentveis).

Os objetos da Lingustica

A Lingustica tem por finalidade elucidar o funcionamento da linguagem hu-mana, descrevendo e explicando a estrutura e o uso das diferentes lnguas faladas no mundo. Esse seu objeto emprico. No entanto, o objeto emprico diferente dos objetos observacionais e tericos. O objeto observacional a regio do objeto emprico que ser objeto de estudo. Sendo ele delimitado, estabelecem-se entidades bsicas, a partir das quais sero atribudas propriedades aos fenmenos pertencentes ao campo de anlise, e sero determinadas relaes entre eles. O objeto observacional converte-se ento em objeto terico.

Podemos estudar os universais da linguagem, isto , as propriedades e caracte-rsticas universais, que definem o que inerente natureza mesma da linguagem; as operaes cognitivas envolvidas no processamento lingustico, bem como a perda da capacidade da linguagem por leses no crebro. Podemos debruar-nos sobre as diferenas entre as lnguas. Podemos ocupar-nos da variao no espao, como fazem a dialetologia e a geolingustica. Podemos examinar a variao de grupo social para grupo social. Podemos observar a variao de uma situao de comunicao para outra. Podemos pesquisar a mudana lingustica e a evoluo de uma lngua ou de uma famlia de lnguas. Podemos analisar a aquisio da linguagem. Podemos ver a linguagem como um sistema formal. Podemos investigar as unidades maiores do que a frase, isto , o discurso e o texto.


Poderamos continuar a dar exemplos de formas de abordagem do fenmeno da linguagem, mas cremos que os elementos expostos anteriormente so suficientes para mostrar que a linguagem , como dizia Saussure, multiforme e heterclita; est a cavaleiro de diferentes domnios; , ao mesmo tempo, fsica, fisiolgica e psquica; pertence [...] ao domnio individual e ao domnio social (1969: 17).

A Lingustica moderna, na verdade, criou cinco grandes objetos tericos, que sero examinados nos captulos que seguem: a lngua, a competncia, a variao, a mudana e o uso.

Nota1 Em seu clebre estudo a respeito das funes da linguagem, Jakobson diz que a comunicao tem seis fatores:

contexto, remetente, mensagem, destinatrio, contato e cdigo. Cada um desses fatores determina uma funo da linguagem. Quando a mensagem est para o contexto, ela tem uma funo referencial; para o remetente, uma funo emotiva; para o destinatrio, uma funo conativa; para o contato, uma funo ftica; para o cdigo, uma funo metalingustica; para a mensagem, uma funo potica (1969: 118-62). Como se v, as funes estudadas por Jakobson so, praticamente, aquelas que se do no mbito das interaes sociais.

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a linguagem humana do mito à ciência

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