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A LIBRAS na Formação do Professor: Por uma Educação Inclusiva de Qualidade Por BÁRBARA M. SANTIAGO FERREIRA RESUMO A existência de grupos sociais diferenciados é bastante refletida na exclusão educativa. As bases da educação inclusiva estão pautadas na formação do professor, contudo para a ocorrência da educação inclusiva escolar são necessários amplos debates na sociedade, para que a escola possa absorver uma educação realmente para todos. Uma destas medidas se reside na ampliação da formação do professor, inserindo na sua graduação e/ ou em cursos de aperfeiçoamento, a Educação Inclusiva. Durante muitos anos, o sujeito surdo teve seu processo educacional negado, sobre a alegação de que não possuía o domínio da oralidade e que não era suficientemente inteligente para adquirir qualquer conhecimento. Mais do que uma política de reparação, a aquisição da LIBRAS – Língua Brasileira de Sinais pelo professor assegura ao surdo uma educação de qualidade – pautada no respeito e valorização de sua identidade. Este e outros assuntos serão discutidos neste presente artigo. Palavras – chave: Inclusão, Surdo, Formação do Professor, LIBRAS. INTRODUÇÃO A escola é o reflexo da sociedade, sendo na pluralidade de grupos sociais que ali residem (ricos x pobres, negros x brancos, homens x mulheres) onde se encontra a maior parte dos processos discriminatórios. Os grupos sociais que não se enquadram nos moldes pré-definidos na sociedade, são excluídos do processo educacional. No caso do surdo, pela não aquisição da oralidade, ele se encontra excluído do processo educativo. Ao discutir-se inclusão educacional, sugere-se uma reflexão mais ampla, no que se refere às questões sociais e respeito à diversidade. A inclusão, nas suas diversas modalidades (social, cultural, educacional e política) é um processo que reflete os anseios contemporâneos – o tempo das diferenças que são cada vez mais externadas pelo processo da globalização, que pluraliza, entrando em choque com os antigos perfis uniformizadores. 1. INCLUSÃO ESCOLAR: CAMINHOS O avanço do debate relativo à inclusão tem feito com que a temática tenha sido um dos eixos de análise contemporânea sobre os processos educacionais no final do século XX. A reformulação dos processos

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A LIBRAS na Formação do Professor: Por uma Educação Inclusiva de Qualidade

Por BÁRBARA M. SANTIAGO FERREIRA

RESUMO

A existência de grupos sociais diferenciados é bastante refletida na exclusão educativa. As bases da educação inclusiva estão pautadas na formação do professor, contudo para a ocorrência da educação inclusiva escolar são necessários amplos debates na sociedade, para que a escola possa absorver uma educação realmente para todos. Uma destas medidas se reside na ampliação da formação do professor, inserindo na sua graduação e/ ou em cursos de aperfeiçoamento, a Educação Inclusiva. Durante muitos anos, o sujeito surdo teve seu processo educacional negado, sobre a alegação de que não possuía o domínio da oralidade e que não era suficientemente inteligente para adquirir qualquer conhecimento. Mais do que uma política de reparação, a aquisição da LIBRAS – Língua Brasileira de Sinais pelo professor assegura ao surdo uma educação de qualidade – pautada no respeito e valorização de sua identidade. Este e outros assuntos serão discutidos neste presente artigo.

Palavras – chave: Inclusão, Surdo, Formação do Professor, LIBRAS.

INTRODUÇÃO

A escola é o reflexo da sociedade, sendo na pluralidade de grupos sociais que ali residem (ricos x pobres, negros x brancos, homens x mulheres) onde se encontra a maior parte dos processos discriminatórios. Os grupos sociais que não se enquadram nos moldes pré-definidos na sociedade, são excluídos do processo educacional. No caso do surdo, pela não aquisição da oralidade, ele se encontra excluído do processo educativo.Ao discutir-se inclusão educacional, sugere-se uma reflexão mais ampla, no que se refere às questões sociais e respeito à diversidade. A inclusão, nas suas diversas modalidades (social, cultural, educacional e política) é um processo que reflete os anseios contemporâneos – o tempo das diferenças que são cada vez mais externadas pelo processo da globalização, que pluraliza, entrando em choque com os antigos perfis uniformizadores.

1. INCLUSÃO ESCOLAR: CAMINHOS

O avanço do debate relativo à inclusão tem feito com que a temática tenha sido um dos eixos de análise contemporânea sobre os processos educacionais no final do século XX. A reformulação dos processos educativos mesmo se afirmando necessária, ainda é vista com resistência pela grande maioria dos educadores. Após diversas discussões, alguns documentos criados para assegurar um processo educativo mais pluralizado, como a Declaração de Salamanca (1994), a Lei de Diretrizes e Bases (9394/96), os debates em alguns estados começam a ser travados e políticas educacionais inclusivas aplicadas nas escolas.Além de todas estas medidas, é necessária, de forma primordial, a reflexão individual e interna sobre o que é realmente incluir e respeitar a individualidade na diversidade. Nada adianta o estabelecimento de leis e obrigações, se o professor – um dos focos da nossa discussão, não se sentir a vontade para fazê-lo. O trabalho docente é uma ação de extrema complexidade, reconhecer esta complexidade e estabelecer metas para o seu aperfeiçoamento são caminhos para a confecção de um currículo flexível. Como Mantoan (2006, p.16) direciona:

Em síntese, a inclusão escolar é um forte chamamento para que sejam revistas as direções que em que estamos alinhando nosso leme, na condução de nossos papéis como cidadãos, educadores, pais. Precisamos sair das tempestades, destes tempos conturbados, perigosos e a grande virada é decisiva. Muito já tem sido feito no sentido de um convencimento das vantagens da inclusão escolar. Embora não pareçam, as perspectivas são animadoras, pois

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as experiências inclusivas vigentes têm resistido às críticas, ao pessimismo, ao conservadorismo, às resistências. A verdade é implacável e o tempo e a palha estão amadurecendo as ameixas.

Como contribuir para o amadurecimento das ameixas?. Conhecer-se como professor e suas reais limitações é o primeiro passo. A partir daí, unir forças com o grupo escolar para se traçar estratégias de atendimento e ensino ao surdo (como os currículos das disciplinas podem ser adaptados para que o surdo se sinta inserido neles, quais as contribuições que os ouvintes podem dar no aprendizado dos surdos?).Este processo de “desarmamento do professor”, no qual ele assume a sua incapacidade em lidar com alunos surdos e se propõe a aprender, e o mais importante, construir o aprendizado juntamente com seu aluno, pondo em prática o que Freire (2000) sempre diz que o educador deve ter uma postura crítica equilibrada, fazendo reflexões a sua ação docente e como pode transformá-la para aproximar da realidade do educando – podem direcioná-lo ao que o autor chama de pensar certo, contudo alerta que esta ação é cercada de dúvidas e inquietações, pois o novo traz todos esses sintomas, além da desconfiança e discriminação.A participação da família e a capacidade de manter uma boa relação com a mesma são fundamentais para o sucesso de qualquer projeto educativo, pois a criança chega à escola depois de anos de convívio no ambiente familiar e tem um cotidiano que se completa, atualiza-se e modifica-se nas relações externas ao limite da escola. A escola pode ter um importante papel no sentido de auxiliar os pais a conhecer melhor os filhos e a contribuírem com suas aprendizagens que muitas vezes parecem estagnadas.

2. LIBRAS: AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE SURDA

A discussão sobre surdez, educação e língua de sinais vem sendo ampliada nos últimos anos por profissionais envolvidos com a educação de surdos, como também pela própria comunidade surda. A oficialização da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), em abril de 2002 (Lei n. 10.436, de 24 de abril de 2002), começou a abrir novos caminhos, sem, no entanto, deixar de gerar polêmicas por profissionais que trabalham com surdos e por surdos oralizados, que não se sentem parte de uma comunidade surda e não vêem mérito nessa vitória para a comunidade surda. Muitos profissionais que trabalham com surdos têm uma visão sobre a língua de sinais como uma forma de comunicação, não atribuindo a ela o status de língua e considerando-a apenas uma alternativa para os surdos que não conseguiram desenvolver a língua oral. Segundo Skliar (1997), o oralismo é considerado pelos estudiosos uma imposição social de uma maioria lingüística sobre uma minoria lingüística. Como conseqüência do predomínio dessa visão oralista sobre a língua de sinais e sobre surdez, o surdo acaba não participando do processo de integração social. Embora a premissa mais forte que sustenta o oralismo seja a integração do surdo na comunidade ouvinte, ela não consegue ser alcançada na prática, pelo menos pela grande maioria de surdos. Isso acaba refletindo, principalmente, no desenvolvimento de sua linguagem, sendo então o surdo silenciado pelo ouvinte, por muitas vezes não ser compreendido. A Libras surge, como um mecanismo de afirmação da identidade surda, identidade silenciada durante muitos anos, através da prática da oralização forçada (o surdo era ensinado a “falar” através do método da repetição e apontação). Por não dominarem a oralidade, eram excluídos dos processos educacionais e considerados inaptos para o desempenho de qualquer atividade, além de não poderem ser responsáveis pela própria vida.A descaracterização do surdo por não dominar a LIBRAS, traz sérias conseqüências no fortalecimento da comunidade surda. Quando um surdo não a domina, ele é excluído, não fortalece sua identidade de surdo e dos demais grupos que ele representa - de gênero e raça. Hoje, os movimentos para a difusão e prática da LIBRAS no campo escolar estão bem amplos – várias instituições que defendem os direitos dos surdos, organizam encontros para traçar estratégias que visem a propagação da Língua de Sinais, principalmente na televisão e escola.O reconhecimento da LIBRAS como língua e assim, como uma representação de um grupo, trouxe ganhos a comunidade surda. No entanto, se faz necessário o surdo acompanhar estes ganhos; é importante que ele estabeleça o contato com a comunidade surda, para que realize sua identificação com a cultura, os costumes, a língua e, principalmente, a diferença de sua condição. Por intermédio das relações sociais, o

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sujeito tem possibilidade de acepção e representação de si próprio e do mundo, definindo suas características e seu comportamento diante dessas vivências sociais.

3. PERSPECTIVAS PARA A FORMAÇÃO DO PROFESSOR PARA ATENDER O ALUNO SURDO

O professor é o componente principal para a formação da educação inclusiva, pois irá viabilizar na sala de aula as condições necessárias para atender todos os alunos em suas necessidades e peculiaridades. Ao discutirmos perspectivas, imagino mudanças nas formações de professores – tarefa bastante delicada nos tempos atuais, pois mesmo sendo necessária, ao se cogitar mudança de matrizes curriculares de cursos superiores de licenciatura, se estipula uma “guerra” entre diretores, coordenadores e corpo docente principalmente. Nada adianta se falar na inclusão do surdo, se o professor no seu período acadêmico, nunca ouviu falar, ou foi estimulado a pelo menos pensar no assunto. Na tentativa do oferecimento de uma educação igualitária, o educador deve primeiramente pensar como agente inclusivo, se sentir realmente à vontade para praticar a inclusão em suas aulas.Acredito não ser possível pensar a formação de professores para alunos surdos de maneira isolada, contudo essa formação plural deve ter suas conseqüências refletidas na sociedade como todo - se faz importante então, repensar a escola, a aprendizagem e a formação do professor para atender à diversidade. Sustentado na teoria Vygotskyana, enfatizo que o professor deve ser preparado para atender o desenvolvimento dos alunos, o ritmo de aprendizagem de cada um e com a clareza do seu papel de educar e desenvolver a todos. Idéia compartilhada também por Ramos (2006, p.13):

Ter como filosofia da educação a base teórica construtivista, que leva em conta às diferenças na aprendizagem dos indivíduos. Esse primeiro passo inspira todos os seguintes, porque o trabalho de inclusão só se torna possível se orientado por uma proposta teórica condizente com suas finalidades.

A escola deve ser participante da inclusão. Como um ambiente transformador, formar alunos, sensibilizar os pais para a construção de uma escola realmente para todos, onde é possível encontrar elos entre o conhecimento escolar e os conhecimentos do professor, para uma educação mais adequada para os surdos. Assim, a formação do professor deve compreender a história dos alunos surdos, suas restrições sociais, familiares e escolares as quais sempre foram submetidos, os nexos políticos com a sociedade e as formas de constituição do saber.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tema Educação Inclusiva tomou grande impulso nestes últimos anos, dado o interesse e a necessidade de pesquisas e estudos nessa área. Ao discutirmos conceitos de inclusão e exclusão, observamos que estas definições surgem principalmente através de aspectos diretamente ligados a educação: identidade de alunos e professores, funções e objetivos da escola e como se processa a preparação do aluno para o convívio em sociedade.Rediscutir o real papel da escola e a formação de professores são passos imprescindíveis para a construção de uma educação surda de qualidade. Com a divulgação da LIBRAS, a identidade surda se fortalece e o surdo possui mais um aspecto de afirmação da sua identidade, sendo necessário porém, um contato precoce com esta língua (logo que seja detectado a deficiência auditiva), para que ele entenda e se aceite como pessoa surda.

REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários a prática educativa. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 2000.MOANTOAN, Maria Teresa Ègler. Inclusão escolar caminhos e descaminhos, desafios e perspectivas. Ensaios Pedagógicos, Brasília, 2006.RAMOS, Rossana. Passos para a inclusão. São Paulo: Cortez, 2006.

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REGO, Tereza Cristina. Vygotsky – uma perspectiva histórico – cultural da educação. Petrópolis: Vozes, 1994, p.67SKLIAR, C. Uma análise preliminar das variáveis que intervêm no Projeto de Educação Bilíngüe para os Surdos. Espaço Informativo Técnico Científico do INES, Rio de Janeiro, v. 6, p. 49-57, 1997. THOMA, Adriana da Silva. LOPES, Maura Corcini. A invenção da surdez II: espaços e tempos de aprendizagem na educação dos surdos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2006.

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O FATOR LINGÜÍSTICO NA APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO COGNITIVO DA CRIANÇA SURDA

 

Por PATRÍCIA APARECIDA LEITE MOREIRA

 

RESUMO

Diante da concepção social da surdez que vem sempre acompanhada de preconceitos e estereótipos é preciso analisar o que geram tais preconceitos para buscar respostas as questões da surdez. As pessoas muitas vezes consideram os surdos como incapazes e associam a surdez com a deficiência mental, visto que o atraso na aquisição da linguagem acarreta problemas na sua aprendizagem e desenvolvimento, pois o pensamento dos surdos fica baseado em experiências concretas, havendo dificuldades de abstração. Entretanto os surdos possuem as mesmas potencialidades de desenvolvimento que as pessoas ouvintes, especialmente se tiverem acesso a um ambiente lingüístico apropriado. O presente estudo realiza uma breve reflexão sobre a importância do fator lingüístico no desenvolvimento cognitivo da criança surda. Tem por objetivo problematizar a questão do acesso a língua de sinais precocemente pelas crianças surdas como determinante para o melhor desenvolvimento das suas estruturas cognitivas. Partindo da conceituação de linguagem, desenvolvimento e aprendizagem a desenvolve a teoria sóciointeracionista relacionando com as questões da surdez. Do ponto de vista metodológico, o estudo pressupõe pesquisa bibliográfica elegendo autores como Vygotsky, Carlos Skliar, Saussure, Oliver Sacks, Marta Kohl, Ronice Quadros, Márcia Goldfeld, dentre outros que trazem discussões atuais sobre o tema. Realiza, portanto uma incursão sobre as questões relacionadas à surdez com base no aspecto da linguagem visando analises acuradas que contribuam para a compreensão da problemática em questão.

Palavras-chave: surdez – linguagem – desenvolvimento – aprendizagem – cognição.

INTRODUÇÃO

Desde os primórdios da humanidade, a surdez tem sido objeto de polêmica e incompreensão. Até hoje a surdez se constitui um desafio tanto para educadores, lingüistas, profissionais da área médica como para própria família. E a história revelou muitos conflitos no processo de compreensão da surdez que já foi considerada como maldição, loucura e patologia.

Como então podemos entender a surdez? Trata-se de uma afecção ou mesmo deficiência? Ou são os surdos apenas indivíduos diferentes, com características próprias? Há uma enorme diferença entre compreender a surdez como deficiência e compreendê-la como diferença. Aqui surge a separação de duas importantes concepções da surdez. A primeira concepção é clínico-terapêutica que entende a surdez como patologia, visando a medicalização, o tratamento, a normalização do surdo e os trata de forma assistencialista. A segunda concepção é sócio-antropológica, que entende a surdez como uma experiência visual, uma forma distinta de perceber o mundo, que tem uma maneira diferenciada de construir a realidade histórica, política e social. Essas duas concepções estão intrínsecas nas formas como os surdos são considerados pelas pessoas ouvintes.

A sociedade cria situações de exclusão deixando os surdos à margem das questões sociais tanto políticas, como culturais e educacionais. Tais situações de exclusão acontecem porque o surdo não é visto através das suas potencialidades, mas são encarados como incapazes. E essa visão que se tem dos surdos é conseqüência da incompreensão sobre a forma que os surdos vêem o mundo, bem como por associarem a surdez com a deficiência mental.

Pensar que o surdo é deficiente mental é comum devido as conseqüência do atraso na aquisição da linguagem que a maioria dos surdos sofrem. As dificuldades geradas pelo atraso na linguagem envolvem todos os aspectos da aprendizagem e do desenvolvimento cognitivo do individuo surdo. Uma dessas dificuldades é a abstração de conceitos o que prende os surdos a situações mais concretas.

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A partir de agora, faremos uma analise sobre as implicações do fator lingüístico para o desenvolvimento das funções cognitivas e aprendizagem nas crianças surdas. A principal questão é: se a criança surda tiver acesso desde cedo a língua de sinais, modalidade lingüística de que é capaz de adquirir naturalmente, seu desenvolvimento cognitivo seguirá normalmente?

Tal problemática se situa especialmente nas questões acadêmicas. Muitos surdos não têm acesso a altos níveis acadêmicos, mesmo já sendo comprovado que suas potencialidades de desenvolver competências e habilidades são as mesmas que as de pessoas ouvintes. E o que se percebe nas instituições de ensino é uma ausência de compromisso com as questões lingüísticas que cercam a vida dos surdos, permitindo que as barreiras comunicativas continuem a existir. Sabemos que existem muitos fatores que geram tais situações de falta compromisso, como as políticas educacionais do sistema. Porém é importante mudar essa realidade. Atualmente os surdos têm tomado consciência disso e tem ido a busca dos seus direitos inclusive reivindicando a formação de professores surdos.

Por isso, pensando na importância das crianças surdas terem acesso à língua de sinais desde cedo na sua educação com professores surdos ou proficientes na língua de sinais, é que, conforme salientado, o presente estudo realiza uma breve reflexão sobre o fator lingüístico, especificamente a língua de sinais, relacionado à aprendizagem e a cognição dessas crianças. Essa reflexão considera também os aspectos da identidade e cultura surda que bem como a aprendizagem e a cognição estão ligadas ao fator lingüístico.

Para tais reflexões, elegeu-se como aporte teórico o sóciointeracionismo de Vygotsky e autores como Carlos Skliar, o lingüista Saussure, Oliver Sacks, Marta Kohl, Ronice Quadros, Márcia Goldfeld dentre outros que desenvolvem analises acuradas e comprometidas contribuindo assim para a compreensão do problema apresentado. Do ponto de vista metodológico, o estudo pressupõe pesquisa bibliográfica, que exige o levantamento de pesquisas atualizadas sobre o tema, e está estruturado em dois capítulos além da introdução e por ultimo, as considerações finais.

No primeiro capítulo traz as questões do desenvolvimento cognitivo das crianças surdas partindo dos conceitos de desenvolvimento, aprendizagem e linguagem. Especialmente o conceito de linguagem é fundamental para a compreensão do fator lingüístico nas crianças surdas. O capítulo segue trazendo características do individuo surdo desde a perda auditiva até as características relacionadas à identidade e cultura surda.

O segundo capítulo destaca a teoria sóciointeracionista de Vygotsky relacionada às peculiaridades do desenvolvimento cognitivo da criança surda. Em sua teoria Vygotsky dá um destaque especial para o desenvolvimento da linguagem como fator primordial para o pensamento abstrato, e discute a relação entre pensamento e linguagem. Um outro ponto importante em sua teoria está no fator do desenvolvimento sócio-histórico do individuo e nesse aspecto é salientado a questão social do desenvolvimento da linguagem, ou seja, a criança adquire linguagem devido a sua interação com o ambiente sócio-cultural que nasceu.

A linguagem é essencial ao ser humano para o estabelecimento de vários tipos de relações, para a expressão do pensamento e a constituição da subjetividade. Vygotsky ainda faz a relação entre desenvolvimento e aprendizagem, concluindo que a aprendizagem impulsiona o desenvolvimento. E nesse ponto introduz os conceitos de zona de desenvolvimento proximal, potencial e real.

Por fim, nas considerações finais retomo os pontos mais significativos para afirmar que os problemas da surdez não se encontram no fator orgânico. Mas principalmente na questão social, devido os surdos viver em ambientes sócio-culturais que não fazem uso da língua de sinais e, sendo assim, tem atraso na aquisição da linguagem e todas as dificuldades acompanhadas dessa questão.

Retomo também a importância de se criar ambientes com condições lingüísticas favoráveis para o desenvolvimento lingüístico dos surdos, na família e na escola. Na família por se comprometerem com a aprendizagem da língua de sinais e se conscientizarem de que seu membro surdo é um ser com potencialidades. E nas escolas por buscarem cumprir os dispositivos legais através de exigências aos órgãos competentes de usarem a língua de sinais no seu contexto, mesmo sabendo que as questões lingüísticas essenciais, porém não exclusivas ao se falar de educação dos surdos.

Devido às dimensões desse trabalho, estudos posteriores podem ser desenvolvidos visando o aprofundamento de questões mais especificas como as implicações políticas na educação dos

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surdos, dentre outras. O principal é que tais reflexões deixem espaços para mudanças das atuais condições que a sociedade oferece para o desenvolvimento psico-social dos surdos.

 

1 - DESENVOLVIMENTO COGNITIVO DA CRIANÇA SURDA – A LINGUA DE SINAIS E A IDENTIDADE SURDA.

Sujeito surdo como individuo com potencialidadesCarlos Skliar

Como pode alguém viver sem ouvir? Como essa pessoa se sente? O que pensa? O que sonha? Como consegue se comunicar? Esses são questionamentos comuns de pessoas ouvintes em relação aos surdos. Essas perguntas sempre estão acompanhadas por estereotipo, ou seja, o individuo surdo é visto como incapaz de se desenvolver em alguns aspectos, especialmente nos aspectos relacionados com a linguagem e a aprendizagem. Felizmente a visão em relação ao surdo vem se modificando. Hoje existe a visão da surdez que entende o sujeito surdo como um individuo com potencialidades conforme é defendida por Skliar:

“(...) potencialidade como direito à aquisição e desenvolvimento da língua de sinais como primeira língua; potencialidade de identificação das crianças surdas com seus pares e com os adultos surdos; potencialidades de desenvolvimento de estruturas e funções cognitivas visuais; potencialidades para uma vida comunitária e de desenvolvimento de processos culturais específicos (...) (SKLIAR, 1998, p.26)”.

 

A cultura, a linguagem e o dialogo são fatores essenciais para o desenvolvimento do individuo. É justamente esta é a área comprometida no surdo. A conclusão é que as conseqüências da surdez ultrapassam as dificuldades comunicativas e atinge todas as áreas do desenvolvimento. Por isso reconhecer o surdo em todas as suas potencialidades é fundamental. O desenvolvimento lingüístico e a aprendizagem de uma língua são fundamentais para a formação da cognição.  Embora a criança surda se depare com muitas dificuldades devido aos aspectos do desenvolvimento lingüístico, suas potencialidades de desenvolvimento de estruturas e funções cognitivas são as mesmas que as das crianças ouvintes.

Para compreender o desenvolvimento cognitivo da criança surda é interessante analisar os conceitos de desenvolvimento, linguagem e aprendizagem relacionando com o contexto da surdez.

Em sentido estrito, desenvolvimento denota crescimento, progresso. Desde sua concepção o individuo humano passa por um processo de crescimento bio-psico-social que se estende ao longo de sua vida. Esse desenvolvimento está intimamente relacionado com a aprendizagem, ou seja, o processo pelo qual o individuo adquire informações, habilidades, atitudes e valores a partir de seu contato com a realidade, o meio ambiente e as outras pessoas. Nesse aspecto, a aprendizagem tem um significado que sempre envolve interação social, relacionando-se com a aquisição da linguagem e a cognição.

A aquisição da linguagem é um fator de suma importância no desenvolvimento da criança, pois essa aquisição permite sua entrada no mundo simbólico. E é a partir da sua entrada no mundo dos signos que as funções mentais superiores são operadas. Nesse sentido, uma importante noção de Vygotsky é perceber a linguagem não apenas como fator de comunicação, mas também como função reguladora do pensamento. É pela linguagem que se constitui o pensamento do individuo. Assim a linguagem está sempre presente no individuo, mesmo nos momentos que este não está se comunicando com outras pessoas. A linguagem constitui o individuo, a forma como este recorta e percebe o mundo e a si próprio.

A aquisição da linguagem se dá através de canais sensoriais, sendo a audição um canal sensorial de extrema importância. Por isso a perda auditiva interfere na aquisição da linguagem e em praticamente todas as dimensões do desenvolvimento da criança. Significa, então, que a criança surda apresentará dificuldades e déficits na sua aprendizagem e desenvolvimento cognitivo e por não adquirir a linguagem?

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Não necessariamente, pois a linguagem não se resume apenas à modalidade auditiva oral que necessita do canal sensorial da audição para ser adquirida, mas é um aspecto muito mais abrangente e as crianças surdas desenvolvem a linguagem, porém numa modalidade diferente da linguagem dos ouvintes. Por isso é importante compreender o que é linguagem para especificar bem essa questão.

Entende-se por linguagem tudo quanto serve para expressar idéias, sentimentos, modos de comportamento. Linguagem também é todo sistema de signos que serve de meios de comunicação entre indivíduos e pode ser percebido pelos diversos órgãos do sentido, o que leva a distinguir-se uma linguagem visual, uma linguagem auditiva, uma linguagem tátil, etc.

Embora a audição seja o canal importante na aquisição da linguagem, não é o único. A linguagem pode ser percebida pelos diversos órgãos do sentido e por isso distinguimos linguagem oral e linguagem visual. A criança surda não pode adquirir uma linguagem oral, mas o sentido da visão lhe permite a aquisição de um tipo especifico de linguagem visual, a linguagem de sinais.

1.1 - A LÍNGUA DE SINAIS NO CONTEXTO DO DESENVOLVIMENTO LINGUISTICO DOS SURDOS.

A linguagem de sinais é uma linguagem especifica, cinematográfica pictórica, pois utiliza a visão para captar a mensagem e movimentos, principalmente das mãos, para transmitir as mensagens. Atualmente as linguagens de sinais possuem status lingüístico, ou seja, são reconhecidas como línguas. Então corretamente falando, não se trata de uma linguagem de sinais, mas de uma língua de sinais. Por que língua e não linguagem? Há distinção entre língua e linguagem?

Língua é o conjunto de palavras e expressões usadas por um povo, e o conjunto de regras da sua gramática. Para o lingüista Saussure a linguagem é formada pela língua, pois esta ultima é tida como um sistema da regras abstratas, ou seja, a língua é o aspecto social da linguagem, já que é compartilhada por todos os falantes de uma comunidade lingüística. Língua também é um conjunto de significações humano que usa de códigos finitos para representar um sem numero de significados, como é o caso do alfabeto latino usado pela língua portuguesa.

Relacionando as línguas orais com as línguas de sinais temos a fala e o sinal. A fala é ação ou faculdade de falar, aquilo que se exprime por palavras e sinal é tudo que faz lembrar ou representar uma coisa, um fato ou um fenômeno presente, passado ou futuro; é a demonstração exterior do que se pensa, do que se quer; e, especificamente, que se aplica ainda mais ao contexto lingüístico, sinal é traço ou conjunto de traços que tem sentido convencional. É comum a confusão de que a língua de sinais é simples gestos ou mera mímica. Gestos são movimentos do corpo, especialmente da cabeça e dos braços, para exprimir idéias, são espontâneos e naturais. Por outro lado à mímica é a arte de imitar, de exprimir o pensamento por meio de gestos, é pura imitação. E o sinal, especialmente aqueles usados pelas línguas sinalizadas, ou seja, com contexto lingüístico, é convencional, tem significado combinado por um grupo social e enquadra-se na definição de língua por Saussure quanto ao aspecto social que o sinal desempenha na comunidade lingüística dos surdos.

É cientificamente comprovado que o ser humano possui dois sistemas para a produção e reconhecimento da linguagem: o sistema sensorial que faz uso da anatomia visual / auditiva e vocal, característica das línguas orais, e o sistema motor que faz uso da anatomia visual e da anatomia da mão e do braço que caracteriza as línguas de sinais. Essa é considerada a língua natural dos surdos, emitida através de sinais e com estrutura sintática própria. Na aquisição da linguagem, os surdos utilizam o sistema motor porque apresentam o sistema sensorial (audição) seriamente prejudicado. Assim, sinal é a língua natural do surdo e, no aspecto funcional, é igual à fala para o ouvinte, pois possui sintaxe, gramática e semântica completas que permite desenvolver a expressão de emoções e articulação de idéias.

Até pouco tempo apenas às línguas orais, ou seja, as línguas produzidas pelo aparelho fonador articulador e compreendidas através da audição, tinham status lingüísticos. Na década de sessenta William Stokoe começou um estudo sobre as línguas de sinais onde concluiu que as línguas sinalizadas apresentavam os mesmos elementos das línguas orais e demonstrou que sinal é um sistema lingüístico complexo, com léxico, gramática e sintaxe espacial e tridimensionais.  Segundo Sacks, os complexos esquemas espaciais do sinal na língua de sinais fazem com que os objetos e fenômenos estejam situados em um contexto esquemático de relações e localizações específicas que constituem sua gramática própria, ou seja, os surdos fazem o uso lingüístico do espaço (SACKS, 1990).

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No Brasil, em 2002, a língua de sinais adquire status lingüístico com a sanção da Lei nº 10.436.

“É reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais – Libras e outros recursos de expressão a ela associados” (art. 1º).

E é compreendida como

“... forma de comunicação e expressão, em que o sistema lingüístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constitui um sistema lingüístico de transmissão e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil” (Parágrafo único.).

Diante dessas questões, pode-se concluir que o portador de surdez tem as mesmas possibilidades de desenvolvimento lingüístico que a pessoa ouvinte, precisando, somente, que tenha suas necessidades comunicativas supridas.

Após as definições dos conceitos de desenvolvimento, aprendizagem e linguagem, essenciais para compreensão dos conteúdos que serão abordados, é possível iniciar análises sobre a importância da língua de sinais, que é legalmente reconhecida, no desenvolvimento lingüístico e global da criança surda, com o objetivo de refletir sobre a necessidade da criança surda ter acesso à língua de sinais como subsidio lingüístico fundamental para o seu desenvolvimento cognitivo satisfatório.

1.2 - CARACTERIZANDO O SUJEITO SURDO: DA PERDA AUDITIVA À IDENTIDADE E CULTURA SURDA

A influência da surdez sobre o individuo mostra características particulares no seu desenvolvimento biológico, psicológico e social. Sem duvida a comunicação é o alicerce da vida do indivíduo em todas as suas manifestações como ser social. E por muito tempo se acreditou que a surdez acarretasse problemas intelectuais e de ajustamento na sociedade. Para analisar essas questões é importante caracterizar o sujeito surdo desde a perda auditiva que consiste na necessidade do uso da língua de sinais, até aspectos pertinentes a sua identidade ou, como se tem discutido atualmente, a cultura surda.

A surdez consiste na perda maior ou menor da percepção normal dos sons. A audição é geralmente medida e descrita em decibéis (dB), uma medida relativa da intensidade do som. A audição normal é representada por zero decibéis e a perda auditiva de até vinte e cinco decibéis não é considerada uma deficiência significativa. Quanto maior o número de decibéis necessários para que uma pessoa possa responder ao som, maior a perda auditiva. Diante do exposto, existe vários tipos de pessoas com surdez, de acordo com os diferentes graus de perda auditiva.

Pela área da saúde e educacional, o individuo com surdez pode ser considerado parcialmente surdo ou surdo. O individuo parcialmente surdo ou com deficiência auditiva são pessoas com surdez leve e moderada. A surdez leve apresenta a perda auditiva entre vinte e sete a quarenta decibéis que impede o individuo perceber sons distantes e os fonemas das palavras, mas não impede a aquisição normal da língua oral. A pessoa com surdez moderada apresenta perda auditiva entre quarenta e um a setenta decibéis ocasionando atraso de linguagem e alterações articulatórias. Já individuo considerado surdo é aquele com surdez severa e profunda. A surdez severa apresenta perda auditiva entre setenta e um a noventa decibéis e o individuo consegue ouvir apenas sons próximos. E por fim a surdez profunda é a perda superior a noventa e um decibéis privando o individuo de informações auditivas necessárias para perceber e identificar a voz humana, impedido-o de adquirir a língua oral, nesse caso fazendo-se necessário o uso da língua de sinais.

Esse trabalho direciona a analise do desenvolvimento lingüístico e cognitivo das crianças com surdez profunda, ou seja, que necessitam da língua de sinais como meio de comunicação e, portanto possui características próprias no seu desenvolvimento global e na sua aprendizagem.

Os indivíduos adultos com surdez profunda consideram que o termo “surdo” não se refere simplesmente a pessoas com perda auditiva, mas sim ao contexto de serem um grupo que se comunica essencialmente pela experiência visual percebendo o mundo através dessas experiências e opta por utilizar a língua de sinais, valorizando a cultura e a comunidade surda.

A história revela conflitos no processo de compreensão da surdez considerada como maldição, loucura ou patologia. A visão da sociedade ouvinte sobre a surdez é geralmente associada à afecção ou doença, e muitas vezes relacionam a surdez com a deficiência mental. Essa visão patológica da

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surdez pela sociedade ouvinte gera condições de exclusão e discriminação, colocando os surdos à margem do mundo social, político, econômico, educacional e cultural. Tal exclusão impede os surdos de exercerem sua cidadania e os impõe as determinações dos ouvintes sobre questões educacionais e sobre sua integração no mercado de trabalho, nunca considerando o crescimento e auto-realização da pessoa surda nas dimensões morais, intelectuais e espirituais.

A surdez ainda esta associada à experiência de falta, a deficiência. A própria idéia de deficiência denota desvantagem que o individuo deve suportar e nesse sentido o surdo deve suportar uma desvantagem na sua relação com o mundo circundante, ou com o mundo ouvinte. Skliar salienta a importância de se “optar pelo caminho em que a surdez é vista como uma diferença política e uma experiência visual e, assim, pensarmos as identidades surdas a partir do conceito de diferença, e não de deficiência (...) A surdez como diferença nega uma atribuição puramente externa do ser surdo a uma característica marcante, como, por exemplo, não ouvir” (SKLIAR, 2000, p. 20).

Percebida e aceita a surdez como diferença o individuo surdo deve ser compreendido mais claramente em suas angustias, expectativas e demandas individuais e sociais. As barreiras comunicativas criam uma incompreensão das estruturas mentais do surdo embora se saiba que a pessoa surda é capaz de ter um desenvolvimento cognitivo compatível e aprender habilidades como qualquer ouvinte. A ênfase não deve ser dada à falta / deficiência da audição, mas a dimensão lingüística e cultural, ou seja, na diferença, porque nela se baseia a essência psico-social da surdez. O surdo não é diferente porque não ouve, mas porque desenvolve potencialidades psicológicas e culturais diferentes das dos ouvintes, baseadas na experiência visual que envolve uma diferença na questão de significado ou de formas de ser surdo e formas de ser ouvinte. A pessoa surda é alguém que vivencia a falta da audição num mundo de sons que a impede de adquirir naturalmente a língua oral usada pela comunidade majoritária e que constrói sua identidade baseada nessa diferença, utilizando estratégias cognitivas, comportamentais e culturais diferentes da maioria dos ouvintes.

A opressão vivenciada pelos surdos ao longo da historia conduz a questionamentos a cerca da sua identidade. Quando se questiona quem sou eu, há uma busca de referência no outro que me nomeou, neste sentido, nos ouvintes, se colocando numa situação de carência ou subordinação. Por outro lado no momento que os surdos se perguntam à cerca de sua identidade, o pouco sentido da pergunta encontra excesso de sentido na resposta. O excesso de sentido na resposta sobre a identidade dos surdos atualmente tem gerado muitas discussões e estudos. A identidade dos surdos é o conjunto de traços que os distinguem dos ouvintes representada por uma cultura especifica resultante das interações entre os surdos. Miranda mostra a importância dessas interações na construção da subjetividade e identidade dos surdos:

“Considerando que a cultura surda mostra uma nostalgia curiosa em relação a uma comunidade imaginária e que é barbaramente ou profundamente transformada, senão destruída no contato com a cultura hegemônica, ela age como reguladora da formação da identidade surda, que se reaviva novamente no encontro surdo-surdo. Este encontro é um elemento chave para o modo de produção cultural ou de identidade, pois implica num impacto na vida interior, e lembra da centralidade da cultura na construção da subjetividade do sujeito surdo e na construção da identidade como pessoa e como agente pessoal” (MIRANDA, 2001).

No sentido aqui abordado, cultura é a forma global de vida ou a experiência vivida de um grupo social, “é definida como um campo de forças subjetivas que se expressa através da linguagem, dos juízos de valor, da arte, das motivações etc., gerando a ordem do grupo, com seus códigos próprios, suas formas de organização, de solidariedade” (SÁ, 2006, p. 110).

A cultura surda não é simplesmente determinada pelo que os surdos fazem juntos e de que maneira distinta fazem isso, ao contrario, a cultura dos surdos é entendida como um campo de lutas entre diferentes grupos sociais, em torno da significação do que sejam surdez e os surdos no contexto social global. E vai além desse aspecto, pois a cultura dos surdos é determinada pela experiência de vida.

“Essa cultura é multifacetada, mas apresenta características que são especificas, ela é visual, ela traduz-se de forma visual. As formas de organizar o pensamento e a linguagem transcendem as formas ouvintes. Elas são de outra ordem, uma ordem com base visual e por isso tem características que podem ser ininteligíveis aos ouvintes. Ela se manifesta mediante a coletividade que se constitui a partir dos próprios surdos” (QUADROS, 2002).

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O surdo percebe o mundo de forma diferenciada dos ouvintes, através de uma experiência visual e faz uso de uma linguagem especifica para isso, a língua de sinais. A língua de sinais é antes de tudo imagens do pensamento dos surdos e faz parte da experiência vivida da comunidade surda. Como artefato cultural, a língua de sinais também é submetida à significação social a partir de critérios valorizados, sendo aprovada como sistema de linguagem rica e independente. Um outro aspecto importante da cultura dos surdos é a adoção de uma ética da vida em seus comportamentos, pois para os surdos, o que valida a ação é se ela atende ou não aos objetivos e necessidades básicas da vida, ou seja, sobrevivência, prazer e saciação.

Concluímos que a cultura surda refere-se aos códigos próprios dos surdos, suas formas de organização, de solidariedade, de linguagem, de juízos de valor, de arte, etc. Os surdos constituem grupos sociais que têm interesses, objetivos, lutas e direitos em comum, e ainda terão de lutar por muito tempo para mudar a visão social ouvinte da surdez e, sobretudo para exercer plenamente sua cidadania e liberdade de decidir. Daí a importância da formação consciente das crianças surdas, que a partir do acesso a sua língua natural terá possibilidades distintas no seu desenvolvimento global, equipando-se para a busca da sua cidadania.

2 - PECULIARIDADES DO DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA SURDA: SOCIOINTERACIONISMO E A SURDEZ

É precisamente a alteração da natureza pelos homens, e não a natureza como tal, que constitui a base essencial e imediata do pensamento humano.

Friedrich EngelsDialética da Natureza

Estudiosos e pesquisadores da surdez acreditam que os surdos passam por muitas dificuldades no decorrer de suas vidas, tanto no aspecto social como no psicológico e acadêmico. Consideram que tais dificuldades estão diretamente relacionadas com a questão do desenvolvimento lingüístico, porque ao sofrer um atraso de linguagem, mesmo aprendendo tardiamente uma língua, a criança surda sempre terá conseqüências como problemas emocionais, sociais e cognitivos, pois só com a linguagem simbólica é possível operar funções mentais superiores e o atraso na aquisição da linguagem produz retardo no desenvolvimento cognitivo. Esta relação entre desenvolvimento lingüístico e cognição coloca o conceito de linguagem além da função comunicativa, mas também como função de regular ou organizar o pensamento, assumindo a linguagem um papel essencial para o desenvolvimento cognitivo.

A abordagem que estuda a linguagem sob a óptica social que influencia no desenvolvimento do individuo é a psicologia socio-interacionista de Vygotsky.

Vygotsky desenvolveu seu estudo baseado na relação entre pensamento e linguagem pesquisando essas funções em suas origens. Levantou questões sobre a aquisição da linguagem, colocando o individuo num contexto social e histórico, bem como faz a relação entre o desenvolvimento e aprendizagem. Essas questões conduzem a aspectos complexos sobre a compreensão dos processos de aquisição da linguagem por crianças surdas e especialmente sobre o seu desenvolvimento cognitivo e sua aprendizagem.

No decorrer do texto será descrito a psicologia sóciointeracionista de Vygotsky, com enfoque principal nas questões relacionadas à aquisição da linguagem como embasamento teórico para paralelamente refletir e analisar as conseqüências cognitivas, acadêmicas, e sociais sofrida pelas crianças surdas em decorrência do atraso na aquisição da linguagem devido essas crianças não terem acesso espontâneo e precoce à língua de sinais, a modalidade lingüística de que é capaz de adquirir naturalmente. 

2.1 - LINGUAGEM E PENSAMENTO NO SOCIOINTERACIONISMO DE VYGOTSKY

A psicologia experimental de Vygotsky ao descrever o processo de desenvolvimento com bases biológicas e culturais da cognição humana, desvenda as relações entre linguagem e pensamento. Essa relação entre a linguagem e o pensamento orienta na investigação da capacidade da criança de produzir a cognição como uma construção resultante das interações entre o aparato biológico e o meio físico e social a partir de uma experiência sócio-histórica.

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Seu conceito sobre mediação simbólica é importante para a compreensão da origem e do processo de desenvolvimento da linguagem e do pensamento. Vygotsky dedicou-se ao estudo das funções mentais superiores, ou seja, os mecanismos psicológicos mais complexos típicos do ser humano. Apenas o homem possui o pensamento abstrato ou é capaz de pensar em objetos ausentes, imaginar eventos, planejar ações. Essa atividade psicológica acontece através da mediação, sendo o principal elemento de mediação os signos. Neste sentido a relação entre o homem e o mundo não acontece de forma direta, mas mediada por sistemas simbólicos, sendo a linguagem, uma construção cultural da humanidade, o sistema simbólico básico das sociedades e o principal aspecto para a construção da cognição humana.

Passar das percepções sensoriais da interação com o meio físico e social para as idéias abstratas exige a linguagem, que desempenha duas funções básicas:

“A principal função é a de intercâmbio social: é para se comunicar com seus semelhantes que o homem cria e utiliza os sistemas de linguagem (...). Para que a comunicação com outros indivíduos seja possível de forma sofisticada,... é necessário que sejam utilizados signos, compreensíveis por outras pessoas, que traduzam idéias, sentimentos, vontades, pensamentos, de forma bastante precisa. (...) É esse fenômeno que gera a segunda função da linguagem: o de pensamento generalizante. A linguagem ordena o real, agrupando todas as ocorrências de uma mesma classe de objetos, eventos, situações, sobre uma mesma categoria conceitual” (KOHL, 1997, p. 42-43).

A primeira função da linguagem é de comunicação ou intercâmbio social, pois é a necessidade de comunicação que impulsiona inicialmente o desenvolvimento da linguagem. A segunda função da linguagem é organizar o pensamento e a atividade mental, pois a linguagem ordena o real, constituindo a mediação entre o sujeito e o objeto do conhecimento.

O desenvolvimento da linguagem e do pensamento tem origens diferentes até ocorrer uma estreita ligação entre esses dois fenômenos. Assim, existe uma trajetória da linguagem independente do pensamento, considerada como fase pré-intelectual do desenvolvimento da linguagem, e a trajetória do pensamento desvinculado da linguagem, ou seja, a fase pré-verbal do desenvolvimento do pensamento. Num determinado momento do desenvolvimento da criança essas duas trajetórias se unem dando inicio a uma nova forma de funcionamento psicológico em que a linguagem se torna racional, com função simbólica, generalizante e o pensamento verbal, mediado por significados dados pela linguagem. Vygotsky encontrou nos significados dados pela linguagem (expresso por palavras) a unidade pertencente tanto à linguagem quanto ao pensamento sendo, portanto que, no significado da palavra, a linguagem e o pensamento se unem.

“O significado da palavra é um fenômeno de pensamento na medida em que o pensamento ganha corpo por meio da fala, e só é um fenômeno da fala na medida em que esta é ligada ao pensamento, sendo iluminada por ele. É um fenômeno do pensamento verbal, ou da fala significativa, uma união da palavra e do pensamento” (VYGOTSKY, 1989, p. 104).

Uma noção importante de Vygotsky é de que o processo de aquisição da linguagem pela criança segue o sentido do exterior para o interior, ou seja, do meio social para o individuo. Isso marca a importância das relações sociais e lingüísticas no desenvolvimento da criança. Nas palavras de Vygotsky:

“A natureza do próprio desenvolvimento se transforma do biológico para o sócio-histórico. O pensamento verbal não é uma forma de comportamento natural e inato, mas é determinado por um processo histórico cultural e tem propriedades e leis específicas” (VYGOTSKY, 1989, p. 44).

Dada a importância das relações sociais e lingüísticas no desenvolvimento da criança, os casos de atraso de linguagem pode também ser analisado sobre a óptica do meio social. Especificamente nas crianças surdas, os problemas comunicativos, e conseqüentemente as questões relacionadas à cognição, não tem origem na própria criança, mas no meio social em que ela está inserida, que freqüentemente não é adequado, pois não utiliza a língua que essas crianças tenham condições de adquirir naturalmente, que é a língua de sinais.

Transitar das experiências sensoriais para conceitos abstratos exige linguagem. Durante seu desenvolvimento, a criança adquire inconscientemente informações lingüísticas pelo uso das palavras. A criança surda, por está no meio social que faz uso da língua oral, é privada de informações lingüísticas. A dificuldade de acesso a um código simbólico ou a sua língua natural, mantém sua atividade cognitiva orientada pelas percepções dos outros órgãos do sentido

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produzindo um tipo de pensamento mais concreto, já que é por meio da linguagem que ela pode desvincular-se cada vez mais do concreto e internalizar conceitos abstratos.

Devido a esse pensamento concreto, as pessoas ouvintes sempre consideraram os surdos como incapazes intelectualmente ou relacionam a surdez com a deficiência mental. Os surdos que não adquirem uma língua têm dificuldades de perceber as relações e o contexto mais amplo das atividades em que está inserido. Embora se saiba que as dificuldades cognitivas desses surdos são conseqüências do atraso na linguagem ainda percebe-se situações em que o surdo é tratado com incapaz. É importante que a sociedade ofereça condições dignas de sobrevivência para os surdos, começando por criar ambientes que permitam o desenvolvimento dos surdos em todas as suas potencialidades.

2.2 - AQUSIÇÃO DA LINGUAGEM, DESENVOLVIMENTO COGNITIVO E A CRIANÇA SURDA.

A aquisição da linguagem oral pela criança ouvinte é um processo natural que ocorre como se não existissem regras ou etapas. Porém, sabe-se hoje que este é um processo longo e gradativo que vai se desenvolvendo pouco a pouco numa seqüência que chega a linguagem constituída.

O processo de aquisição da linguagem é evolutivo e começa por uma etapa motora manifestada pelos primeiros sons emitidos pelo bebê, ainda sem nenhuma intenção de comunicação. A partir da interação com o meio em que está inserido, essas manifestações vão adquirindo significado conferidos pela mãe, por exemplo, quando o bebê chora é amamentado, criando um significado de fome para o choro. A partir do momento que o bebê compartilha desses significados, suas ações motoras passam a ter uma função comunicativa. Tanto bebês ouvintes como bebês surdos apresentam essa capacidade comunicativa no sentido de decodificar tais sinais significativos, os ouvintes pela audição e os surdos pela visão.

A criança começa a desenvolver a própria fala a partir da fala do adulto que estimula a comunicação e o desenvolvimento intelectual. Vygotsky pontua que o inicio do desenvolvimento cognitivo é interpsíquico, pois surge da relação entre o psiquismo do adulto e da criança. Nesse processo a compreensão do que é falado e do que acontece à volta da criança ocupa um importante papel, pois primeiro ela entende as situações para depois ser capaz de expressar-se oralmente.

Por volta dos dois anos a criança começa a utilizar a fala social como função de comunicação, aumentando a complexidade e a internalização das estruturas lingüísticas. É importante considerar que a idade de aquisição do Sinal da língua de sinais para a criança surda tanto quanto da fala nas línguas orais para a criança ouvinte, interfere na fluência e na gramática.

O processo de internalização em que a criança passa a substituir a fala do adulto na realização de tarefas por sua própria fala, denominado de fala egocêntrica, é quando a criança fala alto para si mesma independente da presença de interlocutores. Segundo Marta Kohl “a fala egocêntrica acompanha a atividade da criança, começando a ter uma função pessoal, ligada às necessidades do pensamento. É utilizada como apoio ao planejamento de seqüências a serem seguidas, como auxiliar na solução de problemas” (KOHL, 1997, p. 52). A fala egocêntrica diminui gradativamente, cedendo lugar para a fala interior que é basicamente uma cadeia de significados, de generalizações. Nessa etapa a criança não precisa mais da do auxilio da verbalização para organizar as suas atividades, ela as planeja internamente, utilizando o pensamento verbal.

A aquisição da linguagem provoca um padrão de desenvolvimento cognitivo que no caso das crianças surdas é com base principalmente nas experiências sensoriais da visão. Toda a cognição é determinada pela linguagem e nesse sentido percebe-se o quanto à criança surda que sofre atraso na aquisição da linguagem fica em desvantagem em relação às crianças que adquirem a linguagem naturalmente. Aqui surgem questões relacionadas aos seus pensamentos: organizam de forma diferente? Há o desenvolvimento das falas egocêntrica e interior? A linguagem assume todas as suas funções?

Muitas pesquisas evidenciaram que crianças surdas procuram criar e desenvolver alguma forma de linguagem, mesmo não sendo expostas a nenhuma língua de sinais. Essas crianças desenvolvem espontaneamente um sistema de gesticulação manual, simbolizando e conceituando, pois convivem socialmente, interagem e se comunicam de alguma forma. Entretanto há uma diferença, pois a falta de acesso a uma língua estruturada diminui a qualidade e quantidade de informações, levando o surdo a compreender e expressar assuntos do contexto vivenciado no momento.

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Há pesquisas que também tratam da linguagem egocêntrica (linguagem egocêntrica substituindo fala egocêntrica) das crianças surdas. Em brincadeiras, as crianças surdas emitem sinais característicos da linguagem egocêntrica como tempo de reação, articulação silenciosa dos lábios, expressões corporais e mímica oro-facial. Portanto, a criança surda organiza seu pensamento a partir dos signos criados para comunicar-se com a família.

“A criança surda possui fala egocêntrica na mesma proporção que desenvolve sua fala social, em outras palavras, o instrumental lingüístico que a criança surda domina socialmente será utilizado também para pensar, mas se a criança não se desvincula do ambiente concreto ela não terá condições favoráveis de desenvolver as funções organizadora e planejadora da linguagem satisfatoriamente” (GOLDFELD, 2002, p. 63).

É importante considerar também que a criança surda com atraso na linguagem possui menos elementos para desenvolver a fala egocêntrica e interior, não se referindo apenas a quantidade de vocábulos que a criança domina, mas também ao grau de generalização das palavras.

2.3 - DESENVOLVIMENTO, APRENDIZAGEM E A SURDEZ.

Vygotsky analisa ainda as relações entre desenvolvimento e aprendizagem, enfatizando a importância dos processos de aprendizagem. A aprendizagem não é um dos processos de desenvolvimento, mas é um aspecto necessário do processo de desenvolvimento das funções psicológicas. Isso não quer dizer que a aprendizagem de determinado conteúdo é que irá impulsionar o desenvolvimento de determinadas funções mentais, pois conforme Vygotsky diz:

 “A mente não é uma rede de capacidades gerais como observação, atenção, memória, julgamento etc., mas um conjunto de capacidades específicas, cada uma das quais, de alguma forma, independe das outras e se desenvolve independentemente. O aprendizado então é a aquisição de capacidades especializadas para pensar sobre varias coisas” (VYGOTSKY, 1989b, p. 93).

Existe ainda um percurso do desenvolvimento que é definido pela maturação do organismo, entretanto a aprendizagem é que possibilita processos internos de desenvolvimentos determinados pelo contato do individuo com o meio físico, social e cultural. O ser humano cresce num ambiente social e a interação com outras pessoas é essencial ao seu desenvolvimento, que ocorre a partir de situações propícias a aprendizagem. Marta Kohl exemplifica isso da seguinte maneira:

“Uma criança normal que crescesse em um ambiente exclusivamente formado por surdos-mudos não desenvolveria a linguagem oral, mesmo que tivesse todos os requisitos inatos necessários para isso. Fenômeno semelhante ocorre com os vários casos das chamadas “crianças selvagens”, que são crianças encontradas em isolamento, sem contato com outros seres humanos. Mesmo em idade superior à idade normal para a aquisição da linguagem, não havia aprendido a falar. O desenvolvimento fica impedido de ocorrer na falta de situações propícias ao aprendizado” (KOHL, 1997, p. 57).

O outro social tem papel importante no desenvolvimento do individuo e a aprendizagem liga o desenvolvimento à relação com o ambiente sócio-cultural, pois o desenvolvimento não segue o fator biológico natural, mas está relacionado intimamente com as formas sócio-históricas que a criança está exposta. A aprendizagem da criança passa por um momento interpsíquico, através das relações da criança com as pessoas no ambiente que vive. Esse momento corresponde ao nível de desenvolvimento potencial, ou seja, a capacidade da criança de resolver problemas, mas com a orientação do outro. Um segundo momento da aprendizagem é intrapsíquico, que ocorre após a internalização, correspondendo ao nível de desenvolvimento real ou nível de desenvolvimento das funções mentais da criança que se estabeleceram como resultado de etapas de desenvolvimento já alcançadas, que está relacionado aos problemas ou tarefas que a criança é capaz de realizar sozinha. Aqui entra um conceito importante da teoria de Vygotsky, o conceito de zona de desenvolvimento proximal definida como “a distancia entre o nível de desenvolvimento real e o nível de desenvolvimento potencial (...), define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão presentemente em estado embrionário. Essas funções poderiam ser chamadas de “brotos” ou “flores” do desenvolvimento, ao invés de frutos do desenvolvimento” (VYGOTSKY, 1989b, p. 97).

A aprendizagem está associada ao ambiente social que a criança vive e por iniciar-se pelas relações interpessoais, necessita, na maioria das vezes, da linguagem. Então, obviamente, o atraso na aquisição da linguagem causa atraso na aprendizagem e no desenvolvimento que é direcionado e

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impulsionado pela aprendizagem. Mais uma vez percebe-se a desvantagem do surdo que sofre atraso na aquisição da linguagem. Por não ter acesso a conceitos, sua aprendizagem é difícil e o seu desenvolvimento segue por caminhos diferentes das crianças ouvintes. Vygotsky afirmou que a surdez é a deficiência que causa maiores danos ao individuo porque atinge exatamente a linguagem que está associada à aprendizagem e, por extensão, ao desenvolvimento.

As dificuldades dos surdos ocorrem basicamente pelo fato de viverem em ambientes que utilizam as línguas orais-auditivas e a falta da audição lhes impossibilitam de adquiri-la espontaneamente. Entretanto, as pessoas surdas desenvolveram, como já salientado, uma língua de modalidade viso-motora que possibilita sua comunicação e, certamente, desempenha também a função generalizante e organizadora o pensamento. Portanto, podemos concluir que a dificuldade do surdo não é de base orgânica, mas conforme comentado anteriormente, tem base no fator social que não utiliza a modalidade lingüística da qual o surdo tem possibilidades de adquirir naturalmente. Por isso podemos pensar que se as crianças surdas que nascerem e crescerem num ambiente em que as pessoas utilizem a língua de sinais para se comunicar, terão por conseqüência, uma situação do ambiente sócio-cultural propícia para a aquisição espontânea da linguagem e extensivamente possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento global.

Goldfeld cita um caso descrito por Sacks de uma ilha em Massachusetts, que tinha uma população com vinte e cinco porcento de surdos, devido a uma mutação genética. Praticamente todas as famílias dessa ilha tinham um membro surdo e por isso toda a comunidade aprendeu a língua de sinais. Esses surdos tiveram um acesso natural a sua língua e por isso desenvolveram suas capacidades intelectuais normalmente e realizavam atividades como todos os ouvintes da comunidade (GOLDFELD,2002, p. 82-83).

Percebemos, então que a surdez não deveria prejudicar a aprendizagem e o desenvolvimento da criança, e muito menos deveria ser encarada como uma deficiência que incapacita o individuo. Essas são características culturais da sociedade ouvinte que conduz a discriminação e marginalização dos surdos. O acesso natural à língua de sinais proporciona a aprendizagem e o desenvolvimento por caminhos também naturais. Vygotsky concluiu que as crianças surdas deveriam ter acesso à língua de sinais da mesma forma que as crianças ouvintes, ou seja, de forma natural, espontânea, seguindo as mesmas etapas. Isso poderá acontecer se a criança surda viver num ambiente em que as pessoas que convivem com ela utilizem a língua de sinais, neste caso em especial, a família e a escola.

2.4 - A SURDEZ NO CONTEXTO DA FAMILIA E DA EDUCAÇÃO

O primeiro grupo social que recebe a criança surda é a família. A espera de um bebê gera expectativas que na descoberta da surdez causa uma situação de luto, pois as expectativas se destroem. Os pais demoram de aceitar a surdez do filho, negando-a, devido à condição de preconceito. Por isso é importante conscientizar a família de que essa criança é não é apenas surda, mas alguém com características próprias, com uma perda auditiva, um individuo como qualquer outro. A situação é agravada, no decorrer do desenvolvimento da criança, pelas barreiras comunicativas.

Como vimos, é importante para o desenvolvimento global da criança surda que ela tenha acesso à língua de sinais no ambiente social que ela vive, especialmente o ambiente familiar e também o escolar. Como maioria das crianças surdas nasce em famílias de pais e irmãos ouvinte, muitas vezes existe a ausência de compromisso quanto à atenção sobre o desenvolvimento lingüístico dessa criança na modalidade da língua de sinais. Essa ausência de compromisso é evidenciada justamente pela não criação, no ambiente familiar, de situações lingüísticas apropriadas para a criança surda ter acesso natural à língua de sinais da qual ela tem possibilidades de adquirir. Essas famílias muitas vezes desenvolvem meios de comunicação através de sinalizações simples, não convencionais, criados por eles mesmos numa espécie de gestos caseiros que servem apenas para resolver problemas da vida diária na casa. O não acesso aos sinais convencionais da língua de sinais prende a criança as questões do momento, ou seja, do aqui agora, diminuindo suas potencialidades de abstração.

Essa situação se agrava, pois nos outros ambientes sociais que a criança surda freqüenta oferece as mesmas condições. Um desses ambientes que merece destaque é a escola que é diretamente responsável pela aprendizagem sistemática de conteúdos sociais importante no desenvolvimento intelectual da individuo. O quadro que se apresenta atualmente sobre a educação escolar dos surdos peca no sentido lingüístico. Muitos professores de surdos não conhecem a língua de sinais e por isso as estratégias de ensino-aprendizagem ficam prejudicadas. Então, é importante pensar nas atuais

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propostas de educação para os surdos e por extensão, nas políticas de inclusão dos surdos na rede regular de ensino.

O desenvolvimento acadêmico dos surdos tem sido um objeto de preocupação dos educadores. Determinações constitucionais prevêem organização especial de currículos, desenvolvimento de métodos técnicas e recursos educacionais, além de professores especializados e capacitados. Em particular a questão da surdez, trata-se de promover a adequação das ações educacionais a realidade lingüística dos surdos que tem ou deveria ter a língua de sinais como primeira língua. Isso implica na necessidade de uma educação bilíngüe, em escolas inclusivas ou especializadas, com aulas em língua de sinais. Tais ações estão respaldadas, além da Constituição e entre outras, na Lei de Libras nº 10.436/2002 que reconhece a língua de sinais como sistema lingüístico.

Desde a década de noventa a inclusão escolar de alunos portadores de deficiência vem sendo discutida e apresentada como um grande desafio para a educação brasileira. As atuais políticas nacionais de inclusão escolar estão baseadas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação da Brasil (LDB, Lei 9394/1996) que define Educação Especial como modalidade escolar para educandos “portadores de necessidades especiais”, preferencialmente na rede regular de ensino (capitulo V, artigo 58). Com o movimento mundial que busca educação de qualidade para todos por meio da Declaração de Salamanca, defende o principio da inclusão através do reconhecimento das necessidades de uma escola para todos, que celebra as diferenças, apóia as aprendizagens e responde as necessidades individuais. O interessante é que, conforme Quadros, a Declaração de Salamanca algumas linhas de ações especifica buscando reconhecer as diferenças, entre elas, a educação de surdos que devem ter um atendimento especifico:

“As políticas educativas deverão levar em conta as diferenças individuais e as diversas situações. Deve ser levada em consideração, por exemplo, a importância da língua de sinais como meio de comunicação para os surdos, e ser assegurado a todos os surdos acesso ao ensino da linguagem dos sinais do seu país. Face às necessidades especificas de comunicação de surdos e de surdos-cegos, seria mais conveniente que a educação lhes fosse ministrada em escolas especiais ou em classes ou unidades especiais nas escolas comuns” (Declaração de Salamanca, 1994. Linha de Ação Declaração, capitulo II, artigo 21).

Embora a Declaração de Salamanca considere a questão de língua, aspecto mais peculiar na educação dos surdos, ainda assim, a língua é apenas mencionada através de recomendações e não a viabilização e inserção de um ensino que tenha a língua de sinais como alicerce. Até mesmo o Plano Nacional de Educação Especial de 1994 que afirma o direito dos surdos usarem a língua de sinais, apenas recomenda a utilização desta pelos professores de surdos e familiares. Percebemos com isso que as políticas de educação especial é de inclusão no sentido globalizado, em que as especificidades são relegadas a um plano de assistencialismo e não de garantia de acesso à educação por todos, através do reconhecimento as diferenças.

As políticas educacionais precisam reconhecer as diferenças para garantir a educação como direito humano. A proposta é pensar uma educação possível para os surdos considerando as peculiaridades das suas experiências visuais e elaborar questões como: qual a inclusão que se pretende para os surdos? Freqüência à classe regular ou acesso ao conhecimento e desenvolvimento do seu potencial cognitivo? É preciso, pois, colocar o individuo em primeiro plano, considerando todas as suas necessidades educacionais visando seu desenvolvimento pleno das capacidades intelectuais.  

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo deste estudo foi realizar uma breve reflexão sobre o desenvolvimento lingüístico, cognitivo e a aprendizagem da criança surda pensando no desenvolvimento de suas potencialidades intelectuais e na sua promoção acadêmica.

Para isso, buscamos compreender, através dos conceitos de desenvolvimento, linguagem e aprendizagem, o desenvolvimento cognitivo da criança surda considerando a importância do acesso precoce a língua de sinais, modalidade lingüística que ela tem capacidade de adquirir.

Verificamos ainda as características do sujeito surdo pela perda auditiva, direcionando a reflexão para a surdez profunda que necessita do uso da língua de sinais. Caracterizamos o sujeito surdo também quanto a sua identidade e cultura ou, mais precisamente, o ser surdo no sentido sócio-antropológico e não clínico-terapêutico.

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Constatamos que os surdos são indivíduos semelhantes a qualquer outro, com características pessoais, apenas portadores de uma surdez. A experiência da surdez lhes permite perceber o mundo de forma diferenciada através do sentido visual. Essa percepção diferenciada cria uma cultura especifica com códigos próprios, formas de organização, de solidariedade, de linguagem, de juízos de valor, e de arte, distintas da cultura abrangente da sociedade onde a maioria é de ouvintes.

Através da teoria sóciointeracionista de Vygotsky analisamos as peculiaridades do desenvolvimento da criança surda considerando a importância da aquisição da linguagem como espinha dorsal para o seu desenvolvimento cognitivo e aprendizagem. Essa importância é dada pela simbologia da linguagem que permite o pensamento abstrato. A entrada no mundo simbólico que acontece através, principalmente da linguagem é o salto evolutivo no desenvolvimento da criança. O atraso na aquisição da linguagem ocasiona, portanto, dificuldades no seu desenvolvimento. Por isso chegamos à conclusão de que a criança surda por não ter acesso à língua oral utilizada pela ambiente social em que vive apresentará dificuldades em sua aprendizagem e por extensão no seu desenvolvimento global.

Verificamos também que mesmo não podendo ter acesso à língua oral, a criança surda desenvolve sistemas de linguagem através de gestos. Existem gestos ou sinais que são convencionalmente usados pela comunidade surda, denominados como pertencentes a um sistema lingüístico complexo e reconhecido como língua. Trata-se da língua de sinais que por ter níveis de complexidade compatíveis as línguas orais, também desempenha a função lingüística de regulação do pensamento, conduzindo seu usuários ao pensamento abstrato. Uma outra conclusão que podemos chegar é de que a criança surda tem as mesmas possibilidades de desenvolvimento cognitivo das crianças ouvintes, sem graus de dificuldades, se tiverem acesso à língua de que são capazes de adquirir naturalmente, a língua de sinais.

Outra constatação é que, conforme a teoria de Vygotsky o aspecto social tem grande relevância na aprendizagem e no desenvolvimento dos indivíduos. Devido a isso o ambiente sócio-cultural em que a criança vive determina sua aprendizagem e seu desenvolvimento. As crianças ouvintes que nascem e crescem numa comunidade que utiliza línguas orais irá desenvolver sua aprendizagem e cognição normalmente. O mesmo pode acontecer com crianças surdas que vivem num ambiente sócio-cultural com condições lingüísticas apropriadas à sua aprendizagem e desenvolvimento que seguirá os mesmos caminhos. Podemos concluir que o acesso à língua de sinais é fundamental para o melhor desenvolvimento cognitivo da crianças surdas. Esta constatação leva a pensar sobre onde realmente encontra-se o problema da surdez, se no fator orgânico da falta de audição ou no fator social da falta de acesso à língua natural dos surdos. Diante do que já foi dito sobre a língua de sinais ter a mesma complexidade das línguas orais e desempenhar a mesma função de regular o pensamento e que, portanto os seus usuários podem desenvolver idéias abstratas, tendo as suas funções mentais normalmente desenvolvidas, a conclusão do pensamento é de que o principal problema da surdez encontra-se no meio sócio-cultural que as crianças surdas nascem e crescem, que não usam a língua de sinais que elas podem adquirir para se desenvolver normalmente.

Considerando o meio sócio-cultural como determinante no desenvolvimento lingüístico e cognitivo da criança surda, vimos que o ambiente familiar e escolar é importante visto que acolhem os surdos em grande parte de suas vidas. Mesmo tendo grande relevância na vida dos surdos tanto na família como nas instituições escolares há uma ausência de compromisso referente ao fator lingüístico dos surdos.

Sugere-se, nesse caso, que as famílias e as escolas criem condições favoráveis para o desenvolvimento lingüístico dos surdos através da utilização da língua de sinais. As famílias precisam se conscientizar da importância de aprenderem a língua de sinais para usarem com a criança surda que precisa desse subsidio para se desenvolver. Quanto às instituições de ensino que recebem crianças surdas devem também fazer uso da língua de sinais nas aulas e, principalmente, devem buscar através dos órgãos competentes o cumprimento dos requisitos legais como a Lei de Diretrizes e Bases e a Lei de Libras que estabelece a utilização da língua de sinais nas escolas.

Temos a clareza de que este estudo não pretende esgotar o tema, muito menos estabelecer verdades. Entretanto, permitiu o exercício do uso da teoria sóciointeracioniasta relacionada às questões dos surdos, especificamente do desenvolvimento das crianças surdas. Permitiu ainda uma reflexão sobre os preconceitos sociais da surdez que devem ser eliminados através da conscientização de que o individuo surdo é capaz de desenvolver-se intelectualmente, alcançando grandes níveis acadêmicos e de exercer qualquer atividade como amar, casar, ganhar a vida, pensar

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e viver com independência. Através dessa conscientização é que as situações de preconceito e marginalização social, política, educacional e cultural dos surdos deixarão de existir.

É importante a analise do exposto e especialmente aprofundar a reflexão sobre essas questões. Porém, mais importante ainda é que tal analise e reflexão direcione a mudança na vida prática desse cenário social e educacional de exclusão do surdo, pois as dimensões da vida não podem ser abarcadas na teoria, mas na própria práxis da vida.

 

REFERÊNCIAS

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SAUSSURE, F. Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Cultrix, 1991.

VYGOTSKY, Liev Semionovich. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1989a.

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________. Psicologias Pedagógicas. Trad. Claudia Shilling. Porto Alegre: artmed, 2003.

Nota: Este trabalho acadêmico foi apresentado ao DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS I da UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB durante a realização do CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM METODOLOGIA DO ENSINO SUPERIOR, PESQUISA E EXTENSÃO EM EDUCAÇÃO. SALVADOR - 2007

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IDENTIDADES TRANSITANTES: O DESENCAIXE DO DEFICIENTE AUDITIVO

NOS DISCURSOS DE/SOBRE SURDOS E OUVINTES

 

Por GILMARA MARIANA CECÍLIO eCAMILO DARSIE DE SOUZA

Resumo

A surdez é uma grande invenção. Não estou me referindo aqui à surdez como materialidade inscrita em um corpo, mas à surdez como construção de um olhar sobre aquele que não ouve. Para além da materialidade do corpo, construímos culturalmente a surdez dentro de distintas narrativas associadas e produzidas no interior [...] de campos discursivos distintos. (LOPES, 2007, p. 7)

Iniciamos a discussão, proposta aqui* , com a afirmação de Maura Lopes que representa a construção social que foi feita sobre o sujeito surdo, colocando-o para além da falta de audição e/ou deficiência. Esta proposta se contrapõe aos discursos clínicos/terapêuticos por levar as discussões sobre os surdos para além dos consultórios médicos, dando visibilidade ao discurso desses sujeitos enquanto uma comunidade que partilha de uma identidade em comum. São as novas propostas de paradigmas, rompendo com as dezenas de séculos de enfermidade auditiva. Podemos dizer que não é fácil este rompimento, já que ele necessita superar toda uma construção discursiva que vê as chamadas minorias (negros, surdos, homossexuais, etc.) como “despossuídores” de algo.

* - Artigo inspirado na monografia de conclusão de curso de Especialização em Educação de Surdos intitulada “Identidades Fronteiriças: Entre Surdos e Ouvintes, o não lugar do D.A.”, escrita por Gilmara Mariana Cecílio, orientada por Camilo Darsie de Souza.

Uma das questões que se apresentam, é o fato de que muitos termos usados para descrever essas ditas minorias, são compreendidos a partir da própria visão do sujeito, estando este numa posição etnocêntrica em relação aos demais sujeitos envolvidos no processo, como, por exemplo, o ouvinte sobre o surdo. É o meu olhar crítico conceituando, definindo e diminuindo o outro.

Entendendo etnocentrismo a partir do conceito de Rocha, como:

Etnocentrismo é uma visão de mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é existência. No plano intelectual, pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, etc. (1989, p. 7)

Mas pensamos que se torna interessante observar – sem a intenção de se fazer qualquer julgamento moral – que não são somente grupos de sujeitos ouvintes que se utilizam do conceito de “etnocentrismo” para definir o outro; os sujeitos surdos também o fazem, formando um conceito a respeito do outro, a partir de sua própria realidade e vivência.

Explicando melhor, o surdo descreve, muitas vezes, a cultura surda como algo protegido por fronteiras muito bem delimitadas, não enquadrando dentro deste conceito outros posicionamentos identitários que podem estar combinados com a materialidade da surdez. Para muitos ouvintes o conceito de surdo/surdez é muito diferente. Para quem ouve, e não possui certa proximidade no que se refere à comunidade surda, todos os demais (fora dele) são deficientes auditivos, formando assim, um conceito de ouvinte que engloba todos aqueles que ouvem bem, não usam aparelhos, se comunicam com linguagem oral, etc. Onde enquadrar então, aqueles indivíduos que permeiam essa bipolaridade (surdo/ouvinte) mas não são abarcados pela mesma? Essa pequena questão só faz refletir sobre a necessidade de se analisar o tema a partir do borramento das fronteiras identitárias que separam surdos de ouvintes.

Dentro desta colocação, destaca-se ainda a “linguagem do politicamente correto,” forma/meio/mecanismo usado para amenizar o que é chamado de denominações negativas ao falarmos de um determinado sujeito – neste caso o surdo. “[...] (pessoas portadoras de deficiência, alunos com necessidades educacionais especiais, portadores de deficiências, etc.) não apenas as nomeia, mas, antes, as constitui como pessoas de um certo tipo” (Campos, 2006, p. 1).

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O objetivo dessas novas terminologias seria substituir os velhos chavões usados; por termos não carregados de pré-conceitos. A autora é muito feliz na análise destas terminologias, pois conduz uma discussão interessante do que, na prática muitas vezes ocorre, lembrando que alguns termos acabam por reforçar essas representações negativas que tanto buscaram combater.

A autora ainda argumenta que,

estes discursos e representações tanto inventam/disciplinam quanto normalizam as pessoas com deficiência, já que procuram posicioná-las como sujeitos normais/dentro dos padrões. É possível dizer que, cada sociedade se sente autorizada a falar das pessoas com deficiência através da sua “verdade”. Uma “verdade” que é atravessada por inúmeros discursos que os constituíram ao longo do tempo, como é o caso dos discursos religiosos, médicos, psicológicos, da mídia, dentre tantos outros, que se sentem autorizados e com legitimidade para falar deles. (Op. Cit)

Cabe salientar que o discurso de uma época ajuda a construir o termo que representa o sujeito naquele momento. O mais importante, e sabido por pesquisadores, é o fato de que as determinadas terminologias atribuídas aos sujeitos nunca são atemporais, elas sempre sofrerão mudanças provindas da própria transformação da sociedade e das novas representações/discursos/terminologias criadas.

As representações hoje dadas aos ouvintes pelos surdos e a representação dada aos surdos pelos ouvintes, podem ser, muitas vezes estereotipadas, distorcidas e fragmentadas.

A representação é um negócio complexo e, especialmente quando se trata da “diferença”, implica sentimentos, atitudes e emoções e mobiliza medos e ansiedades no expectador, em níveis mais profundos do que podemos explicar de uma forma simples do senso comum. É por isso que precisamos de teorias – para aprofundar nossa análise. (HALL, 1997, p. 226)

Dentro destes conceitos e representações criadas a partir da linguagem uma gama de questionamentos flutua, entre eles, por exemplo: como podemos visualizar esta representação? Em sua grande maioria, ela é visualizada de forma binária, em dois pólos antagônicos com um vão fazendo a divisa entre elas. Como salienta Hall, os sujeitos são “frequentemente expostos a esta forma binária de representação”. Onde se é bom ou ruim, bonito ou feio, rico ou pobre, surdo ou ouvinte. Muitas vezes os conceitos não englobam nuances cinzas, somente o “branco e o preto”.

Novamente Hall nos dá a resposta da validade dessa binariedade propagada, “[...] embora as oposições binárias [...] tenham grande valor de captura da diversidade do mundo, elas também são uma forma um tanto tosca e redutiva de estabelecer significados.” O que vemos na teoria são os parâmetros máximos (a grosso modo), quando na prática temos uma linha tênue que vai de um extremo ao outro em transformação. Desta forma percebe-se que entre o branco e o negro, entre o pobre e o rico e, principalmente, entre o surdo e o ouvinte, existe uma infinidade de pessoas e identidades, ora mais próximas de um extremo, ora mais próximas do outro.

Lembrando Bauman, “Não importa o quanto se tente, a fronteira que separa o “produto útil” do “refugo” é uma zona cinzenta: um reino de indefinição, da incerteza – e do perigo.” (2006, p.39) Fazendo uma analogia a esta divisão, poderíamos dizer que não importa o quanto se tente, a fronteira entre surdos e ouvintes não é rígida, mas sim povoada de incertezas, meio-termos, elasticidade e tensionamentos.

Para que essa fronteira demarcatória seja compreendida como não rígida, é preciso entender que cada grupo ocupa um determinado território, e que este território é complexo, envolvendo relações humanas e relações de poder; citando Darsie (2006, p.181):

[...] o território como um campo de forças que ocorrem devido a sua complexidade. A idéia de complexidade se constituiu a partir do entendimento de que as relações humanas, bem como as relações de poder, estão no centro de determinadas situações [...].

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Não esquecendo ainda que, “territórios podem ser considerados como relações sociais que são projetadas no espaço material e, portanto, são instáveis** .” (Op.Cit)

** - Grifo nosso.

Analisando esses territórios e os grupos que os compõem, vemos que em ambos os conceitos o outro é sempre visto a partir de si próprio e, a partir de suas próprias concepções, em geral numa análise superficial e excludente. O que se torna importante conhecer é, quais as ideias sobre o conceito de cultura e identidade que estão sendo empregadas nesses grupos (surdo e ouvinte) e como, de fato, este conceito (e estes espaços) são tensionados por discursos e outros termos; onde e como encontraremos os sujeitos surdos ou não dentro dessa prática de conceituação.

As diferenças existentes entre surdos e ouvintes podem ser vistas por vários prismas: a análise clínica, os aspectos culturais – principalmente a língua – a visão social, a formação de comunidades, etc... Vamos primeiramente perceber a diferença. Como sinaliza Hall (1997, p. 230) “a diferença tem sido marcada [...] A diferença significa. Ela “fala”.” Na análise entre surdos e ouvintes, este fator é bastante perceptível, tanto clinicamente como socialmente e culturalmente*** . O autor fez um estudo bastante abrangente sobre a representação da diferença, em especial da diferença racial vista através do estereótipo. Essa mesma análise encaixa-se perfeitamente para pensarmos os discursos e representações sobre/de surdos e ouvintes. “É bom não esquecer, no entanto, que o que é dito sobre a diferença racial poderia igualmente ser aplicado em muitas instâncias a outras dimensões de diferença, tais como o gênero, a sexualidade, a classe e a incapacidade.” (p. 225)

*** - Embora clinicamente ela possa significar deficiência como já foi dito anteriormente.

A LÍNGUA COMO FERRAMENTA DE PODER

Em outras palavras, existe uma “materialidade surda”, mas isso, por si só, não faz sentido. Aliás, nenhuma materialidade carrega, em si mesma, algum sentido. No caso das pessoas surdas, é em ressonância com essa materialidade “não-ouvinte” que os sentidos de surdez vão sendo construídos e inventados discursivamente, num campo de lutas por significação e reconhecimento social. (VEIGA-NETO in: THOMA, 2006, p. 8)

A língua e o uso de uma linguagem são as principais formas de acesso ao mundo. A língua permite a conversação, troca de idéias, aquisição de conhecimento e interação entre as pessoas. Compreender uma língua, possuir uma linguagem é ter acesso ao poder em nossa sociedade; além de nos identificar enquanto pertencentes a um determinado grupo. Falar uma determinada língua é expressar através dela toda a gama de significados em que aquele grupo social e/ou cultural está imbuído; o próprio Hall deixa clara tal ideia ao dizer que “A língua é um sistema social e não um sistema individual”. (2006, p. 40)

Para os surdos em geral, o uso da Libras – Língua Brasileira de Sinais – também os afasta da obrigatoriedade de construir uma fala oralizada ou de utilizar a Língua Portuguesa como comunicação principal, o que é muito desgastante para quem não ouve. Substituir o Português pela Libras, é facilitar o aprendizado e a compreensão do indivíduo surdo, visto que se darão de forma visual abandonando a forma mentalizada de “decoreba” de fonemas, sílabas e palavras que o surdo não tem na memória auditiva como o ouvinte. No entanto, mais importante do que isto, é dar poder à língua. Ginzburg (1987, p. 113) chega a dizer que a capacidade de dominar e transmitir uma cultura é uma fonte de poder; como a língua faz parte da cultura de um grupo, pode-se dizer que transmitir uma língua é ampliar o poder desse grupo.

Ronice Quadros (2006) ao discutir as políticas lingüísticas destaca que os valores políticos marcam a educação de surdos e que no Brasil ainda se acredita que há uma única língua. Salienta que “Os surdos brasileiros resistiram à tirania do poder que tentou silenciar as mãos dos surdos, mas que, felizmente, fracassou neste empreendimento autoritário.” (QUADROS, 2006) E continua com a defesa do uso de Libras, “A língua de sinais brasileira é visual-espacial representando por si só as possibilidades que traduzem as experiências surdas, ou seja, as experiências visuais.” A autora deixa clara a importância dessa língua para os surdos em todos os sentidos, derrubando a ideia de que é uma língua limitada e destacando o quanto a língua contribuiu para a formação da identidade surda. Para ela, “existe uma relação de poder instituída entre as línguas que reforçam a dicotomia língua de sinais e língua portuguesa [...]” destacando que para os surdos a Libras é vista como primeiro elemento, ou seja, o mais importante.

Ricardo Martins (in: THOMA e LOPES 2004, p. 204-205) chega a dizer: “Sem língua não existe nem os

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surdos nem o modo de ser, cultural, surdo. Existiriam apenas deficientes auditivos.” E segue com uma boa afirmação em defesa da língua, “[...] não é simplesmente o nível de audição que vai definir quem é surdo ou deficiente auditivo.” (Op. Cit.) É importante destacar neste contexto o movimento surdo intenso para garantir seus direitos de acesso na sociedade através dessa língua, isso é percebido na exigência de intérpretes, por exemplo. Além da defesa de Libras, busca-se relacionar a língua com poder e conhecimento, Ladd in: Quadros (2006),

Recoloca as prioridades em relação aos estudos das línguas de sinais a partir da perspectiva surda. Os surdos querem entender suas origens, buscar explicações de como se constituiu a sua língua. Como afirma Ladd [...], se entendemos que um povo se torna des-colonializado quando estabelece seus próprios interesses, planeja seu próprio futuro, precisamos nos perguntar quais são as prioridades que estamos apresentando para as nossas investigações. Os surdos querem saber da própria língua no sentido de desvendar a sua constituição no passado e no presente.

Existe um peso ideológico (poder) por trás do uso de uma língua como forma de comunicação, este peso hoje dado ao Português foi historicamente construído, visto que não é a língua de comunicação do Brasil colônia (como muitos pensam). Assim como o Português foi sendo imposto como domínio e acabou por dar identidade ao povo brasileiro; a Libras hoje é uma língua que precisa ser construída diariamente por seus usuários que enfrentam a difícil tarefa de dar visibilidade e importância a ela. Mesmo sabendo que é usada pela grande maioria dos sujeitos surdos, esta língua ainda enfrenta barreiras para ser aceita pela sociedade ouvinte, pois dar visibilidade à mesma é dar significado a tudo que ela representa. O que em termos de poder, discurso e ideologia não é bem aceito por muitos ouvintes em nossa sociedade. Conhecimento é poder, dominar e utilizar uma língua é ter acesso a este poder. O que parte do mundo ouvinte tenta, é limitar este acesso do mundo surdo, seja por preconceito, por falta de informações ou por domínio do considerado diferente. A língua e a linguagem são elementos fundamentais nos discursos, na ideologia, na sociedade e na formação de uma identidade, seja ela coletiva ou individualizada.

A linguagem transforma o processo da tradição social.[...] A linguagem é mais do que um simples veículo da tradição social. Ela afeta o que transmite. O sentido socialmente aceito de uma palavra (ou outro símbolo) é quase necessariamente algo abstrato. (CHILDE, 1988, p. 14-15)

A questão do surdo/surdez vem sendo atravessada por diferentes discursos, muitos dos quais considerados cientificamente embasados e aceitos como verdades absolutas. Estas significações que vão sendo utilizadas ao longo da história por diferentes pessoas, estão imbuídas de pequenos discursos, jogo de poderes, marcas e representações. Como estes discursos exercem um papel central e normativo das práticas sociais, eles norteiam o pensamento que produz poder e controle na sociedade. Discurso é poder, discurso embasado é poder controlado voltado para determinado caminho, difícil de ser desconstruído, impossível de ser silenciado.

Conforme Hall em seu texto, O espetáculo do outro, se referindo a Gramsci e Foucault:

O poder envolve conhecimento, representação, idéias, liderança e autoridade cultural, bem como constrangimento econômico e coerção física. Eles teriam concordado que o poder não pode ser capturado pelo pensar exclusivamente em termos de força e coerção: o poder seduz, solicita, induz, conquista o consenso. (1997, p. 261)

Complementando com Darsie em referência à Foucault:

[...] Já que nenhum discurso ou prática social está isenta de relações de poder.[...] em todas as sociedades existem múltiplas relações de poder provenientes, também, dos discursos que circulam nessas sociedades. Esses discursos atravessam o corpo social, caracterizando-o e constituindo-o. (2006, p. 27)

Em outras palavras, ter poder é ter visibilidade, obter mesmo que não de forma totalitária, o consenso de um discurso. Representar aquilo que se quer, da forma como se deseja apresentar. Este parece ser um dos “nós” quando se relaciona poder e representação. Ainda que o poder circule e possamos encontrá-lo em toda parte, a forma como as relações sociais são envolvidas por ele, reflete na forma como as pessoas atuarão em suas comunidades, ora representadas como dominantes e ora representadas como dominadas.

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A sociedade posiciona o sujeito surdo de acordo com o discurso.

Imbricada em relações de poder, a educação de surdos vem sendo pensada e definida, historicamente, por educadores ouvintes, embora possamos encontrar em alguns tempos e espaços a participação de educadores surdos. Porém, estes educadores, que militam pelo direito de ser como são, questionando suas constantes submissões a práticas de normalização, são sujeitos também produzidos culturalmente e constituídos por traços identitários que os aproximam enquanto surdos, mas que por vezes os afastam em aspectos como gênero/sexualidade, etnia, condições econômicas e outras. (THOMA, 2006, p.9)

Estas relações de poder são determinantes para compreender melhor como a educação, as relações sociais, o trabalho, o uso de uma língua, as relações afetivas, etc., estão em constante disputa, tensionamento e negociações. E tanto o surdo como o ouvinte se encontram engrenados neste sistema e nesse jogo de representatividade. Por isso a disputa pelo poder envolve tanto a formação de discursos coesos e a tentativa de usar a língua como instrumento para se alcançar este poder.

Mas, quem são os criadores destes discursos? Arriscamo-nos a dizer que toda a sociedade, incluindo os próprios sujeitos. No momento em que defendem a cultura surda, em práticas sociais e nas fronteiras identificáveis; eles impõem uma nova normalização às avessas. É o etnocentrismo tão longamente usado pelos ouvintes, visto agora dentro do discurso surdo. É o ver o outro a partir do meu olhar que o coloca abaixo de mim, inferior. Esse “olhar” é a materialização de uma ideologia* crescente, que vê dois blocos completamente opostos: ouvintes versus surdos.

* - Aqui entendida por um conjunto de idéias que aparece na sociedade como um todo, e age como um elemento desintegrador da diferenciação social.

Em todos estes momentos de discussão cultural percebe-se a existência de uma cultura surda e uma cultura ouvinte; ambas utilizando a sua própria língua como principal instrumento de poder.

A LÍNGUA COMO ARTEFATO CULTURAL

[...] proponho olhar a surdez de outro lugar que não o da deficiência, mas o da diferença cultural.[...] desloco meu olhar para o quê os próprios surdos dizem de si [...] de se verem e de quererem ser vistos como sujeitos surdos, e não como sujeitos com surdez. (LOPES, 2007, p. 9)

Esta diferença de olhar provoca uma nova dimensão do ser surdo e, coloca a surdez como um marcador cultural. A comunidade surda demonstra que a língua de sinais também é vista como ferramenta, “A língua de sinais é, para ambos os casos, um meio eficaz para resolver a questão da oralidade dos surdos,[...].” (SKLIAR, 2005, p. 10)

Ferramenta esta que busca marcar a posição do sujeito surdo. A língua de sinais juntamente com as experiências visuais, a comunidade surda e as identidades surdas, abarcam o conjunto de diferenças dos surdos em relação aos demais grupos de sujeitos, segundo o próprio autor.

É preciso discutir quando se analisa o sujeito cultural surdo, a importância da língua como marcador de uma cultura. Como um dos principais elos que ligam o sujeito a uma determinada identidade, a mesma forma de comunicação. De acordo com Lacan citado por Hall (2006, p. 37); “A formação de eu no “olhar” do Outro... inicia a relação da criança com os sistemas simbólicos fora dela mesma e é, assim, o momento da sua entrada nos vários sistemas de representação simbólica- incluindo a língua, a cultura e a diferença sexual.” Neste momento vemos a aprendizagem da língua como fator de formação do próprio eu, no caso de surdos isto pode significar que a aprendizagem e o uso de Libras ajuda a constituir o sujeito surdo cultural.

Fazendo alguns comparativos extras sobre o tema, é possível relacionar a língua de sinais como um artefato cultural do surdo. Recordando Darsie (2006, p. 29) que faz uma análise sobre artefatos culturais com base em Du Gay,

[...] é cultural também porque é constituído, por nós, como um objeto significativo. Pode-se dizer também que ele é cultural porque está ligado a um conjunto particular de práticas sociais, específicos de nossa cultura e a determinados modos de vida.[...] Outra questão que torna algo em um objeto cultural, assim como o walkman

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analisado por Du Gay, é o fato de ele ser freqüentemente representado nas nossas linguagens visuais (sejam elas escritas ou imagéticas) e nas mídias.

O que o autor traz pode ser enquadrado na mesma discussão feita sobre a língua de sinais. Ela torna-se um artefato cultural na medida em que é considerada significativa, ligada a um conjunto de práticas sociais e a um grupo que a utiliza, faz parte da cultura surda e é representada visualmente pelos seus usuários, além de ser reconhecida pelos demais grupos sociais como a “língua dos surdos”. Silva (2000, p. 10) acrescenta, “Existe uma associação entre a identidade da pessoa e as coisas que uma pessoa usa.”

Esta discussão também retoma a questão da identidade, lembrando que a mesma não nasce com o sujeito, e de acordo com Hall (2006, p. 38) “Assim a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento.” Se o ser humano constrói sua identidade de acordo com as suas vivências, experiências, grupos sociais e discursos com os quais convive; é de concluir-se que fatores como língua, cultura, família, amigos, escola, religião, etc... vão ter uma influência direta em sua identidade, cruzando as informações e estes mesmos discursos inúmeras vezes. E que as experiências visuais e a língua de sinais vão fazer parte constante da identidade surda, tornando-se com isto um ponto de coesão, quase um dogma de partida desta identidade surda.

Quando se estuda identidade cultural de um grupo, sempre se parte da premissa que a mesma é formada a partir de uma cultura nacional, que nos agrega, nos identifica e nos assemelha enquanto indivíduos pertencentes ao mesmo espaço-tempo-sociedade. É claro que sabemos que isto não está efetivamente no nosso corpo, não está no nosso complexo sistema biológico ou neurológico, mas seu poder de identificação criou em cada um de nós um sentimento de identidade, de fazer parte, de sentir-se abarcado por esta unidade.

A lealdade e a identificação que, numa era pré-moderna ou em sociedades mais tradicionais, eram dadas à tribo, ao povo, à religião e à região, foram transferidas, gradualmente, nas sociedades ocidentais, à cultura nacional. (HALL, 2006, p. 49)

Esta observação do autor complementa a ideia de que existe um fio condutor que liga nossa concepção de pertencimento a uma cultura nacional. Salientando que a mesma formação cultural está ligada a criação de padrões sociais, como uma forma de se posicionar mais uniforme na sociedade, ao uso da língua predominante, ao sistema de ensino padrão, a uma vestimenta nos moldes da moda, as gírias correntes, aos hábitos em voga, etc...Estes padrões, funcionam como um sistema de representação, neste caso citado acima, da cultura nacional. Mas podemos interpretar também, dentro das comunidades menores, os micro-espaços de circulação de surdos e/ou ouvintes por exemplo. A formação de uma identidade surda ou ouvinte, passa pelo conceito de pertencimento, que está diretamente associado ao próprio conceito de identidade cultural. Segundo Hall (2006, p.8), as identidades culturais abrangem “aqueles aspectos de nossas identidades que surgem de nosso pertencimento a culturas étnicas, raciais, lingüísticas, religiosas e, acima de tudo, nacionais”. Podemos ler então, que o sentimento de pertencimento ao grupo ouvinte ou ao grupo surdo é um dos fatores que forma a identidade do sujeito ouvinte e do sujeito surdo. É certo que na maioria das vezes, estas identidades são cambiáveis e múltiplas, mas os grupos buscam um “eu” coerente que possa unificá-las.

Tanto surdos em suas comunidades, como os ouvintes em seus grupos de atuação, possuem esta sensação de pertencimento e, portanto, desenvolvem junto ao grupo a mesma “lealdade” e uniformidade de ações, que se refletem do discurso usado em defesa destes espaços. Complementando mais uma vez com Hall que diz que “Uma cultura nacional é um discurso - um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos.” (2006, p. 50) Em outras palavras, nossas identidades são formadas a partir deste todo que envolve nosso grupo social e a forma como captamos a cultura do mesmo.

O que se está dizendo aqui, é que o mesmo padrão usado para interpretar uma cultura nacional, e a formação de uma identidade nacional, pode ser empregada para entender melhor a organização que se dá nas comunidades surdas e compreender a formação de uma cultura surda centrada em alguns arquétipos que a representam, segundo a mesma.

Outro exemplo para corroborar com esta afirmação pode ser visto novamente através de Hall (2006, p. 52):

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Há a narrativa da nação [...] Essas fornecem uma série de estórias, imagens, panoramas, cenários, eventos históricos, símbolos e rituais nacionais que simbolizam ou representam as experiências partilhadas, as perdas, os triunfos e os desastres que dão sentido à nação. Como membros de tal “comunidade imaginada”, nos vemos, no olho de nossa mente, como compartilhando dessa narrativa. Ela dá significado e importância à nossa monótona existência, [...].

Isto significa que, o que o grupo vivencia, acredita, segue e faz enquanto grupo ou unidade; é partilhado por cada indivíduo pertencente ao mesmo. Independente de estar na mesma vivência ou nas mesmas ações, cada indivíduo pertencente a este todo, sente-se parte das ações da comunidade. Em um grupo com identidade ouvinte adolescente das grandes capitais, por exemplo, isto pode ser expressado, através da mesma tendência linguística compartilhada. Em um grupo surdo adolescente de uma determinada comunidade, isto pode ser visto, por exemplo, através dos mesmos sinais usados como gírias por exemplo. O que a comunidade imaginada tem como experiência, cada indivíduo da mesma se sente representante, tendo-a vivenciado ou não.

Dentre as múltiplas identidades que compõem um indivíduo, é necessário salientar que uma irá se destacar de acordo com a situação que ele experiência naquele momento. Esta faceta em maior evidência reflete a necessidade de identificação do indivíduo com aquele grupo naquela situação. Nada mais simples e comum, por exemplo, do que em uma discussão sobre futebol, que cada um deixe claro sua identificação com este ou aquele clube e que estes mesmos indivíduos numa danceteria, por exemplo, demonstrem prioritariamente seus gostos musicais. De acordo com a ocasião, o indivíduo destaca o quê dele mais pertence aquele espaço.

Conforme Costa apud Darsie (2006, p.185):

A intenção relacional pode ser determinada pela busca afetiva, estética e comportamental, vinculadas a processos identificatórios pessoais que irão dar conformação a uma identidade coletiva, ou seja, a um conjunto de indivíduos que se agregam em determinados lugares do espaço por se identificarem em algum ponto, ou em vários que os unem, como o hábito de fumar.

Toda esta discussão de identidades serve primordialmente para deixar compreensível a formação que se dá das comunidades surdas e dos grupos ouvintes. E, quanto consciente ou inconscientemente estes grupos tentaram formar em torno desta unidade, uma base sólida que converta para o grupo todos os pertencentes a ele, deixando como excludentes os demais.

Mas onde visualizamos estas facetas identitárias? Onde isto pode ser visualizado para ser melhor compreendido? “Todas as identidades estão localizadas no espaço e no tempo simbólicos. Elas têm aquilo que Edward Said chama de suas “geografias imaginárias”...suas “paisagens” características, seu sendo de “lugar”, de “casa/lar”, ou heimat, bem como suas localizações no tempo- nas tradições inventadas que ligam passado e presente,...” (HALL, 2006, p. 71-72) ou seja, existe um tempo e um espaço simbólico onde estas identidades atuam. Este tempo e este espaço podem ser entendidos desde a escola, casa, trabalho, internet, até um movimento social, tanto os freqüentadores do shopping como os punks, possuem esta noção de tempo e espaço da sua própria identidade.

Se visualizarmos os prismas de identidade nas comunidades, é bem verdade que reconheceremos então uma identidade surda ao nos depararmos com um grupo surdo conversando animadamente em Libras. Assim como reconhecemos um grupo de jovens ouvintes ao vê-los falando alto, rindo e cantando uns com os outros. Mas onde está a faceta identitária do Deficiente Auditivo (DA)? Até esse momento ele está conceituado apenas clinicamente, o que não pode ser o único fator a formar a sua identidade.

O HIBRIDISMO

Mary Douglas argumenta que o que realmente perturba a ordem cultural é quando as coisas acabam em categoria errada; ou quando as coisas não cabem em nenhuma categoria – [...] mas flutuam ambiguamente numa zona híbrida instável, perigosa de indeterminação, de meio-termo. (HALL, 1997, p. 236)

O grande erro, em nossa opinião, se incorre quando ao tentar formar a coesão do grupo, os aspectos menos interessantes ou mais questionáveis são retirados. Hall (2006, p. 55) salienta que ”A identidade nacional é também muitas vezes simbolicamente baseada na idéia de um povo ou folk

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puro, original.” Esta idéia na verdade é falsa como o próprio autor finaliza, mas é o mesmo princípio usado para a agregação de pessoas em um grupo. Em geral, acredita-se que todos ali têm as mesmas identidades, são “puros” naquilo em que se determinam a pertencer. Comparando novamente com o estudo de Hall sobre as culturais nacionais (2006, p. 59), “não importa quão diferentes seus membros possam ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos como pertencentes à mesma e grande família nacional.” Isto não significa que não haja dentro dessa pseudo-universalidade, diferenças. Mas significa que elas são “ajustadas” de modo a parecerem mais coesas, do que de fato muitas vezes são. Algumas identidades são subordinadas à identidade do todo, criando esta falsa idéia de consenso, coesão e unificação absoluta. Todas estas identidades são “atravessadas por profundas divisões e diferenças internas”, como sentencia o próprio Hall. Mas elas continuam a ser representadas como unificadas para fortalecimento do todo. Tem-se claro que elas não eliminam estas diferenças, mas elas mascaram.

Essas representações generalizadas esquecem as diferentes identidades que hibridizam o sujeito surdo, por exemplo, que podem servir de referencial maior a este sujeito. Exemplo, o sujeito surdo que fala, o que possui resto auditivo, o que não conhece Libras, o que conhece parcialmente Libras, o que, ao qual, nunca foi dada oportunidade de comunicação, o que ainda usa gestos caseiros, o que domina plenamente Libras, etc...todos estes sujeitos possuidores de uma variada gama de experiências sociais, políticas, econômicas, culturais e familiares não podem ser enquadrados em identidades estanques, dentro de territórios fixos e discursos sólidos.

Para retomar Hall (2006, p. 16):

A sociedade não é, como os sociólogos pensaram muitas vezes, um todo unificado e bem delimitado, uma totalidade, produzindo-se através de mudanças evolucionárias a partir de si mesma,[...] Ela está constantemente sendo “descentrada” ou deslocada por forças fora de si mesma.

Para entender esta colocação de outra forma; poderíamos dizer que a sociedade está em constante tensionamento interno e externo, sendo jogada em todas as direções, pois não há um núcleo seguro e centralizado que a mantenha. E que tanto as comunidades surdas como as ouvintes, não são tão unificadas, delimitadas, coesas e uniformes como imaginam. Seguindo ainda está linha de pensamento para a discussão, vale lembrar que se a identidade muda e não é automática; ela tornou-se, segundo Hall (Op.Cit.), politizada. Um processo muito mais associado a uma política de diferença do que a uma política de identidade original. O sujeito é surdo, porque assim foi construído e posicionado e não porque nasceu sem audição.

Dentro de todo esse processo de formação de novas identidades ou reorientação das velhas, nota-se que, para o grupo dominante, as minorias são sempre vistas como um bloco único. Hall ainda coloca, “...mas que elas são vistas e tratadas como “a mesma coisa”... como o “outro” pela cultura dominante.” Para o grupo que domina, aquelas comunidades que não fazem parte dela, são unificadas no olhar, embora possuam uma gama de diferenças internas. Este posicionamento reforça o que já foi dito sobre etnocentrismo. Visão muito utilizada entre grupos, comunidades, sociedades e países em situação desigual ou desproporcional.

Rocha (1989, p. 75) ao analisar a sociedade etnocêntrica em que se vive salienta,

O etnocentrismo está calcado em sentimentos fortes como o reforço da identidade do “eu”. [...] Para uma sociedade que tem poder de vida e morte sobre muitas outras, o etnocentrismo se conjuga com a lógica do progresso, com a ideologia da conquista, com o desejo de riqueza, com a crença num estilo de vida que exclui a diferença.

A visão etnocêntrica se impõe como superior, mais desenvolvida, mais abrangente; mesmo sem o ser. Recordando aqui a fala dos estudiosos clínicos que associam um possível retardo da sociedade, em caso de não haver a audição. A identidade neste caso, sempre é feita com o “eu” e nunca com “o outro”, mas sua base de partida é sempre o outro.

É preciso lembrar que toda a identidade possui fatores externos e internos, o primeiro que se define a partir de algo que lhe é exterior, portanto diferente e o segundo que precisa demonstrar essa diferença e apresentar o elo de identificação. Partindo da ideia de que estas identidades não são estanques, essas diferenças citadas também não serão. Ou seja, os elementos diferenciais serão variáveis, conforme os múltiplos fatores que o cerquem predominantemente naquele momento, desta forma podem ser concebidas algumas questões: a surdez será sempre o fator determinante?

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Ou a questão de gênero, faixa etária, nacionalidade, grau de instrução, etc., será mais importante? Outra simples pergunta que não encontra até o momento uma resposta adequada.

Esta discussão pode fazer um paralelo com outra, levantada por Bauman sobre a questão dos guetos, segundo o autor: “Eles costumavam ser mini-sociedades, [...] Também forneciam a seus residentes certo grau de segurança e pelo menos um sopro do sentimento de chez soi, de estar em casa, indisponível aos de fora.” (2005, p. 102). O gueto criado tanto por ouvintes como por surdos, apenas define culturalmente se os obstáculos de acesso estão do lado de dentro ou de fora do mesmo, ou seja, os discursos binários formaram dois grandes guetos culturais, e quem a eles não se sente pertencente, está do lado de fora do gueto, e sua própria condição de ouvinte para o gueto surdo ou surdo no gueto ouvinte; é o obstáculo que o coloca pra longe desse “espaço” social.

Esta binariedade contraditória coloca para fora do gueto o clinicamente constituído, “deficiente auditivo”, este que não possui nem gueto próprio nem identidade cultural afirmada. Esse “diferente” que mistura características de surdos com ouvintes, é despossuído de parte da audição e mascarado (sem intencionalidade) como usuário da língua oral-auditiva. Ele acaba por formar e ocupar a fronteira destes guetos culturalmente já constituídos, classificados e normatizados dentro de suas próprias concepções. Ele é o híbrido, o resultado da mistura.

Analisando as comunidades, Bauman chega ao conceito de “mesmice” que significaria a ausência do outro, especialmente deste outro que se fundamenta como diferente apesar dos esforços em maquiá-lo ou até dissolver sua diferença. Este outro é visto como ameaça, “Na figura do estranho (não simplesmente o “pouco familiar”, mas o alien, o que está “fora de lugar”), o medo da incerteza, fundado na experiência da vida, encontra a largamente procurada, e bem-vinda, corporificação.” (2003, p. 104) Se relacionarmos esta observação com surdos e ouvintes, veremos que este “alienígena” é o Deficiente Auditivo, fora de lugar entre ouvintes por não ouvir plenamente e fora de lugar entre os surdos, por ouvir parcialmente. A corporificação é a resistência criada (e todos os mecanismos dela) para que ele permaneça fora dos guetos. Não há espaço para o híbrido dentro de um conceito binário.

O D.A. E A CULTURA

Assim como a língua, a cultura oferece ao indivíduo um horizonte de possibilidades latentes- uma jaula flexível e invisível dentro do qual se exercita a liberdade condicionada de cada um. (GINZBURG, 1987, p. 25)

Edward Tylor criou o termo inglês “culture”, resultado da junção da palavra alemã Kultur, que estava relacionada aos aspectos espirituais, e do vocábulo francês “civilization”, que seriam os feitos materiais. Dessa forma, cultura era definida, como toda a possibilidade de realização humana. Tentando analisar a cultura surda e a ouvinte a partir do próprio conceito de cultura, esboçado por Tylor** podemos sintetizar:

** - Edward Tylor (1832-1917) o primeiro estudioso a formalizar um conceito de cultura amplo, no final do século XIX. Seu principal objetivo era fugir da idéia de aquisição inata, queria marcar o caráter de aprendizado da cultura.

Tomado em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade. (apud LARAIA, 1998, p. 14)

Usando este conceito, teremos uma fronteira permeável entre surdos, D.A.s e ouvintes, tanto quanto se usarmos o conceito de Robert Braidwood, que diz “Quase se pode dizer que a cultura vive na mente das pessoas que a possuem. Mas as pessoas não nascem com a sua cultura. Adquirem-na à medida que crescem no convívio social”. (COTRIM, 1996, p. 24) Ginzburg (1987, p. 12) chega a propor o caráter de “circularidade” entre as culturas, um movimento circular que seria de influências recíprocas entre grupos culturais diferentes***. Maura Lopes afirma cultura, “Como um conjunto contestado e em constante tensionamento de práticas de representação intimamente relacionadas aos processos de (re)composição de diferentes grupos sociais”. (apud THOMA e LOPES, 2004, p. 37)

*** - Inicialmente, Ginzburg propõe a circularidade entre cultura das classes dominantes e cultura das classes subalternas.

Utilizando os apontamentos de cultura citados por Tylor, Braidwood, Ginzburg e Lopes, teremos um território vasto com fronteiras mais tênues e igualmente mais pertinentes para abranger a sociedade (surdos, Deficientes Auditivos e ouvintes) com suas múltiplas características. Apesar da antiguidade

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dos dois primeiros conceitos, eles ainda hoje podem ser sugeridos e intercalados com os demais escritos, que visam uma especificidade.

Não há um conceito de cultura ouvinte claramente definido, mas pode-se estruturá-lo a partir do conceito de cultura surda. Quadros (2006) define; “Entende-se cultura surda como a identidade cultural de um grupo de surdos que se define enquanto grupo diferente de outros grupos”; este conceito no entanto não abarca a totalidade dos indivíduos surdos e soa vago. Para melhor entendimento, vamos complementá-lo com Lopes (2007, p. 9)

Culturalmente produzimos o normal, o diferente, o anormal, o surdo, o deficiente, o desviante, o exótico, o comum entre outros que poderiam compor uma lista infindável de sujeitos. [...] Qualquer escolha será sempre feita a partir de interpretações e representações que construímos [...].

Se nós produzimos os sujeitos, e cultura abrange um todo construído pelo indivíduo em sociedade, reafirmamos o que já foi dito anteriormente: construímos (em algum momento do passado) a bipolaridade “surdos versus ouvintes”, tanto nos aspectos clínicos como culturais e “esquecemos” do sujeito que se encontra tensionado por estes dois conceitos – o deficiente auditivo.

A ênfase na representação e o papel-chave da cultura na produção dos significados que permeiam todas as relações sociais levam, assim, a uma preocupação com a identificação. [...] A cultura molda a identidade ao dar sentido à experiência [...] (Woodward in: SILVA, 2000, p. 18)

Esta observação da autora nos leva a questionar: Por que este sujeito (D.A.) só foi construído clinicamente? Se a cultura molda a identidade com base na experiência, qual é a experiência do D.A.? Por que não há uma definição cultural que o abarque? Por que mesmo quando falamos no todo que é a cultura, ele ainda continua à margem? Uma possível resposta inicia-se recordando que ele é o “alien” para os demais guetos culturalmente constituídos.

Thoma, (2006, p. 24) orienta o caminho:

[...] em tempos que as identidades se apresentam como fragmentadas, móveis, cambiáveis, não podemos mais dividir o mundo em fronteiras nítidas e fixas. A pureza das identidades é um equívoco do ambicioso projeto moderno e olhar o mundo de forma mais plural ajudará a desconstruirmos nossas próprias verdades [...].

Woodward vai fazer relações dentro do “circuito da cultura*” argumentando que “Os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar.” (Op. Cit.) Fica sub-entendido que cada sujeito fala a partir de sua posição e esta é resultante de um intrincado sistema de discurso e representação que perpassa e molda a cultura do sujeito.

* - Esquema criado por Paul de Gay et alii (1997) citado por Woodward (in: SILVA, p. 68-69) que prevê vários processos pelos quais os artefatos culturais circulam, desde a representação, identidade e produção, até o consumo e regulação.

Neste momento abre-se espaço para a inserção do deficiente auditivo para além de sua falta parcial de audição. E não é só para o D.A. que estamos abrindo espaço, abre-se caminho a uma infinitude de novos sujeitos potencializados pelo enfraquecimento das fronteiras rígidas dos guetos. Hall (2006, p. 88) coloca “Em toda parte, estão emergindo identidades culturais que não são fixas, mas que estão suspensas, em transição, entre diferentes posições [...]”, ou seja, que se deslocam entre os antigos extremos conceituados. E lembrando o que o próprio Hall sentenciou (in: SILVA, 2000, p. 112), “As identidades são, pois, pontos de apego temporário às posições-de-sujeito que as práticas discursivas constroem para nós.”

Isto não quer dizer, no entanto, que os parâmetros deixaram de existir e o discurso do multiculturalismo é a única chave para o entendimento da sociedade, e neste caso, dos discursos e estudos que abarcam a audição. Dizer simplesmente que na atualidade todas as culturas se sobrepõem e que nenhuma tem destaque especial, as identidades transitam e nada pode ser esclarecido; não é a premissa da qual devemos partir para entender o tensionamento das identidades e dos territórios hoje.

Bauman de forma irônica explica sua visão da fala dos intelectuais defensores do multiculturalismo:

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Perdão, mas não podemos resgatá-lo da confusão em que você se meteu. Sim, há confusão sobre valores, sobre o sentido de “ser humano”, sobre as maneiras certas da vida em comum. Mas depende de você encontrar seu próprio caminho e arcar com as conseqüências caso não goste dos resultados. Sim, há uma cacofonia de vozes e nenhuma será cantada em uníssono, mas não se preocupe: nenhuma canção é necessariamente melhor que a próxima, e, se fosse, não haveria maneira de sabê-lo – por isso fique à vontade para cantar (compor se puder) sua própria canção (de qualquer maneira, você não aumentará a cacofonia; ela já é ensurdecedora e uma canção a mais não fará diferença). (2003, 112)**

** - Bauman diz ainda de maneira quase poética, que esta resposta de multiculturalismo “está se tornando rapidamente o cânone da “correção política”; mais, ela se torna um axioma que já não precisa ser explicado, um prolegômeno a toda deliberação futura, a pedra de toque da doxa: não propriamente um conhecimento, mas a suposição tácita, impensada, de todo pensamento que mira o conhecimento.” (2003, p. 112)

Neste comentário, de forma brilhante, ele nos diz que o multiculturalismo é uma boa desculpa moderna, usada por alguns intelectuais que não conseguem compreender (ou não querem) a condição humana e suas identidades, preferindo refúgio nessa terminologia. Ele chega descrevê-la como a “ideologia do fim da ideologia.” (Op. Cit.) e profetiza, “Num mundo de “multiculturalismo”, as culturas podem coexistir, mas é difícil que se beneficiem de uma vida compartilhada.” (p. 122)

O medo maior é o de transformar esta visão de multiculturalidade em uma de “multicomunitarismo”, onde as diferenças culturais de todos os tipos formam barreiras intransponíveis pelos sujeitos das mesmas e os sitiados fazem a defesa do grupo. Trazendo esta discussão para o estudo deste trabalho, seria dizer que em muitos casos, esta multiculturalidade corre o risco de escorregar para a formação de guetos tão fechados hermeticamente, que não permitem a entrada de nenhum diferente com medo de que essa diferença jogue por terra as muralhas construídas. Exemplo mais claro, de forma geral tanto o surdo e o ouvinte têm receio de que o outro “invada” seu espaço e “manche” sua identidade de forma a ela não ser mais pura, mais única, mais segura. E para combater esta possibilidade, rejeitam a presença da diferença, aqui marcada pelo D.A. também.

A importância dada à segurança com que se apega Bauman em seus escritos representa a tentativa de demonstrar as comunidades e seus guetos, que só haverá enriquecimento cultural mútuo e trocas entre as culturas, quando as mesmas se sentirem seguras em seus próprios territórios. Esta criação moderna (o discurso da insegurança) acaba por fragmentar cada vez mais as grandes comunidades, formando guetos mais coesos, mais uniformes e com menos possibilidade de tensionamento e deslocamento dos sujeitos. Em nosso caso, para reafirmarem seus espaços, os surdos e os ouvintes se combatem cada vez mais, usando como subterfúgio os marcadores culturais estanques.

Todo este discurso abre espaço novamente ao sujeito híbrido (D.A.), e Hall aponta, “As pessoas pertencentes a essas culturas híbridas têm sido obrigadas a renunciar ao sonho ou à ambição de redescobrir qualquer tipo de pureza cultural “perdida” ou de absolutismo étnico.” (2006, p. 89) Não há como o D.A. imergir na cultura ouvinte e se tornar um ouvinte, nem como mergulhar na cultura surda e constituir-se unicamente como sujeito surdo. Ele é/está na fronteira destes espaços e precisa construir sua identidade flutuante, tensionada, e acima de tudo - real.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que tentamos demonstrar aqui foi a possibilidade de existência de um território entre as fronteiras identitárias de ouvintes e surdos, tal território é ocupado pelo deficiente auditivo (D.A.), que inicialmente foi construído a partir de discursos clínicos, mas que é/está/precisa ser constituído também por uma identidade própria. E que a mesma é flutuante e tensionada pelos demais territórios.

Na verdade, esta provável identidade D.A. é resultado da mistura e influência recebida por este sujeito parcialmente surdo e ao mesmo tempo ouvinte. Ele é híbrido, misturando todas as experiências que recebe de forma a construir sua identidade a partir do seu “eu” em oposição ao “outro”. E como assinalou Hall (2006, p. 89), “As culturas híbridas constituem um dos diversos tipos de identidade distintivamente novos produzidos na era da modernidade tardia.”

Este D.A. não está só nesta fronteira, outros similares e diferentes a ele, mas não compreendidos como surdos culturais ou ouvintes funcionais plenos, estão a lhe fazer companhia. Embora possa não parecer, esta “terra de fronteira” é muito mais extensa do que parece e abarca inúmeros sujeitos expulsos dos demais guetos por não se enquadrarem totalmente em seus conceitos próprios de

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comunidade. Neles estão os usuários de aparelhos auditivos, os surdos que desconhecem sinais, os que ouvem mal, mas falam razoavelmente, os que se apóiam em uma oralização a toda prova, os que se disfarçam de ouvintes por medo e/ou preconceito, os que tornaram-se surdos após longo período ouvinte, quiçá até os implantados.

Todos os frutos de uma audição não total, mais ainda assim audição e de um olhar diferenciado sobre o mundo e sua realidade, pois, se lhes falta algo, o compensam com a experiência adquirida por esta mesma falta. Não há uma forma estanque, pura e única de ser parcialmente surdo e não plenamente ouvinte, o que há é um espaço que possibilita um deslocamento, sem um eixo centralizado e demarcatório.

Hall (1997, p. 234) usa a linguística para argumentar: “A diferença é importante porque é essencial ao significado; sem ela, o significado não teria como existir.” Fazendo outro analogismo com o estudo em questão, a diferença entre os sujeitos aqui trabalhados é a marca que a partir do outro, os constituem, em foco: o D.A. é assim constituído pela sua diferença em relação ao surdo cultural, sem essa diferença ele não existiria e ela vai além da questão clínica de diferentes graus de perda auditiva, como muitos estudiosos afirmam.

Tanto o ouvinte como o surdo utilizam de papéis etnocêntricos para definir e conceituar o D.A., no entanto reduzí-lo a uma nomenclatura de cunho clínico-terapêutico, não lhe tira a essência do significado que mesmo relacional e tensionado, lhe marca. Até porque, contraditoriamente, a própria visão etnocêntrica impede de diluí-lo dentro de uma ideologia multiculturalista, onde sua diferença seria anulada. Usando de Hall novamente (Op. Cit.)

A marca da “diferença” leva-nos simbolicamente a cerras as fileiras, estear a cultura e estigmatizar e expulsar qualquer coisa que seja definida como impura, anormal. Todavia, paradoxalmente, também torna a “diferença” poderosa, [...] uma ameaça à ordem cultural.

Interessante pensar que essa mesma classificação etnocentrista, que lhe delimita um “statu quo*** ” clínico lhe imbuindo de padrões e fronteiras, é o que o afirma e imputa a diferença cultural, pois ele só é expulso dos guetos por oferecer uma ameaça real a ordem cultural. Se ele fosse apenas um sujeito clínico, não teria porque ser isolado dos guetos binários formados. Se ele é segregado é porque os demais reconhecem sua posição de sujeito para além da terminologia clínica.

*** - Statu quo é uma redução da expressão latina [in] statu quo [ante], que significa, literalmente, "no mesmo estado em que se encontrava antes".

Ainda que muitas outras questões possam ser levantadas, como discussões sobre estereótipos, representação e significantes e marcadores culturais D.A.s os quais não adentramos neste trabalho de forma intencional, esperamos que a posição do sujeito D.A. tenha sido marcada. Mesmo que a terminologia D.A. possa ser contestada, não há problemas em considerá-lo um ensurdecido (desde que lhe mantenham o propósito) ou substituir o termo deficiente por outro de mesmo cunho, Campos (2006) já fez uma longa e boa discussão acerca do emprego das terminologias. O que é de fato crucial neste caso, é não roubar-lhe a identidade e nem tentar reduzi-la.

E “O espaço não se reduz a um simples cenário onde se inscreve e atua um corpo. Muito mais do que isto, é o próprio corpo que institui e organiza o espaço [...].” (Veiga-Neto in: THOMA, 2006, p. 9) então o corpo D.A. é capaz de organizar o espaço que lhe dá sentido, lembrando que a percepção desse espaço é contingente.

Se não vamos classificar a sociedade em simples binariedades e nem vamos cair na onda do multiculturalismo, então precisamos começar a ver e ouvir os sujeitos para além de suas diferenças, e como nos diz Bauman (2003, p. 134) “Se vier a existir uma comunidade no mundo dos indivíduos, só poderá ser [...] uma comunidade de interesse e responsabilidade em relação aos direitos iguais de sermos humanos [...].”

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O Currículo e a Educação de SurdosPor REJANE REGINA KOLTZ PLINSKI

RESUMO

Educação é sempre um tema bastante debatido nos meios acadêmicos. Há muitas dúvidas e questionamentos sobre qual a metodologia e o currículo que melhor se adaptam ao ensino, tanto de alunos ouvintes quanto de alunos surdos. No caso dos alunos surdos, esse assunto é um tanto delicado, pois exige um conhecimento que vai além do que é ensinado nas academias. Há uma necessidade de se ir muito além, para que o ensino a eles oferecido possa realmente atender a todas, ou quase todas as necessidades e expectativas. Por isso é importante que se faça um estudo sobre o currículo e como se dá o ensino em escolas de surdos. O meu objetivo com este texto não é dar respostas exatas, mas chamar a atenção para aspectos importantes na educação de alunos surdos. Iniciarei com um breve histórico sobre a trajetória do currículo na educação, relacionando-o com a educação de surdos e abordarei questões que considero importantes ao se elaborar um currículo para o ensino dos mesmos.

Palavras-chave: currículo – Educação – surdos

The Curriculum and Education of the Deaf

ABSTRACT

Education is always a much debated topic in academic circles. There are many doubts and questions of methodology and curriculum that best fits the education of both students and listeners of deaf students. In the case of deaf students, this subject is rather delicate, since it requires knowledge that goes beyond what is taught in the academies, there is a need to go much further, so that the education offered to them can actually meet all, or almost all the needs and expectations. Therefore it is important to do a study on the curriculum and how is the teaching in schools for the deaf. My goal with this text does not give accurate answers, but to draw attention to important aspects in the education of deaf students. I will begin with a brief history of the trajectory of the curriculum in education in relation to the education of deaf and discuss issues important to consider when preparing a curriculum for teaching deaf students.

Keywords: curriculum – Education – deaf

1. INTRODUÇÃO

A educação dos surdos passou por profundas transformações no decorrer do seu desenvolvimento e podemos dizer que em muitos momentos foi traumatizante para alguns sujeitos surdos em virtude de uma imposição ouvintista que privilegiava o oralismo e o treinamento auditivo, não respeitando a sua cultura e língua. A conseqüência disso foi que os surdos não tiveram uma escolarização efetiva, ocasionando um atraso escolar. No decorrer da história as pessoas ouvintes decidiam o que seria melhor para os surdos, impondo a sua vontade em detrimento da vontade dos sujeitos surdos, pois nunca lhes era questionado o que era importante e necessário aprender de forma que os ajudassem a se desenvolverem como verdadeiros cidadãos.

Atualmente os debates e estudos sobre o processo de ensino e aprendizagem de alunos surdos vêm ocupando um importante espaço não só nas instâncias educacionais como também na comunidade surda, através de reivindicações de estruturas diferenciadas e preparadas para atender suas necessidades. Ao analisarmos as propostas que os sujeitos surdos fazem em relação à educação percebemos haver uma grande preocupação de como o ensino será ministrado e o que será ensinado. Por isso é de fundamental importância que os currículos elaborados nas escolas levem em consideração as reivindicações dos sujeitos surdos para que haja respeito a sua cultura, língua, identidade e para que as escolas de surdos cumpram com o seu papel de mediadoras no desenvolvimento de conteúdos.

2. OBJETIVOS

Através deste trabalho proponho-me a identificar e analisar a forma pela qual a educação de surdos e as propostas curriculares vêm atendendo as expectativas dos alunos e se ao elaborarmos os currículos estamos apenas nos preocupando com o aspecto legal sem levar em consideração o que realmente será ensinado em sala de aula.

A intenção é levantar questões sobre como proporcionar condições concretas de aprendizagem. No entanto não pretendo chegar a respostas conclusas e, sim, refletir a respeito desse assunto tão importante e colaborar de alguma forma com a educação de pessoas surdas. Este é um assunto que me desperta interesse, principalmente ao questionar minha própria prática docente, como atuante em uma escola de surdos na cidade de Porto Alegre.

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Espero poder contribuir com a reflexão a respeito dos trabalhos desenvolvidos nas escolas que atendem alunos surdos ajudando assim colegas. Espero, que a partir de reflexões que proponho, possamos construir uma proposta curricular eficiente, capaz de proporcionar um ensino de maior qualidade.

3. JUSTIFICATIVA

O currículo é elemento fundamental na dinâmica da escola, pois é ele que norteia o trabalho a ser desenvolvido em cada ambiente escolar. Portanto, proponho uma reflexão acerca da necessidade de organização de um currículo flexível e que seja capaz de atender às demandas e necessidades de ensino na educação de surdos.

É importante ressaltar que não me proponho a dar respostas, mas pretendo levantar questionamentos que sirvam como motivadores à análise dos currículos elaborados e praticados nas escolas de surdos. Com isso, espero ser possível rever questões que envolvem o trabalho docente nessas escolas. Acredito que este trabalho poderá contribuir de alguma forma, de modo a ajudar pessoas que tenham interesse nessa área da educação.

4. METODOLOGIA

Por trabalhar em uma escola de surdos e muitas vezes me questionar sobre questões como a minha prática docente, o fraco desempenho acadêmico dos alunos em noções básicas de leitura e escrita e conversas com minhas colegas sobre os processos de ensino e aprendizagem de surdos, resolvi fazer uma pesquisa bibliográfica a respeito do assunto Currículo e Educação de Surdos. Procurei fazer um levantamento da história do currículo e relacionar com a educação de surdos. Por isso começo escrevendo sobre a definição de currículo e passo a relatar como o currículo foi se desenvolvendo no decorrer dos tempos. Procurei fazer uma possível relação entre a história da Educação de Surdos e a História do Currículo, de acordo com o que conhecemos nos dias de hoje. Em seguida faço uma análise a respeito do que alguns autores pensam sobre o currículo em escolas de surdos e finalizo me posicionando a respeito das análises feitas.

O objetivo de fazer um trabalho bibliográfico surgiu do interesse de saber o que pesquisadores da área pensam sobre a elaboração de um currículo eficiente ou que pelo menos possa atender aos interesses de pessoas surdas em termos educacionais. Através da leitura de diversos autores procurei ressaltar aspectos pertinentes ao assunto que puderam me auxiliar na construção desse texto. Pela minha prática docente, conversas com colegas e análise do desempenho acadêmico dos alunos, procurei entender e analisar como ocorre a aprendizagem dos alunos e interpretar essas situações, tendo por base o currículo utilizado na escola e textos pesquisados. Tudo isso contribuiu para que pudesse chegar as conclusões deste artigo que com certeza ajudarão na construção do meu conhecimento, do meu aprender e do meu ensinar.

5. UM POUCO DE HISTÓRIA

De acordo com o dicionário Houaiss (2009), currículo é definido como “programação de um curso ou de uma matéria a ser examinada.” Do ponto de vista etimológico, a palavra currículo vem do latim scurrere e significa correr no sentido de um percurso que deve ser realizado em um curso ou carreira.

Contemporaneamente, deve-se levar em conta o fato de que dependendo dos objetivos a que se propõe um determinado ensino, poder-se-á definir currículo, já que ele não é algo fechado em si. De acordo com Sacristán (1998), ao definirmos currículo estamos descrevendo a concretização das funções da própria escola e a forma particular de enfocá-las num determinado momento social e histórico, para um nível ou modalidade de educação, numa trama institucional.

O currículo pode ter diferentes abordagens, dependendo do enfoque que se quer dar a ele. Conforme Krug (1999), o mesmo pode ser definido segundo uma Rede de Ensino ou uma escola em particular, pode também seguir determinados livros didáticos e, então, a partir deles se organizar o currículo. Ou de acordo com a realidade cultural, histórica e social definir qual o melhor currículo a ser desenvolvido.

A própria definição de currículo sofreu modificações no decorrer da história da Educação. Portanto, é importante que se faça uma análise de como o currículo se desenvolveu no decorrer dos tempos, até para que possamos compreender as diferentes abordagens e fatores que envolveram a elaboração do mesmo. Nesse sentido é importante, também, refletir sobre como ocorreu a construção da Educação de Surdos, ao longo da história, procurando compreender seus desdobramentos e influências sobre a educação na atualidade.

Dito isso, é relevante levar ao conhecimento do leitor, que no texto que segue, ocorrerão alguns “saltos” cronológicos, o que se deve ao fato de que apesar de haver uma possível história sobre o currículo na educação, a inclusão da problemática da educação de surdos – eixo deste trabalho – foi, de certo modo, negligenciada, devido aos valores e regimes de verdade que delinearam tais questões no decorrer dos anos. Assim, se busca aqui, traçar uma possível relação entre a história da Educação de Surdos e a História do Currículo, de acordo com o que conhecemos nos dias de hoje.

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Strobel (2006) faz um retrocesso na história da educação de surdos, explicando que a história dos surdos, a pedagogia e as políticas têm sido elaboradas sempre sob uma perspectiva dos ouvintes e não dos surdos. Segundo a autora, na antiguidade, pessoas que não escutavam eram consideradas anormais, que apresentavam um atraso intelectual. Não havia pesquisas científicas na área educacional e a sociedade considerava que as pessoas normais precisavam falar e ouvir para serem aceitas. Não havia escolas e existiam muitas leis que desconsideravam a capacidade de pessoas surdas. Na Roma antiga, por exemplo, os recém nascidos que apresentassem alguma deficiência eram sacrificados. Como a surdez não era percebida nos bebês recém-nascidos, no ano de 753 a.C., o imperador Rômulo decretou que as crianças que traziam algum tipo de incômodo para o Estado deveriam ser mortas até os três anos de idade. Além de serem sacrificados, os surdos eram, também, marginalizados no que diz respeito ao convívio social. Por serem excluídos da sociedade, muitos eram alvo de compaixão, principalmente a partir da ótica religiosa, e/ou faziam algum tipo de atividades manuais, sendo aceitos em monastérios. Não havia uma preocupação pela formação educacional.

Girolamo Cardano (1501–1576) realizou uma experiência com surdos e o resultado rompeu com a visão de que os surdos eram incapazes de aprender. Segundo SOARES (1999), Cardano reconheceu publicamente a habilidade do surdo em raciocinar, pois segundo ele a escrita poderia representar os sons da fala ou idéias do pensamento, sendo assim, a surdez não seria um problema para o surdo adquirir o conhecimento. Nesta época, a educação de surdos se destinava aos filhos de ricos e nobres da corte espanhola, que queriam garantir a continuidade de seus bens materiais no próprio seio familiar, pois o filho surdo, em alguns casos, teria que ter conhecimento para administrar os bens da família.

Com relação ao currículo educacional propriamente dito, de acordo com Schubert (1986), em anos anteriores a 1900, o mesmo tinha por fundamento valores baseados nas tradições históricas do ocidente. O desenvolvimento de habilidades profissionais era a idéia central do currículo, idéias sobre o “bem” e o “mal” ou justiça eram determinadas por instituições religiosas e pela família. No século XIII, a educação teve influência de São Tomas de Aquino e o currículo ainda não existia de uma forma organizada e oficializada. O conhecimento tinha por base valores cristãos que eram transmitidos através de uma rígida disciplina. No século XVI, os educadores consideravam que ensinar apenas com base nos clássicos já não era suficiente, era importante organizar o currículo de forma que experiências de vida e observação fizessem parte do mesmo, pois havia muitas coisas a serem aprendidas (GESSER, 2002). Em termos de educação de surdos, a partir desse século, conforme explica Strobel (2006), surgiram em diferentes lugares da Europa, professores preocupados com a educação dos surdos. Professores que comprovaram a veracidade da aprendizagem dos mesmos ao usarem a língua de sinais e o alfabeto manual, também havia professores surdos nessa época. O propósito da educação, seguindo os valores da época, era que os surdos pudessem desenvolver seu pensamento, adquirir conhecimentos e se comunicar com o mundo ouvinte. Para tal, procurava-se ensiná-los a falar e a compreender a língua falada, mas a fala era considerada uma estratégia, em meio a outras, de se alcançar tais objetivos.

Nas tentativas iniciais de se ensinar o surdo, além da atenção dada à fala, a língua escrita também desempenhava papel fundamental. Os alfabetos manuais eram amplamente utilizados. Eles eram inventados pelos próprios professores, sob o argumento de que se os surdos não podiam ouvir a língua falada, então eles podiam lê-la com os olhos. (LACERDA, 1998).

Nos séculos, XVII e XVIII com o Iluminismo ou Idade da Razão, o currículo passa a se basear na razão, no método científico e nas experiências para prover a base de julgamento com relação às formas justas e adequadas para se viver em sociedade. O movimento Iluminista teve forte influência na educação. Segundo Gesser (2002) Parker, um pensador americano influenciado por educadores europeus, acreditava que o currículo deveria ser baseado nas experiências e interesses das crianças. Ele substituiu o treinamento do método silábico pelo método por palavras, que é a forma pela qual as crianças naturalmente aprendem a linguagem. Para Schubert (1986), isso foi o fundamento para a educação progressivista, movimento extremamente significante no início dos anos 90 nos Estados Unidos, influenciando o mundo. Essas idéias, ao término do século XIX, levaram ao aparecimento do campo de currículo e de sua indagação.

Em 1760, o abade francês Charles-Michel de L’Épée funda em Paris a primeira escola pública para surdos, instituindo o ensino coletivo. Este fato vinculado à história das instituições de surdos criada por um ouvinte é um fato determinante no processo de construção e de expansão da organização política, social e educacional dos surdos no continente Europeu e em diversos países do continente Americano.

Através dessa escola, os surdos puderam se articular numa comunidade surda em que a modalidade lingüística utilizada por eles pôde ser reconhecida como uma forma de comunicação e um método de aprendizagem. De acordo com Lopes (2007), o método utilizado por L’Épée consistia em ensinar sinais que correspondiam a objetos específicos e mostrar desenhos para explicar ações, depois associava o sinal com a palavra escrita em francês. Quando não havia um sinal para expressões abstratas, L’Épée buscava na escrita uma explicação. Diferentemente da compreensão da língua de sinais estabelecida e utilizada pelos surdos junto de seus pares, os métodos do abade encerravam a operacionalização da aprendizagem. Para L’Epée, a linguagem de sinais é concebida como a língua dos surdos e como veículo adequado para desenvolver o pensamento e sua comunicação.

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Seguindo a história, a primeira escola de surdos do Brasil, surgiu no século XIX, em 1857, no Rio de Janeiro. A escola de Paris influenciou diretamente a educação de surdos no Brasil. A escola foi fundada por um professor surdo, Hernest Huet e teve apoio de Dom Pedro II, a qual se desenvolveu com um forte acento na caridade e na benevolência.

Em 1878, em Paris, foi realizado o I Congresso Internacional sobre a Instrução de Surdos, no qual se fizeram acalorados debates a respeito das experiências e impressões sobre o trabalho realizado até então. No Congresso alguns defendiam a idéia de que falar era melhor do que usar sinais, mas que esses eram muito importantes para a criança poder se comunicar. Ali, os surdos tiveram algumas conquistas importantes, como o direito de assinar documentos, tirando-os da “marginalidade” social, mas ainda estava distante a possibilidade de uma verdadeira integração social. (LACERDA, 1998).

O Congresso Internacional de Milão, em 1880, é considerado um marco histórico na educação de surdos. Como explica Lacerda (1998), o congresso foi preparado por uma maioria oralista com o firme propósito de dar força de lei às suas proposições no que dizia respeito à surdez e à educação de surdos. Apresentaram-se muitos surdos que falavam bem, para mostrar a eficiência do método oral. Com exceção da delegação americana e de um professor britânico, todos os participantes em sua maioria europeus e ouvintes, votaram por aclamação a aprovação do uso exclusivo e absoluto da metodologia oralista e a proscrição da linguagem de sinais e por cem anos os surdos ficaram subjugados às práticas ouvintistas, tendo que abandonar sua cultura e sua identidade surda, forçados a imitar os ouvintes e a se parecerem com eles. No entanto a maior parte dos surdos profundos não desenvolveu uma fala socialmente satisfatória e, em geral, esse desenvolvimento era parcial e tardio em relação à aquisição da fala apresentada pelos ouvintes, implicando um atraso de desenvolvimento global significativo.

O oralismo foi bastante criticado, inclusive por ter sido ele um dos fatores que contribuíram com o fracasso escolar dos surdos. Em virtude do limite de comunicação e também pela impossibilidade de conseguirem se apropriar da Língua Portuguesa, os surdos foram considerados incapazes, com déficit cognitivo e dificuldade de socialização. Nesse período, os surdos têm sua história marcada pela violência e pelo poder, porque havia o interesse de transformar o surdo em alguém capaz de se comunicar usando a língua portuguesa. Na lógica do oralismo, a vigilância e o controle exercidos sobre os surdos eram feitos de forma sofisticada, tendo como objetivo disciplinar a “alma” para que ele se sentisse crente e até desejoso dos processos aos quais eram submetidos (LOPES, 2007). A educação dos surdos no Brasil foi influenciada pelas metodologias dos séculos XVI a XIX.

Com a evolução da medicina, um novo discurso emerge e os surdos foram categorizados em surdos leves e surdos profundos, dessa forma passaram a ser considerados “doentes” e “deficientes” os que tinham uma surdez profunda. Nessa fase, o século XIX, o atendimento era voltado para a filantropia e ao assistencialismo. Os surdos eram entregues às instituições e asilos até que estivessem aptos a retornar ao convívio social, que normalmente acontecia quando já eram adultos.

Retornando a história do currículo, no final do século XIX e no início do século XX inicia-se efetivamente, nos Estados Unidos, o currículo como um campo sistemático de trabalho na educação. (KLIEBARD, 1995; MOREIRA, 1990), afirmam que isso ocorreu devido o advento da sociedade industrial e urbana na época. Moreira (1990), explica que o Brasil passou por um processo semelhante em virtude das mudanças que aconteceram na indústria devido ao processo de industrialização que estava ocorrendo em outros países. Com as mudanças sociais, o crescimento das indústrias, o avanço das vias férreas e a chegada de imigrantes foi necessário se pensar em currículo na educação. Em função de todos esses acontecimentos e também uma grande revolução da ciência houve uma batalha ao currículo. De acordo com Selden (1999), o movimento da Eugenia, movimento pela manutenção de uma raça “pura”, teve um grande impacto no currículo nos anos 20, pois os livros didáticos eram usados como ferramentas para veicular seus princípios/valores básicos por meio da educação. Em consequência, ocorreram conflitos entre grupos raciais, especialmente entre negros e brancos, em vários continentes da esfera global. É possível se pensar que isso tenha acarretado maiores dificuldades no que diz respeito ao desenvolvimento da Educação de Surdos, já que os discursos desta época desprivilegiavam as pessoas que fugiam da norma eugênica.

Neste momento, darei um salto na trajetória histórica do currículo educacional e priorizarei o currículo na educação de surdos. Apesar de grandes mudanças em relação aos estudos sobre currículo, até os anos 50 nada de realmente importante aconteceu em relação à educação de surdos. Apenas com as novas descobertas técnicas, houve a possibilidade de “protetizar” crianças surdas muito pequenas. Foram desenvolvidas novas técnicas para que a escola pudesse trabalhar sobre aspectos da percepção auditiva e de leitura labial da linguagem falada, surgindo assim um grande número de métodos, dando ensejo a momentos de nova esperança de que com o uso de próteses, se pudessem educar crianças com surdez grave e profunda a ouvir e, consequentemente, a falar. A aprendizagem da linguagem oral era considerada fundamental para o desenvolvimento integral das crianças, no entanto a forma como as crianças eram ensinadas restringia as possibilidades do desenvolvimento global da criança, visto que o ensino era descontextualizado de interlocuções efetivas, tornando a linguagem difícil e artificial (LACERDA, 1998).

A partir da década de 1950, o Instituto Nacional de Educação de Surdos – INES do Rio de Janeiro estabeleceu o oralismo como opção pedagógica de ensino. De acordo com Soares apud, Niédja e Mélo (2005), o método oral foi

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adotado no INES na gestão da professora Ana Rímoli de Faria Doria que proibiu o uso da língua de sinais oficialmente em sala da aula. Ela se utilizava de publicações vindas dos Estados Unidos para orientar o trabalho dos professores e dos pais.

Apesar de todo período de dominação e opressão oralista, a comunidade surda esteve engajada em movimentos de resistência de formas variadas: criação de associações de surdos, casamento entre surdos, refúgio de crianças surdas nos banheiros e pátios das escolas para terem a liberdade de se comunicarem em língua de sinais.

Nos anos 60 e 70 com a emergência de vários grupos, inspirados pelo movimento dos direitos civis, relacionados à liberação e igualdades das mulheres, dos negros, dos homossexuais e de outros grupos minoritários, entre eles as comunidades surdas, conduziram o currículo a uma nova discussão que visava à reforma do mesmo e surgiram livros, ensaios, teorizações que questionavam o pensamento e a estrutura educacional tradicional. Surge então a pedagogia crítica a qual propõe um currículo voltado aos problemas sociais, econômicos e políticos da realidade. (MOREIRA 1990; SCHUBERT 1986).

Assim na década de 60, começaram a surgir estudos sobre as línguas de sinais utilizadas pelas comunidades surdas. De acordo com Lacerda (1998), apesar da proibição dos oralistas no uso de gestos e sinais, raramente se encontrava uma escola ou instituição para surdos que não tivesse desenvolvido, às margens do sistema, um modo próprio de comunicação através dos sinais. Willian Stokoe (1978) estudou a língua de sinais sob o ponto de vista lingüístico e encontrou uma estrutura que se assemelhava a línguas orais.

No currículo educacional, conforme Silva (2001), os sociólogos franceses Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron desenvolveram uma crítica da educação que se afastava da análise marxista. Segundo eles, a reprodução social está centrada no processo de reprodução cultural. As classes sociais dominantes possuem a cultura de prestígio e de valor social e por isso ela se constitui em capital cultural. O capital cultural existe em diversos estados: estado objetivado (obras de arte, obras literárias e obras teatrais, etc.), o capital cultural institucionalizado (títulos, certificados e diploma) e manifesta-se de forma incorporada, introjetada, internalizada, o habitus. Como a cultura dominante assume a posição de constituinte da cultura e para que não apareça como algo imposto, ela acontecerá como de forma natural. A esse duplo mecanismo Bordieu e Passeron chamam de dupla violência do processo de dominação cultural. A dominação cultural acontece na escola como um mecanismo de exclusão social. O currículo escolar está baseado no que é determinado pela cultura dominante e é transmitido através do código cultural dominante. O que estiver fora desse “código” será considerado errado.

Portanto para crianças que já convivem em um meio que se utiliza desse código padrão fica mais fácil assimilar e entender, porém para crianças que o desconhecem isso lhes parecerá estranho e alheio a sua realidade, determinando o seu fracasso escolar, pois não faz parte de sua vivência, a sua cultura nativa é desvalorizada e o seu capital cultural é baixo ou quase nulo. Dessa forma completa-se o ciclo de reprodução cultural em que as classes sociais dominantes continuam se mantendo e garantindo o processo de reprodução social. A proposta de Bourdieu e Passeron é que as crianças das classes dominadas tenham as mesmas experiências que as crianças das classes dominantes, ou seja, ter uma proposta pedagógica em que se reproduzam na escola as mesmas condições que as crianças das classes dominantes têm na família. (SILVA, 2001)

Assim podemos perceber a relação de poder existente na educação de ouvintes e que se refletirá em especial na educação de surdos em que o modelo ouvintista era priorizado. A dificuldade de aprendizagem da língua oral, que provoca sérias consequências para o desenvolvimento da criança, sobretudo na escolarização- aliada a uma nova visão por parte da comunidade em geral acerca dos grupos minoritários, levou alguns profissionais a repensarem questões relacionadas à educação das crianças surdas, seu espaço na sociedade e sua relação com os ouvintes. (GOLDFELD, 2001)

Dessa forma nos anos 70 surgiu a chamada comunicação total; uma reação ao oralismo até então existente. “A comunicação total é a prática de usar sinais, leitura orofacial, amplificação e alfabeto digital para fornecer inputs lingüísticos para estudantes surdos, ao passo que eles pudessem se expressar nas modalidades preferidas” (Stewart 1993, p. 118). A comunicação total era vista como uma forma mais flexível de comunicação surda, pois era permitido o uso de diferentes meios de comunicação, trazendo para a sala de aula os sinais utilizados pelas comunidades de pessoas surdas. (GÓES apud LOPES, 2007)

Essa proposta pedagógico-educacional tinha por objetivo fornecer à criança a possibilidade de desenvolver uma comunicação real com seus familiares, professores e pares, para que pudesse construir seu mundo interno. A proposta de comunicação total defendia a ideia de que a língua de sinais é a língua natural dos surdos, que apesar de não ouvirem, podem desenvolver plenamente uma língua viso gestual. De acordo com os pressupostos dessa filosofia, aconteceram diversas tentativas de aproximação das duas línguas (oral e de sinais), criando línguas orais sinalizadas. Essas línguas utilizam o léxico da língua de sinais submetido à gramática da língua oral. (GOLDFELD, 2001). O argumento favorável a essa filosofia educacional era que a mesma não se oporia à diferença surda, mas que possibilitaria o acesso a várias formas de aprendizagem e de interlocução lingüística. Os surdos além de aprenderem o português também aprenderiam a língua de sinais. Nesse momento a oralização era apenas uma das áreas trabalhadas para possibilitar a integração social do indivíduo surdo.

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Alguns autores que trabalham na área, não reconhecem a Comunicação Total como uma filosofia, visto que não há como utilizar duas línguas simultaneamente. Neste caso o bimodalismo não favoreceria o aprendizado da língua de sinais, mas fortaleceria o uso de alguns sinais para que o português fosse ensinado (BRITO apud LOPES, 2007).

A partir da década de oitenta, surge uma maneira diferente de perceber o surdo e a língua de sinais. É necessário valorizar essa língua e a cultura surda, não misturando com a língua oral. Assim profissionais de diferentes áreas começam a se interessar por esse assunto. Junto com os estudos sobre comunicação total, outros estudos sobre a língua de sinais foram ocorrendo de forma mais estruturada e surgindo alternativas educacionais orientadas para uma educação bilíngüe. Nessa proposta é defendida a idéia de que a língua de sinais é facilmente adquirida pelos surdos, possibilitando o acesso a uma linguagem que permite uma comunicação eficiente e completa como aquela desenvolvida por sujeitos ouvintes e permite-lhe um desenvolvimento cognitivo, social, etc. muito mais adequado e compatível com sua faixa etária. (LACERDA, 1998)

Segundo Lacerda (op.cit), no bilinguismo a proposta é ensinar duas línguas, a língua de sinais e, secundariamente, a língua do grupo majoritário. A língua de sinais, por contar com o canal viso-gestual, é mais adaptada à pessoa surda e quanto mais cedo a criança for exposta a sinalizar melhor será a sua competência lingüística, facilitando o aprendizado de uma segunda língua. A língua de sinais estará sempre um pouco mais desenvolvida e adiante da língua falada, de forma que a competência lingüística na língua de sinais ajudará na aquisição da segunda língua. O objetivo da educação bilíngüe é que a criança surda possa ter um desenvolvimento cognitivo-linguístico semelhante ao que se verifica nas crianças ouvintes e tenha condições de desenvolver uma relação harmoniosa com os ouvintes, tendo acesso a duas línguas: a língua de sinais e a língua majoritária. Através da filosofia educacional bilíngue, a criança surda tendo contato com o adulto surdo pode construir uma auto-imagem positiva como sujeito surdo, sem perder a possibilidade de se integrar numa comunidade de ouvintes. De acordo com Lopes:

No caso dos surdos, viver numa condição bilíngue implica viver numa condição bi cultural. A convivência surda, tanto com a comunidade surda quanto com a comunidade ouvinte, imprime traços identitários distintos nos sujeitos surdos, pois esses partilham de elos que os posicionam de formas específicas, ora como surdos – quando estão na comunidade surda -, ora como não-ouvintes – quando estão entre ouvintes. (2007, p. 66)

Conforme Skliar apud Lopes (2007), uma proposta de educação bilíngue para surdos pode ser definida como “uma oposição aos discursos e às práticas clínicas hegemônicas – características da educação e da escolarização dos surdos nas últimas décadas – e como um reconhecimento político da surdez como diferença.

De acordo com Niédja e Melo (2005), essa visão é fortalecida com a emergência de uma nova teorização curricular: as vertentes denominadas como pós-moderna e pós-estruturalista, que passam a incorporar o pensamento de Foucault, Derrida, Guattari e Morin, cuja ênfase está na análise da relação entre currículo e construção de identidades e subjetividades.

No início dos anos noventa, estudos voltados para o currículo assumiram um enfoque sociológico, em contraposição à primazia do pensamento psicológico até então dominante. Os trabalhos procuravam compreender o currículo como espaço de relações de poder. As mudanças ocorridas favoreceram reflexões acerca de estudos sobre a surdez e o desnudamento dos efeitos negativos das práticas “ouvintistas”, que, segundo Skliar (1997) sugere uma forma particular de colonização dos ouvintes sobre os surdos. Considerando importante superar essas formas de colonização nas escolas de surdos. Segundo esse autor, ele propõe descolonizar/desouvintizar o currículo. (NIÉDJA e MÉLO, 2005)

Segundo Skliar apud Niédja e Mélo, (2005) adverte que a surdez não deve ser o foco principal dentro da sala de aula, pois poderia acontecer de se reproduzir um currículo também colonizador, em virtude de se estar fazendo segregações. Não é pensar o currículo em oposição ao currículo ouvinte, mas colocar a questão das múltiplas identidades surdas no centro pedagógico.

Com base nessas considerações, um grupo de estudiosos tem reconhecido a importância de desenvolver um novo olhar sobre o currículo, buscando incluir outras metáforas, outras abordagens, outros conceitos na Teoria do Currículo. De acordo com Silva apud Niédja e Mélo (2005), é importante se evitar discursos de grupos restritos que, opressivamente, se apresentam como os únicos discursos possíveis e a única direção a ser tomada para os campos educacional e do currículo. Ele reconhece o enorme benefício de uma abordagem sobre Currículo voltada para a economia política, com influências marxistas, visto que somos uma sociedade capitalista, governada pela produção de valor e mais-valia.

Portanto, segundo Niédja e Mélo (2005), é nesse contexto que a discussão acerca do currículo na educação de surdos vem se acentuando, com destaque para a surdez como diferença e se ampliando frente às atuais reformas promovidas pelo governo na área educacional, dentre elas a proposta de educação inclusiva, em especial na rede regular de ensino, de acordo com o MEC nos PCNs e no documento “Adaptações curriculares – Estratégias para a Educação de Alunos com Necessidades Educacionais Especiais” de 1999. Segundo esse documento as adaptações curriculares podem atender às necessidades particulares de aprendizagem desses alunos. Essas adaptações são modificações, flexibilizações que se realizam no programa curricular comum para atender as

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diferenças individuais. No entanto sabe-se que nesse tipo de educação acaba ocorrendo uma exclusão subliminar, pois os alunos não são atendidos de acordo com suas necessidades, nem mesmo aqueles já incluídos, fato comprovado através dos altos índices de reprovação e de evasão desses educandos.

Segundo Goodson apud Niédja e Mélo (2005), é importante discutir as propostas curriculares ou o chamado currículo prescritivo; “aquilo que está prescrito não é necessariamente o que é aprendido, e o que se planeja não é necessariamente o que acontece” (p.78). Percebe-se então que o que ocorre são relações de poder que determinam a construção de uma proposta, aceitas em determinados momentos enquanto algumas posições não têm espaço para se imporem ou se fazerem ouvir. Reforçando que o currículo é organizado não apenas como para transmitir conhecimentos, mas que incute valores ideológicos, culturais e sociais. Ele é o resultado da seleção de alguém, de um grupo, acerca do que é considerado conhecimento legítimo. Assim, o currículo traduz uma cultura e produz sentidos, significados que constituem diferentes sujeitos. (SILVA, 2001)

Podemos perceber que nas origens do currículo brasileiro as reformas educacionais efetuadas contribuíram para discussões de uma escola mais democrática, apesar de articularem a idéia de adaptar a escola e o currículo à ordem capitalista que se consolidava, influenciados pelas teorias progressivistas de autores norte-americanos.

Em relação à educação de surdos a mesma teve influências marcantes do pensamento curricular brasileiro, passando por diferentes filosofias educacionais. Com o pensamento pós-moderno e pós-estruturalista entende-se que o currículo é um “artefato cultural” e é necessário se dar “voz” às culturas excluídas ou silenciadas pela escola, como forma de garantir uma convivência mais democrática entre os diferentes grupos. Também a necessidade de se acompanhar criticamente as reformas educacionais (inclusão escolar) e curriculares (PCNs) implementadas uma vez que foram impostas e realizadas sob inspiração neoliberal. Nesse contexto é preciso questionar e discernir se o surdo tem sido verdadeiramente respeitado em suas peculiaridades, na forma de pensar, sentir e diferir. Enfim, se há na verdade uma mera aceitação das pessoas diferentes ou se, realmente há um acolhimento da diversidade. (NIÉDJA e MÉLO, 2005)

6. E O CURRÍCULO…

Inevitavelmente quando nos referimos à educação de surdos, precisamos falar a respeito da Língua de Sinais. Assim como afirma Botelho (2005) o que falta aos surdos é uma língua que eles dominem e que lhes permita pensar com todas as complexidades necessárias e ao adquirirem essa língua raramente a compartilham com seus professores.

O que se vê em sala de aula é que muitos alunos não foram alfabetizados em sua língua e sentem muita dificuldade de entender o que se está dizendo. Nesse momento há um questionamento do porquê da dificuldade e alegam que o aluno tem outros problemas que comprometem o seu aprendizado. Será? Se for dada oportunidade ao surdo de adquirir a sua língua, como primeira língua, ele terá condições de desenvolver todo o seu potencial lingüístico e, dessa forma, o seu potencial cognitivo. E por essa razão terá condições de compreender melhor o que lhe será ensinado. (Dorziat, 1998).

Utilizando as palavras de Quadros (2003) a aquisição da linguagem é fundamental para que o sujeito surdo possa reescrever-se através da interação social, cultural política e científica. Dessa forma essa deve ser uma preocupação dos professores que trabalham na Educação infantil. Dar condições ao aluno de uma efetiva aprendizagem da sua língua, pois o processo educacional ocorre mediante a interação lingüística, juntamente com as relações sociais, assim constituindo os modos de ser e de agir do sujeito. Conforme Quadros (Ibidem)

O currículo deveria estar organizado partindo de uma perspectiva visual-espacial para garantir o acesso a todos os conteúdos escolares na própria língua da criança, pois a língua oficial da escola precisaria ser, desde o princípio, a língua brasileira de sinais. (p. 99).

De acordo com Quadros (2003) a alfabetização das crianças surdas deveria partir de uma língua visual espacial; portanto, a língua de sinais. Ao alfabetizarmos não utilizar o português escrito, mas um sistema escrito da língua de sinais. Esse sistema capta as relações que a criança estabelece com a língua de sinais e assim a alfabetização seria uma conseqüência do processo. Estaria garantido o letramento do aluno ao longo do processo educativo. Justamente por ser uma escrita de caráter visual haveria uma contribuição para que o aluno entendesse como se constitui a estrutura da LIBRAS. Sendo assim o professor deve ter o cuidado de elaborar aulas utilizando estratégias de ensino visual.

No entanto, podemos acrescentar que alguns professores, talvez por desconhecimento, utilizam os sinais na estrutura do português, o chamado português sinalizado, nesse caso fica difícil para os surdos entenderem a mensagem do conteúdo que lhes é transmitido. E apesar de saberem LIBRAS, muitas pessoas, também se utilizam do português sinalizado e os surdos são obrigados a aprender determinados sinais, não entendendo o significado, dessa forma os surdos são privados de sua própria língua. Em situações simples de comunicação, o “português sinalizado” pode até ser entendido, mas em situações mais complexas, não há uma compreensão real porque ele confronta duas modalidades com estruturas bem diferenciadas, desorganizando o entendimento. (MARQUES 2007)

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É fundamental que professores aprofundem seus conhecimentos sobre a língua de sinais, mesmo que demande tempo e dedicação. Caso isso não aconteça implicará em risco de não vislumbrar progressos significativos das pessoas surdas, porque continuará a persistir os problemas de comunicação, decorrentes de uma linguagem limitada. (BOTELHO 2005) Quando os professores dominam a Língua de Sinais há uma influência direta nas práticas de leitura e escrita, facilitando o aprendizado do aluno e assim ocorrendo o letramento. Normalmente quando o aluno tem dificuldades de abstração é porque a sua experiência lingüística e escolar foi insatisfatória. Não são poucos os professores que afirmam a incapacidade de abstração dos surdos, talvez eles nunca tenham se perguntado qual é a parte que lhes cabe no processo educativo, é importante haver uma reflexão de como está o seu processo de ensino-aprendizagem para quem sabe uma mudança de atitude. De acordo com Paula Botelho (2005, p.58):

A educação dos surdos não tem oferecido condições favoráveis de acesso às complexidades cognitivas. Além de professores e alunos surdos não compartilharem uma mesma língua, e muitos surdos não serem fluentes em língua de sinais, a preocupação central em muitas escolas ainda é o ensino de palavras. E as palavras, por sua vez, não fazem sentido como pertinentes a uma categoria comum, tampouco se relacionam com um tema significativo.

Sabemos que o ensino de português deve ser contextualizado, que ao ensinar apenas palavras soltas não se consegue perceber as diferentes possibilidades de significado que uma palavra pode ter, dificultando o entendimento do vocabulário que em nossa língua é muito rico. Trabalhar o texto e perceber como ocorre a construção da estrutura frasal requer muito esforço, mas com certeza o resultado será mais eficiente do que apenas trabalhar vocabulário e sinal respectivo, o que acrescenta muito pouco ou quase nada para o aluno surdo. Dessa forma o aluno não se sente motivado a participar da aula, pois não compreende o que está sendo transmitido pelo professor. A metodologia de ensino é freqüentemente pautada no ensino de palavras, pensando a linguagem como um aglomerado de vocábulos. Essa atitude é respaldada na crença que o surdo tem dificuldade de abstração e por essa razão oferecem doses homeopáticas e de pouca qualidade de informação e de escolarização. (BOTELHO, 2005)

A construção de sentido do texto está relacionada ao domínio de palavras. Quando o surdo não conhece determinado vocabulário ele para e tenta entender o sentido lexical, mas isso não resolve os problemas de interpretação e produção textual e, muitas vezes, mesmo conhecendo o vocabulário eles não levam em consideração o contexto em que aquele vocabulário se apresenta. E ao recorrer ao contexto, é comum acontecer, são desencorajados, pois o contexto é tomado apenas como um acessório, e não como condição para a compreensão. Novamente como foi citado acima, os problemas decorrem da ausência da língua de sinais como uma língua de domínio pleno, que permita aos surdos outra perspectiva em relação à língua escrita (BOTELHO, 2005). Dessa forma as atividades desenvolvidas devem ser em libras, com uma posterior leitura e escrita de textos em Língua Portuguesa, o que com certeza facilitará uma melhor compreensão do conteúdo.

De acordo com Lopes (2007), uma proposta bilíngue pressupõe o domínio de duas línguas, em qualquer modalidade que elas possam ser articuladas. No entanto percebe-se que os surdos dominam a língua de sinais, mas não a língua portuguesa. Sendo assim as propostas educacionais estão equivocadas. O caráter bilíngue de uma proposta educativa deve partir do reconhecimento da diferença cultural dos surdos.

A Língua de Sinais dará condições de os surdos tornarem-se seres humanos na sua plenitude, através da apropriação dos conceitos científicos, disponíveis na educação formal. O uso dessa língua, apesar de critério básico, não deve ser visto como a solução de todos os problemas que se apresentam no ensino. Sabemos que outros fatores implicam no efetivo aprendizado de ordem social, cultural e política, contudo a escola deve ser um espaço de luta e de constante preocupação em oferecer um ensino de qualidade, atendendo às expectativas dos alunos para que possam se desenvolver plenamente como cidadãos, independentes intelectuais e poder participar criticamente da sociedade e não apenas se adaptarem a ela.

Conforme Franco (1999), o currículo atual, a princípio o mesmo da escola regular, é apenas adaptado por parte dos professores. Apresenta-se fragmentado, reduzido, criando uma baixa expectativa acerca do rendimento dos alunos. “O currículo em ação, portanto, distancia-se do currículo formal de maneira comprometedora no que tange à garantia de aquisição do conhecimento escolar mínimo.” (p. 221) Muitas vezes, por se saber que o conteúdo é muito difícil, deixamos o mesmo de lado com a desculpa que o surdo não entenderá, a partir dessa atitude estamos negando ao surdo a condição de ter contato com uma informação que poderá lhe ser muito útil em algum momento de sua vida.

Devemos considerar o surdo como alguém que precisa ser exigido e que pode aprender muito mais do que aquilo que é necessário para a sua passagem de ano e, para que ele tenha melhores condições, também é necessário que ele saiba ler e escrever. Em contrapartida há muitos educadores que evidenciam uma preocupação em elaborar um currículo que se traduza em garantia da construção de indivíduos autônomos e preparados para o mundo que os cerca, dando-lhes condições de emancipação. O currículo deverá englobar além do conhecimento escolar a construção de saberes subjetivos da cultura, da história e das identidades surdas. Se a base da cultura surda não estiver presente no currículo, dificilmente o sujeito surdo irá percorrer a trajetória de sua nova ordem formado por representações inerentes às manifestações culturais, levando em consideração que os surdos constroem uma historicização e estão em constante processo de mudança e transformação.

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Assim o currículo é permanentemente reinventado, reestruturado, de acordo com as necessidades e interesses presentes em sala de aula. Isso implicará na possibilidade de flexibilizá-lo para uma posição de abertura, de acolhida, de solidariedade ao diferente específico e sua identidade. Devemos aproveitar as experiências que os surdos trazem de seu cotidiano, fugindo muitas vezes de uma proposta pedagógica ou da grade curricular, pois em muitos momentos o desenvolvimento de uma aula ocorre no exato momento em que estamos presente em sala de aula com os alunos e determinadas circunstâncias fazem com que venhamos a mudar todo um planejamento, mas essas oportunidades são únicas e devem ser explorada, assim haverá uma aprendizagem, com mais eficácia do que se seguíssemos o planejado. De acordo com Lopes (2007)

Enfim, pensar um currículo surdo que possa produzir, nas relações que se estabelecem dentro dele, outros marcadores surdos pressupõe espaços para a leitura do devir e para o sabor de viver o acontecimento. Devir e acontecimento não podem constituir nem propostas pedagógicas acabadas nem, muito menos, um currículo assumidamente surdo. Portanto, um currículo surdo só pode se estabelecer no acontecimento e na possibilidade de espaço nas escolas para que outras relações e outras verdades possam circular e formar outras marcas naqueles que vivem o currículo e fazem dele algo sempre em movimento. (p. 90)

Na educação de surdos não há uma discussão curricular. O que se vê são apenas adaptações de currículos desenvolvidos em escolas regulares. Em muitos casos os professores simplificam os conteúdos ou não se preocupam em como transmitir o conhecimento, esquecendo-se que o surdo possui uma modalidade de linguagem viso espacial. Contudo, conforme Botelho (2005), o objeto concreto nem sempre é necessário. “Tanto a aprendizagem de surdos como de ouvintes se faz de muitas maneiras, e não somente pela experiência direta, mediante contato com a realidade, pelos órgãos dos sentidos.” (pg.59) Mesmo porque nem sempre se conseguirá encontrar materiais visuais que contemplem o conteúdo que se está ensinando. Nessa situação cabe a criatividade do professor e, novamente, o emprego da libras de forma clara e coerente, facilitando a aprendizagem dos alunos.

Sendo assim, cabe aos profissionais envolvidos na educação de surdos o compromisso de procurarem mudar esse ensino existente em que muitos não levam em consideração a capacidade intelectual dos alunos, pois grande parte dos surdos mal sabe ler e escrever. Não podemos mais admitir a ausência de conteúdos de ensino, que reflete a baixa expectativa quanto ao desenvolvimento dessas pessoas. O que se pretende é a viabilização de um ensino de qualidade que os impulsione para o futuro com melhores condições de vida, promovendo atividades que priorizem os aspectos social, lingüístico e afetivo e trabalhos com conteúdos culturais interessantes, atualizados, com os quais os alunos possam travar relação direta, para que apreendam melhor os significados presentes no mundo. Pensar o currículo requer pensar nas diferenças e, por isso, seria importante a participação de pessoas surdas que ajudariam na construção do mesmo.

Portanto, currículo é um guia, um instrumento útil que irá orientar o trabalho do professor, por isso deverá ser pensado e construído no dia a dia de acordo com os interesses dos alunos. Ele se moldará as circunstâncias da sala de aula, assim vamos planejando e desenvolvendo os conteúdos e atividades, adaptando metodologias de acordo com aptidões e características das turmas. Deverá ser uma trajetória que leva ao desenvolvimento do ensino-aprendizagem eficiente, considerando os saberes da cultura e da identidade surdas.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sabemos que na organização do currículo muitas coisas estão envolvidas, como foi visto no desenvolvimento deste trabalho. Ao pensarmos no currículo para surdos não devemos esquecer-nos de como a educação de surdos foi se desenvolvendo no decorrer dos tempos. É importante que tenhamos em mente que o surdo é diferente e tem suas potencialidades e que o currículo deve levar isso em consideração. Não podemos mais aceitar um ensino simplista, desmotivador. Precisamos nos questionar constantemente em como proporcionar condições concretas de aprendizagem, refletir sobre a nossa prática docente e avançar criticamente de forma que não venhamos a cair no erro de fazermos com que nossos alunos saiam da escola com dificuldades de entenderem o mundo a sua volta. Devemos buscar estratégias para o desenvolvimento de um currículo autônomo do modelo ouvinte e que parta das vivências, reflexões, expectativas de professores, alunos e familiares. O domínio da língua portuguesa, facilitadora para o acesso à leitura e à produção escrita é um grande desafio a ser vencido e deve ser priorizado no currículo.

É importante que nós, professores, sejamos reflexivos em relação a nossa prática docente e estejamos abertos ao aprendizado, sabendo-se que não existem repostas conclusivas, mas que devemos constantemente avaliar e auto-avaliar nosso trabalho em sala de aula, abrindo mão muitas vezes de conceitos pré-estabelecidos. A prioridade será sempre o aprendizado de nossos alunos para que realmente se possa atender suas necessidades e expectativas.

REFERÊNCIAS

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QUADROS. R. M. de. Situando as diferenças implicadas na educação de surdos: inclusão/exclusão. In: Ponto de Vista, Florianópolis, n.05, p.81-111, 2003

SACRISTÁN, J. Gimeno. O currículo: uma reflexão sobre a prática. J. Gimeno Sacristán; trad. Ernani F. da Rosa – 3. ed. – Porto Alegre: ArtMed, 1998.

SILVA, T.T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias de currículo. Belo Horizonte. Autêntica, 2001.

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UNIDADE 2LÍNGUA DE SINAIS, LETRAMENTO, IDENTIDADES E CULTURASURDAOBJETIVO Nesta unidade você irá estudar sobre a cultura e as identidades dos sujeitos surdos esua influência no processo de escolarização, no intuito de:−Compreender o processo de letramento dos surdos;−Reconhecer a Língua de sinais como línguada educação dos surdos;−

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Identificar a língua portuguesa como segunda língua dos surdos−Analisar a língua a partir da constituição da cultura;−Conhecer as múltiplas identidades surdas.

2.1. letramento e educação de surdosAntes de iniciarmos as discussões referentes à educação de surdos propriamente dita, é preciso entendermos o significado da palavra “letramento”. Letramento é uma palavra que circula desde a década de 1980, no Brasil, no campo da Educação e das Ciências Lingüísticas.Segundo Soares (2006) novas palavras são criadas quando os fenômenos passam a s e r c o m p r e e n d i d o s d e u m a f o r m a d i f e r e n t e , q u a n d o s u r g e m f a t o s o u i d é i a s n o v a s . Neste caso específico, a autora argumenta,Só recentemente passamos a enfrentar esta nova realidade social em que nãobasta apenas saber ler e escrever, é preciso também saber fazer uso do ler e do escrever, saber responder às exigências de leitura e de escrita que a sociedade faz continuamente – daí o recente surgimento do termo letramento (SOARES, 2006,pg. 20)Tal termo foi criado, a partir da tradução literal da palavra em inglês “ literacy ”. De acordo com Soares “2006)letra-do latim littera, e o s u f i x o -mento, q u e d e n o t a o r e s u l t a d o d e u m a a ç ã o (como por exemplo, em ferimento , resultado da ação de ferir ).Letramento é, pois o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como conseqüência de ter-se apropriado da escrita. (pg. 18)E porque falar de letramento quando falamos em educação de surdos? Antes de responder a essa pergunta, é preciso compreender os conceitos a seguir expostos:2.1.1. Relação entre L1 (Libras) - e L2 (língua portuguesa)Desde a década de 1980 ocorre um movimento mundial que aponta em direção à necessidade de se implantar uma política educacional bilíngüe quando se pensa em educação de e para surdos. Em termos gerais, esta educação considera que,inicialmente, os surdos devam desenvolver a língua de sinais como primeira língua(L1), no contato com surdos adultos usuários da língua e participantes ativos do processo educacional de seus pares. A partir da L1, os surdos são expostos ao ensino da escrita da língua majoritária e, para tal, toma-se como base os estudos sobre ensino-aprendizagem de segunda língua (L2) e os trabalhos sobre o ensino de línguas para estrangeiros (LODI & MOURA, 2006, pg. 2)Segundo Skutnabb-Kangas(1994)apud L o d i & M o u r a ( 2 0 0 6 , p g . 5 ) o c o n c e i t o d e L 1 é definido a partir dos critérios a seguir:a) origem:a) L1 é entendida como a língua que é primeiro desenvolvida pelos sujeitos; b) identificação interna: a L1 e a língua que os sujeitos se autoidentificam como falantes;c) identificação externa: a L1 é a língua pela qual os sujeitos são identificados pelos outros como falantes;d) competência: a L1 é a língua que os sujeitos possuem maior domínio;e)  função: relacionada ao uso, a L1 é aquela que é mais utilizada socialmente pelo sujeito.

LÍNGUA DE SINAIS: primeira língua dos surdosConforme dito anteriormente, desde a década de 1960, quando o Lingüista Willian Stokoe iniciou os estudos sobre as línguas de sinais, comprovou-se que ela é uma língua como qualquer outra, composta por todos os elementos legítimos de uma língua.“Ao c o n t r á r i o d o q u e m u i t o s p e n s a m , a s l í n g u a s d e s i n a i s n ã o s ã o l i m i t a d a s e n e m empobrecidas quando comparadas às línguas orais” (PEREIRA, 2002, pg. 47). No caso d o B r a s i l , a L í n g u a B r a s i l e i r a d e S i n a i s é u m s i s t e m a l i n g ü í s t i c o l e g í t i m o e n a t u r a l , utilizado pela comunidade surda brasileira, de modalidade gestual-visual e com estrutura gramatical independente da Língua portuguesa falada no Brasil.E n q u a n t o 1 ª l í n g u a , s u a a q u i s i ç ã o s e d á p o r m e i o d a e x p o s i ç ã o d a s c r i a n ç a s s u r d a s à l í n g u a d e s i n a i s d e s d e o m a i s c e d o p o s s í v e l .

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“Entretanto, infelizmente, o desenvolvimento da LIBRAS como L1 é ainda restrita aos filhos de surdos usuários desta l í n g u a e à s r a r a s e x p e r i ê n c i a s e d u c a c i o n a i s q u e p o s s u e m , e m s e u q u a d r o d e  profissionais, professores surdos . ” ( L O D I & M O U R A , 2 0 0 6 , p g . 2 ) . A s s i m , a r e a l i d a d e brasileira revela que os surdos, principalmente os jovens e adultos, não conhecem a língua de sinais. Tal situação concretiza-se a partir das representações sobre surdos e língua de sinais compartilhadas pelo olhar clínico-terapêutico, que vê a surdez como deficiência e a língua de sinais como mímica ou como ponte para o aprendizado da língua falada. Nos últimos anos, no entanto, percebe-se o surgimento de outros olhares em relação aos surdos e à língua de sinais, no sentido do reconhecimento da língua de sinais como língua da comunidade surda.Além disso, outro problema pode ser evidenciado. Quando aceita nas escolas, a língua de sinais é inferiorizada e, na maioria das vezes, utilizada como ferramenta para a aprendizagem da língua portuguesa. Desse modo, Lodi & Moura (2006) ressaltam torna-se necessário que haja o reconhecimento da LIBRAS, em seu valor social,pois se este processo não for realizado aos surdos cabe, apenas, a submissão ao p o r t u g u ê s , n a m e d i d a e m q u e e s t a l í n g u a c o n t i n u a a o c u p a r u m p a p e l s ó c i o - ideológico central na constituição dos processos lingüísticos e da subjetividade desses sujeitos (pg. 10)É preciso ir além da garantia do conhecimento e do uso da língua de sinais pelos surdos. A LIBRAS precisa assumir o papel de L1 na vida dos surdos. Desse modo, faz-se necessário repensar as práticas educacionais atuais em relação aos surdos. De acordo c o m P e r e i r a ( 2 0 0 2 , p g . 4 9 ) é a t r a v é s d a l í n g u a d e s i n a i s q u e “ [ . . . ] o s a l u n o s s u r d o s  poderão atribuir sentido ao que lêem, deixando de ser meros decodificadores da escrita, e é através da comparação da língua de sinais com o português que irão constituindo o seu conhecimento do português.” E é neste momento que podemos responder à pergunta: porque falar de letramento quando falamos em educação de surdos?Porque falar apenas em alfabetização não dá conta da complexidade da educação dos surdos. Segundo Soares (2006, pg. 16) “ a a ç ã o d e alfabetizar , i s t o é , s e g u n d o o  Aurélio, de “ensinar a ler” (e também a escrever, que o dicionário curiosamente omite) é designada por alfabetização” ( g r i f o s d a a u t o r a ) . P o r t a n t o , a l f a b e t i z a ç ã o é a a ç ã o d e ensinar a ler e a escrever. E“alfabetizado nomeia aquele que apenas aprendeu a ler e a e s c r e v e r , n ã o a q u e l e q u e a d q u i r i u o e s t a d o o u a c o n d i ç ã o d e q u e m s e a p r o p r i o u d a leitura e da escrita, incorporando as práticas sociais que as demandam).”  (Ibid, pg. 19).P o r t a n t o , c o n s i d e r a r a a p r e n d i z a g e m d a l í n g u a p o r t u g u e s a i s o l a d a m e n t e , é n ã o considerar o sujeito surdo e sua língua.De acordo com Pereira (2002, pg. 49) c o n t i n u a a p r e v a l e c e r u m a p r e o c u p a ç ã o c o m a a l f a b e t i z a ç ã o , o u s e j a , c o m o ensino das letras, sua combinação em vocábulos, codificação e decodificação dos m e s m o s , s e n d o a t r i b u í d a p o u c a o u n e n h u m a i m p o r t â n c i a a o s u s o s d a e s c r i t a enquanto práticas sociais mais amplas (letramento). Como resultado disso, muitos alunos surdos, embora identifiquem significados isolados de palavras, e sejam c a p a z e s d e u s a r a s e s t r u t u r a s f r a s a i s t r a b a l h a d a s , n ã o c o n s e g u e m f a z e r u s o efetivo da língua, não se constituindo como sujeitos de linguagem

Portanto, é preciso proporcionar na escola, por meio das diferentes disciplinas do c u r r í c u l o e s c o l a r , p r á t i c a s s o c i a i s d e l e i t u r a e e s c r i t a . A l é m d i s s o , é p r e c i s o q u e o s professores tomem conhecimento que para o surdo, a língua portuguesa é sua segunda íngua.

SISTEMA SIGNWRITING Em 1974 Valerie Suton, inventou um código para escrever passos de danças, o dancewriting. Foi a partir do dancewriting que o signwriting foi criado, e a bailarina Valerie S u t o n c o n t r i b u i u p a r a o s e u a p e r f e i ç o a m e n t o . D e s d e a s u a c r i a ç ã o , v e m s e n d o modificado, padronizado e melhorado.

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O Sistema Signwritint é a modalidade escrita da Língua de Sinais. É um código e pode registrar qualquer Língua de Sinais sem passar pela tradução da língua falada. No entanto, para escrever em signwriting é preciso conhecer uma língua de sinais.A s l í n g u a s d e s i n a i s , a t é e n t ã o c o n s i d e r a d a s á g r a f a s , p a s s a m , a p a r t i r d o Singwriting, a possuir uma tecnologia escrita importante para a cultura das comunidades surdas, que podem registrar sua história, transmitir e preservar informações através de textos dos mais variados gêneros. Dessa maneira, a língua, antes presencial e imediata,p o d e s e r t r a n s m i t i d a a t r a v é s d o s d i f e r e n t e s c o n t e x t o s , m e d i a n d o a u t o r e l e i t o r   distanciados no espaço e no tempo.Geralmente, para escrever e/ou ler um texto o surdo precisa realizar uma tradução d e s u a l í n g u a p a r a o p o r t u g u ê s e v i c e - v e r s a , a c a r r e t a n d o d i f i c u l d a d e s d e a c e s s o a produção escrita, bem como na própria criação e leitura de textos, o que gera conflitos no contexto escolar e no decorrer da vida desses sujeitos, como mostra Perlin (2005), ao apresentar o depoimento de L. de 40 anos:

É tão difícil escrever. Para fazê-lo meu esforço tem de ser num clima de despender e n e r g i a s o s u f i c i e n t e d e m a s i a d a s . E s c r e v o n u m a l í n g u a q u e n ã o é m i n h a . N a e s c o l a f i z t o d o e s f o r ç o p a r a e n t e n d e r o s i g n i f i c a d o d a s p a l a v r a s u s a n d o o dicionário. São palavras soltas, elas continuam soltas. Quando se trata de pô-las no papel, de escrever meus pensamentos, eles são marcados por um silêncio p r o f u n d o . E u p r e c i s o d e c o d i f i c a r o m e u p e n s a m e n t o v i s u a l c o m p a l a v r a s e m português que tem signos falados. Muito há que é difícil de ser traduzido, pode ser apenas uma síntese aproximada. (pg. 57)

Esse sistema está sendo difundido e pesquisado no Brasil há cerca de 15 anos. A precursora dos estudos no Brasil é Marianne Stumpf. Ela justifica a importância deste sistema, argumentando:“nós , su rdos , p r ec i s amos de uma e sc r i t a que r ep re sen t e o s sinais visuais-espaciais com os quais nos comunicamos, não podemos aprender bem uma escrita que reproduz os sons que não conseguimos ouvir” . (Stumpf, 2002, p. 63).Nesta argumentação de Marianne Stumpf, é possível perceber a importância e a nece s s idade da d ivu lgação de s se s i s t ema , bem como da adoção de l e na s e sco l a s .Pe rcebe - se a nece s s idade da s c r i ança s su rda s em r ep re sen t a r sua f a l a po r me io de s i gnos g r á f i cos , po i s mu i t a s veze s pa r a a s soc i a r uma pa l av ra em po r tuguês a s eu significado, desenham sinais, ou quando tem contato com o signwriting, inicialmente,tentam criar, espontaneamente, suas próprias representações para palavras conhecidas.A e s c r i t a d a l í n g u a d e s i n a i s é f o r m a d a p o r u n i d a d e s q u e c o r r e s p o n d e m à s configurações de mão, os movimentos e as expressões faciais gramaticais em diferentes pon tos de a r t i cu l ação que fo rmam pa l av ra s med i an t e a l gumas combinações . Pa r a compreende rmos em que cons i s t e o s i s t ema , vamos conhece r a l gumas un idades ge s tua i s que e l e r ep re sen t a . De aco rdo com Gi r a f f a , San t a ro sa e Campos (2000 ) , o sistema Signwriting é definido por três estruturas básicas: a posição de mão, através dos movimentos e pelo contato. As posições básicas das mãos são: fechada, circular e aberta,conforme a figura abaixo. A mão pode estar paralela ou perpendicular ao chão.

Posições básicas das mãos

Os movimentos podem ser classificados em duas categorias: movimento de dedos e de mãos, conforme a figura a seguir: 

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Movimento

Desse modo, podemos ter uma idéia do que seja o sistema de escrita da língua de sinais.Ex i s t em a lguns l i v ro s de h i s t ó r i a s i n f an t i s que j á e s t ão s endo e l abo rados na modalidade bilíngue: língua portuguesa escrita e língua de sinais escrita. É o caso dos livros Rapunzel Surda e Cinderela Surda. São livros baseados nas histórias clássicas Rapunzel e Cinderela, que trazem adaptações de enredo e personagens, prevalecendo questões relacionadas à identidade e cultura surda.

2.2. AS MÚLTIPLAS IDENTIDADES SURDASDe acordo com Hall (2006), na atualidadea i d e n t i d a d e t o r n a - s e u m a “ c e l e b r a ç ã o m ó v e l ” : f o r m a d a e t r a n s f o r m a d a con t i nuamen te em r e l ação à s fo rmas pe l a s qua i s somos r ep re sen t ados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida historicamente, e não b io log i camen te . O su j e i t o a s sume i den t i dades d i f e r en t e s em d i f e r en t e s momentos ... (pg. 13)Portanto, as identidades são formadas e transformadas nas relações entre pessoas e g rupos de pe s soas ; e l a s não s ão f i xa s ou e s t áve i s , e s im móve i s , mú l t i p l a s , e a t é contraditórias. Um exemplo claro dessa constante mudança das identidades, bem como das representações que as constituem, está no relato de Thoma (2004)Recentemente, quando estava em aula com uma turma de jovens e adultos surdos em uma escola da rede municipal de Porto Alegre, fui surpreendida pelo convite de um aluno para participar de um jantar com desfile para escolha da Miss Brasil Gay Surda 2006. Diante de mim, estava colocada a complexidade das identidades em cenários contemporâneos. Aquele aluno, integrante de um espaço institucional que a t e n d e a l u n o s s u r d o s e m t u r m a s d e s u r d o s e q u e p r o p õ e u m t e m p o d e ap rend i zagem o rgan i zado po r c i c l o s , co locou -me i númera s i nqu i e t ações e provocou questionamentos do tipo: qual identidade estaria sendo mais exaltada naquele convite? Pela ordem, podemos pensar que o concurso de beleza é o mais s i g n i f i c a t i v o , s e g u i d o d a i d e n t i d a d e d e g ê n e r o , e s t a n d o n e s s e c o n j u n t o a i den t i dade su rda em

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ú l t imo l uga r . Qua l da s i den t i dades ma i s o pos i c iona em lugares de exclusão? De qual inclusão reclama? (pg. 14 e 15)Desse modo , podemos d i ze r que a i den t i dade é ma rcada po r a l go que une a s pessoas, mas que ao mesmo tempo as distinguem de outras. Nas palavras de Tomaz Tadeu da Silva (2000)“a identidade cultural ou social é o conjunto dessas características pelas quais os grupos sociais se definem como grupos: aquilo que eles são, entretanto é inseparável daquilo que eles não são, daquelas características que os fazem diferentes de outros grupos” (p. 58).Quando f a l a em iden t i dades su rda s , Pe r l i n (2005 ) , apon t a a nece s s idade do afastamento dos olhares clínico-terapêuticos, que vêem a surdez como deficiência a ser “curada”. Perlin (2005) afirma a existência de múltiplas identidades surdas. A partir de sua pesquisa de mestrado, onde buscou depoimentos dos próprios surdos sobre si, a autora identifica algumas possibilidades de ser surdo. Veja a seguir:

1. IDENTIDADES SURDAS (IDENTIDADE POLÍTICA)Trata-se de uma identidade fortemente marcada pela política surda. São mais  presentes em surdos que pertencem à comunidade surda e apresentam características culturais como sejam: 1. Possuem a experiência visual que determina formas de comportamento, cultura, língua, etc; 2 . Ca r r egam cons igo a l í ngua de s i na i s . Usam s ina i s s empre , po i s é sua fo rma de expressão. Eles têm um costume bastante presente que os diferencia dos ouvintes e que caracteriza a diferença surda: a captação da mensagem é visual e não auditiva o envio de mensagens não usa o aparelho fonador, usa as mãos;3. Aceitam-se como surdos, sabem que são surdos e assumem um comportamento de pessoas surdas. Entram facilmente na política com identidade surda, onde impera a diferença: necessidade de intérpretes, de educação diferenciada, de língua de sinais, etc;4. Passam aos outros surdos sua cultura, sua forma de ser diferente;5. Assumem uma posição de resistência;6. Assumem uma posição que avança em busca de delineação da identidade cultural;7 . Ass imi l am pouco , ou não conseguem a s s imi l a r a o rdem da l í ngua f a l ada , t em dificuldade de entendê-la;8. A escrita obedece à estrutura da língua de sinais, pode igualar-se a língua escrita, com reservas;9. Tem suas comunidades, associações, e/ou órgãos representativos e compartilham entre si suas dificuldades, aspirações, utopias;1 0 . U s a m t e c n o l o g i a d i f e r e n c i a d a : l e g e n d a e s i n a i s n a T V , t e l e f o n e e s p e c i a l , campainha luminosa;11. Tem uma diferente forma de relacionar-se com as pessoas e mesmo com animais;12. Assimilam um pouco mais que os outros surdos, ou não conseguem assimilar a ordem da língua falada, tem dificuldade de entendê-la;13. A escrita obedece a estrutura da língua de sinais, pode igualar-se a língua escrita,com reservas;1 4 . P a r t i c i p a m d a s c o m u n i d a d e s , a s s o c i a ç õ e s , e / o u ó r g ã o s r e p r e s e n t a t i v o s e compartilham com as identidades surdas suas dificuldades, políticas, aspirações eutopias;15. Aceitam-se como surdos, sabem que são surdos, exigem intérpretes, legenda e sinais na TV, telefone especial, companhia luminosa.

2. IDENTIDADES SURDAS HÍBRIDASOu se j a o s su rdos que na sce ram ouv in t e s e com o t empo a lguma doença , acidente, etc. os deixou surdos:1. Dependendo da idade em que a surdez chegou, conhecem a estrutura do português falado e o envio ou a captação da mensagem vez ou outra é na forma da língua oral;2 . Usam l í ngua o r a l ou l í ngua de s i na i s pa r a c ap t a r a mensagem. Es t a i den t i dade também é bastante diferenciada, alguns não usam mais a língua oral e usam sinais sempre;

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3 . A s s u m e m u m c o m p o r t a m e n t o d e p e s s o a s s u r d a s , e x : u s a m t e c n o l o g i a p a r a surdos...;4. Convivem pacificamente com as identidades surdas. 

3. IDENTIDADES SURDAS FLUTUANTES.Os surdos que não tem contato com a comunidade surda. Para Karol Paden são outra categoria de surdos visto de não contarem com os benefícios da cultura surda. Eles também têm algumas características particulares.1. Seguem a representação da identidade ouvinte;2 . E s t ã o e m d e p e n d ê n c i a n o m u n d o d o s o u v i n t e s s e g u e m o s s e u s p r i n c í p i o s , r e spe i t am-nos co locam-nos ac ima dos p r i nc íp io s da comun idade su rda , à s veze s competem com ouvintes, pois que são induzidos no modelo da identidade ouvinte;3. Não participam da comunidade surda, associações e lutas políticas;4. Desconhecem ou rejeitam a presença do intérprete de língua de sinais5. Orgulham-se de saber falar "corretamente";6. Demonstram resistências a língua de sinais, cultura surda visto que isto, para eles,representa estereotipo;7. Não conseguiram identificar-se como surdos, sentem-se sempre inferiores aos ouvintes; isto pode causar muitas vezes depressão, fuga, suicídio, acusação aos outros s u r d o s , c o m p e t i ç ã o c o m o u v i n t e s , h á a l g u n s q u e v i v e m n a a n g u s t i a n o d e s e j o continuo de ser ouvintes;8 . S ã o a s v i t i m a s d a i d e o l o g i a o r a l i s t a , d a i n c l u s ã o , d a e d u c a ç ã o c l i n i c a , d o  preconceito e do preconceito da surdez;9. São surdos, quer ouçam algum som, quer não ouçam, persistem em usar aparelhos auriculares, não usam tecnologia dos surdos. 

4. IDENTIDADES SURDAS EMBAÇADASAs identidades surdas embaçadas são outro tipo que podemos encontrar diante d a r e p r e s e n t a ç ã o e s t e r e o t i p a d a d a s u r d e z o u d e s c o n h e c i m e n t o d a s u r d e z c o m o questão cultural. 1 . Os su rdos não conseguem cap t a r a r ep re sen t ação da i den t i dade ouv in t e . Nem consegue compreender a fala;2. O surdo não tem condições de usar língua de sinais, não lhe foi ensinada nem teve contato com a mesma;3. São pessoas vistas como incapacitadas;4. Neste ponto, ouvintes determinam seus comportamentos, vida e aprendizados.5. É uma situação de deficiência, de incapacidade, de inércia, de revolta;6. Existem casos de aprisionamento de surdos na família, seja pelo estereotipo ou  pelo preconceito, fazendo com que alguns surdos se tornem incapacitados de chegar ao saber ou de decidirem-se por si mesmos;7. Na família a falta de informação sobre o surdo é total e geralmente predomina a o p i n i ã o d o m é d i c o , e a l g u m a s c l í n i c a s r e p r o d u z e m u m a i d e o l o g i a c o n t r a o reconhecimento da diferença;8 . E s t e s s ã o a l g u n s m e c a n i s m o s d e p o d e r c o n s t r u í d o p e l o s o u v i n t e s s o b r E p r e s e n t a ç õ e s c l í n i c a s d a s u r d e z , c o l o c a n d o o s u r d o e n t r e o s d e f i c i e n t e s o u retardados mentais.

5. IDENTIDADES SURDAS DE TRANSIÇÃOE s t ã o p r e s e n t e s n a s i t u a ç ã o d o s s u r d o s q u e d e v i d o a s u a c o n d i ç ã o s o c i a l v ive r am em ambien t e s s em con t a to com a i den t i dade su rda ou que s e a f a s t am da identidade surda.1. Vivem no momento de transito entre uma identidade a outra;2. Se a aquisição da cultura surda não se dá na infância, normalmente a maioria dos surdos precisa passar por este momento de transição, visto que grande parte deles são filhos de pais ouvintes;

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3. No momento em que esses surdos conseguem contato com a comunidade surda, a situação muda e eles passam pela des-ouvintização, ou seja, rejeição da representação da identidade ouvinte;4 . Embora pa s sando po r e s sa de s -ouv in t i z ação , o s su rdos f i c am com seque l a s da representação, o que fica evidenciado em sua identidade em construção;5 . H á u m a p a s s a g e m d a c o m u n i c a ç ã o v i s u a l / o r a l p a r a a c o m u n i c a ç ã o visual/sinalizada;6 . Pa ra o s su rdos em t r ans i ção pa ra a r ep re sen t ação ouv in t e , ou s e j a a i den t i dade flutuante se dá o contrário. 

6. IDENTIDADES SURDAS DE DIÁSPORAAs Iden t i dades de d i á spo ra d ive rgem das i den t i dades de t r ans i ção . Es t ão  presentes entre os surdos que passam de um país a outro ou, inclusive passam de um E s t a d o b r a s i l e i r o a o u t r o , o u a i n d a d e u m g r u p o s u r d o a o u t r o . E l a p o d e s e r   identificada como o surdo carioca, o surdo brasileiro, o surdo norte americano. É uma identidade muito presente e marcada. 

7. IDENTIDADES INTERMEDIÁRIAS.O que vai determinar a identidade surda é sempre a experiência visual. Neste caso, em vista desta característica diferente distinguimos a identidade ouvinte da identidade surda. Temos também a identidade intermediaria geralmente identificada como sendo surda. Essas pessoas tem outra identidade pois tem uma característica q u e n ã o l h e s p e r m i t e e s t a i d e n t i d a d e i s t o é a s u a c a p t a ç ã o d e m e n s a g e n s n ã o é totalmente na experiência visual que determina a identidade surda.1. Apresentam alguma porcentagem de surdez, mas levam uma vida de ouvintes;2. Para estes são de importância os aparelhos de audição;3. Importância do treinamento oral;4. Busca de amplificadores de som...;5. Não uso de intérpretes de cultura surda, etc...;6 . Quando p re sen t e na comun idade su rda , ge r a lmen t e s e pos i c iona con t r a u so de interpretes ou considera o surdo como menos dotado e não entende a necessidade de língua de sinais de interpretes...;7. Tem dificuldade de encontrar sua identidade visto que não é surdo nem ouvinte.Fonte: Palestra proferida durante o Encontro de Instrutores de Língua de Sinais: As Diferentes Identidades Surdas.(12/12/2001) Disponível em: <http://sentidos.uol.com.br/canais/materia.asp?codpag=1347&cod_canal=11>

A pa r t i r de s sa s mú l t i p l a s pos s ib i l i dades de s e r su rdo é pos s íve l pe r cebe r que existem diferentes modos de ser surdo. Quando Perlin(2001) realiza, por meio de sua p e s q u i s a , a i d e n t i f i c a ç ã o d e s s a s i d e n t i d a d e s , n ã o o f a z n o i n t u i t o d e c l a s s i f i c a r e de t e rmina r que só ex i s t em e s sa s pos s ib i l i dades de s e r su rdo e mu i to menos com o objetivo de possibilitar que encaixemos nossos alunos surdos nessas identidades. Ao a f i rma r a ex i s t ênc i a de mu i to s modos de s e r su rdo , a au to r a con t r i bu i pa r a nos sa s reflexões sobre o respeito às diferenças. Pardo nos fala sobre o respeito às diferenças:Respeitar a diferença não pode significar “deixar que o outro seja como eu sou” ou “deixar que o outro seja diferente de mim tal como eu sou diferente (do outro), mas deixar que o outro seja como eu não sou , deixar que ele seja esse outro que não pode s e r eu , que eu não pos so s e r , que não pode s e r um (ou t ro ) eu ; s i gn i f i c a de ixa r que o ou t ro s e j a d i f e r en t e , de ixa r s e r uma d i f e r ença que não s e j a , em absoluto, diferença entre duas identidades, mas diferença da identidade, deixar ser uma outridade que não é outra “relativamente a mim” ou “relativamente ao m e s m o ” , m a s q u e é a b s o l u t a m e n t e d i f e r e n t e , s e m r e l a ç ã o a l g u m a c o m a identidade ou com a mesmidade. (Pardo apud Silva, 2000, p. 101)

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2.3. MARCAS DE DIFERENÇA CULTURAL NA EDUCAÇÃO DE SURDOS: ARTEFATOSCULTURAIS

Os su rdos t êm cu l t u r a? Es sa é uma pe rgun t a que , s egundo S t robe l ( 2008 ) a s pe s soas , de modo ge ra l , f a zem, duv idando da ex i s t ênc i a de uma cu l t u r a su rda . I s so porque, geralmente, não conhecem quem são os surdos, e por isso, fazem suposições e r r a d a s s o b r e o s s u r d o s . A l é m d i s s o , t a i s s u p o s i ç õ e s p a r t e m , e m s u a m a i o r i a , d e r e p r e s e n t a ç õ e s d a s u r d e z c o m o d e f i c i ê n c i a . O u s e j a , p a r t e m d e u m a p e r s p e c t i v a ouvintista. Ela afirma que cultura surda é o j e i t o de o su j e i t o su rdo en t ende r o mundo e de mod i f i c á - l o a f im de t o rná - l o acessível e habitável ajustando-o com as suas percepções visuais, que contribuem para a definição das identidades surdas e das “almas” das comunidades surdas.I s t o s i gn i f i c a que ab range a l í ngua , a s i dé i a s , a s c r enças , o s cos tumes e o s hábitos do povo surdo” (STROBEL, 2008, pg. 24)

No entanto, um alerta precisa ser feito: nem todas as pessoas surdas compartilham da cultura surda simplesmente porque elas não ouvem. O que constitui a cultura surda não é o f a t o de não ouv i r , e s im de compa r t i l ha r expe r i ênc i a s , c r ença s , s en t imen tos , língua, etc. Desse modo, há diferentes culturas surdas, ligadas a diferentes espaços geográficos, sociais e históricos. Artefatos culturais do povo surdoArtefatos culturais, são, segundo Strobel (2008)“'tudo o que se vê e sente' quando se está em contato com a cultura de uma comunidade, tais como materiais, vestuário,maneira pela qual um sujeito se dirige a outro, tradições, valores, normas, etc.” (pg. 37). A autora apresenta alguns artefatos da cultura surda:Artefato cultural: experiência visual Artefato cultural: linguístico Artefato cultural: familiar Artefato cultural: literatura surda Artefato cultural: vida social e esportiva Artefato cultural: artes visuais Artefato cultural: política Artefato cultural: materiais