a leitura do conto em sala de aula: subsÍdios para … · resumo a prática cotidiana do professor...

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UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ Márcia Maria de Moraes A LEITURA DO CONTO EM SALA DE AULA: SUBSÍDIOS PARA A PRÁTICA DE LEITURA NA ESCOLA Taubaté SP 2012

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UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ

Márcia Maria de Moraes

A LEITURA DO CONTO EM SALA DE AULA:

SUBSÍDIOS PARA A PRÁTICA DE LEITURA NA

ESCOLA

Taubaté – SP

2012

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UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ

Márcia Maria de Moraes

A LEITURA DO CONTO EM SALA DE AULA:

SUBSÍDIOS PARA A PRÁTICA DE LEITURA NA

ESCOLA

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Linguística Aplicada da Universidade de Taubaté. Área de concentração: Língua Materna e Línguas Estrangeiras Orientadora: Profª Drª Maria Aparecida Garcia Lopes Rossi.

Taubaté – SP

2012

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MÁRCIA MARIA DE MORAES

A LEITURA DO CONTO EM SALA DE AULA: SUBSÍDIOS PARA A PRÁTICA DE

LEITURA NA ESCOLA

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Linguística Aplicada da Universidade de Taubaté. Área de concentração: Língua Materna e Línguas Estrangeiras

UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ, TAUBATÉ, SP

Data: 24/04/2012

Resultado: ________________________

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Maria Aparecida Garcia Lopes Rossi Universidade de Taubaté

Assinatura:_____________________________

Profa. Dra. Miriam Bauab Puzzo Universidade de Taubaté

Assinatura: _____________________________

Profa. Dra. Maria Inês Batista Campos Universidade de São Paulo

Assinatura: _____________________________

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Dedico este trabalho

A meus pais, pelo amor e pela vida.

À minha filha Júlia, pela compreensão nos momentos de ausência.

A Eduardo Castilho, por todo o amor e a compreensão.

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AGRADECIMENTOS

Minha gratidão a todos que colaboraram para a obtenção deste sucesso.

Especialmente a Deus, por guiar e iluminar o meu caminho.

À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior), pelo

apoio financeiro a esta pesquisa, em forma de bolsa de estudos, como parte do

Projeto Observatório/UNITAU nº 23038010000201076.

A minha orientadora e modelo profissional, Profa. Dra. Maria Aparecida

Garcia Lopes Rossi, pela orientação, dedicação e sugestões extremamente

preciosas para minha experiência acadêmica.

Aos professores participantes de minha banca de qualificação, Profa. Dra.

Miriam Bauab Puzzo e Profa. Dra. Vera Lúcia Batalha de Siqueira Renda e ao

suplente Prof. Dr. Orlando de Paula, pelos comentários e sugestões de melhoria.

A todos os professores do Programa de Pós-graduação em Linguística

Aplicada (PPG-LA) Universidade de Taubaté, pelos conhecimentos apreendidos

durante o período da realização do curso.

A todos os colegas da Turma de 2010 do Mestrado em Linguística Aplicada,

especialmente a Maurílio de Carvalho, pela amizade e estímulo, compartilhando os

momentos bons e os momentos difíceis da jornada.

Aos funcionários da secretaria do PPG-LA, pela dedicação e competência no

atendimento.

A todos os amigos que contribuíram direta ou indiretamente para a conclusão

deste trabalho, especialmente, aos professores participantes das reuniões semanais

do Projeto Observatório/UNITAU.

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“[...] a escrita é uma invenção permanente do mundo e a leitura é uma reinvenção.”

Luiz Antonio Marcuchi

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RESUMO

A prática cotidiana do professor de língua portuguesa, apesar de ele estar ciente da necessidade de intensificar o trabalho com leitura, muitas vezes carece de materiais de pesquisa, tempo e informações mais específicas para o desenvolvimento de propostas de leitura que atendam as demandas dos documentos oficiais de ensino e das matrizes de referência das provas externas. É para suprir parte dessa necessidade que o objetivo geral desta pesquisa se estabelece: indicar possibilidades de trabalhos de leitura do gênero discursivo conto em sala de aula, visando a subsidiar propostas didático-pedagógicas de leitura desse gênero discursivo. O conto é um gênero discursivo sugerido pelos documentos oficiais de ensino para a leitura no Ensino Fundamental e Médio e, como explicam os PCN (BRASIL, 1998), por meio da literatura é possível confrontar linguagens nas práticas sociais e na história, explorar recursos de linguagem, reconhecer valores sociais e humanos. Especificamente, esta pesquisa tem os objetivos: 1) identificar as características e especificidades do gênero conto que devem ou podem ser consideradas nas práticas de leitura em sala de aula; 2) indicar habilidades de leitura que podem ser exploradas no gênero discursivo conto, considerando inclusive as habilidades de leitura sugeridas pela Matriz de Referência do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica e pelos níveis de proficiência na escala de leitura do PISA ; 3) exemplificar, a partir de um corpus de cinco contos, atividades de leitura desenvolvidas a partir das Matrizes de Referência e da escala de leitura citadas, a partir das potencialidades do gênero discursivo conto. Teoricamente, esta pesquisa se fundamenta em estudos literários sobre o conto; na concepção socioenunciativa da linguagem advinda dos trabalhos do filósofo russo Bakhtin, particularmente nos conceitos de gênero discursivo e dialogismo; na abordagem sociocognitiva de leitura e no trabalho pedagógico com gêneros discursivos proposto por Dolz e Schneuwly. Essa fundamentação teórica forneceu os subsídios necessários para a análise qualitativa dos dados desta pesquisa, que se desenvolveu no âmbito do projeto OBSERVATÓRIO/UNITAU 2011 – 2014 Competências e habilidades de leitura: da reflexão teórica ao desenvolvimento e aplicação de propostas didático-pedagógicas, financiado pelo Programa Observatório da Educação CAPES/INEP sob nº 23038010000201076. O resultado dessa pesquisa é a elaboração de uma sequência didática como sugestão para a leitura do conto que deverá fornecer subsídios para o desenvolvimento de práticas de leitura em sala de aula. A leitura de obras literárias, como é o caso do conto, permite amplas possiblidades do diálogo entre sentidos e conhecimentos. Concluímos essa pesquisa, acreditando que o trabalho com a sequência didática de leitura em projetos contribui para o desenvolvimento da competência leitora de nossos alunos. Por meio da exploração de habilidades de leitura, a sequência didática pode favorecer a apropriação do conhecimento de modo significativo, capacitando os jovens a se tornarem sujeitos críticos e capazes de agir em sociedade.

Palavras-chave: Leitura; Literatura; Gêneros discursivos; Conto; Formação do leitor.

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ABSTRACT

Even though Portuguese teachers are aware of the necessity of intensifying reading

activities, they lack research material, time and more specific information for the

development of reading proposals which cater for the demands of the official

documents and of the reference matrix of external evaluation. Starting from this

necessity, the aim of this research is to show possibilities of classroom reading

activities involving the discursive genre “short story” so as to subsidize didactic-

pedagogic proposals about this genre. The reading of short stories is recommended

in Elementary, Junior and High Schools by the official documents. According to PCN

(Brazil, 1998), Literature provides the possibility to confront languages in social

practices and History; explore language resources and recognize social and human

values. Our specific aims are: 1) identify the characteristics and specificities of this

genre “short story” which should be considered in classroom reading activities; 2)

show reading abilities that can be explored by means of the given genre, taking into

account the reading abilities suggested by Reference Matrix of the Elementary

School National Evaluation System and by the PISA reading proficiency levels; 3)

based on a corpus composed of five short stories, give examples of reading activities

developed according to the documents mentioned above, exploring the potentialities

of this genre. The theoretical foundation for this research are literary studies of short

stories; Bakthin’s socio-enunciative conception of language, especially the concept of

discursive genre and dialogism; the sociocognitive reading approach and the

pedagogical work with discursive genres proposed by Dolz and Schneuwly. The

theoretical framework mentioned provided us with the necessary subsides for a

qualitative analysis of our data, which was developed within a project called

“OBSERVATÓRIO/UNITAU 2011 – 2014 Competências e habilidades de leitura: da

reflexão teórica ao desenvolvimento e aplicação de propostas didático-pedagógicas”,

sponsored by the “Programa Observatório da Educação CAPES/INEP sob nº

23038010000201076”. The result of this research is the development of a didactic

sequence as a suggestion for the reading of short stories which will help develop

classroom reading activities since the reading of literary works, such as short stories,

promotes great possibilities for dialogue between senses and knowledge. In

conclusion, we believe that the work with reading didactic sequence in projects

contribute to the development of students’ reading competence. By exploring reading

abilities, the didactic sequence can favor knowledge appropriation in a significant

way, enabling youngsters to become critical and to act in society.

Keywords: Reading. Literature. Discursive genre. Short story. Reader formation.

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1: Gêneros literários, segundo Moisés (1972)..................................... 22

Quadro 2: Gêneros literários, segundo Coelho (2010)..................................... 23

Quadro 3: Tipos de foco narrativo, segundo Moisés (1972)............................. 30

Quadro 4: Tipos de foco narrativo, segundo Coelho (2010)............................. 33

Quadro 5: Classificações dos contos de acordo com alguns estudiosos........ 41

Quadro 6: Concepções de leitura...................................................................... 53

Quadro 7: Níveis de leitura................................................................................ 63

Quadro 8: Matriz de Referência de Língua Portuguesa da Prova Brasil e do SAEB para o 9º ano...........................................................................................

77

Quadro 9: Aspectos em que a Matriz de Referência Matriz de Referência de Língua Portuguesa da Prova Brasil apresenta imprecisões teóricas ou de redação, conforme Lopes-Rossi e Paula (2012)................................................

79

Quadro 10: Porcentagem de acertos para os descritores referentes ao Tópico I: Procedimentos de Leitura...................................................................

81

Quadro 11: Porcentagem de acertos para os descritores referentes ao Tópico II: Implicações do Suporte, do Gênero e/ou enunciador na Compreensão do Texto......................................................................................

81

Quadro 12: Porcentagens de acertos para os descritores referentes ao Tópico III: Relação entre Textos........................................................................

82

Quadro 13: Porcentagem de acertos para os descritores referentes ao Tópico IV: Coerência e Coesão no Processamento do Texto...........................

83

Quadro 14: Porcentagens de acerto para os descritores referentes ao Tópico V: Relações entre Recursos Expressivos e Efeitos de Sentido.............

84

Quadro 15: Porcentagens de acerto para os descritores referentes ao Tópico VI: Variação Linguística..........................................................................

84

Quadro 16: Níveis de proficiência para a avaliação do PISA...........................

87

Quadro 17: Comparativo dos resultados em leitura dos alunos brasileiros no PISA ..................................................................................................................

89

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................

12

CAPÍTULO 1 – O GÊNERO DISCURSIVO CONTO........................................ 17

1.1 O conceito de gênero discursivo................................................................ 17

1.2 Os gêneros literários .................................................................................. 20

1.3 O conto e sua origem................................................................................. 24

1.4 O conto: uma narrativa ímpar.....................................................................

1.5 O conto e suas variações...........................................................................

27

36

CAPÍTULO 2 - A LEITURA E O TEXTO LITERÁRIO EM SALA DE AULA.. 45

2.1 A concepção interativista ou cognitiva de leitura....................................... 45

2.2 Conceitos que contribuíram para a abordagem sociocognitiva de leitura 50

2.3 O conceito de conhecimento prévio........................................................... 54

2.4 A importância do conhecimento prévio para o processo inferencial......... 56

2.5 A leitura de textos literários: competências e funções............................... 58

2.6 A leitura do gênero discursivo conto em sala de aula................................ 63

2.7 O texto escrito e a imagem........................................................................ 67

2.8 A importância do texto literário como proposta de leitura dentro e fora da

sala de aula......................................................................................................

68

CAPÍTULO 3 – AS AVALIAÇÕES INSTITUCIONAIS E O CONTEXTO DE

APRENDIZAGEM.............................................................................................

70

3.1 O INEP e os dados estatísticos educacionais............................................ 71

3.2 A importância de conhecer a Prova Brasil para empreender um bom

trabalho com a leitura.......................................................................................

73

3.3 A Matriz de Referência da Prova Brasil e seus descritores: buscando

caminhos para formar leitores..........................................................................

75

3.4 Alguns dados sobre desempenho de alunos na Prova Brasil.................... 80

3.5 O PISA – Programa para Avaliação Internacional de Estudantes

(Programme for International Student Assessment) e os níveis de

proficiência..................................................................................................

85

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3.6 A sequência didática para a leitura do conto.............................................. 89

CAPÍTULO 4 – AS APLICAÇÕES DA SEQUÊNCIA DIDÁTICO-

PEDAGÓGICA NA LEITURA DO GÊNERO DISCURSIVO CONTO..............

100

4.1 Procedimento prévio ao início da sequência didática de leitura do conto 100

4.2 Leitura do conto “A devota das almas”, versão segundo Cascudo (1952) 102

4.3 Leitura do “Conto de escola” (1884)........................................................... 108

4.4 Leitura do conto: “Com certeza tenho amor” (COLASANTI, 2005)............ 118

4.5 Leitura do conto “Restos do carnaval” (LISPECTOR, 1998)...................... 126

4.6 Leitura do conto “O arquivo” (GIUDICE, 1986)..........................................

132

CONCLUSÃO...................................................................................................

140

REFERÊNCIAS................................................................................................

143

ANEXOS........................................................................................................... 147

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INTRODUÇÃO

Ou o texto dá um sentido ao mundo, ou ele não tem sentido nenhum. E o mesmo se pode dizer de nossas aulas. (LAJOLO, 2002, p. 15)

Esta pesquisa desenvolveu-se no âmbito do projeto

OBSERVATÓRIO/UNITAU 2011 - 2014 Competências e habilidades de leitura: da

reflexão teórica ao desenvolvimento e aplicação de propostas didático-pedagógicas,

aprovado pelo Programa Observatório da Educação CAPES/INEP sob nº

23038010000201076. Sendo assim, ela colabora para a consecução do projeto

acima descrito, enfocando possibilidades de desenvolvimento de habilidades de

leitura de contos nas salas de aula das séries finais do Ensino Fundamental: 7ª

série/8º ano e 8ª série/9º ano. Os resultados desta pesquisa também poderão ser

úteis a outros professores de Língua Portuguesa, bem como aos graduandos da

Universidade de Taubaté participantes dos Projetos PIBID e Prodocência.

O conto é um gênero discursivo que pode motivar os alunos para a leitura

literária, com todos os benefícios que a influência da literatura na visão de mundo e

na formação integral do jovem pode trazer. É um gênero sugerido pelos documentos

oficiais de ensino para a leitura no Ensino Fundamental e Médio e, como explicam

os PCN (BRASIL, 1998), por meio da literatura é possível confrontar linguagens nas

práticas sociais e na história, explorar recursos de linguagem, reconhecer valores

sociais e humanos.

A escolha desse gênero como abordagem de leitura e de exploração deu-se,

especialmente, em função de suas múltiplas possibilidades de trabalhos didáticos

pedagógicos, visando a suprir as muitas necessidades de desenvolvimento das

habilidades requeridas e esperadas de um aluno, seja em função de bons resultados

diante dos sistemas de avaliação, seja em função das práticas sociais vivenciadas

nas mais diversas realidades de suas vidas, levando-os a refletir sobre seus

conhecimentos para agirem com autonomia em sociedade.

Por sua brevidade, em comparação ao romance ou à novela, também pode

servir de mote para atividades que representem a compreensão leitora dos alunos

por meio de diferentes linguagens, como a linguagem audiovisual e teatral, por

exemplo, de forma que atividades de leitura e compreensão do conto não se

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restrinjam somente a exercícios escritos. Assim, o conto se presta também à

exploração de muitas habilidades de leitura esperadas de um aluno.

Esta pesquisa tem, ainda, como motivação para a consecução dos objetivos

acima expostos, o baixo rendimento em leitura dos alunos brasileiros em relação às

avaliações externas, entre elas, a Prova Brasil e o PISA. A Prova Brasil visa a

avaliar as habilidades em Língua Portuguesa (foco em leitura) e Matemática (foco

em resolução de problemas), avaliando competências construídas e habilidades

desenvolvidas pelos alunos, além de detectar as dificuldades de aprendizagem. A

Prova Brasil abrange somente alunos de 4ª e 8ª séries (ou 5º e 9º anos) do Ensino

Fundamental (nas redes estaduais, municipais e federais), de escolas da área

urbana com no mínimo vinte alunos matriculados na série avaliada e é aplicada a

cada biênio. A avaliação é censitária, permitindo retratar a realidade de cada escola,

em cada município.

O PISA (Programa para Avaliação Internacional de Estudantes ou Project for

International Student Assesment) é o maior estudo internacional e sistemático sobre

as competências de jovens com quinze anos de idade e pretende traçar o perfil dos

estudantes que terminam a escolaridade obrigatória, avaliando seu conhecimento

em leitura, matemática e ciências e apurando até que ponto os jovens estão

preparados para enfrentar os desafios do futuro. Os testes são realizados em alguns

países, e os resultados são por amostragem. Desde o ano de 2000, eles são

aplicados de três em três anos, pela Organização para Cooperação e

Desenvolvimento Econômico (OCDE). A última avaliação foi realizada em 2009, na

qual, entre 65 países participantes, o Brasil ficou em 54º lugar.

O lugar ocupado pelo Brasil mediante os demais países demonstra-nos uma

situação alarmante e possibilita-nos muitos questionamentos sobre os problemas em

relação à compreensão do texto que estão levando nosso país a ficar entre os

últimos lugares; os motivos pelos quais não estamos formando leitores; o papel do

professor para tentar reverter essa situação; as possibilidades de reverter essa

situação e de alcançar os conhecimentos e as habilidades exigidos pelas avaliações

externas.

É nesse contexto e acreditando na possibilidade de mudanças para

formarmos uma nação mais justa e com menos desigualdades sociais, pois a

capacidade leitora também é parte fundamental na formação de um ser autônomo e

capaz de construir sua própria identidade, com ética e cidadania, que esta pesquisa

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se insere. Delimitamos nosso objeto de pesquisa no conto e em possibilidades de

atividades de leitura desse gênero em sala de aula, para alunos das séries finais do

Ensino Fundamental, 7ª série (8º ano) e 8ª série (9º ano).

A prática cotidiana do professor de língua portuguesa, apesar de ele estar

ciente da necessidade de intensificar o trabalho com leitura, muitas vezes carece de

materiais de pesquisa, tempo e informações mais específicas para o

desenvolvimento de propostas de leitura que atendam às demandas dos

documentos oficiais de ensino e das matrizes de referência das provas externas. É

para suprir parte dessa necessidade que o objetivo geral desta pesquisa se

estabelece: indicar possibilidades de trabalhos de leitura do gênero discursivo conto

em sala de aula, visando a subsidiar propostas didático-pedagógicas de leitura

desse gênero discursivo.

Especificamente, são objetivos desta pesquisa: 1) identificar as características

e especificidades do gênero conto que devem ou podem ser consideradas nas

práticas de leitura em sala de aula; 2) indicar habilidades de leitura que podem ser

exploradas no gênero discursivo conto, considerando inclusive as habilidades de

leitura sugeridas pela Matriz de Referência do Sistema Nacional de Avaliação da

Educação Básica e pelos níveis de proficiência na escala de leitura do PISA; 3)

exemplificar, a partir de um corpus de 5 contos, atividades de leitura desenvolvidas a

partir das Matrizes de Referência e da escala de leitura citadas, a partir das

potencialidades do gênero discursivo conto, nas séries finais do ensino fundamental

(7ª série/8º ano e 8ª série/9º ano).

As atividades de leitura aqui propostas serão posteriormente desenvolvidas

em sala de aula pelos professores participantes do Projeto OBSERVATÓRIO DA

EDUCAÇÃO/UNITAU, do qual esta pesquisa também faz parte. A divulgação mais

ampla deste trabalho contribuirá ainda para os estudos da Linguística Aplicada

voltados à leitura em sala de aula.

Para a consecução desses objetivos específicos estabelecidos, o

levantamento dos dados necessários e sua análise dar-se-ão das seguintes formas:

1) uma pesquisa bibliográfica e análise qualitativa das informações sobre o gênero

discursivo conto da perspectiva didático-pedagógica da leitura em sala de aula; 2)

análise das Matrizes de Referência do Sistema Nacional de Avaliação da Educação

Básica, do Exame Nacional do Ensino Médio e dos níveis de proficiência de leitura

do PISA para identificação das habilidades de leitura que podem ser exploradas no

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gênero discursivo conto; 3) constituição de um corpus de 5 (cinco) contos de autores

nacionais e sua análise para indicação e exemplificação das habilidades de leitura a

serem exploradas em atividades de leitura em sala de aula.

Teoricamente, esta pesquisa se fundamenta em estudos literários sobre o

conto; na concepção socioenunciativa da linguagem advinda dos trabalhos do

filósofo russo Bakhtin, particularmente nos conceitos de gênero discursivo e

dialogismo; na abordagem sociocognitiva de leitura e no trabalho pedagógico com

gêneros discursivos proposto por Dolz e Schneuwly. Essa fundamentação teórica

fornecerá os subsídios necessários para a análise qualitativa dos dados desta

pesquisa.

Esta dissertação se divide em quatro capítulos, além desta Introdução. O

primeiro capítulo aborda as características do gênero literário conto e os aspectos

relevantes para o trabalho com a leitura desse gênero em sala de aula. Sendo

considerados, especialmente, seu conceito, origem e variações.

O segundo capítulo trata das concepções de leitura que permitem um

entendimento melhor do professor em relação ao processo de leitura e de

desenvolvimento de habilidades de leitura, tecendo ainda considerações sobre a

leitura do texto literário em sala de aula.

O terceiro capítulo aborda uma breve análise das Matrizes de Referência do

Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica e dos níveis de proficiência de

leitura do PISA, identificando as habilidades de leitura que podem ser exploradas a

partir do gênero discursivo conto, nas séries finais do Ensino Fundamental (7ª e 8ª

séries/ 8º e 9º anos). A fim de explorar as habilidades identificadas, será proposta

uma sequência didática básica para a leitura do conto, que poderá ser aplicada

pelos professores participantes dos Projetos Observatório da Educação, PIBID e

Prodocência, bem como por outros professores que busquem subsídios para suas

atividades de leitura em suas aulas.

No quarto e último capítulo, essa sequência didática básica será

exemplificada para a leitura dos contos: “A devota das almas” (CASCUDO, 1952);

“Conto de escola” (ASSIS, 1884); “Com certeza tenho amor” (COLASANTI, 2005);

Restos do carnaval” (LISPECTOR, 1971) e “O arquivo” (GIUDICE, 1972).

Escolhemos esses contos cada qual por sua razão: o primeiro, por se tratar de um

conto de origem remota, levando os alunos a conhecerem um pouco dos contos que

tiveram origem na tradição oral; o segundo, com o objetivo de que os alunos tenham

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a oportunidade de conhecer a realidade da escola do século XIX, podendo compará-

la à realidade atual; outra razão para a escolha é o fato de se tratar de Machado de

Assis, um autor clássico da literatura brasileira; o terceiro foi escolhido por se tratar

de uma autora contemporânea que traz de volta todo o encanto dos contos de fadas,

capaz de envolver tanto crianças como adultos por sua linguagem poética; o quarto,

por se tratar de um conto psicológico, introspectivo, ao qual poucos alunos têm

acesso antes do Ensino Médio. E o quinto e último conto, por registrar, de modo

surpreendente, a exploração do ser humano, ainda persistente em nossa sociedade

atual. Portanto, os contos não foram escolhidos em razão de uma temática, mas de

acordo com as características de cada texto que poderiam supostamente despertar

a atenção e o gosto pela leitura, segundo a faixa etária dos alunos nos últimos dois

anos do ensino fundamental.

Seguem a Conclusão, as referências e os textos anexos.

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CAPÍTULO 1

O GÊNERO DISCURSIVO CONTO

Eu não sabia ainda ler, mas já era bastante esnobe para exigir os meus livros... Peguei os dois volumezinhos, cheirei-os, apalpei-os, abri-os negligentemente na “página certa”, fazendo-os estalar. Debalde: eu não tinha a sensação de possuí-los. Tentei sem maior êxito tratá-los como bonecas, acalentá-los, beijá-los, possuí-los. Quase sem lágrimas, acabei por depô-los sobre os joelhos de minha mãe. Ela levantou os olhos de seu trabalho: “O que queres que eu te leia, querido? As fadas?’”. Perguntei, incrédulo: “As fadas estão aí dentro?”

Jean-Paul Sartre

Este capítulo apresenta o conceito bakhtiniano de gênero discursivo e traz a

fundamentação teórica para a caracterização do gênero discursivo conto. Faz,

também, um breve retrospecto do conceito de gêneros literários de acordo com a

tradição dos estudos literários, apresentando as características do gênero literário

conto de acordo com esses estudos.

1.1 O conceito de gênero discursivo

Para Bakhtin (1992), a palavra é o lugar privilegiado da ideologia, pois é

produto da interação social e meio para retratar a realidade. Dessa forma, o sujeito

(locutor) é aquele que dará expressão à palavra, refletindo a ideologia e o meio

social em que vive.

Nesse sentido, Bakhtin (1992) afirma que o enunciado, seu estilo e sua

composição são determinados pelo objeto do sentido e pela expressividade, ou seja,

pela relação valorativa que o locutor estabelece com o enunciado. Bakhtin vê a

linguagem como um fenômeno social e histórico, que visa à comunicação entre os

indivíduos. Assim, para o filósofo, a palavra possui natureza dialógica. As palavras

são usadas a partir de um efeito de sentido que o sujeito pretende alcançar no

momento da enunciação, ou seja, no momento do uso concreto da língua.

De acordo com Bakhtin o dialogismo é característica essencial da linguagem:

O enunciado vivo, surgido pensadamente num determinado momento histórico e num meio social determinado, não pode deixar de tocar milhares de fios vivos e dialógicos, tecidos pela consciência

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social-ideológica em torno de um objeto dado de enunciação, não pode deixar de tornar-se um participante ativo do diálogo social. (BAKHTIN, 1992, p. 93)

Esclarece o autor:

O fato de ser ouvido, por si só, estabelece uma relação dialógica. A palavra quer ser ouvida, compreendida, respondida e quer, por sua vez, responder a resposta, e assim ad infinitum. Ela entra num diálogo em que o sentido não tem fim. (BAKHTIN, 1992, p. 357)

Esse diálogo vai além da troca de enunciados. Ele é construído em razão da

relação com o sentido, a partir da compreensão de um enunciado. Um discurso, até

atingir seu objetivo, que é o de persuadir e construir sentidos, baseia-se nas

relações que mantém com o Outro, com o interlocutor. Dessa forma, as palavras não

são exclusividade de um único enunciador. Elas são sempre escolhidas, levando-se

em consideração as palavras de um Outro. São palavras que já foram ditas em

algum lugar da história e, por isso, impregnadas de valores ideológicos,

modificando-se o sentido em função do momento do uso.

Baseado nesses pressupostos, Bakhtin também elabora a sua teoria

polifônica, afirmando a existência de uma pluralidade de vozes que compõem um

discurso, sem que uma delas se sobressaia ou julgue as demais. Cada enunciado

reflete as condições e finalidades específicas da situação de uso da linguagem, é a

unidade real da comunicação.

Assim, os textos orais ou escritos se materializam nas situações de uso e

cada situação apresenta características específicas de acordo com o momento e o

lugar social em que acontece a interação. Cada ato da linguagem é considerado de

acordo com a esfera de utilização da língua e, segundo Bakhtin (2000), cada esfera

de utilização produz tipos relativamente estáveis de enunciados, com características

específicas em sua composição estrutural, distinguindo-se pelo conteúdo e pelo

estilo.

A esses tipos, marcados por suas esferas de atuação, o filósofo denominou

gêneros do discurso. Por serem inúmeras as esferas de utilização da língua, são

inúmeros os gêneros do discurso, pois são infinitas as possibilidades de atos de

linguagem envolvendo propósitos e condições sociais específicas. Podemos citar

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19

como exemplos de gêneros: fábula, conto, bilhete, piada, e-mail, edital de concurso,

conferência, aulas virtuais entre outros.

Para a identificação das circunstâncias de utilização dos gêneros, Bakhtin

(2000, p. 281) divide-os em gêneros primários e gêneros secundários. Os primários,

como aqueles que acontecem em situações cotidianas, situações informais de uso,

como a conversação espontânea, por exemplo; os secundários, como aqueles mais

complexos, em situações principalmente escritas, por serem mais formais, como o

artigo científico. Nessas situações de uso, estão envolvidos indivíduos que por

alguma razão estão concluindo um propósito comunicativo, utilizando-se da

linguagem com alguma determinada finalidade, partindo de um determinado lugar

social. Bakhtin (2000, p. 290) coloca, então, a importância desse processo de

interação e afirma a existência do caráter dialógico da linguagem: os interlocutores

durante o processo de interação produzem um movimento dialógico. Nesse sentido:

[...] o ouvinte que recebe e compreende a significação (lingüística) de um discurso adota simultaneamente, para com este discurso (total ou parcialmente), completa, adapta, apronta-se para executar, etc., e esta atitude do ouvinte esta em elaboração constante durante todo o processo de audição e de compreensão desde o início do discurso, às vezes já nas primeiras palavras emitidas pelo locutor. (Bakhtin, 2000, p. 290)

Dessa forma, produzimos discurso para alguém, situados em um determinado

contexto social e cultural, levando em consideração a atitude responsiva desse

alguém. O outro, a partir dos atos da linguagem, expressa sua posição como

interlocutor de um discurso, assumindo uma posição responsiva, ratificando o

dialogismo inerente à comunicação. Vale lembrar aqui nesse ponto, que esse

movimento de produção/recepção/compreensão envolve não somente a utilização

da linguagem na interação face a face, mas qualquer atividade com propósito

comunicativo, seja oral ou escrita.

Portanto, para Bakhtin, um gênero discursivo não se constitui apenas de sua

materialidade linguística, ou seja, de suas características linguístico-textuais. Para o

caso desta pesquisa e considerando essa fundamentação teórica, o gênero conto

não poderá ser abordado apenas do seu ponto de vista estrutural, embora seja

necessário observar que a compreensão de um conto envolva a percepção dos

elementos do enredo da narrativa. Em atividades em sala de aula para o

desenvolvimento de habilidades de leitura, pode ser útil enfocar também esses

elementos. A Matriz de Referência da Prova Brasil cobra algumas habilidades (duas

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ou três) de leitura referentes ao reconhecimento da estrutura de gêneros que se

organizam na forma narrativa.

1.2 Os gêneros literários

Muito se discutiu a respeito do conceito de gênero no decorrer da história até

chegarmos ao conceito de gênero do discurso ou discursivo, segundo Bakhtin

(2000), que os entende inúmeros, pois são dinâmicos, variando em razão de sua

constituição e de seus aspectos sociocomunicativos.

Numa breve retrospectiva histórica, podemos afirmar que, na antiguidade

clássica, de acordo com a divisão que nos foi apresentada pelo filósofo Platão (428

a.C. – 347 a.C.), em sua obra República (394 a.C.), os gêneros são subdivididos em

Comédia e Tragédia: imitação (teatro), Ditirambos (exposição do poeta, poesia lírica)

e Epopeia (poesia épica). Com a Poética de Aristóteles, temos a primeira reflexão

profunda sobre a existência e a caracterização dos gêneros literários e até hoje essa

obra é considerada como um dos textos fundamentais para os estudos relacionados

a esse assunto (SILVA, 1979, p. 204). Aristóteles demonstrou grande preocupação

em distinguir o mundo empírico da realidade da arte, estudando a constituição do

trabalho poético (o meio, o objeto e o modo). O filósofo divide a poesia em dramática

(tragédia e comédia, obras que representavam sem a intervenção do poeta) e

narrativa (poesia ditirâmbica). Segundo Silva (1979, p. 207), os críticos de

Quinhentos viam-se na necessidade de classificar algumas obras como as de

Horácio e de Petrarca, que não podiam ser enquadradas nem na poesia dramática,

nem na narrativa, razão pela qual, seguindo a lição da Epístola ad Pisones, de

Horácio, defenderam um terceiro gênero: a poesia lírica, em que a pessoa do poeta

narrava os fatos acontecidos e colocava as suas reflexões.

Portanto, durante o período supramencionado, houve grande preocupação de

ordem estética com relação à arte literária, nesse sentido:

Cada um destes grandes gêneros literários se subdividia em outros gêneros menores, e todos estes gêneros maiores e menores se distinguiam uns dos outros com rigor e com nitidez, obedecendo cada um deles a um conjunto de regras particulares. Estas regras indiciam tanto sobre aspectos formais e estilísticos como sobre aspectos do conteúdo, e a obediência de uma obra às regras do gênero em que se integrava, constituía um fator preponderante na avaliação do seu merecimento. (SILVA, 1979, p. 208)

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Outro aspecto importante da teoria clássica dos gêneros literários e apontado

pelo mesmo autor é a hierarquização estabelecida entre os gêneros, relacionada

aos movimentos e estados do espírito humano e ao nível social das personagens.

No entanto, durante o período da Idade Média, conforme Moisés (1973, p.

31), houve um rompimento com a tradição clássica e as sistematizações rigorosas

se voltaram para a produção da poesia trovadoresca. Foi um período de “relativa

pobreza doutrinária em matéria literária”. Com o Renascimento (século XVI),

novamente são retomados os estudos literários, somando-se a esse período outros

gêneros herdados da tradição medieval, além de subgêneros ou modalidades

descobertos (MOISÉS, 1973, p. 32). Para os renascentistas, somente a obra perfeita

era valorizada e, tal qual a estética clássica, a produção dos gêneros deveria seguir

preceitos e normas.

Com o advento do Pré-Romantismo e do Romantismo, na Alemanha e na

Inglaterra (século XVIII), ocorre a valorização da liberdade individual sem limites, da

primazia dos sentimentos, contrariando-se as regras clássicas. Para os romancistas,

não há limites para o número de gêneros, bem como não há regras para os autores:

gêneros tradicionais podem mesclar-se e, assim, ocorrer o nascimento de um novo

gênero (MOISÉS, 1973, p. 34).

Moisés (1973, p. 36), ao posicionar-se a respeito da questão do conceito dos

gêneros literários, lembra-nos também a importância da etimologia da palavra

gênero. Segundo o autor, de acordo com o sentido empregado em história natural, o

termo vem do Latim Vulgar generu, acusativo de generus pelo Latim Clássico genus,

significando “família”, “raça”, “agrupamento de indivíduos ou seres portadores de

características comuns”. Em Literatura, o autor aponta para o sentido de a palavra

designar famílias de obras dotadas de características iguais ou semelhantes.

Lembra-nos, ainda, que “o gênero divide-se em espécies, e estas em subespécies a

que se pode dar o nome de formas”.

A partir dessa divisão entre gêneros, espécies e formas, o autor afirma a

existência de dois gêneros: a poesia e a prosa. As espécies, que Moisés coloca

como sinônimo de formas, são consideradas as divisões ou configurações dos

gêneros. Para o estudioso, a poesia subdivide-se em lírica (poesia confessional,

subjetiva, como o soneto, o rondó ou a balada) e épica (poesia épica, como o poema

ou a epopeia). Quanto à prosa, Moisés (1972, p. 41) explica que ela não apresenta

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espécies e que os contos, as novelas e os romances são identificados por suas

características fundamentais do conteúdo.

Moisés (1972, p. 42) ilustra seu entendimento a respeito dos gêneros literários

a partir do quadro que representamos a seguir:

Quadro 1: Gêneros literários, segundo Moisés (1972)

Gêneros Literários Espécies Formas

Poesia Lírica

Épica

Soneto, ode

Poema, poemeto, epopeia

Prosa

_____

Conto

Novela

Romance

Por essa abordagem de Moisés (1972) a respeito dos gêneros literários, bem

como pela posição dos filósofos clássicos, observamos que os gêneros, até então,

eram organizados de acordo com suas características estruturais, que preexistem ao

texto literário. Podemos afirmar, entretanto, que essa classificação não é perfeita,

mesmo da perspectiva estrutural, porque um mesmo gênero literário pode

apresentar uma combinação de formas e não apenas uma forma única.

Encontramos, sim, a predominância de uma ou outra forma, pois existem textos

épicos com traços da lírica, por exemplo, mas não uma pureza de forma.

Atualmente, Coelho (2010, p. 163) adota a seguinte classificação dos

gêneros: poesia, ficção e teatro. Segundo a autora, gênero “é a expressão estética

de determinada experiência humana de caráter universal”. Ela divide os gêneros de

acordo com a vivência lírica (se a expressão essencial é a poesia, marcada pela

expressão de emoções do “eu”); vivência épica (se a expressão é a prosa, a ficção,

marcada pela relação do “eu” com o mundo social) e a vivência dramática (se a

expressão básica é a representação, marcada pelo diálogo, ou seja, o teatro). Para

a autora, os subgêneros ou formas básicas (simples), tais como: a elegia, o soneto,

o hino (Poesia); o conto, o romance, a novela (Ficção); e a farsa, a tragédia (Teatro),

entre outros, se diversificam em diferentes categorias, de acordo com o tema, a

problemática, a intriga, a trama, a intenção e a matéria ficcional. Daí a classificação

em novela de aventuras, conto de mistério e romance policial, por exemplo.

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Coelho (2010, p. 164) ainda classifica como formas simples as narrativas que

surgiram há milênios e que, sobretudo pela simplicidade e autenticidade de

vivências que elas singularizam, transformaram-se com o tempo no que

conhecemos hoje como tradição popular. Assim, muitos dos contos tradicionais que

conhecemos podem ser enquadrados nessa classificação, como os contos de fadas

ou os contos exemplares.

O entendimento de Coelho (2010) a respeito dos gêneros literários é

representado a partir do quadro a seguir:

Quadro 2: Gêneros literários, segundo Coelho (2010)

Gêneros Literários Subgêneros ou formas

básicas

Diferentes categorias, de

acordo com o tema, a

problemática, a intriga, a

trama, a intenção e a matéria

ficcional.

Alguns exemplos:

Poesia

(vivência lírica; expressões e emoções do eu)

Elegia

Soneto

Hino

Ficção

(prosa, vivência épica; relação do eu com o mundo)

Conto

Romance

Novela

Conto de mistério, contos de

fadas, contos exemplares,

entre outros

Romance policial, entre outros

Novela de aventuras, entre

outros

Teatro

(vivência dramática, marcada pela representação e pelo diálogo)

Farsa

Tragédia

Pela classificação estrutural dos gêneros literários proposta pelos autores

citados, podemos então concluir que o conto é um subgênero literário ou uma forma,

dentre outras possíveis, do gênero literário prosa.

Por ser o conto o objeto de estudo desta pesquisa, passaremos a enfocá-lo,

nas próximas seções, mostrando que os diversos estudiosos do gênero não são

unânimes na abordagem de suas características e na classificação de suas

variações ou subtipos.

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1.3 O conto e sua origem

Moisés (1973, p. 120) traça um percurso histórico importante sobre a origem

do conto e afirma que são levantadas hipóteses de que ele tenha se constituído

como matriz das demais formas literárias em prosa, em especial, da prosa de ficção,

ou até mesmo da própria historiografia. Ou seja, o ato de contar histórias, relatar

acontecimentos, pode ter acompanhado o homem desde as mais remotas idades da

história de vida humana na Terra, até mesmo antes da linguagem escrita.

Parece não haver dúvidas de que o conto tenha nascido na oralidade, dada a

necessidade natural do homem em transmitir ensinamentos e exemplos a suas

futuras gerações. Contar histórias seria um meio de compartilhar esses

ensinamentos e não deixar extinguir a cultura e os costumes de uma determinada

sociedade. O advento da escrita contribuiu para que muitas dessas remotas histórias

se preservassem até os dias atuais.

A respeito da literatura oral, Cascudo (1952, p. 171) explica que ela “é

mantida e movimentada pela tradição. É uma força obscura e poderosa, fazendo

transmissão de geração a geração”. Um dado interessante apontado pelo autor é o

fato de que muitas das histórias contadas e transmitidas para os filhos e os netos

eram narradas pelas mulheres, o que podemos constatar até os dias atuais, visto

que muitas das histórias que nos são contadas, sejam elas lendas, contos

maravilhosos, contos de fadas ou fábulas, geralmente o são por via de nossas

mães ou de nossas avós.

Nesse sentido, vale destacarmos os dizeres de Cascudo, em relação ao conto

popular, cuja metáfora de “primeiro leite intelectual”, lembra-nos o fato anteriormente

mencionado:

O conto popular revela informação histórica, etnográfica, sociológica, jurídica, social. É um documento vivo, denunciando costumes, ideias, mentalidades, decisões, julgamentos. Para todos nós é o primeiro leite intelectual. Encontramos nos contos vestígios de usos estranhos, de hábitos desaparecidos que julgávamos tratar-se de pura invenção do narrador. (CASCUDO, 1952, p. 249)

Segundo Moisés (1973, p. 119), a palavra conto, em Português, tem quatro

acepções dentre as quais, para sua obra, ele destaca a acepção literária, que

significa “história, narração, historieta, fábula, ‘caso’”.

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Ainda de acordo com Moisés (1973, p. 119), trata-se de uma palavra de uma

remota existência, nos vários sentidos que ela pode receber, sendo que o autor

aponta duas hipóteses para sua origem: a primeira estaria em commentu, do Latim,

significando “invenção”, “ficção”. Uma segunda hipótese apresentada pelo autor é a

de que a palavra conto seria um deverbal, procedendo do verbo “contar”, de

computare, significando inicialmente “enumerar objetos”. Com o tempo, esse

significado foi obtendo gradativa especialização de sentido, passando,

metaforicamente, a significar “enumeração de acontecimentos”.

Durante a Idade Média, a palavra conto foi utilizada no sentido de

“enumeração de fatos”, “relato”, “narrativa”. Provavelmente, ela não era empregada

literariamente, segundo os registros, mas é inegável que a forma já existia como tal

(MOISÉS, 1973, p. 119). A partir do século XVI, quando surge o primeiro contista em

Língua Portuguesa (Gonçalo Fernandes Trancoso, sob influência de D. Juan

Manuel, Boccaccio, Bandello e outros), o termo passou a ser empregado em seu

sentido específico. No século XVII, surgiram ideias doutrinárias acerca do conto e

ele não mais perderia sua denotação literária, embora ainda fosse possível

surpreender no século XIX escritores empregando o vocábulo na acepção medieval,

como Camilo Castelo Branco.

Conforme Moisés (1973, p. 121), é durante a Alta Idade Média (séculos XII –

XIV) que o conto tem sua época áurea com a transposição das gestas cavaleirescas

à prosa e o aparecimento, logo em seguida, de alguns grandes contistas como

Boccaccio (na Itália), com suas novelle; Margarida de Navarra, com Heptâmeron (na

França) e Geoffrey Chaucer (na Inglaterra), com The Canterbury Tales (Os Contos

da Cantuária), cuja estrutura geral é inspirada no Decamerão, de Boccaccio.

Graças ao influxo de Boccaccio (Giocanni Boccaccio, 1313-1375) –

importante humanista, autor de um número notável de obras, dentre as quais se

destaca “Decamerão” (uma coleção de cem novelas) – nos séculos XVI e XVII, o

conto é largamente cultivado Espanha, na França e, principalmente, na Itália. No

entanto, conforme apontado por Moisés (1973, p. 121), esses dois séculos tem

menos importância qualitativa, se comparados ao período da Idade Média, pois são

marcados por uma espécie de paralisia e por um certo artificionismo (uso exagerado

de artifícios) que domina o conto. Foi um período de declínio que se estendeu pelo

século XVIII, quando somente poesia e prosa doutrinária mereceram aplausos, não

se destacou a ficção em prosa.

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Moisés (1973, p. 121) nomeia a fase anteriormente descrita de um estágio

folclórico, empírico e indeciso, tendo tornado forma nobre com a entrada do século

XIX, tornando-se produto tipicamente literário, o que antes aparentava tão somente

forma popular, ficando às margens de outras formas poéticas consideradas cultas e

nobres.

Nesse sentido, também Gotlib (1990, p 7) justifica a ascensão do conto:

No século XIX o conto se desenvolve estimulado pelo apego à cultura medieval, pela pesquisa popular e do folclórico, pela acentuada expansão da imprensa, que permite a publicação dos contos nas inúmeras revistas e jornais.

No Brasil, Luís Câmara Cascudo (1898-1986), foi um dos grandes

pesquisadores de nossa fortuna cultural literária. O estudioso (CASCUDO, 1952, p.

178) afirma que algumas das histórias ainda hoje muito apreciadas por adultos e

crianças, como as aventuras de Pedro Malazarte, são exemplos de contos populares

tradicionais trazidos pelos portugueses ao Brasil. “O português emigrava com seu

mundo na memória. Trazia o lobisomem, a moura encantada, as três cidras de

amor” (CASCUDO, 1952, p. 171). Segundo o autor, os portugueses trouxeram para

o Brasil histórias religiosas, de encantamento, entre outras muitas de muitas raízes

étnicas, de modo que se torna impossível dizer que um conto pertence a uma

determinada raça, uma vez que ele pode ser uma mescla de várias procedências.

Outros estudiosos que se destacam na pesquisa dos contos da tradição oral

são Charles Perrault (1628-1703), que recolheu histórias como “Cinderela”, muito

conhecidas entre as crianças; Os irmãos Grimm (Brüder Grimm, 1785-1863, e

Gebrüder Grimm, 1786-1859), dois alemães que, diante de grande encantamento

com a língua, recolheram várias histórias contadas oralmente por pessoas comuns,

além de haverem criado suas próprias histórias, especialmente contos de fadas. E

por fim, podemos citar Hans Christian Andersen (1805-1875), dinamarquês que

também registrou muitas histórias da tradição oral, além de escrever seus próprios

contos, como A Menina dos Fósforos, que é sucesso até os dias atuais.

O gênero literário conto foi se transformando no decorrer da vida humana:

momentos de oralidade e de escrita, momentos de declínio e de ascensão. Mas

como, afinal, podemos caracterizar o conto? Esse problema de indefinição também

é questionado por Gotlib (1990, p. 9), que relata esse problema de definição do

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conto como angustioso e inábil, citando alguns famosos autores que encontraram

essa indagação durante seus percursos de escrita: Mário de Andrade, Maupassant e

Machado de Assis.

Apesar dos questionamentos teóricos, o gênero não parou de ser produzido e

grandes contistas contribuíram de modo decisivo para o respeito e o

amadurecimento desse gênero narrativo curto, que adentrou o século XX e

permanece até os dias atuais com as suas nuances e tendências atravessadas pelo

cunho histórico e social.

1.4 O conto: uma narrativa ímpar

O conto é uma narrativa que se encontra em uma classificação especial no

modo de narrar histórias. Dentro das categorias de gêneros existentes na arte

literária, ele não se enquadra nas características do romance nem nas

características da novela. Gotlib (1990, p. 64) coloca como a base diferencial do

conto a contração da matéria para a apresentação de seus melhores momentos,

relembrando um conhecido ditado que compara os gêneros conto e romance: “No

conto não deve sobrar nada, assim como no romance não deve faltar nada.”.

Nesse sentido, Soares (1993, p. 54) também destaca:

Ao invés de representar o desenvolvimento ou o corte na vida das personagens, visando a abarcar a totalidade, o conto aparece como uma amostragem, como um flagrante ou instantâneo, pelo que vemos registrado literariamente um episódio singular e representativo.

A autora ainda afirma que quanto mais o conto aparece concentrado, mais se

caracteriza como arte de sugestão. Arte porque trabalho com a linguagem, com a

representação da realidade social, em uma harmoniosa seleção de ações, evitando

complicações do enredo e delimitando cuidadosamente o tempo e o espaço. E,

sendo arte, fica assim compreendida a ideia de que não existe um compromisso

com a realidade, senão uma representação dessa em maior ou em menor grau de

proximidade, uma elaboração ficcional de maior ou de menor impacto no leitor.

Assim, o autor de um conto busca uma aproximação do leitor de maneira sintética,

resumida, envolvendo-o em um curto espaço de tempo em uma narrativa que o leve

a refletir sobre suas experiências vividas ou fantasiadas.

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Moisés (1973, p. 124-125) caracteriza o conto por seu caráter unívoco: um só

conflito, um só drama, uma só ação, portanto de uma unidade dramática. Todos os

conflitos do conto se direcionam a um mesmo ponto, assim também como os

pormenores, as digressões e as divagações, por exemplo, são raras e, quando

presentes, convergem em direção a um único objetivo, compondo uma unidade de

início, meio e fim. Assim, a estrutura básica de um conto é sempre a mesma: uma

única situação conflituosa, um único momento na vida de um reduzido número de

personagens. Essa síntese dramática é caracterizada por Moisés (1973, p. 125)

como um trecho ou embrião do romance (resumindo-o), como uma fração dramática,

a mais importante e decisiva, de uma continuidade em que o passado e o futuro

possuem significado menor ou nulo.

Segundo o autor, a unidade de ação condiciona as demais características do

conto, cabendo nela também as unidades de espaço e de tempo, ou seja, a

narrativa é condensada em um espaço restrito e em um curto lapso de tempo. O

autor ainda acrescenta a unidade de tom ao conto, no sentido de provocar no leitor

uma só impressão, seja ela qual for: pavor, piedade, ódio, simpatia, indiferença,

entre outros.

Como consequência dessas “unidades”, também o número de personagens é

reduzido, limitando-se o autor a uma pequena descrição dos aspectos físicos e

psicológicos na maioria das vezes. As ações das personagens é que revelarão sua

personalidade.

Nesse sentido é importante ressaltar que o ponto de vista do narrador influi

imensamente na revelação no modo de revelar as características de uma

personagem. Moisés (1973, p. 132) apresenta quatro tipos de foco narrativo:

1º) A personagem principal conta sua história. 2º) Uma personagem secundária conta a história da personagem. 3º) O escritor, analítico ou onisciente, conta a história. 4º) O escritor conta a história como observador.

Segundo o autor, nos 1º e 4º focos existe uma ocupação da análise interna

das ações, ao passo que nos outros dois, a observação é externa.

O autor destaca ainda que, no primeiro foco, quando o narrador emprega a

primeira pessoa do plural ou do singular, o ponto de vista do narrador fica limitado à

sua percepção pessoal. É sua própria história que é contada. O mesmo caso

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acontece no segundo tipo de foco narrativo, pois ainda que a história gire em torno

de um terceiro, o narrador se vê limitado a dispensar a atenção a sua própria

pessoa, correndo o risco de oferecer, na maioria das vezes, uma imagem otimista e

positiva de si próprio, relegando às demais personagens um caráter negativo.

Por outro lado, o autor nos lembra dos aspectos positivos que existem ao se

contar uma história em primeira pessoa, especialmente quando o narrador conta sua

própria história. Ao se valer desse foco narrativo, aos olhos do leitor, a história

ganha um caráter maior de verossimilhança, causando a impressão de uma maior

proximidade entre leitor e fatos narrados na ficção, bem como a impressão de uma

comunicação imediata, contemporânea, a qual aparenta direta e fascinante, em que

leitor e narrador podem assumir o papel de confidentes íntimos. Essa aproximação

intensa ausenta-se nos outros três focos narrativos.

O terceiro tipo de foco narrativo também apresenta grandes vantagens ao

narrador, permitindo a revelação da vida dos personagens, seja ela social ou íntima,

consciente ou inconsciente. Porém, em razão da brevidade, característica inerente

ao conto, esse detalhamento não ultrapassa muito além da superfície. A história

pode até perder o caráter de impacto imediato e direto com o leitor, mas este

ganhará em riqueza de detalhes, favorecendo a construção de significados, pois o

leitor pode juntar quantos aspectos contados sejam necessários à sua

compreensão.

Diferentemente do narrador analítico ou onisciente, o quarto enfoque narrativo

impossibilita a sondagem psicológica das personagens, limitando-se a contar a

história tal qual ela acontece.

De acordo com Moisés (1973), a partir do uso das pessoas do discurso, das

vantagens e desvantagens apresentadas devido à escolha do narrador quanto ao

foco narrativo, podemos organizar o quadro seguinte, sintetizando as informações

de maior relevância.

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Quadro 3: Tipos de foco narrativo, segundo Moisés (1973)

Foco narrativo Pessoa do discurso Vantagens Desvantagens

A personagem principal conta sua história.

1ª pessoa do singular ou do plural

Permite caráter maior de verossimilhança; Permite maior aproximação entre leitor e fatos narrados.

O ponto de vista do narrador fica limitado à sua percepção visual.

Uma personagem secundária conta a história da personagem.

1ª pessoa do singular ou do plural.

Permite ao narrador entrar e desvendar o mundo psicológico das personagens.

O ponto de vista do narrador fica limitado à sua percepção visual. Distancia entre leitor e conteúdo da narrativa aumenta.

O escritor, analítico ou onisciente, conta a história.

3ª pessoa do singular ou do plural.

Permite revelação da vida dos personagens; (no conto, por sua brevidade, o detalhamento não ultrapassa muito da superfície).

A história pode perder o caráter de impacto imediato e direto com o leitor.

O escritor conta a história como observador.

3ª pessoa do singular ou do plural.

Torna a narrativa mais linear, menos complexa, uma vez que diminui a penetração psicológica, favorecendo a ação.

O narrador é compelido a contar apenas o que observou.

Para o estudioso (MOISÉS, 1973, p. 136/137), o contista é obrigado a

escolher um dos focos para cada narrativa, dadas as limitações próprias do conto.

No entanto, ele afirma também que é possível encontrar contos modernos em que o

escritor muitas vezes mescla os enfoques narrativos, justamente para não ser

penalizado com alguma desvantagem relativa a algum tipo de foco.

É oportuno destacar a conclusão de Moisés (1973, p. 137) com relação ao

foco narrativo presente nas histórias:

À guisa de encerramento deste tópico, julgo cabível a seguinte observação: em última instância, o ficcionista é sempre onisciente, ainda quando pareça conceder às personagens a primazia da narrativa ou do diálogo. É que os vários pontos de vista constituem truques dramáticos, disfarces ou encarnações teatrais com que o escritor dissimula que conhece tudo quanto ocorre nas suas obras, ao menos por ser quem as escreve.

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Decerto, a colaboração do mundo inconsciente ou/e subconsciente existe, e deve ser ponderada, mas o ficcionista não trabalha em transe, fora de si. Mesmo nas ocasiões em que a personagem “escapa” e se põe a comportar-se ao contrário do que espera o ficcionista, percebemos que este continua onisciente, na medida em que “sabia”, de antemão, com as antenas da sensibilidade. Enfim, onisciente porque a obra nasce dele, sobretudo entendendo onisciência não como consciência, mas como conhecimento integral (isto é, pela memória, pela imaginação, pela reflexão) dos materiais da ficção (isto é, o Homem, a Natureza, o Tempo, a História).

Assim, no tocante à estrutura do conto, o autor supracitado (1973, p. 127)

argumenta que, por ser essencialmente objetivo, costuma ser narrado em terceira

pessoa, fugindo ao introspectivo, às divagações ou digressões, uma vez que o conto

procura conferir sempre à narrativa uma proximidade maior à realidade da vida, em

um curto espaço de tempo.

Tal qual Moisés (1973) relaciona importantes aspectos referentes à estrutura

do conto, Coelho (2010, p. 66) também destaca dez fatores estruturantes na

composição do gênero narrativo literário (denominado por ela de “matéria narrativa”)

e que, consequentemente, podem ser aplicados ao gênero discursivo conto. São

eles:

1. O narrador (a voz que fala, enunciando a efabulação); 2. O foco narrativo (o ângulo ou a perspectiva de visão, escolhida pelo

narrador para ver os fatos e relatá-los; 3. A história (a intriga, argumento, enredo, situação problemática,

assunto, etc.); 4. A efabulação (a trama da ação ou dos acontecimentos, seqüência dos

fatos, peripécias, sucessos, situações...); 5. O gênero narrativo (dependente da natureza do conhecimento de

mundo e implícito na narrativa, podendo assumir três formas distintas: conto, novela e romance);

6. Personagens (aqueles que vivem a ação); 7. Espaço (ambiente, cenário, paisagem, local...); 8. Tempo (período de duração da situação narrada); 9. Linguagem ou discurso narrativo (elemento concretizador da invenção

literária); 10. leitor ou ouvinte (o provável destinatário, visado pela comunicação); (o

destaque em itálico foi dado pela autora) – {não sei se devo mencionar isso}

Dentre esses fatores apontados por Coelho (2010), é importante explicitarmos

alguns de grande importância para melhor entendimento das particularidades do

conto, especialmente quando da leitura desse gênero em sala de aula. Como por

exemplo, com relação ao narrador, à personagem, ao espaço e ao tempo.

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O narrador, segundo Coelho (2010, p. 67), não deve ser confundido com o

autor implícito, que é aquele que produziu um texto de um determinado lugar social

e histórico; o narrador não existe fora do texto. A autora ainda define o narrador em

seis categorias diferentes de acordo com a natureza de suas relações com a matéria

narrada e com o destinatário (leitor ou ouvinte) da seguinte forma:

1- O contador de histórias ou narrador primordial é aquele que é mediador de

fatos e acontecimentos realmente acontecidos, por ele próprio presenciados ou que

lhe foram contados por outros, e não como inventor. A autora exemplifica o caso do

arrador nos contos de fada e nos contos maravilhosos.

2- O narrador demiurgo ou onisciente é aquele que conhece os fatos e

conflitos, dentro e fora das personagens, bem como o presente, o passado e o

futuro.

3- O narrador confessional ou intimista é aquele que expõe as próprias

experiências pessoais ou as de outros por ele testemunhadas. Segundo Coelho

(2003, p. 68), é o tipo de narrador mais encontrado na literatura.

4- O narrador dialógico (ou dialético) é aquele “que se dirige continuamente a

um tu” e esse não se faz ouvir na narrativa, embora a provoque. A autora

exemplifica esse tipo de narrador por meio de Guimarães Rosa, no romance

“Grande Sertão: Veredas”.

5- O narrador insciente é um tipo de narrador encontrado na modernidade e

na pós-modernidade, que ignora as razões do que acontece à sua volta, convivendo

com a dúvida, a incerteza ou certezas contraditórias.

6- O narrador in off é aquele que fala a um tu que fala, que responde as

prováveis ou evidentes perguntas do eu-narrador “cujas falas não se fazem ouvir na

narrativa, mas permanecem in off”. Nesse tipo de narrador, não se ouve a voz do

narrador, somente as vozes das personagens que com ele interagem.

Quanto ao ângulo de visão em que se coloca o narrador, ou seja, quanto ao

foco narrativo, Coelho (2010, p. 68) aponta que é um dos fatores mais importantes

na elaboração da narrativa, visto que revela o grau de conhecimento que o narrador

tem dos fatos que são narrados.

Diferentemente de Moisés (1973, p. 132) que indica quatro posições do

narrador, são cinco as posições declinadas por Coelho (2010, p. 69): foco

memorialista (em 3ª pessoa, conhece apenas o mundo exterior das personagens);

foco onisciente (em 3ª pessoa, além de esclarecer os acontecimentos narrados,

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conhece o interior das personagens. Quando se limita ao ângulo de visão de apenas

uma personagem, é chamado de foco de consciência parcial; quando revela pleno

conhecimento de tudo que se passa dentro da narrativa, é chamado de foco de

consciência narrativa total); foco confessional ou intimista (o eu do narrador está

dentro dos fatos narrados, também chamado pela autora de interno subjetivo. Se é

apenas testemunhal, observador, é chamado foco interno objetivo); foco dialético (o

narrador dialoga com um tu) e foco dialógico (a voz do narrador não aparece, só é

percebida pelas vozes das personagens).

Assim, temos:

Quadro 4: Tipos de foco narrativo, segundo Coelho (2010)

Foco narrativo Características relevantes Subdivisões de acordo com características específicas

Foco memorialista

Conhece apenas o mundo exterior das personagens.

_____

Foco onisciente Conhece o interior das personagens, além de esclarecer os fatos narrados.

- foco de consciência parcial: limita-se a apenas uma personagem; - foco de consciência narrativa total: revela pleno conhecimento de tudo.

Foco confessional ou intimista

O eu do narrador está dentro dos fatos narrados ou é apenas observador.

- interno subjetivo: se o narrador está dentro dos fatos; - interno objetivo: se o narrador é apenas testemunhal.

Foco dialético O narrador dialoga com o tu. Uma 2ª pessoa que se mantém silenciosa até o fim da narrativa.

_____

Foco dialógico A voz do narrador presente/ausente só é percebida pelos comentários e respostas da (s) personagem (ns) que responde (m).

_____

Outro elemento de grande importância na narrativa e que cabe a nós remeter-

nos à Coelho (2010) para nossos estudos é a personagem.

Dentro dos contos, são poucas e breves as características atribuídas às

personagens. Assim, é normalmente mais pelas ações que acontecem no decorrer

da narrativa que nos servimos para compreender suas representações.

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Coelho (2010, p. 74-75) enumera a existência de três categorias de

personagens: a personagem-tipo, a personagem-caráter e a personagem-

individualidade.

A personagem-tipo, segundo autora, é bastante simples em sua construção,

estereotipada, nunca muda suas ações ou reações, agindo sempre do modo

esperado, comuns às narrativas infantis e à literatura popular, tais como as rainhas,

as bruxas, as fadas, os caçadores, apenas citando alguns exemplos da autora. A

personagem-caráter é mais complexa e suas ações revelam sempre aspectos do

caráter, sendo frequente nas narrativas exemplares e na literatura tradicional. A

autora revela que não há uma linha demarcatória entre essas duas categorias de

personagens sendo que a mesma personagem-tipo pode passar a personagem-

caráter quando atuação se torna mais complexa e se aprofunda no questionamento

dos valores. Já a personagem-individualidade representa o homem da

contemporaneidade, de natureza questionadora, como o protagonista de O Pequeno

Príncipe, de Saint-Exupéry; ou, no Brasil, a boneca Emília, de Monteiro Lobato.

(2010, p. 76)

Muito pertinente também a colocação de Coelho com relação às funções do

espaço dentro das narrativas (2010, p. 77-78). Ela afirma que o espaço é o ponto de

apoio para as ações das personagens, podendo conferir maior verossimilhança aos

fatos narrados ou contribuir para a construção de significados.

[...] Meio familiar, social e econômico; tipo de habitação; clima; nação; objetos que nos rodeiam na intimidade; a moda de nossos trajes; o local de trabalho; etc., são elementos do espaço que nos servem de apoio para vivermos; condicionam nosso ser social e atuam decisivamente em nosso ser interior. Da mesma forma, a ficção narrativa decorre sempre em um determinado local ou espaço que lhe dá significação e verossimilhança. (COELHO, 2010, 77)

A autora afirma, então, a existência de três espécies de espaço: o natural,

como aqueles não modificados pelo homem; o social, elementos da natureza ou do

ambiente modificados pelo trabalho de transformação do homem e o trans-real,

existente nas novelas de cavalaria, nos contos maravilhosos e nas fábulas, por

exemplo. (idem, 2010, p. 77)

De acordo com as funções do espaço nas narrativas, ela subdivide em duas

funções principais: função estética e função pragmática. A função estética é a

exercida pelos ambientes que servem de cenário à ação, descrito com riqueza de

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detalhes, visando a conferir verossimilhança ao conflito, mas sem auxiliar no

desenvolvimento dos acontecimentos.

Já na função pragmática, os elementos do espaço servem de instrumento

para o desenvolvimento da ação narrativa, segundo a autora. Ela ainda cita três

funções pragmáticas mais frequentes: provocar, acelerar, reatar ou alterar a ação

das personagens; ajudar a caracterizar a personagem e criar uma atmosfera

propícia para o desenrolar do conflito.

O tempo também é um elemento de fundamental importância dentro da

narrativa, visto que toda narrativa obedece a uma movimentação das ações dentro

de um determinado tempo, seja ele cronológico ou psicológico. Coelho nomeia a

esses dois tipos de tempo: tempo exterior (comum às narrativas que decorrem em

um mundo semelhante ao nosso, dos dias e das noites) e tempo interior (registros

das emoções vividas pelas personagens, o tempo vivido de acordo com o

sentimento da personagem), respectivamente, acrescentando à classificação o

tempo mítico também, que corresponde ao tempo eterno, imutável, que não se

desgasta (ideal da literatura infantil, como nos contos de fada e das lendas).

(COELHO, 2010, p. 79-80)

Considerando a origem do conto, bem com as características do gênero

discursivo apresentadas nesta seção e que um dos objetivos desta pesquisa é de

fornecer subsídios para o professor de língua portuguesa trabalhar com a leitura de

contos no ensino fundamental, cabe perguntar: em essência, quais características

do conto devem ser consideradas pelo professor, nas atividades de leitura em sala

de aula, para proporcionar aos alunos melhores condições para compreensão da

leitura?

A escolha do trabalho com a leitura de contos nessa pesquisa não é por

acaso, pois o conto, por sua pequena extensão pode vir a ser uma peça-chave ou

um atrativo para a formação de futuros adultos proficientes e sedentos de leitura.

Corroborando essa afirmação, Silva (2010, p. 43) aponta uma justificativa que pode

ter contribuído para a intensa produção das narrativas curtas nos últimos tempos: a

técnica de produção do conto ao criar o máximo de efeito com um mínimo de

elementos (reduzido número de personagens, unidade de ação, de tempo e de

espaço) favorece uma leitura crítica no tempo reduzido de uma aula segundo a

autora.

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A reduzida dimensão do conto provoca uma reação no leitor, ao mesmo tempo intelectiva e emocional. Intelectiva, na medida em que essa trama bem urdida desperta-lhe sentimentos e sensações. O papel do leitor de contos deve ser, pois, ativo, participante, sob pena de escaparem os significados e intenções dissimulados nas entrelinhas do texto. (SILVA, 2010, p. 43)

Por suas próprias características estruturais, no conto nem tudo precisa ser

dito, deixando sempre margem às inferências e sensibilizando o leitor à atitude

crítica. Concluímos, pois, esta seção, com destaque para a importância do papel do

educador em despertar no aluno o interesse para a leitura, atuando como um leitor-

mediador. Para Perrone-Moisés (1990, p. 108), a criação literária só existe de fato se

recriada pela leitura. A autora afirma ser imprescindível a existência de dois polos: o

escritor e o leitor, cuja tarefa deve ser tão ativa quanto à do escritor. É o professor

quem propõe atividades para os alunos encontrarem os caminhos para a

compreensão, despertando-os para detalhes da elaboração do conto como: a

posição do narrador, as personagens, o tempo, o espaço, as figuras de linguagem, a

pontuação, de acordo com os que forem mais relevantes para a construção de

sentidos de cada conto lido, a fim de que possam superar os limites do texto. A

utilização desses elementos em sala de aula será exemplificada no quarto capítulo.

1.5 O conto e suas variações

Conforme já afirmado anteriormente, o conto tem como característica básica a

brevidade. Não obstante esse seu caráter essencial e que lhe é inerente desde os

tempos mais remotos, o conto pode apresentar-se em uma multiplicidade de

variações. Moisés (1973, p. 137) atenta-nos para o fato de que existem muitas

classificações possíveis para o conto, sem que ele perca seu objetivo singular de

transmitir uma única impressão ao leitor. Ou seja, a variação entre os contos seria

sempre acidental e nunca essencial. Além disso, em um mesmo conto podemos

vislumbrar características múltiplas, com a predominância de uma só, que o

fundamenta e o localiza em determinada classificação. Muitas vezes, casos há, em

que não se consegue defini-lo em uma categoria. Tal fato, provavelmente, se deve à

ampla liberdade que os autores adquiriram, ao longo da evolução dos contos na

história, de imprimir as mais diversas características ao conto.

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Assim, há diferentes classificações para os diversos tipos de conto existentes,

normalmente nomeados de acordo com alguns critérios.

Para apresentar uma amostra da diversidade de critérios existente para

classificar os contos, baseando-se no acidental e não no essencial, insistindo em

comprovar a classificação oscilante, Moisés (1973, p. 138) dá destaque em sua obra

à classificação apresentada por Herman Lima (1952, apud MOISÉS, 1973), que ao

tratar a respeito da variação entre os contos, divide-os em duas categorias:

universais e regionais, subdividindo-os em contos humorísticos, psicológicos,

sentimentais, de aventura e de mistério e policiais. Apanhando a questão de outro

ângulo, o mesmo estudioso, apresentado por Moisés, classifica mais estritamente

em contos históricos, urbanos, comemorativos, puramente imaginários ou

fantásticos.

No entanto, em sua obra, Moisés (1973, p. 138) opina a favor da classificação

apresentada por Carl H. Grabo (1912, apud MOISÉS, 1973), pois acredita que esse

estudioso sugere uma classificação que mais atende à orientação nos estudos, visto

ser a mais simples. Nessa classificação, os contos são subdivididos em cinco

grupos: “1º histórias de ação; 2º de personagem; 3º de cenário ou atmosfera [...]; 4º

de ideia; 5º de efeitos emocionais”.

O “conto de ação” é o tipo mais comum, nele existe a predominância da

aventura. Trata-se de uma narrativa linear, cujo objetivo é entreter e divertir o leitor.

Atualmente, os contos policiais e de mistério são os seus exemplares.

O segundo tipo de conto, o “conto de personagem”, é menos comum. Como,

no conto, o enredo é mais voltado para a ação, o contista poderá até centrar sua

atenção em uma personagem principal, mas esta nunca atingirá o grau de plenitude,

não haverá uma demorada análise, pois a narrativa sempre deverá obedecer a sua

característica de ser curta, visando sempre à unidade. Um exemplo desse tipo de

conto citado por Moisés é “Feliz Aniversário”, Clarice Lispector.

O “conto de cenário ou atmosfera” é raro. “A tônica dramática transfere-se

para o cenário, o ambiente, de modo que este quase se transforma no herói do

conto”. (MOISÉS, 1973, p. 140).

Já o “conto de ideia” é mais frequente. Caracteriza-se como aquele em que o

escritor aproveita-se de um personagem, de uma história para transmitir uma ideia.

Houve um tempo, segundo Moisés (1973, p. 140), no século XVIII, em que ele

predominou, visto que havia muitas narrativas de caráter moralista, em torno de uma

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ideia, como é o caso de Voltaire, cuja obra oferece uma visão filosófica da

existência, com observações que a vida lhe permitiu fazer sobre os homens e o

mundo. No conto de ideia, a ideia a transmitir sobrepõe a todos os outros aspectos

secundários, a atenção do escritor e do leitor encontra-se inteiramente voltada para

ela. Um exemplo importante de nossa literatura brasileira citado por Moisés (1973, p.

141) é “O Alienista” de Machado de Assis, em que todas os fatos narrados se aliam

para fornecer ao leitor uma única ideia. Entretanto, essa ideia permite inúmeras

interpretações, posto que Machado provavelmente tenha como objetivo instigar

vários questionamentos com relação à espécie humana.

O “conto de efeitos emocionais” frequentemente aparece mesclado ao de

ideia, visto que tem por objetivo transmitir uma emoção ao leitor. Nele, tudo

converge para o objetivo de despertar emoção que, durante a leitura, vai sendo

tomado de um sentimento misto de curiosidade e de sofreguidão, e por isso mesmo,

ele se utiliza de expedientes próprios dos contos de mistério ou de terror. Exemplo

desse tipo de narrativa é encontrado em algumas obras de Edgar Allan Poe, como

“O Gato Preto”. (MOISÉS, p. 141).

Coelho (2010, p. 181-183) também nomeia e aponta algumas outras

classificações para o conto, dentre elas: contos exemplares, contos jocosos,

facécias, contos religiosos, contos etiológicos e contos acumulativos.

Os “contos exemplares” são contos de moralidades, contados antigamente

nos longos serões do inverno europeu e trazidos ao Brasil pelos portugueses.

Possuem uma moral sensível e popular, facilmente perceptível no enredo.

Os “contos jocosos” são narrativas breves e centradas no cotidiano, que

circularam com grande sucesso na França medieval, expandindo-se também,

posteriormente, para outras nações. Possuem caráter moralizante, diferenciando-se

do conto exemplar por ser recheado de comicidade, de vulgaridade nas situações,

gestos ou palavras, aproximando-se do gênero narrativo anedota, porém com uma

intencionalidade crítica.

As “facécias” são narrativas em que existem situações imprevistas, materiais

e morais. “Pode deixar de ter uma finalidade moral, mas um sentimento de

aprovação, crítica, repulsa ou apenas fixação de caracteres morais.” (COELHO,

2010, p. 182).

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Os “contos religiosos” se caracterizam, segundo a autora, como histórias que

fundem naturalmente tradições seculares anteriores ao cristianismo, denunciando

vestígios de ritual, de respeitoso uso sagrado.

O “conto etiológico” é aquele que foi inventado “para explicar e dar razão de

ser de um aspecto, propriedade, caráter de qualquer ente natural”, por exemplo,

contos que explicam o pescoço longo da girafa (COELHO, 2010, p. 182).

Por fim, os “contos acumulativos” são histórias muito populares e divertidas,

podendo também se apresentar como um desafio à articulação da fala, como na

brincadeira dos trava-línguas, transformando-se em um jogo. É importante ressaltar

que todas essas classificações do conto acima expostas foram apresentadas por

Coelho (2010) a partir da lição de Cascudo (1952, p. 277/278), que apresentou

outras classificações além daquelas mencionadas pela autora.

Vale, então, relembrarmos algumas delas também importantes. São elas:

contos de encantamento (com elementos sobrenaturais, dons, amuletos, varinha de

condão, virtudes acima da medida humana); contos de animais (são as fábulas

clássicas, em que os animais vivem o exemplo dos homens); demônio logrado

(contos em que “o Diabo é um logrado inevitável”, perdedor); contos de adivinhação

(histórias que se caracterizam pela decifração de enigmas); natureza denunciante (o

autor (p.278) cita como exemplo a história em que os cabelos da menina que a

madrasta sepultou viva transformaram-se em capim e cantam, denunciando); contos

acumulativos (são trava-línguas, histórias sem fim, que se caracterizam pela

disputa); ciclo da morte (contos da Morte personalizada; ao contrário do Demônio

Logrado, a Morte é sempre vencedora).

Retomando as classificações apontadas por Coelho (2010), é muito pertinente

também remetermos à classificação dual evidenciada pela autora (COELHO, 2010,

p. 172), diferenciando o conto em “maravilhoso” e “de fadas”. E essa nomenclatura

utilizada para os contos já nos é mais familiar que as anteriormente citadas. A autora

identifica o conto maravilhoso como aquele que tem raízes em narrativas orientais,

com personagens contrariando a lei da gravidade, personificadas, com poderes

sobrenaturais ou beneficiadas com milagres, dentre outras características

misteriosas. Já o conto de fadas, segundo a mesma autora teve origem entre os

celtas, com heróis e heroínas, com experiências ligadas ao sobrenatural, ao mistério

do além-vida e visavam à realização do ser humano. Nesse sentido:

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Limitado pela materialidade de seu corpo e do mundo em que vive, é natural que o homem tenha desejado sempre uma ajuda mágica. Entre ele e a possível realização de seus sonhos, aspirações, fantasia, imaginação... sempre existiram mediadores (fadas, talismãs, varinhas mágicas...) e opositores (gigantes, bruxas ou

bruxos, feiticeiros, seres maléficos...). (COELHO, 2010, p. 173).

Entre esses personagens com características especiais, encontra-se, em

destaque, a figura da fada, que, pertencente a um lugar privilegiado, pois encarna a

possível realização dos sonhos inerentes à condição humana, apesar dos séculos e

da mudança de costumes, continua ainda mantendo seu poder de atração sobre

homens e crianças (COELHO, 2010, p. 173).

Dentre os autores que apresentam classificações para o conto, também

encontramos Faria (2010, p. 24) que traz em sua obra uma classificação

fundamentada a partir de R. Leon (apud FARIA, 2010), especialista francesa que

distingue os diferentes tipos de contos em duas categorias: tradicionais e modernos.

Os tradicionais, como os de contos de fada e os contos maravilhosos, abordam

aspectos importantes de nossa natureza e de nossa história, com atividades de

sobrevivência, por exemplo. Os contos modernos trazem uma renovação no

maravilhoso, abordando o dia a dia atual das crianças, de situações aparentemente

banais até temas sociais, religiosos, existenciais e éticos.

O quadro a seguir tem como objetivo abreviar todas essas classificações

acima expostas, segundo seus teóricos:

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Quadro 5: Classificações dos contos de acordo com alguns estudiosos.

AUTOR

CLASSIFICAÇÃO

OBSERVAÇÕES

Lima (1952, apud MOISÉS, 1973)

Universais e regionais

Subdivide em: humorísticos; psicológicos; sentimentais; de aventura; de mistério; policiais. E mais estritramente: Contos históricos; urbanos; comemorativos; imaginários ou fantásticos.

Grabo (1912, apud

MOISÉS, 1973)

Contos de ação; contos de personagem; contos de cenário ou atmosfera; contos de ideia; contos de efeitos emocionais.

Moisés (1973) acredita que esse estudioso sugere uma classificação que mais atende à orientação nos estudos, visto ser a mais simples.

Coelho (2010)

Contos exemplares; contos jocosos; facécias; contos religiosos; contos etiológicos e contos acumulativos.

A autora também apresenta uma classificação dual: conto de fadas e conto maravilhoso

Cascudo (1952)

Contos de encantamento; Contos de exemplo; Conto de animais; Facécias; Contos religiosos; Contos etiológicos; Demônio logrado; Contos de adivinhação; Natureza denunciante; Contos acumulativos e Ciclo da morte.

O autor compara a lenda ao conto, destacando que o mundo sobrenatural é parte essencial nas lendas e sua intervenção independe do término feliz, o que não ocorre nos contos de encantamento. (CASCUDO, 1952, p. 279)

Leon (..., apud FARIA, 2010)

Contos tradicionais e Contos modernos

Tradicionais: contos de fada e maravilhosos Modernos: temas sociais, religiosos, existenciais e éticos.

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Podemos concluir, a partir da organização da classificação dos subtipos de

contos, que a classificação frequentemente utilizada para nomeá-los não é unânime

entre os autores. Pela experiência que temos como professores, podemos constatar

essa multiplicidade de classificações também em materiais didáticos, provando que

os autores não se fundamentam apenas em um único teórico para optar pela

classificação. O conto pode receber outras classificações de acordo com a ideia

tematizada.

Enfim, em todas as classificações, deve-se lembrar que a estrutura básica de

um conto é sempre a mesma: apresentação, desenvolvimento ou complicação,

clímax e desfecho; nos contos encontraremos os mesmos elementos: narrador, foco

narrativo, personagens, tempo e espaço. Portanto, observa-se que toda a

abordagem dos autores da tradição literária citados nesse capitulo é estritamente

estrutural.

No trabalho em sala de aula com leitura de contos, embora os aspectos

estruturais não sejam os únicos que devam ser abordados, eles devem também se

considerados. Nesse aspecto, Faria (2010, p. 24-25) expõe que as narrativas, sejam

elas tradicionais ou modernas, estruturalmente podem ser sintetizadas por três

fases: a situação inicial, em que há um estado de equilíbrio ou já há um problema; o

desenvolvimento, momento em que ocorre o surgimento de um problema

desestruturando o equilíbrio; e o desenlace, que poderá ser feliz, quando se

soluciona o problema, ou infeliz, quando o equilíbrio inicial não é alcançado, pois

não se resolveu o problema.

A autora explica a estrutura das narrativas como essencialmente temporal,

dividindo-a em relação aos “momentos-chave no fluir das ações” (FARIA, 2010, 35),

nomeando as divisões da história de “sequências narrativas”. Partindo dessas

considerações, Faria sugere como bom trabalho para o docente, auxiliar os alunos a

compreenderem os momentos-chave da história, a entenderem os “cortes da

narrativa”, marcando os momentos significativos da história. Esses cortes têm a

função de “amarrar ou desamarrar a ação, abrir ou fechar perspectivas” (FARIA,

2010, p. 36), portanto a sugestão da autora torna-se uma atividade verdadeiramente

interessante para os iniciantes na prática da leitura, pois entender a organização das

partes auxilia no processo de entendimento da construção de uma história em sua

totalidade.

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Não podemos esquecer também que é por meio dessas partes “maiores”, que

é possível elaborar atividades de compreensão que explore elementos estruturais

“menores”, tais como, personagens, lugares, tempo, determinadas ações, que levem

ao leitor a compreensão de qual o distanciamento entre o texto objeto de leitura,

escrito por alguém em um determinado tempo, e a realidade atual vivenciada pelo

leitor, que também está situado em um tempo e espaço específicos.

As relações de sentido que um leitor constrói durante a atividade de leitura é

que fazem com que ela se torne um momento dialógico entre escrita e vida em

sociedade e permita o entendimento do texto como participativo da construção de

uma identidade social e cultural, corroborando o dialogismo inerente ao enunciado,

conforme nos explica Bakhtin (1992, p. 357).

Dessa forma, essas propriedades sócio-comunicativas, dialógicas e

estruturais do conto serão exploradas na sequência didática que será proposta no

capítulo 3, pois é dessa maneira que um texto literário é capaz de fascinar, de

encantar, de aproximar o leitor de sua cultura, de raízes históricas, fazendo-o

conhecer-se melhor, organizando sua existência, sua realidade física e psicológica.

Acredito ser pertinente, nesse momento, compartilhar as ideias de Gregorin:

Trabalhar com literatura infantil em sala de aula é criar condições para que se formem leitores de arte, leitores de mundo, leitores plurais. Muito mais do que uma simples atividade inserida em propostas de conteúdos curriculares, oferecer e discutir literatura em sala de aula é poder formar leitores, é ampliar a competência de ver o mundo e dialogar com a sociedade. (GREGORIN FILHO, 2009, p. 77-78)

Assim, não obstante as mais diversas categorias que são apresentadas por

diferentes autores, podemos concluir que o conto oferece uma multiplicidade de

opções para que se desperte o prazer pela leitura. Quando se trabalha com a leitura,

além da formação de um leitor proficiente, estamos formando leitores com gosto

pelo ato de ler. A leitura do texto literário em sala de aula ou fora dela apresenta

novas possibilidades de ver e entender o mundo pelos inúmeros saberes

compartilhados. Poder proporcionar esse contato por meio da criação de condições

para o aprendizado da leitura e para o gosto de ler, é participar da formação de um

mundo melhor, composto por cidadãos plenos.

Corroborando as ideias expostas acima, Held (1980, p. 57) deixa claro que a

leitura deve ser oferecida pelo simples prazer de ler e não como “tarefa escolar”,

pois muitos ainda acreditam que as atividades com a leitura devem sempre se

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pautar pela racionalidade e pela decodificação do texto, em nome de uma literatura

utilitária, esquecendo do caráter gratuito e prazeroso da literatura. Somente com o

oferecimento de uma leitura gratuita é possível fazer acontecer verdadeiramente a

interação texto/leitor, possibilitando a construção dos sentidos feita a partir da

capacidade criadora da criança, que terá a liberdade de construção dos sentidos. A

apresentação do conto, podendo ser mediada por um adulto em um “clima mais livre

e calmo”, trará impressões muito mais fortes e duráveis, alimentando a magia da

palavra.

Assim, ao educador cabe encontrar o melhor caminho para o trabalho com

esse gênero, pois em uma mesma sala pode ele encontrar os mais diversos gostos,

uma vez que podem ser múltiplas as crenças e as expectativas dos alunos de uma

mesma sala de aula, pois cada ser é único, bem como seu contexto de vida também

é único, ou seja, enquanto alguns alunos podem ter tido contato com muitas leituras

de obras literárias, outros podem não ter tido o mesmo privilégio.

A partir do despertar para o gosto da leitura, o processo de se formar um leitor

proficiente, que adquira as habilidades necessárias para a efetiva compreensão de

um texto, tornar-se-á muito mais fácil e interessante, uma vez que os alunos estarão

motivados a aprender e o professor desejoso por ensinar.

Podemos concluir, ao término desse capítulo, que para se trabalhar a leitura

do conto em sala de aula é importante explorar, além dos aspectos estruturais que

ainda são cobrados pelas avaliações institucionais, o gênero discursivo conto

segundo a perspectiva bakhtiniana.

Essa fundamentação teórica sobre o conto será utilizada na elaboração da

sequência didática de leitura, proposta no capítulo 3, complementada com a

fundamentação teórica sobre leitura, apresentada no capítulo a seguir.

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CAPÍTULO 2

A LEITURA E O TEXTO LITERÁRIO EM SALA DE AULA

Somente quando se ensina ao aluno a perceber esse objeto que é o texto em toda sua beleza e complexidade, isto é, como ele está estruturado, como ele produz sentidos, quantos significados podem ser aí sucessivamente revelados, ou seja, somente quando são mostrados ao aluno modos de se envolver com esse objeto, mobilizando os seus saberes, memórias, sentimentos para assim compreendê-lo, há ensino de leitura.

(KLEIMAN, 2002, p. 28)

Existem muitos questionamentos por parte dos professores em relação à

prática de leitura com os alunos: Como ensinar ao aluno a compreensão de um

texto? Como desenvolver habilidades de leitura em nossos alunos? Quais os

gêneros que podem facilitar no processo de torná-los leitores proficientes? Como

formar leitores críticos? E o mais doloroso dos questionamentos: como fazer com

que os alunos gostem de ler? Este capítulo aborda concepções de leitura que

permitem um entendimento melhor do professor em relação ao processo de leitura e

de desenvolvimento de habilidades de leitura e traz, ainda, considerações sobre a

leitura do texto literário em sala de aula.

2.1 A concepção interativista ou cognitiva de leitura

O conceito de leitura como decodificação de um texto, durante muito tempo,

foi o que dominou os trabalhos pedagógicos. Como explica Kato (1995, p. 41), na

vigência da teoria estruturalista, a concepção de leitura era entendida como

decodificação do texto. Até fins da década de setenta, aproximadamente,

acreditava-se que o sentido do texto estava nele mesmo e um bom leitor conseguiria

entender perfeitamente o que o autor queria dizer. Por essa concepção, a

informação iria do texto para o leitor, num processo ascendente (do inglês buttom

up). O leitor começaria seu entendimento pelas letras, passando às palavras e às

frases.

No entanto, não tardou para que os pesquisadores concluíssem que os

sentidos não estão contidos nas unidades da língua, que a leitura não depende só

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da decodificação de letras, palavras e frases e que muitos fatores são importantes e

estão envolvidos no processo de compreensão de um texto. O modelo de leitura

como decodificação, portanto, passou a ser criticado por desconsiderar

completamente a ação do leitor durante a compreensão, seus conhecimentos

prévios e seus processos cognitivos, como comentam Kato (1995), Kleiman (1989) e

Solé (1998).

Hoje sabemos, a partir de muitas pesquisas, algumas das quais serão

comentadas em detalhes a seguir, que os processos de inferência e a percepção da

existência do diálogo entre os textos são de extrema importância para a formação de

um leitor crítico e apto a operar mudanças no meio em que vive. Ao professor, no dia

a dia de sua prática docente, cabe a sensibilidade de entender que práticas de

leitura atenderão às necessidades de formação de seu aluno-leitor e ao mesmo

tempo aguçarão sua curiosidade para a atividade da leitura, uma vez que cada

comunidade, cada indivíduo, constrói os sentidos de um texto a partir das

experiências que tem. Esse caminho pode ser complexo, mas provavelmente trará

muitos resultados positivos em relação ao desenvolvimento de competências sócio-

comunicativas necessárias para um leitor proficiente.

Nesse sentido, podemos lembrar a afirmação de Perrone-Moisés (1990, p.

109) de que “a leitura é um aprendizado de atenção, de sensibilidade e de

invenção”. Ou seja, a leitura requer cuidado: para que uma obra não seja

compreendida de acordo com a pura subjetividade de um leitor; sensibilidade: a fim

de que um leitor entenda as novas possibilidades de uso da linguagem

empreendidas no texto literário, compreendendo a sua relação com a beleza da vida

humana; e recriação: para que um leitor ultrapasse seu próprio aprendizado,

reinventando, recriando novos significados de maneira coerente a partir da leitura.

Assim, concluímos que não existem leituras prontas e as teorias sobre leitura

tentam auxiliar no entendimento do processo de compreensão de um texto. O

desenvolvimento das teorias sobre leitura vem passando por constantes

movimentos, pois elas acompanham as transformações pelas quais passa a própria

linguística. A linguagem como interação aponta para um redimensionamento da

leitura. Esta pesquisa toma como pressuposto teórico de seus estudos a abordagem

sociocognitiva de leitura, por acreditarmos que ela pode oferecer subsídios teóricos

importantes para as práticas de leitura em sala de aula. O que se assume hoje como

leitura, de acordo com essa perspectiva, como explicam Marcuschi (2008), Koch e

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Elias (2010) e Koch (2005), começou a se delinear no início dos anos 80, do séc.

XX, com pesquisas sobre leitura numa abordagem cognitiva. Por isso é importante

apresentar as principais características dessa abordagem para fundamentar melhor

o entendimento dos atuais pressupostos da leitura como um processo

sociocognitivo.

Estudos sobre processos cognitivos envolvidos na leitura mostraram que

esses são bem mais complexos do que um processamento linear de palavras. A

compreensão envolve a interação entre os conhecimentos do leitor e as informações

trazidas pelo texto, ou seja, um processo que funde dois movimentos de

interpretação, o ascendente (bottom-up ou de decodificação) e o descendente (top-

down ou de acionamento de conhecimento prévio do leitor).

Como explicam Kato (1995), Kleiman (1989) e Solé (1998), o leitor constrói

sentidos para o texto pela interação de seus conhecimentos prévios (de mundo,

linguístico e textual) com as informações do texto, num constante processamento

cognitivo. Nessa concepção, a leitura é vista como um processo de construção de

sentidos, pois um texto pode ter vários sentidos, sendo alguns explícitos e outros

não. Estes últimos precisam ser inferidos. O processo de inferência é outro aspecto

importante dessa abordagem e será detalhado mais adiante. “Processos cognitivos”

e “interação entre os conhecimentos do leitor e informações do texto” são palavras

chave que justificam o fato de essa concepção de leitura ser chamada de “Cognitiva”

ou “Interativista” ou “Interativa”, dependendo do autor.

Solé (1998) é uma das autoras que abordam em sua obra a perspectiva

interativista de leitura. Sobre o processo de construção de sentidos a partir da

atividade de leitura, explica:

[...] o significado que um escrito tem para o leitor não é uma tradução ou réplica do significado que o autor quis lhe dar, mas uma construção que envolve o texto, os conhecimentos prévios do leitor que o aborda e seus objetivos. [...] Para ler necessitamos nos envolver em um processo de previsão e inferência contínua, que se apoia na informação proporcionada pelo texto e na nossa própria bagagem, e em um processo que permita encontrar evidência ou rejeitar as previsões e inferências antes mencionadas. (SOLÉ, 1998, p. 22-23)

Portanto, essa concepção não critica ou despreza totalmente o ato de

decodificar, pois a decodificação acontece junto à construção de sentidos, que

envolve habilidades semânticas e sintáticas. Essa concepção pressupõe ainda que o

leitor não é um sujeito passivo diante do texto, pois é responsável ativo pela

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construção do sentido, alguém que controla a compreensão, formulando, a partir do

texto e de suas habilidades, hipóteses, verificando-as durante a leitura. A leitura

passa a ser vista como atividade criativa. Solé (1998, p. 27) explica que, ao assumir

o controle da própria leitura e regulá-la, o leitor já coloca um objetivo para ela. Tanto

quanto essa autora, outros, como Kleiman (1989), destacam a importância de o

leitor ter objetivos de leitura.

Corroborando as colocações de Solé, Koch (2005, p. 96-97) afirma que os

vários tipos de conhecimentos mobilizados “on line” por ocasião do processamento

textual, se atualizam nos textos por meio de diversos tipos de estratégias

processuais. Para a autora, o processamento textual é, portanto, estratégico e as

estratégias cognitivas são estratégias do uso do conhecimento. Esse processo se

realiza de modo automático, inconscientemente. Ela explica que o leitor tem a

possibilidade de construir não somente o sentido intencionado pelo autor do texto,

mas também outros não previstos ou até mesmo não desejados, uma vez que esse

uso dependerá, em cada situação, dos objetivos do leitor, da quantidade de seu

conhecimento disponível, partindo do texto e do contexto, bem como de suas

crenças, opiniões e atitudes.

Visto que um texto não explicita todos os sentidos possíveis, pois eles não

estão apenas nos elementos explícitos (possíveis apenas no nível da decodificação),

muitas informações ficam implícitas. Por essa razão, Koch (2005, p. 97) também

menciona o fato de que diferentes interlocutores poderão construir diferentes

sentidos para um mesmo texto. A autora argumenta que as inferências constituem

estratégias cognitivas e que, por ocasião da produção, o próprio autor já as prevê,

pressupondo que o leitor preencherá essas lacunas sem dificuldades, levando em

consideração os seus conhecimentos prévios e o contexto. Fulgêncio e Liberato

(1992, p. 28) traduziram esse processo de levantamento de inferências como um

jogo:

A compreensão da linguagem é então um verdadeiro jogo entre aquilo que está explícito no texto (que é em parte percebido, em parte previsto) e entre aquilo que o leitor insere no texto por conta própria, a partir de inferências que faz, baseado no seu conhecimento do mundo.

E é nesse “jogo”, nesse processo de elaboração ativa de conhecimentos, que

se estabelecem as relações entre o que é dito e o que já é conhecido anteriormente,

dando origem à inferência. (FULGÊNCIO e LIBERATO, 1992, p. 29)

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Kleiman (1989, p. 25) também aborda a importância das inferências para

relacionar as “diferentes partes discretas de um texto num todo coerente”. Ela atribui

à ativação do conhecimento prévio o papel essencial à compreensão, pois é em

decorrência do conhecimento sobre o assunto que o leitor possui, motivado pelos

elementos lexicais do texto, que se dá o processo inconsciente do leitor proficiente.

Como reflexo da importância dessas inferências, a autora aponta que “há evidências

experimentais que mostram com clareza que o que lembramos mais tarde, após a

leitura, são as inferências que fizemos durante a leitura” (KLEIMAN, 1989, p. 25), ou

seja, é justamente a contribuição dos conhecimentos de mundo durante o processo

de compreensão, num esforço inconsciente, que ficam armazenados em nossa

memória e não a simples atividade de decodificação.

Dessa forma, entende-se que um leitor proficiente desenvolverá estratégias

de leitura eficientes, de maneira que saiba relacionar seus conhecimentos já

adquiridos à leitura de um texto, em um processo de compreensão. Nesse sentido,

Solé (1998, p. 114) coloca a importância do papel do professor no ensino dessas

estratégias. As estratégias metacognitivas, ensinadas pelo professor, auxiliam um

leitor pouco proficiente a conduzir melhor sua leitura, usando conscientemente os

princípios já mencionados, por meio de procedimentos que visam a melhorar sua

compreensão leitora.

Kato (1985, p. 108) propõe duas estratégias metacognitivas de leitura: o

estabelecimento de um objetivo explícito para a leitura e a monitoração da

compreensão tendo em vista esse objetivo.

Além de Kato (1985), Kleiman (1989) também discute a importância de se

estabelecerem objetivos e propósitos para a leitura. Nesse sentido, Kleiman (1985,

p. 30 e 35) critica o contexto escolar, que muitas vezes não favorece o

estabelecimento desses objetivos, utilizando a leitura como pretexto para outras

atividades do ensino da língua, mas esquecendo a importância de, previamente,

estabelecer propósitos. Assim, ela entende que quando a leitura não surge de uma

necessidade para se chegar a um fim, não é propriamente uma leitura. Quando

lemos porque outra pessoa quer que leiamos, a atividade é mecânica e pouco tem a

ver com significado e sentido.

Ela ainda explica que a capacidade de estabelecer esses objetivos é uma

estratégia metacognitiva, de controle e de regulamento do próprio conhecimento. A

estratégia metacognitiva implica uma reflexão sobre o nosso conhecimento, uma

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consciência de estar realizando determinado procedimento com determinado

objetivo. Outro importante resultado do estabelecimento de objetivos apontado por

Kleiman (1985) no processo de compreensão é a formulação e testagem de

hipóteses. Assim, o leitor realiza um controle consciente para atingir o objetivo de

compreensão utilizando estratégias metacognitivas de monitoração do

entendimento.

Não obstante esse modelo de leitura tenha trazido importantes contribuições

para a compreensão dos processos envolvidos na leitura e para o desenvolvimento

de habilidades de leitura dos alunos, ele entende a leitura como uma atividade

individual, considerando o contexto mais imediato da interação autor-texto-leitor, não

incluindo no processo de leitura e produção de texto os aspectos discursivos da

linguagem em um contexto sócio-histórico mais amplo. Como comenta Lopes Rossi

(2010), a abordagem cognitiva não ignora os aspectos sociais envolvidos na

compreensão, mas não os explora.

Um avanço em relação a essa abordagem foi promovido pelas considerações

mais recentes sobre o caráter sócio-histórico e dialógico da linguagem, a partir das

idéias do filósofo russo Bakhtin. Passamos a seguir a expor as características da

abordagem sociocomunicativa de leitura, que servirá de base teórica para esta

pesquisa.

2.2 Conceitos que contribuíram para a abordagem sociocognitiva de leitura

A partir dos anos 80, baseando-se em concepções enunciativas e discursivas

da linguagem, especialmente fundamentadas nos trabalhos dos autores do círculo

do filósofo russo Bakhtin, os estudiosos da linguagem passaram a entender a leitura

por meio de uma concepção sociocognitiva. O texto, agora entendido como unidade

real da comunicação verbal e parte de um elo de uma cadeia complexa de muitos

outros enunciados (BAKHTIN, 2000, p. 293), passa a ser considerado em um

contexto sócio-histórico, cultural e ideológico de produção e de circulação muito

mais amplo, no qual os sujeitos são entendidos como atores sociais.

Nesse sentido, Lopes-Rossi (2011) comenta que o leitor deve considerar o

texto como representante de um gênero discursivo específico, determinado por

aspectos sociocomunicativos (condições de produção, de circulação, temática,

propósito comunicativo), com características verbais e visuais específicas, ou seja, o

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texto como evento, em sua situação real de interação. Todos esses elementos

constitutivos dos gêneros discursivos devem ser considerados na leitura. Para

realizar o complexo processo inferencial de compreensão, o leitor precisa ter

conhecimentos prévios de várias naturezas.

Particularmente, para compreendermos a abordagem sociocomunicativa de

leitura, é necessário conhecer a concepção de linguagem e os conceitos de gênero

discursivo e de dialogismo de Bakhtin (2000), conforme já explicitado no capítulo 1.

Assim, a linguagem, segundo essa concepção, é vista como um lugar de

interação, diferentemente da concepção de linguagem que a entende como

expressão do pensamento ou como instrumento de comunicação tão somente. Ao

produzir o discurso, já temos pré-estabelecidos nossos objetivos, bem como

levamos em consideração as características do gênero utilizado, adequando

aspectos linguísticos ou não-linguísticos, tais como o estilo e o vocabulário, de

acordo com o contexto de interação. Bakhtin afirma que a própria seleção que o

locutor faz ao produzir o discurso, de uma forma gramatical, já é um ato estilístico.

(BAKHTIN, 2000, p. 286)

Por isso, destaca-se a importância de se reconhecer a língua não mais

apenas como produto de um código a ser decifrado, mas sim como um organismo

vivo, passível de uma multiplicidade de sentidos inerentes ao contexto de vida dos

falantes de um determinado tempo e lugar social. Desse modo, lembramos

novamente as ideias do filósofo russo: segundo Bakhtin (2000, p. 326), uma análise

linguística que queira englobar todos os aspectos do estilo deve atentar para “o todo

do enunciado e, obrigatoriamente, analisá-lo dentro da cadeia da comunicação

verbal de que o enunciado é apenas um elo inalienável.”

Lembrando que os textos escritos se fazem presentes em vários períodos da

história, significando por muitas gerações, Marcuschi (2008) e Koch (2005) também

optam pela concepção de linguagem que a entende como lugar de interação (2005,

p. 100), concebendo o texto como evento construído na relação situacional (2008, p.

237).

Nesse sentido, Marcuschi (2008) faz uma importante colocação:

Escrever não é comunicar ou transmitir para o papel algo que está na mente e no mundo e que deve ser captado por outras mentes. Pois se a língua não é um sistema de representação ou espelhamento da realidade ou de ideias, a escrita é uma invenção permanente do mundo e a leitura é uma reinvenção. (MARCUSCHI, 2008, p. 243)

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Portanto, a partir dessa concepção do texto compreendido como um evento

comunicativo, em permanente elaboração ao longo de sua história e das diversas

recepções pelos diversos leitores (MARCUSCHI, 2008, p. 242), faz-se importante

entender a relação que se estabelece entre leitura e concepção de linguagem

sociocognitiva. Importante entendermos também quais foram as mudanças ocorridas

com relação à concepção de conhecimento prévio e quais as implicações para o

entendimento do processo de compreensão antes, durante e depois da leitura.

Resumindo as concepções de leitura e suas principais contribuições para o

entendimento do processo de construção de sentidos, organizamos quadro a seguir:

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Quadro 6 : Concepções de leitura

Concepção de

leitura

Principais pressupostos

Movimentos de compreensão

Como atividade de DECODIFICAÇÃO

O texto é um código a ser decodificado

O sentido está contido no texto Crítica: Entende que o leitor não cria nem constrói sentidos durante a compreensão.

A informação vai do texto para o leitor (processamento Bottom up)

Como atividade INTERATIVISTA ou COGNITIVA

Um texto pode ter vários sentidos: explícitos ou não

Leitura é um processo de construção de sentidos

O leitor usa estratégias cognitivas e metacognitivas

O leitor faz inferências com base em seus conhecimentos prévios e nas informações do texto

Crítica: entende a leitura como atividade individual.

Funde dois movimentos:

Ascendente (bottom up) +

Descendente (top down) Ou seja: Interação entre os conhecimentos do leitor e as informações trazidas pelo texto

Como atividade SOCIOCOGNITIVA

O sentido de um texto é construído na interação texto-sujeitos

A leitura é uma atividade social, situada

O leitor usa estratégias cognitivas e metacognitivas

O texto é um evento comunicativo em sua situação real de uso.

O leitor mobiliza conhecimentos prévios sobre o assunto, sobre o gênero e sobre toda a situação de comunicação

Os conhecimentos prévios são construídos socialmente

O leitor faz inferências

O leitor responde ativamente, dialogicamente, ao texto

Funde dois movimentos:

Ascendente (bottom up) +

Descendente (top down) Considera a interação entre os conhecimentos do leitor e as informações trazidas pelo texto, porém parte de conceitos de base socioenunciativa sobre língua, conhecimento prévio, contexto, texto (como exemplar de um gênero discursivo)

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2.3 O conceito de conhecimento prévio

A mudança e a elaboração de novos conceitos acerca da linguagem,

promovidas pelas ciências cognitivas acabaram por afetar também o conceito de

conhecimento prévio e o conceito de inferência. O texto é visto como um lugar de

interação entre sujeitos, pois nele se constituem e são constituídos, uma vez que

participam da construção do significado, compartilhando propostas de sentido nos

mais diferentes contextos sociocognitivos.

Comentando a abordagem sociocognitiva de leitura, Koch e Elias (2010)

destacam o conceito bakhtiniano de dialogismo. Explicam que, na concepção

interacional (dialógica) da língua, os sujeitos agem dialogicamente, pois o sentido de

um texto é construído na interação texto-sujeitos. Os sujeitos são vistos como

construtores sociais, considerando o próprio lugar da interação e da constituição dos

interlocutores, ou seja, deve-se ter sempre como pano de fundo o contexto de

produção e de circulação dos textos (KOCH e ELIAS, 2010, p.10). Portanto, as

autoras entendem a leitura como atividade de produção de sentidos, na qual se

colocam em ação várias estratégias sociocognitivas.

Koch e Elias (2010, p. 39) explicam-nos que durante a atividade de leitura

colocam-se em ação várias estratégias sociocognitivas, por meio das quais se

realiza o processamento textual. As estratégias mobilizam vários tipos de

conhecimento que o leitor tem em sua memória durante a leitura, simultaneamente,

sem se dar conta, que o levam à compreensão a partir de hipóteses de

interpretação. As autoras remetem-nos a uma outra obra de Koch (2002), na qual a

autora afirma que, para o processamento textual, é necessário recorrermos a “três

grandes sistemas de conhecimento”. O conhecimento linguístico, o enciclopédico e o

conhecimento interacinal.

Segundo as autoras, o conhecimento linguístico é todo o conhecimento que

temos acerca da gramática e do léxico. Por meio dele, é possível compreender “a

organização do material linguístico na superfície textual; o uso dos meios coesivos

para efetuar a remissão ou sequenciação textual; a seleção lexical adequada ao

tema ou aos modelos cognitivos ativados.”.

Assim, por exemplo, podemos entender que, já a partir da leitura do título, é

possível levantar hipóteses somente pelo léxico. Assim, também, ao nos atentarmos

para as locuções adverbiais ou para as conjunções dentro do texto, podemos fazer

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antecipações das ações das personagens ou dos acontecimentos; ao observarmos

a escolha da variação lingüística, seja pelo narrador ou pela personagem, é possível

fazer inferências com relação ao local de onde eles falam, e até mesmo criticar, se

está adequada ou não à personagem, ao tema ou ao público alvo daquela leitura.

O conhecimento enciclopédico ou o conhecimento de mundo, conforme

apontado pelas autoras (2010, p. 42), são aqueles referentes aos conhecimentos

vivenciados pelos leitores, ou seja, de acordo com todas as suas experiências de

vida familiar e social. Ao serem mobilizados esses conhecimentos, um texto ganhará

sentidos, que podem ser múltiplos, pois para um mesmo texto temos inúmeros

leitores, de múltiplas experiências, identidades e crenças. Assim, algum leitor poderá

não conseguir atingir qualquer sentido para um texto, mantendo-se no nível de

decodificação. Se, por exemplo, o texto a ser lido mantém diálogo com outro texto,

por meio da intertextualidade, aquela leitura pode não fazer parte de seu

conhecimento de mundo, a compreensão do texto estará, então, comprometida.

O conhecimento interacional engloba os conhecimentos ilocucional,

comunicacional, metacomunicativo e superestrutural (KOCH e ELIAS, 2010, p. 45).

O conhecimento ilocucional é aquele que nos permite reconhecer os objetivos

ou propósitos pretendidos pelo autor do texto em uma determinada situação

interacional. (KOCH e ELIAS, 2010, P. 46).

O conhecimento comunicacional, segundo as mesmas autoras, está

relacionado à quantidade de informação necessária para que haja a interação, à

adequação da variedade lingüística ao propósito comunicativo e à adequação do

gênero textual à situação comunicativa. Quando se desconsidera quaisquer desses

itens corre-se o risco de que a compreensão seja prejudicada.

O conhecimento metacomunicativo é aquele que permite ao locutor assegurar

a compreensão por meio de vários tipos de ações lingüísticas, tais como o uso do

aposto, o uso de expressões em realce (em letras maiúsculas de tamanho maior) ou

os comentários sobre o próprio discurso. (KOCH e ELIAS, 2010, p. 52).

As autoras finalizam apontando o conhecimento superestrutural ou o

conhecimento sobre gêneros textuais como aquele que permite ao leitor o

reconhecimento de textos como exemplares adequados aos diversos eventos da

vida social, de acordo com sua ordenação textual e com os objetivos pretendidos,

distinguindo-os dos demais. Esse tipo de conhecimento permite ao leitor distinguir

uma fábula de um conto, ou um conto de um romance, entendendo o texto como um

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gênero discursivo, ou seja, sob a perspectiva bakhtiniana: construído nas interações

sociais, imbuído de funções sociais.

Assim, o conceito de conhecimento prévio aparece de modo muito mais

abrangente, uma vez que envolve relações sociais, histórico e culturalmente

vivenciadas por e entre os indivíduos de uma determinada sociedade. Nesse

sentido:

Os conjuntos de conhecimentos, socioculturalmente determinados e vivencialmente adquiridos, sobre como agir em situações particulares e realizar atividades específicas vêm a construir o que chamamos de “frames”, “modelos episódicos” ou “modelos de situação”. (KOCH e ELIAS, 2010, p. 56).

Podemos concluir, a partir das colocações das autoras, que os modelos são

constitutivos do contexto. É a partir desse conjunto de conhecimentos apontados

pelas autoras que nos aproximamos do sentido de um texto, durante o processo de

sua compreensão. Quando um leitor mobiliza quaisquer desses conhecimentos

socioculturalmente adquiridos, ele está se utilizando de estratégias para a

compreensão de um texto.

Portanto, enquanto para a abordagem cognitivista o conhecimento era um

conjunto de dados armazenados individualmente e acionados para resolução dos

problemas, para a abordagem sociocognitiva de leitura o conhecimento é muito mais

abrangente, pois envolve não apenas as operações que acontecem nas mentes dos

indivíduos, mas várias ações conjuntas por eles praticadas. Koch (2005, p. 100)

ainda reforça a importância da qualidade da ação para que o conhecimento seja

significativo. O conceito de conhecimento prévio, pois, configura-se como o

elemento mais importante nesse processo de compreensão, como também o é o

conceito de inferência.

2.4 A importância do conhecimento prévio para o processo inferencial

Corroborando as afirmações de Koch e Elias (2010), Marcuschi (2008, p. 242)

lembra-nos que o texto já não é mais visto como um produto acabado ou como

depósito de informações. Segundo o autor, o texto agora é entendido como um

evento ou um ato enunciativo, “acha-se em permanente elaboração ao longo da

história e das diversas recepções pelos diversos leitores”, em atividades situadas.

Os contextos (cognitivo, social, histórico, cultural) de produção e de recepção são

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partes importantes no processo de compreensão: quanto mais um leitor é exposto à

diversidade de eventos de interação social, melhor será sua compreensão. O autor

apresenta em seus estudos uma importante conclusão com relação à interação

entre aspectos discursivos, leitor e texto no processo de compreensão dos sentidos:

Portanto, se a língua é atividade interativa e não apenas forma, e o texto é um evento comunicativo e não apenas um artefato ou produto, a atenção e a análise dos processos de compreensão recaem nas atividades, nas habilidades e nos modos de produção de sentido bem como na organização e condução das informações. Como o texto é um evento que se dá na relação interativa e na sua situacionalidade, sua função central não será a informativa. Os efeitos de sentido são produzidos pelos leitores ou ouvintes na relação com os textos, de modo que as compreensões daí decorrentes são fruto do trabalho conjunto entre produtores e receptores em situações reais de uso da língua. (MARCUSCHI, 2008, p. 242)

Nesse sentido, a compreensão dos textos deve ser entendida além de uma

simples atividade cognitiva. Visto ser o texto um lugar de interação, a compreensão

envolve uma participação interativa do leitor, cuja reflexão requer uma atividade

intensa e múltipla de produção de sentidos, tornando-o competente para agir com

criticidade em sociedade.

É importante ressaltar, também, que Marcuschi (2008) alerta-nos de que é

necessário cuidado na construção de sentidos diante de um texto. Não obstante um

texto abra a possibilidade para uma multiplicidade de sentidos por meio das

inferências, existem limites para a compreensão textual, por isso a relevância de se

observar sua situacionalidade, tomando o texto como um evento comunicativo em

que convergem ações linguísticas, sociais e cognitivas.

Os conhecimentos prévios, portanto, segundo a concepção sociocognitiva

não englobam somente os conhecimentos de um indivíduo isolado no processo de

compreensão, levando em consideração apenas o psicológico, mas do indivíduo

participante de uma ação colaborativa, na qual o ato de ler sustenta-se em contextos

históricos e culturais. Marcuschi (2008, p. 238) adota a metáfora da compreensão

como construção coletiva: “Compreender um texto é realizar inferências a partir das

informações dadas no texto e situadas em contextos mais amplos.” (MARCUSCHI,

2008, p. 239). O conceito de inferência nasce, pois, nesse processo de

compreensão ativa e interacional, onde os conhecimentos partilhados irão influenciar

na construção dos sentidos, participando o leitor como um coautor.

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Na maioria das vezes, quando o aluno ainda não está preparado para sozinho

levantar seus conhecimentos para o entendimento de um texto, ele necessita da

ajuda do professor, para que desperte sua sensibilidade para utilizar as estratégias.

Por isso, a leitura em conjunto do professor com a sala de aula favorece essa

prática, pois ele pode interferir nesse processo de entendimento do texto,

fornecendo objetivos para a leitura, por exemplo, a partir de relações com o

conhecimento prévio trazido pelo aluno. Essa ideia remete-nos às colocações de

Kleiman (1985) no tocante às estratégias metacognitivas de monitoração do

conhecimento, as quais são de grande importância no processo de compreensão de

um texto, pois, conforme nos é argumentado pela autora, quando o leitor estabelece

também objetivos para a leitura, ele está exercendo um controle consciente no

processo de compreensão.

Cumpre-nos lembrar o conceito de leitura que nos é colocado por Koch e

Elias (2010, p. 11):

[...] A leitura é, pois, uma atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos, que se realiza evidentemente com base nos elementos linguísticos presentes na superfície textual e na sua forma de organização, mas requer a mobilização de um vasto conjunto de saberes no interior do evento comunicativo.

Assim, compartilhamos com as ideias das autoras citadas e entendemos que

a leitura passa a ser compreendida como um evento e o professor, segundo Kleiman

(2006, p. 87), torna-se um agente do letramento, “[...] um agente social e, como tal, é

conhecedor dos meios, fraquezas e forças dos membros do grupo e de suas

práticas locais, mobilizador de seus saberes e experiências [...]”.

Um mesmo texto abre um leque de possibilidades de leitura, pois no processo

de construção de sentidos um leitor mobiliza importantes domínios com relação à

língua e diferentes conhecimentos, para os diferentes objetivos e níveis de leitura

que se pressupõe necessário para a compreensão, daí o fundamental papel do

professor como mediador, desvelando caminhos para um encontro mais íntimo com

a leitura. No caso desta pesquisa, por meio da Literatura.

2.5 A leitura de textos literários: competências e funções

Faria (2010, p. 12) apresenta em sua obra dois especialistas franceses que se

debruçaram sobre a prática de leitura dos textos literários para crianças e jovens na

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França: Poslaniec e Houyel. Esses autores afirmam que existem competências

ligadas à compreensão do texto e que a formação do leitor na infância não pode

prescindir delas. Os autores apontados por Faria (2010, p. 18), afirmam a existência

de duas fontes de onde provêm essas competências: a família e a escola.

Segundo esses autores, há quatro competências que as crianças já têm antes

da alfabetização, ou seja, competências advindas da experiência familiar:

1. o domínio da língua oral;

2. o domínio da capacidade abstrata de associar. Esse domínio está

relacionado às competências fundamentais na leitura das imagens que se

ligam às palavras do texto ou àquelas que são usadas quando da conversa

com o adulto sobre a página ilustrada;

3. o conhecimento sobre objetivos da leitura, em que a criança tem “uma

noção, mesmo inconsciente, sobre para que a leitura pode lhe servir”, visto

que já teve contatos com os mais diversos textos escritos e imagens em sua

vida familiar e social, como frases de propagandas, cartazes nas ruas etc.;

4. o conhecimento intuitivo de que ler é compreender, em que a criança “já

sabe que ler é compreender”, que “há um sentido global a descobrir”.

Essas competências já são trazidas pela criança à escola, em diferentes

graus de domínio: umas mais, outras menos, visto que as realidades vivenciadas por

cada criança são diferentes.

Faria (2010, p. 19) aponta, então, para a importância do papel que a escola

tem em ampliar essas competências que a criança já possui antes mesmo de serem

alfabetizadas, destacando nesse sentido a importância da contribuição que o texto

narrativo literário tem a oferecer:

Sabemos que o texto literário narrativo oferece ao leitor a possibilidade de “experimentar uma vivência simbólica” por meio da imaginação suscitada pelo texto escrito e/ou pelas imagens. “A literatura (e portanto a literatura para a juventude) é portadora de um sistema de referências que permite a cada leitor organizar sua função psíquica com o vivido e a sensibilidade que lhe é própria”. Tornar-se leitor de literatura é um “vaivém constante entre realidade e ficção que permite avaliar o mundo, se situar nele”. (FARIA, 2010, p. 19)

Embora nossa pesquisa não esteja voltada para as crianças das séries

iniciais, vale lembrar que todos os nossos alunos já passaram por essas séries e

trazem em sua identidade a bagagem de leitura que lhes fora proporcionada

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naquelas séries, que podem ser marcadas por experiências relevantes para o resto

de suas vidas.

No entanto, muitas vezes falta, ou ainda é insuficiente, esse encontro mais

íntimo com as narrativas literárias nas séries iniciais da vida escolar, pois muitas

vezes o profissional da educação se atém a expor conteúdos gramaticais ou a

trabalhar apenas com o livro didático, deixando o texto literário para um segundo

plano, ou seja, deixando de mostrar o prazer do texto para as crianças e o valor da

linguagem literária, deixando de mostrar toda a vida que existe dentro dele. Não

queremos aqui criticar o trabalho desses profissionais, visto que os conteúdos

gramaticais e o livro didático também são importantes, mas apenas alertar para o

fato de que talvez esses materiais não sejam os mais importantes e que

provavelmente falte o contato mais íntimo e prazeroso com o texto literário,

enquanto trabalho com a linguagem, enquanto representação da realidade.

Se prestarmos atenção às questões atuais das avaliações institucionais e às

questões de vestibulares, por exemplo, podemos observar que as competências que

se requerem desse aluno avaliado estão além dos conteúdos, estão voltadas para a

sensibilidade, para as experiências como seres humanos participantes de uma

sociedade viva e em transformação.

É importante, assim, que o professor possua um íntimo encontro com os

textos literários. Conhecer o texto literário deve ser atitude constante de um

professor ávido por formar leitores proficientes, em especial, de um professor de

língua materna. Portanto, em razão do exposto no parágrafo anterior, paralelamente

à ação de conhecer a realidade de seus alunos e de seus anseios, é preciso

conhecer materiais de leitura literária que possam vir a ser oferecidos. A partir desse

conhecimento, ampliam-se as possibilidades de motivação aos alunos, seja por meio

de indicação de uma leitura, ou por meio de uma roda de leitura, a princípio, com o

objetivo de despertar o interesse para ler, sem a tarefa de responder questões pré-

estabelecidas, como nos livros didáticos.

Não raro, a atividade de diagnosticar a realidade de leitura dos alunos em

salas de aula do Ensino Fundamental (do 6º ao 9º ano) se torna uma atividade árdua

e complexa, pois o professor tem, no máximo, a carga horária semanal de 6 horas e

essas salas são muitas vezes numerosas, dificultando uma relação mais estreita

entre professor e aluno. Por outro lado, não obstante possa haver certa dificuldade,

essa é uma etapa necessária, a fim de que se atente também aos diferentes níveis

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de leitura em relação à recepção dos textos. A respeito disso, sobre os níveis de

leitura para a recepção do texto literário infanto-juvenil, muitos estudiosos já se

debruçaram, propondo diferentes classificações. Dentre elas, Faria (2010, p. 14)

destaca a classificação proposta por três autores: Maria Helena Martins; Baudelot,

Cartier e Detrez; e Poslaniec e Houyel.

Em primeiro lugar, Faria (2010) traz as ideias de Martins (1982), que

considera que há três níveis de leitura: sensorial, emocional e racional. O nível

sensorial abrange apenas os aspectos externos de recepção, tais como o tato e a

visão, ou seja, o prazer de se ter o livro em mãos, com interessantes ilustrações e

papel agradável. O nível emocional “é aquele que incita a fantasia e liberta as

emoções” (p. 36), o plano das emoções, portanto. Por outro lado, o nível racional

está relacionado ao plano intelectual; é aquele que pressupõe que o leitor já possua

uma carga de conhecimento formal relacionado ao texto literário, ao tratamento dado

ao tema, às ideias dos autores, entre outros aspectos. Martins (1982) afirma que

esses níveis interagem nas atividades de leitura e a respeito disso, Faria (2010, p.

15) alerta que, embora a obra de Martins não apresente uma proposta pedagógica

para o trabalho com a literatura infantil em sala de aula, deixa implícito que “o

professor não deve tratar cada um daqueles três níveis de leitura separadamente”,

uma vez que conclui que “o homem lê como em geral vive, num processo

permanente de interação entre sensações, emoções e pensamentos”.

A seguir, Faria (2010) apresenta Baudelot, Cartier e Detrez, que publicaram

na França, em 1999, uma pesquisa sobre leitura cuja realização se deu no período

de quatro anos, acompanhando mil alunos, entre 14 e 18 anos, em escolas públicas

francesas. A partir da análise das entrevistas feitas durante a pesquisa, eles

distinguiram duas modalidades de leitura entre aqueles alunos: a leitura erudita e a

leitura comum.

Na leitura comum, a relação do leitor com a obra é afetiva, pois se manifesta

uma identificação do leitor com a história, com os temas, com as personagens,

promovendo a formulação de “julgamentos éticos a propósito de situações ou

personagens, prolongando ao mesmo tempo nas leituras, experiências ou

questionamentos pessoais” (BAUDELOT; CARTIER; DETREZ, 1999 apud FARIA,

2010, p. 16). Esse tipo de leitura é considerado pela autora como muito válido, por

seu caráter formador ou ético.

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A “leitura erudita é aquela consagrada pela tradição humanista e assimilada

pela escola tradicional como a única leitura válida”. Sua finalidade prioriza a estética,

uma vez que o leitor se mantém distante do texto. Existe apenas a fruição estética,

“segundo os padrões eruditos estabelecidos pela crítica literária de seu tempo”. De

acordo com os pesquisadores franceses, esse tipo de leitura coincide com a

proposta de leitura literária dos Parâmetros Curriculares do Ensino Fundamental,

pois ela reúne contemplação e análise estrutural.

Por fim, Faria (2010, p. 16) traz a classificação proposta por Poslaniec e

Houvel, que resumem a leitura em três níveis:

1. leitura comprometida, semelhante à leitura emotiva de Martins (1982), em

que as crianças se identificam com as personagens, em permanente

diálogo entre livro e leitor;

2. leitura aprofundada pela experiência pessoal; a que é feita por um adulto.

Nesta, a leitura emotiva também pode acontecer, até mesmo

concomitantemente. Nela o leitor já possui certa “maturidade” para a

leitura, sendo capaz de discernir as conotações presentes no texto, a

ideologia, as questões de ética colocadas pelo tema, situá-lo em seu

contexto histórico, prevalecendo assim a fruição de uma leitura

espontânea, ligada às experiências de vida do leitor;

3. leitura literária, que seria a capacidade de perceber o modo de construção

de um livro, a que os autores nomeiam de “prazer do tipo intelectual”.

Faria (2010, p. 17) considera a proposta destes últimos autores como uma

indicação pedagógica básica ao professor, uma vez que entende que desde o início

do ensino fundamental esses três modos de leitura podem ser praticados sem uma

ordem de sequência obrigatória. A priorização de um ou outro nível durante o

trabalho com o aluno dependerá do contexto de trabalho do professor, das

competências de leitura que são inerentes às crianças de sua realidade de ensino-

aprendizagem. O importante é que haja o domínio dos três, que, consequentemente,

será o responsável pelo comportamento de um leitor autônomo.

Resumindo os níveis de leitura apresentados por Faria (2010), com base nos

vários autores citados, temos o seguinte quadro:

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Quadro 7: Níveis de leitura

Autor Níveis de leitura Observações

MARTINS (1982) Leitura sensorial

Leitura emocional

Leitura racional

Segundo Martins (1982), esses níveis de leitura não acontecem separadamente.

BAUDELOT, CARTIER, DETREZ (1999)

Leitura erudita

Leitura comum

Faria (2010) considera a leitura comum muito válida por seu caráter formador ou ético.

POSLANIEC e HOUVEL (1999)

Leitura comprometida

Leitura aprofundada

Leitura literária

Faria (2010) considera essa uma indicação pedagógica básica ao professor.

Não existe uma fórmula mágica para que o trabalho pedagógico com a leitura

transforme alunos com dificuldades na leitura em leitores eficientes, mas é

importante esclarecer que esta pesquisa visa a auxiliar o professor a encontrar

caminhos que ajudem os seus alunos (cada aluno vem de uma realidade diferente,

não podemos esquecer isso) a dominarem todos e quaisquer níveis de leitura, a

tornarem-se leitores verdadeiramente proficientes. É o que todos nós almejamos. No

Ensino Fundamental, ao qual se destina esta pesquisa, buscamos ajudar os alunos

a fazerem uma leitura de contos comprometida e aprofundada, nos termos de

Poslaniec e Houvel (1999).

2.6 A leitura do gênero discursivo conto em sala de aula

Pelo exposto, podemos concluir que promover atividades de leitura em sala

de aula exige atenção ao contexto em que elas serão aplicadas (conhecimento

prévio do aluno, suas experiências de vida familiar e comunitária, idade, sexo),

conforme já vimos anteriormente. Mas, sobretudo, é necessário planejamento por

parte do professor, dosando e aprofundando os elementos que compõem o gênero

de acordo com o nível de desenvolvimento de leitura atingido pelos alunos. Esse

planejamento deve levar também em consideração que o estudo dos gêneros na

escola, neste caso o conto, deve envolver os alunos em atividades que diminuam a

distância entre os textos escritos e o leitor. Isso significa que devemos estar atentos,

além dos aspectos cognitivos, às questões afetivas que envolvem o processo de

leitura em sala de aula.

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Nesse sentido, Renda e Tápias-Oliveira (2007, p. 325) ressaltam que o

conhecimento adquirido por meio de atividades obrigatórias acaba na própria sala de

aula, enquanto que os adquiridos em atividades prazerosas perpetuam-se em

interações extra-classe. Fundamentadas no pensamento de Vygotsky (2004, p. 163),

segundo o qual “toda aprendizagem só é possível na medida em que se baseia no

próprio interesse da criança”, as autoras enfatizam que o ato educativo deveria

“incorporar o interesse dos alunos”. Sendo assim, podemos dizer que o professor

tem a função de impulsionar os alunos aos desafios do conhecimento, incentivando

a curiosidade, para que, dessa forma, eles possam dar saltos, desenvolvendo

habilidades e competências leitoras.

Existem ainda outros autores que condenam o costume aparentemente

comum nas escolas de impor a leitura de textos literários ou qualquer outro tipo de

texto tão somente por obrigação, como atividade mecânica. Entre esses autores,

transcrevemos aqui a colocação de Kleiman (1989):

Cabe lembrar que a leitura que não surge de uma necessidade para chegar a um propósito não é propriamente leitura; quando lemos porque outra pessoa nos manda ler, como acontece frequentemente na escola, estamos apenas exercendo atividades mecânicas que pouco têm a ver com significado e sentido. (KLEIMAN, 1989, p. 35)

Mais à frente a autora afirma que não condena o preestabelecimento de

objetivos pelo professor antes da leitura; pelo contrário, ela acredita que criar

objetivos para um leitor iniciante, que ainda não adquiriu a proficiência, pode

favorecer o aprendizado para que ele próprio possa vir a estabelecer seus objetivos

quando do processo de leitura, desenvolvendo estratégias metacognitivas

necessárias e adequadas à atividade de leitura. (KLEIMAN, p. 35)

Diante disso, podemos afirmar que o uso das estratégias nas aulas de língua

materna, especialmente nas aulas em que nos dedicamos à leitura, favorece o

interesse do aluno na compreensão dos textos, uma vez que cria um ambiente de

“sede” (VYGOTSKY, 2010, p. 145) que antecede a leitura. Segundo Vygotsky (2010,

p 145), “o momento da emoção e do interesse deve necessariamente servir de ponto

de partida a qualquer trabalho educativo”.

A leitura do conto utilizada em sala de aula como instrumento de ensino-

aprendizagem torna-se uma importante atividade para desenvolver a capacidade

imaginativa e crítica dos alunos, uma vez que as narrativas literárias são

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representações da realidade dos seres humanos, são verossimilhantes. O professor,

ao levantar hipóteses previamente à leitura junto aos alunos, retira o caráter de

obrigatoriedade anteriormente criticado pelos estudiosos, ao mesmo tempo em que

fomenta o interesse pela leitura, dando sentido ao ato de ler, entendendo que ler não

é simplesmente decodificar, que a leitura implica o entendimento de outras

possibilidades, tais como as propostas do autor e a crítica à temática, por exemplo.

Naspolini (2009) produziu uma obra destinada a professores do Ensino

Fundamental que traz importantes caminhos para um trabalho pedagógico com a

leitura que vise a ampliar as possibilidades cognitivas da criança. Em suas

colocações ela aponta que o trabalho escolar deve considerar três enfoques no

decorrer das atividades de leitura: o enfoque conteudístico, o enfoque estruturalista

e o enfoque discursivo. Ela denomina a cada uma dessas possibilidades de leitura

de enfoque de compreensão (NASPOLINI, p. 46, 2009).

A estudiosa na área da Psicologia da Aprendizagem afirma que quando

lemos, extraímos informações que são oferecidas pelo conteúdo, pela estrutura e

pela análise do discurso. Assim, o enfoque conteudístico acontece quando o aluno é

levado a compreender a mensagem do texto e a responder a questões referentes ao

conteúdo. Nesse enfoque o aluno tão somente reproduz as palavras e as ideias do

texto, há somente o aspecto decodificador do texto, não havendo elaboração do

leitor. No enfoque estruturalista, o aluno é levado a identificar aspectos e elementos

estruturais de um texto, como no caso do conto: o clímax, o desfecho, as

personagens, o espaço, por exemplo. (NASPOLINI, 2009, p. 47-48). Já o enfoque

discursivo é o que prevê uma interação entre leitor e texto. “Isso significa que leitor e

texto se influenciam mutuamente.” (NASPOLINI, 2009, p. 49). Nesse enfoque, o

processo de leitura visa a buscar o efeito que o texto tem sobre o aluno, priorizando

a leitura dialógica em que a atitude responsiva do leitor frente ao texto é significante.

Para a autora (2009, p. 51), um trabalho que leva em consideração esses três

enfoques requer atividades que explorem o conteúdo, a estrutura, a antecipação, a

transformação, a inferência, a crítica, a extrapolação, a resolução de problemas e

sentimentos, em um processo de “destrinchar textos”. O trabalho com a leitura de

contos nos permite a elaborar questões que englobem todos esses procedimentos

de compreensão.

O “destrinchar” dos contos, portanto, envolve uma análise de todos os seus

elementos estruturais, tais como, personagens, tempo, espaço, ações, mas sem se

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esquecer de extrapolar esse nível da superfície do texto para inferências, críticas,

hipóteses que tornem a leitura mais interessante ao aluno, de maneira que seu

mundo particular de experiências possa intervir também, ou talvez principalmente,

na construção dos sentidos do texto.

Com relação a esse papel ativo do leitor na leitura de contos, em específico,

pelo favorecimento de sua extensão curta, Silva (2009, p. 43) afirma:

A mobilização intensiva da atenção do leitor, que responde ativamente completando lacunas, tirando conclusões e confrontando a todo momento as imagens apresentadas com as de seu próprio repertório cultural, dificilmente se efetua com a mesma eficiência numa narrativa mais estendida, até mesmo por causa do necessário fracionamento de sua leitura em diversas sessões. A brevidade, a interação texto/leitor, assim como o efeito emocional que provoca, aproximam o conto simultaneamente do texto dramático e do texto lírico.

É por meio dessa impressão descrita por Silva (2009, p. 43) que podemos

concluir que o conto, como leitura a ser trabalhada em sala de aula, favorece a

aproximação do aluno à arte literária, possibilitando mais sua fruição. O conto é um

texto breve e intenso. Ao professor, cabe estimular os alunos à leitura dos contos,

seja ela individual e silenciosa, seja ela estabelecida em um ambiente de interação1,

como, por exemplo, propondo atividades em grupo no qual os membros possam

pensar, falar, perguntar e discutir sobre:

elementos do conto que retomam e representam as suas próprias

experiências de vida;

questões como a forma, o conteúdo ou o estilo que revelam as características

da época em que a obra foi escrita;

sentimentos ou valores percebidos nas atitudes das personagens.

Desse modo, é possível propor uma intensa comunhão com o texto literário

de maneira que os alunos se apropriem do texto por meio de uma atividade

interativa2, na qual terão a oportunidade de indagar e ensinar uns aos outros,

dialogando vidas. Talvez esse também seja um caminho para que os alunos venham

1 Segundo Tishman, Perkins e Jay (1999), as disposições para o pensar são adquiridas no contexto

de um ambiente cultural e são influenciadas por este contexto; as disposições são cultivadas todo o tempo mediante a interação social. De acordo com os autores (1999, p. 60), “a meta em uma sala de aula não é tanto ensinar disposições para o pensar, mas sim cultivar disposições para o pensar dentro do contexto de uma cultura.” 2 Nesse sentido, Vygotsky (1998) teoriza a respeito da importância das interações sociais para a

constituição do indivíduo, razão pela qual também damos destaque às atividades sociointerativas para a aprendizagem significativa.

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a descobrir e a redescobrir toda a vida existente dentro do texto literário,

preparando-os para fazerem suas próprias escolhas como leitores proficientes,

preparando-os leitores críticos e atentos para a vida em sociedade.

2.7 O texto escrito e a imagem

Não obstante seja pouco comum encontrarmos imagens em livros de contos

para a faixa-etária dos alunos de 7ª e 8ª séries (8º e 9º anos), que são o público a

quem irá se dirigir a proposta de nossa pesquisa, abrimos aqui um subtítulo para

relembrarmos algumas ideias a respeito da leitura de imagens, que podem aparecer

em determinados contos. Essas imagens, normalmente aparecem marcando as

cenas da narrativa, especialmente em livros didáticos e paradidáticos. É importante

que o professor esteja atento para essas ilustrações, pois elas podem enriquecer o

processo de compreensão das sequências narrativas, por meio da interação em sala

de aula a fim de que se estimule o pensar, o sentir3, o questionar e o opinar.

Sobre a importância da imagem para a construção do sentido de um texto,

Lerner (2008, p. 21) afirma que, por meio dela, o leitor faz antecipações sobre o

sentido do que está lendo e tenta verificá-las recorrendo à informação visual.

As ideias de Faria (2010, p. 39) também vão ao encontro das afirmações

acima, uma vez que ela explica que os livros em que aparecem as ilustrações,

acompanhadas das histórias, apresentam dupla narração: o texto escrito e a

imagem.

Faria (2010, p. 40) ainda argumenta que a relação entre a imagem e o texto

poderá ser de repetição e/ou de complementaridade, o que dependerá dos objetivos

do livro e da própria concepção do artista sobre ilustração do livro infantil. Assim, ela

conclui que quando um livro não tem função pedagógica, como auxiliar na

alfabetização, a ilustração, para ser considerada boa, deve ser de

complementaridade, dizer o que a outra linguagem não atinge por sua própria

constituição.

Quando a imagem é de repetição, especialmente nos casos dos livros de

histórias infantis, a criança identifica na imagem o que foi lido pelo adulto, cabendo a

3 Conforme Vygotsky (2010, p. 139), a emoção é um chamamento à ação ou uma renúncia a ela. O

autor (2010, p. 143) nos lembra de que “as reações emocionais exercem a influência mais substancial sobre todas as formas do nosso comportamento e os momentos do processo educativo.” A emoção é, portanto, fator importante em um processo de construção do conhecimento.

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este interagir com a criança no momento da leitura, ampliando a leitura para além do

texto. (FARIA, 2010, p. 41). Já quando a imagem é da complementaridade, o texto

escrito e a ilustração têm funções diferentes, cabendo ao texto escrito as

articulações indispensáveis à narrativa, como as que indicam tempo, ou elementos

de causa e efeito, além das revelações quanto às personagens, aos ambientes, aos

objetos, não deixando margens à ambiguidade que a imagem poderia vir a produzir.

Em alguns casos, quando o texto é mais longo, é o elemento principal da

narrativa, Faria aponta que a ilustração terá a finalidade de descanso do texto

escrito, fixando momentos-chave na narrativa, simplesmente tornando a leitura mais

prazerosa e diminuindo o esforço, estimulando o prosseguimento. (FARIA, 2010, p.

42)

Para finalizar este tópico, é importante observar que, não obstante a leitura

das imagens na maioria das vezes auxilie a compreensão dos textos, deve haver um

bom senso por parte do professor em relação à interrupção da leitura do texto

escrito para a leitura da imagem, visto que no caso de algumas histórias, pode-se

atrapalhar o encantamento vivenciado individualmente pelo leitor. Por outro lado,

haverá ocasiões em que a interrupção é essencial para que se desperte para outras

emoções ou outras leituras.

2.8 A importância do texto literário como proposta de leitura dentro e fora da

sala de aula

Para finalizar este capítulo, resta-nos reiterar a importância que a literatura

tem no processo de formação de um indivíduo. Argumentamos essa afirmativa a

partir do próprio conceito do que vem a ser a literatura. Segundo Moisés (1973, p.

25), literatura é um tipo de conhecimento, expressão dos conteúdos da ficção, ou da

imaginação, por meio de palavras de sentido múltiplo e pessoal.

Como privar o ser humano do contato com a linguagem literária plena de

significados, fonte de conhecimento e prazer? Nesse sentido, Moisés (1973) conclui:

A arte literária assim concebida não se reduz apenas a uma forma banal de entretenimento. Quando é entretenimento, é-o duma forma superior, visto que o jogo e a arte jamais se separam. Entretanto, mais do que forma elevada de recreação, a Literatura constitui uma forma de conhecer o mundo e os homens: dotada duma séria “missão”, colabora para o desvelamento daquilo que o homem, conscientemente ou não, persegue durante toda a existência. E, portanto, se a vida de cada um corresponde a

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um esforço contínuo de conhecimento, superação e libertação, à Literatura cabe um lugar à parte, enquanto ficção expressa por palavras de conteúdo multívoco. (MOISÉS, 1973, p. 29)

Muitas vezes a família não reconhece a importância de se fornecer a

aproximação de uma criança com a literatura e à escola cabe o fundamental papel

de apresentá-la. Ocorre que, em alguns casos, não há tempo disponível para que os

professores planejem suas atividades de leitura que priorizem o contato com o

material literário, não raro limitando-se a trechos de obras provenientes dos

materiais didáticos (livros ou apostilas) utilizados com fins pedagógicos e que não

fazem sentido à vida dos alunos. Isso pode acontecer porque a obra, ou o trecho da

obra, na maioria das vezes não é lido em profundidade, aproximando a obra à

realidade vivenciada pela comunidade. Nosso compromisso aqui é refletir: qual é a

colaboração que um educador pode trazer ao aluno enquanto ser leitor em

formação? De que maneira o professor pode ensinar além da leitura, o prazer dela,

e assim, possibilitar novas leituras de mundo, novos encontros com o outro?

Nesse sentido, é importante lembrarmos a colocação de Candido (2004, p.

174), para o qual a literatura é um bem indispensável à vida plena de um ser

humano. Para Candido (2004), a literatura é uma necessidade que não pode deixar

de ser satisfeita sob pena de desorganização pessoal, ou de frustração que acaba

por prejudicar o seu desenvolvimento psíquico de maneira íntegra. O autor defende

que a literatura é um direito, cuja principal função é a humanização do ser humano.

Vale destacarmos o conceito de humanização proposto por Candido (2004):

Entendo aqui por humanização (já que tenho falado tanto nela) o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres. O cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante. (CANDIDO, 2004, p. 180).

As colocações de Moisés (1973) e Candido (2004) reiteram a importância de

se promover atividades de leitura que priorizem o conhecimento do texto literário

pelos alunos, não mais apenas como opção de aprendizagem da ortografia ou da

gramática, mas de maneira que possibilite a reflexão sobre a literatura enquanto arte

da palavra, que transforma e revitaliza as atitudes humanas.

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70

CAPÍTULO 3

AS AVALIAÇÕES INSTITUCIONAIS E O CONTEXTO DE

APRENDIZAGEM

[...] para conseguir formar um cidadão, consciente de seu lugar social, é preciso levá-lo a reconhecer quais identidades sociais o formam e, para isso, inevitavelmente, passar por questões de língua e de significados sociais do texto escrito. (JUNG, p. 102)

A universalização do acesso à escola não foi acompanhada de sucesso na

qualidade de ensino, isso é um fato. Nas últimas décadas, são inúmeros e

constantes os esforços para que haja uma educação de qualidade, seja em nível

nacional, estadual ou municipal. Muitas são as pesquisas motivadas pela

necessidade de se encontrarem os caminhos para que se atenda às demandas

sociais, culturais e científicas. As avaliações institucionais promovidas pelo Ministério

da Educação tornaram-se, assim, fonte de informações importantes visando à

intervenção de projetos de pesquisa que venham a colaborar na elevação dos

índices apontados pelas provas. Esta pesquisa também objetiva colaborar na

elaboração de estratégias que busquem uma melhora na qualidade da educação.

Ela está inserida em um projeto maior: “Competências e habilidades de leitura: da

reflexão teórica ao desenvolvimento e aplicação de propostas didático-pedagógicas”,

Projeto OBSERVATÓRIO/UNITAU 2011-20144.

Este capítulo visa a apresentar um breve resumo histórico e conceitual de

duas das avaliações institucionais externas: a Prova Brasil e o PISA (Programa para

Avaliação Internacional de Estudantes ou Project for International Student

Assesment), bem como as habilidades e competências por elas exigidas,

promovendo discussões sobre como priorizar determinadas atividades de leitura

com nossos alunos, a fim de que, progressivamente, se alcance o nível de

desenvolvimento compatível com um bom resultado nessas avaliações, sem nos

4 Este projeto é coordenado pela Profa. Dra. Maria Aparecida Garcia Lopes Rossi; foi inscrito em

resposta ao Edital nº38/2010/CAPES/INEP, para participar de um Programa de fomento que visa ao desenvolvimento de estudos e pesquisas na área da educação. As normas do Programa preveem a utilização dos dados produzidos pelo INEP como subsídio ao aprofundamento de estudos sobre a realidade educacional brasileira.

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esquecermos, entretanto, de outros desafios maiores que consolidem competências

necessárias para o exercício efetivo da cidadania, como nas relações interpessoais,

no mercado de trabalho, enfim, nos desafios da vida.

3.1 O INEP e os dados estatísticos educacionais

O INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio

Teixeira) é uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Educação (MEC), cuja

missão é promover estudos, pesquisas e avaliações sobre o Sistema Educacional

Brasileiro com o objetivo de subsidiar a formulação e implementação de políticas

públicas para a área educacional a partir de parâmetros de qualidade e equidade,

bem como produzir informações claras e confiáveis aos gestores, pesquisadores,

educadores e público em geral. Para gerar seus dados e estudos educacionais, o

INEP realiza levantamentos estatísticos e avaliativos em todos os níveis e

modalidades de ensino. Além dos levantamentos estatísticos e das avaliações, o

INEP promove encontros para discutir os temas educacionais e disponibiliza

também outras fontes de consulta sobre educação.

Dentre as avaliações desenvolvidas pelo INEP/MEC para diagnóstico, está o

Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb)5. Ele é composto por

dois processos: a Avaliação Nacional da Educação Básica (ANEB) e a Avaliação

Nacional do Rendimento Escolar (ANRESC). A ANEB, que também recebe o nome

de Saeb, é realizada em cada unidade da Federação, por amostragem das Redes

de Ensino e tem foco nas gestões dos sistemas educacionais. A ANRESC, por seu

caráter universal, também recebe o nome de Prova Brasil. Ela é mais extensa e

detalhada que a ANEB, pois tem o foco em cada unidade escolar. As provas que

compõem o Saeb são realizadas a cada dois anos e são compostas por testes de

Língua Portuguesa e de Matemática, que objetivam avaliar a qualidade do ensino

oferecido pelo sistema educacional brasileiro. Há, além dos testes, um questionário

socioeconômico.

A Prova Brasil, objeto de estudo nesta primeira etapa de trabalho do Projeto

Observatório/UNITAU e que também fornece parâmetros para as propostas de

leitura desta dissertação, abrange somente alunos de 4ª e 8ª séries (ou 5º e 9º anos)

5 As informações aqui detalhadas estão disponíveis no site do INEP: http://portal.inep.gov.br, acesso

em: 15 de nov. de 2011.

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do ensino fundamental público (nas redes estaduais, municipais e federais), em

escolas de área rural e urbana com no mínimo 20 alunos matriculados na série

avaliada. A Prova Brasil é uma avaliação censitária, criada em 2005, com o objetivo

de avaliar as habilidades em Língua Portuguesa (foco em leitura) e Matemática (foco

na resolução de problemas), permitindo retratar a realidade de cada escola, em cada

município, avaliando competências construídas e habilidades desenvolvidas pelos

alunos, além de detectar as dificuldades de aprendizagem.

Os resultados contribuem para dimensionar os problemas da educação

básica brasileira e orientar a formulação, a implementação e a avaliação de políticas

públicas educacionais que conduzam à formação de uma escola de qualidade. As

médias de desempenho nessas avaliações também subsidiam o cálculo do Índice de

Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB)6, ao lado das taxas de aprovação

nessas esferas.

O IDEB foi criado pelo INEP em 2007 e é o indicador de dois conceitos

igualmente importantes para a educação: o fluxo escolar e as médias de

desempenho nas avaliações. O indicador é calculado a partir dos dados sobre

aprovação escolar, obtidos no Censo Escolar e nas médias de desempenho nas

avaliações do INEP: o SAEB (para as unidades da federação e para o país) e

a Prova Brasil (para os municípios).

O PISA (Programa para Avaliação Internacional de Estudantes ou Project for

International Student Assesment) foi desenvolvido conjuntamente pelos países

participantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico

(OCDE). No Brasil, o PISA é coordenado também pelo Instituto Nacional de Estudos

e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). É o maior estudo internacional e

sistemático sobre as competências de jovens com quinze anos de idade e pretende

traçar o perfil dos estudantes que terminam a escolaridade obrigatória, avaliando

seu conhecimento em leitura, matemática e ciências e apurando até que ponto os

jovens estão preparados para enfrentar os desafios do futuro. Os testes são

realizados em alguns países, e os resultados são por amostragem. Desde o ano de

6 Segundo o Inep (BRASIL, 2011), disponível em http://portal.inep.gov.br/web/portal-ideb/, o IDEB é o

indicador objetivo para a verificação do cumprimento das metas fixadas no Compromisso Todos pela Educação, eixo do PDE que trata da Educação Básica. Com o IDEB, ampliam-se as possibilidades de mobilização da sociedade em favor da educação, uma vez que o índice é comparável nacionalmente e expressa em valores os resultados mais importantes da educação: aprendizagem e fluxo.

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2000, eles são aplicados de três em três anos, pela Organização para Cooperação e

Desenvolvimento Econômico (OCDE). Em 2000, o foco foi em Leitura; em 2003, em

Matemática e em 2006, em Ciências. A última avaliação foi realizada em 2009,

novamente com a ênfase recaindo sobre o domínio da Leitura, na qual, entre 65

países participantes, o Brasil ficou em 54º lugar.

Por meio dos resultados das avaliações do PISA, são colhidas informações

para a elaboração de indicadores contextuais, possibilitando relacionar o

desempenho dos alunos a variáveis demográficas, socioeconômicas e educacionais

(conteúdo dos questionários específicos aplicados para os alunos e as escolas,

sendo que esses mesmos questionários também foram aplicados para os pais dos

alunos na última avaliação, em 2009).

Um dado interessante apontado pelos resultados do PISA 20097 é o de que

menos estudantes estão lendo por prazer atualmente. As informações dos

questionários da última avaliação foram comparadas às informações dos

questionários da avaliação de 2000, revelando que os estudantes de 15 anos de

idade em 2009 estavam menos propensos a se empolgarem com a leitura do que os

estudantes do ano de 2000. A porcentagem dos estudantes que disseram ler

diariamente por prazer diminuiu cinco pontos percentuais durante esse período: de

69% (sessenta e nove por cento) em 2000 para 64% (sessenta e quatro por cento)

em 2009.

O foco desta pesquisa é na melhora dos índices apresentados por essas

avaliações institucionais, por meio de uma contribuição ao trabalho docente para o

desenvolvimento de habilidades leitura e, consequente melhora da qualidade de vida

e da participação dos alunos na vida social.

3.2 A importância de conhecer a Prova Brasil para empreender um bom

trabalho com a leitura

Segundo o INEP (BRASIL, 2008), se o aprendizado da leitura é um direito, é

necessário definir operacionalmente o que é saber ler para uma criança de 11 anos

ou um jovem de 14. Durante a realização da Prova Brasil, são oferecidos diversos

7 Entretanto, conforme a OCDE (BRASIL, 2011), ler todos os dias por prazer está associado a

melhores desempenhos no PISA. Disponível em http://portal.inep.gov.br/pisa-programa-internacional-de-avaliacao-de-alunos. Acesso em: 20 de jan. 2012.

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textos, gêneros discursivos de tamanho e complexidade diferentes, que são

analisados previamente, sendo que o erro ou o acerto de cada questão –

denominada item – reflete o nível de leitura em que o aluno se encontra.

O INEP (BRASIL, 2008) também aponta que para cada escola participante é

calculada uma média da proficiência dos seus estudantes participantes da avaliação

expressa em uma escala de 0 a 500. Os números são agrupados e, a partir desses

grupos conhecidos como níveis, é realizada uma interpretação pedagógica de seu

significado. A proficiência média em leitura é expressa em 10 níveis, em uma escala

única utilizada para alunos de quarta série/quinto ano e alunos de oitava série/nono

ano, em que se espera que a proficiência dos alunos de quarta série/quinto ano

concentre-se em níveis mais baixos que a proficiência dos alunos de oitava

série/nono ano, uma vez que, normalmente, o que é lógico é que aqueles tenham

desenvolvido menos competências leitoras que estes. Com a interpretação

pedagógica dos níveis da escala, é possível compreender as fragilidades que devem

ser superadas no processo de compreensão da leitura e assim poder influenciar no

processo de ensino para que haja uma melhoria na qualidade da educação,

permitindo consolidar competências fundamentais para o pleno exercício da

cidadania.

As competências, de acordo com o INEP (BRASIL, 2008), são utilizadas no

processo de construção do conhecimento. No documento “Saeb 2001: Novas

Perspectivas” (2002, apud BRASIL, 2011), competência é definida, na perspectiva

de Perrenoud, como a “capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de

situação, apoiando-se em conhecimentos, mas sem se limitar a eles”. No processo

de confecção da Prova Brasil, associam-se os conteúdos da aprendizagem e as

competências.

Em determinadas situações em que é preciso resolver um conflito, são

mobilizadas as competências necessárias para que se reestabeleça o equilíbrio.

Assim, o sujeito se utiliza de recursos cognitivos, estabelecendo relações com e

entre os objetos físicos, conceitos, fenômenos e pessoas, em operações que

transformam competências em habilidades. Refletindo sobre esse conceito e sobre a

fundamentação teórica já apresentada nos capítulos anteriores, destacamos a

importância do trabalho com as sequências didáticas8 que envolvem o conhecimento

8 As sequências didáticas serão objeto de estudo no quarto e último capítulo deste trabalho.

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dos gêneros discursivos, visto ser uma maneira de trabalhar as competências

necessárias para reconhecimento dos textos em situações reais de uso, com

propósitos comunicativos reais, colocando-se em relação conteúdo e competências

desenvolvidas na resolução de problemas, transformando competências em

habilidades, a fim de que se produza o resultado pretendido. A proposta de nossa

pesquisa é envolver os professores na busca por estratégias que atendam às

diferentes realidades de seus alunos, de maneira que se encontrem caminhos para

o gosto da leitura sem se perder de vista o objetivo de um bom resultado também

em provas externas de nível nacional. Por esse motivo, as habilidades de leitura

cobradas pela Prova Brasil merecem nossa atenção.

3.3 A Matriz de Referência da Prova Brasil e seus descritores: buscando

caminhos para formar leitores

A Matriz de Referência de Língua Portuguesa da Prova Brasil, disponível em

Brasil (2011) e também no site www.inep.gov.br, é o referencial curricular do que

está sendo avaliado em leitura em cada série, informando as competências e

habilidades esperadas dos alunos. Ela tem por referência os Parâmetros

Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998) e foi construída de acordo com uma consulta

nacional aos currículos propostos pelas Secretarias Estaduais da Educação e por

algumas redes municipais. O INEP consultou também professores das redes

municipal, estadual e privada, bem como examinou os livros didáticos mais

utilizados nessas séries e redes (BRASIL, 2008).

Com relação ainda à Matriz de Referência, é também importante transcrever

a seguinte informação:

Torna-se necessário ressaltar que as matrizes de referência não englobam todo o currículo escolar. É feito um recorte com base no que é possível aferir por meio do tipo de instrumento de medida utilizado na Prova Brasil e que, ao mesmo tempo, é representativo do que está contemplado nos currículos vigentes no Brasil. (BRASIL, 2008, p. 17)

Diante disso, é possível afirmar que a Matriz de Referência da Prova Brasil é

um norte para que, tendo em vista cada realidade em particular, possamos refletir

quais estratégias podemos planejar a fim de que haja uma melhora no desempenho

da leitura pelos nossos alunos. Consequentemente, eles tornar-se-ão aptos a uma

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melhora também no desempenho expressivo por meio de múltiplas linguagens em

suas vidas em sociedade.

Estruturalmente, a Matriz de Referência de Língua Portuguesa se divide em

duas dimensões: uma denominada Objeto do Conhecimento e outra denominada

Competência. Na dimensão denominada Objeto do Conhecimento, são listados seis

tópicos: Procedimentos de Leitura; Implicações do Suporte, do Gênero e/ou do

Enunciador na Compreensão do Texto; Relação entre Textos; Coerência e Coesão

no Processamento do Texto; Relações entre Recursos Expressivos e Efeitos de

Sentido; e Variação Linguística.

A dimensão denominada Competência é composta por descritores

específicos que indicam habilidades a serem avaliadas em cada tópico

anteriormente descriminado. Para a 4ª série/5º ano do Ensino Fundamental, são

contemplados quinze descritores; e para a 8ª série/9º ano do Ensino Fundamental e

a 3ª série do Ensino Médio, são acrescentados seis descritores, totalizando vinte e

um descritores. Eles aparecem em ordem crescente de aprofundamento e/ou

ampliação de conteúdos ou das habilidades exigidas. (BRASIL, 2008, p. 21-23)

Reproduzimos a seguir a Matriz de Referência de Língua Portuguesa da

Prova Brasil e do SAEB para o 9º ano do Ensino Fundamental porque esse é o ano

para o qual esta pesquisa propõe atividades de leitura.

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Quadro 8: Matriz de Referência de Língua Portuguesa da Prova Brasil e do SAEB para o 9º ano

Tópico I. Procedimentos de Leitura

D1 - Localizar informações explícitas em um texto

D3 - Inferir o sentido de uma palavra ou expressão

D4 - Inferir uma informação implícita em um texto

D6 - Identificar o tema de um texto

D14 - Distinguir um fato da opinião relativa e esse fato

Tópico II. Implicações do suporte, do gênero e/ou Enunciador na compreensão do texto

D5 - Interpretar texto com auxílio de material gráfico diverso (propagandas, quadrinhos, fotos, etc.)

D12 - Identificar a finalidade de textos de diferentes gêneros

Tópico III. Relação entre textos

D5 - Reconhecer diferentes formas de tratar uma informação na comparação de textos que tratam do mesmo tema, em função das condições em que ele foi produzido e daqueles em que será recebido

D21 - Reconhecer posições distintas entre duas ou mais opiniões relativas ao mesmo fato ou ao mesmo tema

Tópico IV. Coerência e coesão no processamento do texto

D2 - Estabelecer relações entre partes de um texto, identificando repetições ou substituições que contribuem para a continuidade de um texto

D10 - Identificar o conflito gerador do enredo e os elementos que constroem a narrativa

D11 - Estabelecer relação de causa e conseqüência entre partes e elementos do texto

D15 - Estabelecer relações lógico-discursivas presentes no texto, marcadas por conjunções, advérbios, etc.

D7 - Identificar a tese de um texto

D8 - Estabelecer relação entre a tese e os argumentos oferecidos para sustentá-la

D9 - Diferenciar as partes principais das secundárias de um texto

Tópico V. Relações entre recursos expressivos e efeitos de sentido

D16 - Identificar efeitos de ironia ou humor em textos variados

D17 - Identificar o efeito de sentido decorrente do uso da pontuação e de outras notações

D18 - Reconhecer o efeito de sentido decorrente da escolha de uma determinada palavra ou expressão

D19 - Reconhecer o efeito de sentido decorrente da exploração de recursos ortográficos e/ou morfossintáticos

Tópico IV. Variação linguística

D13 - Identificar as marcas lingüísticas que evidenciam o locutor e o interlocutor de um texto

Fonte: Brasil (2008).

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É importante destacar que os descritores 7, 8, 9, 18,19 e 21 não aparecem na

Matriz de Referência para o 5º ano. Os demais aparecem nessa Matriz, apenas com

alguma variação de numeração em relação à Matriz do 9º ano. Embora quinze

descritores sejam idênticos para 4ª série/5º ano do Ensino Fundamental e 8ª série/9º

ano do Ensino Fundamental, os testes são formulados nas provas, mesmo que

derivados de um mesmo descritor, considerando as diferenças de idade e

escolaridade e apresentando um grau de dificuldade maior para o 9º ano.

Também há que se ressaltar que, embora essa Matriz de Referência da Prova

Brasil forneça subsídios importantes para o planejamento do trabalho do professor

de Língua Portuguesa, uma análise detalhada de sua estrutura e da redação de

vários dos descritores revela a existência de alguns problemas, seja por imprecisão

teórica ou por pouca abrangência dos Tópicos, conforme concluem Lopes-Rossi e

Paula (2012). A leitura dessa Matriz pode dar uma falsa impressão ao professor que

não conhece profundamente uma fundamentação teórica sobre leitura, tipologia

textual e gêneros discursivos de que os tópicos abrangem um processo de leitura

completo e de que os descritores se aplicam sempre à leitura de todos os textos.

Apresento a seguir um quadro resumo das opiniões de Lopes-Rossi e Paula

(2012) sobre os aspectos em que a Matriz de Referência de Língua Portuguesa da

Prova Brasil apresenta imprecisões teóricas ou de redação. O apontamento desses

aspectos serve de referência para o professor entender melhor a Matriz e como

sugestão para futuros aprimoramentos desse documento que possam ser

realizados.

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Quadro 9: Aspectos em que a Matriz de Referência Matriz de Referência de Língua Portuguesa da Prova Brasil apresenta imprecisões teóricas ou de redação, conforme Lopes-Rossi e Paula (2012).

TÓPICO I

O conceito de “Procedimentos de leitura” não parece claro, pois os 5 descritores apresentados nesse tópico não abrangem um processo de leitura completo (do reconhecimento inicial do texto à apreciação crítica) que possa ser aplicado a toda leitura. Os descritores não orientam professores e alunos para uma prática de leitura completa para a formação de um leitor proficiente. “D11 – Distinguir um fato da opinião relativa a esse fato” é uma habilidade restrita a alguns textos que se refiram a fatos e que apresentem opinião relativa ao fato, implícita ou explicitamente.

TÓPICO III

“D15 - Reconhecer diferentes formas de tratar uma informação na comparação de textos que tratam do mesmo tema, em função das condições em que ele foi produzido e daquelas em que será recebido” é um item impreciso. Compreende-se a proposta de D 15, desde que se corrija a redação para: [...] condições em que eles foram produzidos e daquelas em que serão recebidos. “D21 - Reconhecer posições distintas entre duas ou mais opiniões relativas ao mesmo fato ou ao mesmo tema.” Refere-se a uma habilidade restrita a alguns textos que se refiram a fatos e que apresentem opiniões distintas relativas ao fato. A redação do descritor não esclarece que essas “posições distintas” podem estar expressas num mesmo texto ou em textos diferentes.

TÓPICO IV

Aspectos de coesão e coerência textuais são constitutivos de qualquer produção textual, representante de qualquer gênero discursivo. Os descritores referentes a esse tópico deveriam ser abrangentes a qualquer gênero, como de fato o são apenas D2 e D12. Os demais descritores (reproduzidos abaixo) são restritos a gêneros de organização textual narrativa ou argumentativa clássica, porém induzem o leitor menos familiarizado com o assunto a crer que essas habilidades se aplicam a qualquer texto:

“D7 - Identificar o conflito gerador do enredo e os elementos que constroem a narrativa”;

“D8 - Estabelecer relação causa/consequência entre partes e elementos do texto”;

“D7 - Identificar a tese de um texto”; (somente p/ 9º ano)

“D8 - Estabelecer relação entre a tese e os argumentos oferecidos para sustentá-la”; (somente p/ 9º ano)

TÓPICO VI

A importante propriedade de variação linguística da Língua Portuguesa – melhor seria o termo “sociolinguística” – ficou parcialmente reconhecida pelo D10:

“D10 - Identificar as marcas linguísticas que evidenciam o locutor e o interlocutor de um texto”. A habilidade esperada para esse tópico inclui também a identificação de marcas linguísticas que evidenciam elementos da situação de comunicação, como nível de formalidade, época, relações hierárquicas entre os interlocutores, idade e nível de escolaridade dos interlocutores, entre outros. A redação do descritor não capta todas essas possibilidade.

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Assim, ao concluir a análise da Matriz de Referência da Prova Brasil, Lopes-

Rossi e Paula (2012) apontaram que, embora o conceito de gênero discursivo seja

norteador de sua elaboração, apenas algumas propriedades constitutivas dos

gêneros discursivos são contempladas nos descritores de habilidades de leitura.

Também puderam concluir que os conceitos de gênero discursivo e tipologia textual

estão pressupostos, mas se confundem nas propostas dos descritores.

Outra constatação relevante é o fato de não haver descritor referente ao

posicionamento crítico do leitor, comprovando-se que os descritores da Matriz de

Referência não abrangem um processo de leitura completo, do reconhecimento

inicial à apreciação crítica. Segundo os autores, ainda, os descritores, da forma

como se apresentam, carecem de maior abrangência e sintonia com o conceito

bakhtiniano de gênero discursivo.

Nesta pesquisa, baseamo-nos na Matriz de Referência da Prova Brasil para a

proposta de procedimentos de leitura do conto, porém consideraremos a apreciação

do documento realizada por Lopes-Rossi e Paula (2012) para fazermos os ajustes

necessários. Esses ajustes estão em consonância com a fundamentação teórica

sobre leitura e gêneros discursivos apresentada nos capítulos 1 e 2.

3.4 Alguns dados sobre desempenho de alunos na Prova Brasil

A partir da análise dos dados sobre o desempenho dos alunos na Prova Brasil

apresentados pelo INEP (BRASIL, 2008), podemos ter uma idéia sobre quais

habilidades são dominadas pela maioria dos alunos e quais ainda não são

dominadas. Pelos dados que serão apresentados a seguir, podemos perceber que

há descritores em que o percentual de acerto pelos alunos em uma questão, seja na

4ª série/5º ano ou 8ª série/9º ano do Ensino Fundamental, chega a ser inferior a 50%

(cinquenta por cento). Sendo assim, acreditamos ser oportuno transcrever esses

dados divulgados pelo INEP para que saibamos em quais habilidades os alunos

podem encontrar maior dificuldade e para que possamos refletir sobre quais

estratégias de leitura desenvolvidas em sala de aula seriam as mais adequadas a

fim de atender à demanda dessas habilidades e competências requeridas.

Organizamos os quadros referentes às percentagens de acerto, a partir dos

dados divulgados em Brasil (2008), distribuindo os descritores de acordo com o

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Tópico (Objeto do Conhecimento). Seguem os seis quadros e os comentários a

respeito dos resultados.

Quadro 10: Porcentagem de acertos para os descritores referentes ao Tópico I: Procedimentos de Leitura

Descritores 4ª/5º EF 8ª/9º EF

Localizar informações explícitas em um texto

72% 76%

Inferir o sentido de uma palavra ou expressão

35% 50%

Inferir uma informação implícita em um texto 60% 58%

Identificar o tema de um texto

53% 49%

Distinguir um fato da opinião relativa a esse fato

36% 58%

Fonte: BRASIL, 2008.

Podemos observar que em quatro dos cinco descritores o percentual de

acerto é inferior a setenta por cento. Os percentuais indicam ainda, principalmente, a

grande dificuldade em identificar o tema de um texto e inferir o sentido de uma

palavra ou expressão. Quanto ao descritor referente a localizar informações

explícitas, observamos que os alunos têm menos dificuldade e no entanto, muitas

das questões propostas em livros didáticos, segundo pesquisas, são apenas para

localização das informações explicitas. Em razão desses dados, os procedimentos

de leitura sugeridos neste trabalho buscam focar os descritores em que os alunos

apresentam mais dificuldade.

Para o segundo objeto de conhecimento da Matriz, os resultados de acertos

dos alunos brasileiros são os seguintes:

Quadro 11: Porcentagem de acertos para os descritores referentes ao Tópico II: Implicações do Suporte, do Gênero e/ou enunciador na Compreensão do Texto

Descritores 4ª/5º EF 8ª/9º EF

Interpretar texto com auxílio de material gráfico diverso (propagandas, quadrinhos, foto etc.).

40% 66%

Identificar a finalidade de textos de diferentes gêneros.

41% 53%

Fonte: BRASIL, 2008.

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Podemos observar que nesses dois descritores as porcentagens são

inferiores a setenta por cento. Os resultados demonstram que cerca de cinquenta

por cento dos alunos têm dificuldade em identificar a finalidade de textos de

diferentes gêneros. Podemos concluir, nesse sentido, que o trabalho com as

sequências didáticas, como é o caso desta pesquisa, visa a uma melhor

compreensão dos gêneros discursivos, apropriando-se de suas características para

entender melhor suas funções sociais, como é o caso do conto, por exemplo.

Para o terceiro objeto de conhecimento da Matriz, os resultados de acertos

dos alunos brasileiros são os seguintes:

Quadro 12: Porcentagens de acertos para os descritores referentes ao Tópico III: Relação entre Textos

Descritores

4ª/5º EF 8ª/9º EF

Reconhecer diferentes formas de tratar uma informação na comparação de textos que tratam do mesmo tema, em função das condições em que ele foi produzido e daquelas em que será recebido.

45% 49%

Reconhecer posições distintas entre duas ou mais opiniões relativas ao mesmo fato ou ao mesmo tema.

_ 71%

Fonte: BRASIL, 2008.

Podemos observar que os alunos apresentam maior dificuldade em

reconhecer diferentes formas de tratar uma informação na comparação de textos

que tratam do mesmo tema, em função das condições em que ele foi produzido e

daquelas em que será recebido. Para esse descritor, o resultado foi inferior a

cinquenta por cento, justificando a importância de se trabalhar os gêneros e seus

contextos sociais, promovendo um diálogo entre eles.

Para o quarto objeto de conhecimento da Matriz, os resultados de acertos dos

alunos brasileiros são os seguintes:

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Quadro 13: Porcentagem de acertos para os descritores referentes ao Tópico IV: Coerência e Coesão no Processamento do Texto

Descritores 4ª/5º EF 8ª/9º EF

Estabelecer relações entre partes de um texto, identificando repetições ou substituições que contribuem para a continuidade de um texto.

54% 56%

Identificar o conflito gerador do enredo e os elementos que constroem a narrativa

28% 44%

Estabelecer relação causa/consequência entre partes elementos do texto.

45% 76%

Estabelecer relações lógico-discursivas presentes no texto, marcadas por conjunções, advérbios etc.

60% 27%

Identificar a tese de um texto.

_ 35%

Estabelecer relação entre a tese e os argumentos oferecidos para sustentá-la.

_ 61%

Diferenciar as partes principais das secundárias em um texto.

_ 43%

Fonte: BRASIL, 2008.

Podemos concluir que os resultados referentes a esse tópico são bastante

alarmantes, uma vez que, dentre sete descritores, apenas um obteve porcentagem

superior a setenta por cento; quatro apresentaram porcentagens inferiores a

cinquenta por cento. Desses quatro descritores, procuramos atender com ênfase

maior, especialmente por se tratar de um gênero narrativo, os descritores: “Identificar

o conflito gerador do enredo e os elementos que constroem a narrativa” e

“Estabelecer relações lógico-discursivas presentes no texto, marcadas por

conjunções, advérbios etc.”

Para o quinto objeto de conhecimento da Matriz, os resultados de acertos dos

alunos brasileiros são os seguintes:

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Quadro 14: Porcentagens de acerto para os descritores referentes ao Tópico V: Relações entre Recursos Expressivos e Efeitos de Sentido

Descritores

4ª/5º EF 8ª/9º EF

Identificar efeitos de ironia ou humor em textos variados.

37% 74%

Identificar o efeito de sentido decorrente do uso da pontuação e de outras notações.

38% 59%

Reconhecer o efeito de sentido decorrente da escolha de uma determinada palavra ou expressão.

_ 34%

Reconhecer o efeito de sentido decorrente da exploração de recursos ortográficos e/ou morfossintáticos.

_ 49%

Fonte: BRASIL, 2008.

Podemos concluir, a partir dos resultados apresentados pelo quadro acima,

que novamente a maioria dos descritores apresentaram porcentagens inferiores a

setenta por cento. Sendo assim, justifica-se nossa preocupação em promover a

leitura dos contos, procurando atender à dificuldade que os alunos têm

principalmente em reconhecer efeitos de sentido decorrente da escolha de uma

palavra ou expressão, cujo resultado aponta menor porcentagem de acerto em

comparação aos demais, inferior a quarenta por cento.

Para o sexto e último objeto de conhecimento da Matriz, os resultados de

acertos dos alunos brasileiros são os seguintes:

Quadro 15: Porcentagens de acerto para os descritores referentes ao Tópico VI: Variação Linguística.

Descritor

4ª/5º EF 8ª/9º EF

Identificar as marcas linguísticas que evidenciam o locutor e o interlocutor de um texto.

24% 33%

Fonte: BRASIL, 2008.

Considerando as porcentagens baixas de acertos apresentadas em alguns

descritores, podemos concluir que muito ainda há que ser repensado a respeito das

aulas de Língua Portuguesa a fim de que ocorra uma melhora no desempenho de

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nossos alunos. Muitos desses descritores requerem habilidades fundamentais para

uma leitura adequada ao nível de escolaridade dos alunos. Esses resultados,

portanto, podem servir de alerta para que o professor priorize determinadas

atividades, objetivando a melhora nesses índices.

Além da Matriz de Referência da Prova Brasil e dos resultados já conhecidos

sobre o desempenho em leitura dos alunos, também consideraremos os parâmetros

para avaliação de habilidades de leitura do PISA, cujas características principais são

apresentadas na próxima seção.

3.5 O PISA – Programa para Avaliação Internacional de Estudantes

(Programme for International Student Assessment) e os níveis de proficiência

O PISA (Programme for International Student Assessment) é um programa

desenvolvido e coordenado internacionalmente pela Organização para Cooperação

e Desenvolvimento Econômico (OCDE), sendo que em cada país participante há

uma coordenação nacional. No Brasil, o PISA é coordenado pelo INEP (Instituto

Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.

Ele tem como objetivo avaliar o desempenho dos estudantes de 8ª série/9º

ano do Ensino Fundamental, por meio de uma avaliação que acontece a cada três

anos, verificando os conhecimentos e competências em Leitura, Matemática e

Ciências, de modo a subsidiar políticas de melhoria da educação básica. Em 2000, o

foco foi em leitura; em 2003, em matemática; e em 2006, ciências. Em 2009,

novamente o foco foi em leitura, reiniciando um novo ciclo de provas que segue a

seguinte ordem: leitura, matemática e ciências.

A avaliação é um importante meio de verificação de como as escolas de cada

país participante estão preparando seus jovens para exercerem o papel de cidadãos

na sociedade contemporânea.

O PISA considera os conhecimentos e competências devem ser

continuamente adquiridos pelos estudantes, a fim de que eles sejam capazes de

gerirem e organizarem seu próprio aprendizado. Dessa forma, o PISA procura ir

além do aprendizado escolar, examinando a capacidade dos alunos de analisar,

raciocinar e refletir ativamente sobre seus conhecimentos e experiências, enfocando

competências que serão relevantes para suas vidas futuras. (BRASIL, 2011).

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Para o PISA, o jovem deve ser capaz de compreender, refletir e relacionar o

texto com suas experiências de vida, pois assim ele se desenvolve plenamente para

participar ativamente da vida em sociedade. Sendo assim, a Leitura, a partir da

perspectiva do PISA, é vista como um processo ativo, ao que essa avaliação

denomina letramento em leitura9.

As competências avaliadas pelo PISA são: acessar e recuperar informações,

identificando as informações essenciais; integrar e interpretar o que é lido, além de

comparar e contrastar informações; refletir sobre e analisar o conteúdo e a forma.

Essas competências podem ser avaliadas em um mesmo texto.

O objetivo principal do PISA não é avaliar cada jovem individualmente, mas

saber como está o sistema educacional de cada país. Existe, ainda, um objetivo

implícito, que é o da redução da desigualdade educacional, pelo qual cada país deve

almejar. Assim, para interpretar os resultados, o PISA estabeleceu um quadro de

desempenhos, que identifica as habilidades que os estudantes devem ter para

alcançar o nível de proficiência adequado.

9 Segundo o Portal INEP (BRASIL, 2011), “o letramento em leitura consiste em compreender, utilizar,

refletir sobre e envolver-se com textos, a fim de alcançar objetivos pessoais, construir conhecimento, desenvolver o potencial individual e participar ativamente da sociedade.”. Disponível em http://portal.inep.gov.br/pisa-programa-internacional-de-avaliacao-de-alunos. Acesso em: 30 de jan. 2012.

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Quadro 16: Níveis de proficiência para a avaliação do PISA Nível Limite

inferior

O que os estudantes em geral podem fazer em cada nível

6 708 No nível 6, as tarefas exigem que o leitor faça múltiplas inferências, comparações e contraste que são tanto detalhados como precisos. Requerem a demonstração de completa e detalhada compreensão de um ou mais textos e pode envolver a integração das informações de mais de um texto. As tarefas podem pedir que o leitor lide com ideias desconhecidas, na presença de informações contrastantes, e que possa gerar categorias abstratas de interpretação. Refletir e avaliar são tarefas que requerem que o leitor possa levantar hipóteses ou avaliar criticamente um texto complexo ou um tópico não lhe seja familiar, levando em conta vários critérios e perspectivas, e aplicando sofisticados conhecimentos externos ao texto. Uma condição relevante para as tarefas de acessar e resgatar informações nesse nível é a precisão da análise e a atenção cuidadosa aos detalhes imperceptíveis dos textos.

5 626 No nível 5, as tarefas que envolvem a recuperação de informações requerem que o leitor localize e organize várias partes de informações embutidas no texto, deduzindo quais informações são relevantes. As tarefas de reflexão requerem avaliação crítica, levantamento de hipóteses, com base em conhecimento especializado. Tanto as tarefas de interpretação como as de reflexão requerem uma compreensão completa e detalhada de um texto cujo conteúdo ou forma não seja familiar. Para todos os aspectos da leitura, as tarefas típicas deste nível envolvem lidar com conceitos contrários às expectativas.

4 553 No nível 4, as tarefas que envolvem a recuperação de informações requerem que o leitor seja capaz de localizar e organizar várias partes de informações embutidas no texto. Algumas tarefas requerem a interpretação do significado de nuances de linguagem em uma parte do texto, levando em consideração o texto como um todo. Outras tarefas de interpretação requerem compreender e aplicar categorias em um contexto pouco familiar. As tarefas de reflexão nesse nível requerem que os leitores utilizem conhecimento formal ou púbico para levantar hipóteses e avaliar criticamente um texto. Os leitores devem demonstrar compreensão exata de textos complexos cujo conteúdo pode não ser familiar.

3 480 No nível 3, as tarefas exigem que o leitor localize e, em alguns casos, reconheça as relações entre vários trechos de informação que preenchem diversos requisitos. As tarefas de interpretação nesse nível requerem que o leitor integre várias partes de um texto a fim de identificar a ideia principal, compreender relações ou explicar o significado de uma palavra ou frase. Precisam levar em conta vários aspectos ao comparar, contrastar e categorizar. Muitas vezes as informações necessárias não são óbvias ou encontram-se no meio de outras informações não-relevantes; ou há outros obstáculos no texto, tais como ideias contrárias ao esperado ou expressas na negativa. As tarefas de reflexão nesse nível podem requerer conexões, comparações e explicações, ou podem pedir ao leitor que avalie um aspecto do texto. Algumas delas podem exigir

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que o leitor demonstre compreensão refinada de um texto em relação a conhecimentos familiares e cotidianos. Outras tarefas não requerem compreensão detalhada, mas exigem que o leitor trabalhe com conhecimento pouco usual.

2 407 No nível 2, algumas tarefas requerem que o leitor localize uma ou mais peças informativas, que podem ser inferidas e podem precisar atender a várias condições. Outras exigem o reconhecimento da ideia central de um texto, a compreensão de relações ou a explicação do significado dentro de uma parte limitada do texto, quando a informação não for explícita e o leitor precisar fazer algumas inferências simples. As tarefas envolvem comparações e diferenciações tendo por base um único aspecto do texto. As tarefas típicas de reflexão nesse nível requerem que o leitor seja capaz de fazer comparações ou diversas conexões entre o texto e algum conhecimento externo, a partir de experiências e atitudes pessoais.

1ª 335 No nível 1a, as tarefas requerem que o leitor localize uma ou mais partes independentes de uma informação explícita; reconheça o tema principal ou a intenção do autor em um texto sobre um tópico familiar; ou faça uma conexão simples entre a informação no texto e o conhecimento comum, cotidiano. Geralmente, a informação que se requer no texto é explícita e há pouca informação não-relevante que atrapalhe sua localização. O leitor é dirigido explicitamente a considerar aspectos relevantes da tarefa e do texto.

1b 262 No nível 1b, as tarefas requerem que o leitor localize apenas uma informação explícita posicionada de forma facilmente observável em um texto curto, de sintaxe simples, em um contexto familiar, tais como uma narrativa ou uma simples lista. O texto geralmente ajuda o leitor por meio de repetição da informação, figuras ou símbolos familiares. Praticamente não há informação não-relevante que atrapalhe a localização. Nas tarefas que requerem interpretação o leitor precisa fazer conexões simples entre trechos de informação colocados lado-a-lado.

Fonte: (BRASIL, 2011).

Quando um nível é classificado em mais de 600 pontos, significa que ele é

muito difícil. Por outro lado, quando um nível é classificado abaixo dos 400 pontos,

ele é muito fácil. O esperado é que a maioria dos jovens consiga alcançar os níveis

três ou dois, pois, como as avaliações são de larga escala, é previsível que poucos

alunos consigam alcançar os níveis mais difíceis.

Pelos resultados das últimas avaliações apresentados pelo Portal Inep (2012),

o Brasil obteve as seguintes pontuações:

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Quadro 17: Comparativo dos resultados em leitura dos alunos brasileiros no PISA

Ano 2000 2003 2006 2009

Pontuação 396 403 393 412

Fonte: BRASIL, 2011.

Podemos concluir que o Brasil obteve uma melhora na última prova (de

2009), avançando do nível 1 para o nível 2 e ocupando a 54ª posição. Participaram

da prova 20 mil estudantes. Foi um dos países que mais cresceram em

desempenho, no entanto, em comparação com outros países, esse resultado ainda

é baixo. Atualmente participam do Pisa 34 países membros da OCDE, além de

outros países convidados, totalizando a participação de 65 países. O Brasil é o único

país sul-americano que participa do PISA desde a sua primeira aplicação. Na última

prova, em 2009, participaram seis países sul-americanos: Brasil, Argentina, Chile,

Colômbia, Uruguai e Peru. Dentre esses países, o Brasil ocupa o 3º lugar, depois do

Chile e do Uruguai.

A meta para o ano de 2021 é a de que o Brasil alcance o nível 6. Isso significa

que deve haver um esforço constante a fim de que se superem as dificuldades em

leitura, alçando, enfim, o nível adequado a cada situação. Nenhum progresso é

alcançado sem esse esforço, fazendo-se necessária uma constante preocupação

em capacitar o professor, cedendo-lhe oportunidades de fazer a melhor escolha

quanto aos materiais didáticos, bem como quanto às atividades pedagógicas que

facilitem o encontro e o diálogo entre o aluno e o texto. Assim, a aprendizagem da

leitura não se esgotará na escola e alcançará novos horizontes, indo ao encontro do

foco estabelecido pelo PISA.

Como contribuição a essa meta, propomos, a seguir, a sequência didática

para a leitura do conto.

3.6 A sequência didática para a leitura do conto

É muito comum encontrarmos, nos materiais didáticos que fazem parte de

nossa rotina de profissionais da educação, várias atividades de leitura para

verificação da compreensão de um texto ou de um trecho de um texto. Não obstante

haja uma tentativa de se seguir as indicações feitas pelos documentos oficiais, tais

como as dos PCN (BRASIL, 1998) no sentido de que é importante priorizar o ensino

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da leitura e da produção de textos orientado por gêneros discursivos, na maioria das

vezes, os materiais didáticos deixam de levar em consideração as diferentes

realidades socioculturais, étnicas e regionais vivenciadas pelos nossos alunos. As

tarefas são aleatórias, obedecendo a certa “grade curricular”, além de serem

intercaladas de exercícios gramaticais ou de produção de texto descontextualizadas

e sem um objetivo de circulação social.

Nesse sentido, é pertinente lembrarmos as colocações de Martins (1982) que

também acredita que o aprendizado da leitura deve capacitar o aluno para uma

melhor qualidade de vida em sociedade.

Quando começamos a organizar os conhecimentos adquiridos, a partir das situações que a realidade impõe e da nossa atuação nela; quando começamos a estabelecer relações entre as experiências e a tentar resolver os problemas que se nos apresentam – aí então estamos procedendo leituras, as quais nos habilitam basicamente a ler tudo e qualquer coisa. Esse seria, digamos, o lado prazeroso do aprendizado da leitura. Dá-nos a impressão de o mundo estar ao nosso alcance; não só podemos compreendê-lo, conviver com ele, mas até, modificá-lo à medida

que incorporamos experiências de leitura. (MARTINS, 1982, p. 17).

Entendemos, então, que o aprendizado da leitura está muito além das

atividades realizadas em sala de aula. Para que esse aprendizado seja concretizado

em ações futuras, as atividades propostas pelos professores (não somente os de

Língua Portuguesa, bem como os de outras disciplinas) precisam auxiliar os alunos

a apropriarem-se de características sociocomunicativas e lingüístico-textuais de

diversos gêneros, em situações de comunicação real (LOPES ROSSI, 2002, p. 30).

A autora propõe que essa apropriação aconteça “por meio de projetos de leitura que

visem ao conhecimento, à leitura, à discussão sobre o uso e as funções sociais dos

gêneros escolhidos” (p. 31). Essa é uma prescrição dos PCN (BRASIL, 1998)

também corroborada por outros autores.

Bueno (2011, p. 38-39) também acredita que o trabalho com os gêneros que

circulam efetivamente na sociedade favorece a construção da compreensão em um

processo de leitura e de produção de textos na escola. Para a autora, muitos livros

didáticos desconsideravam esse importante papel dos gêneros, o que dificultaria

fazer um bom ensino de leitura.

Sendo assim, o professor precisa encontrar caminhos para que seus alunos

obtenham bom êxito dentro e fora da escola, ou seja, tornem-se plenamente

competentes em suas práticas sociais. Nesse sentido, as atividades a serem

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propostas em sala de aula necessitam voltar-se para a reflexão acerca dos gêneros,

verificando o que o aluno já sabe e promovendo a construção da aprendizagem pelo

aluno com o trabalho de mediação do professor.

Dolz e Schneuwly (2004) propõem que para se organizar esse tipo de

trabalho, as atividades devem ser planejadas em sequências didáticas. O trabalho

desse autores, pesquisadores do grupo de Didática da Língua da Universidade de

Genebra, foi pioneiro na proposta de o ensino de línguas tomar os gêneros

discursivos como objetos de ensino e organizar-se em sequências didáticas. Isso

ocorreu no final dos anos 90 e influenciou os PCN (1998). Estamos aqui citando a

edição de 2004 dos textos desses autores, que se refere à tradução brasileira, mas

ressaltamos que essas propostas remontam aos anos 90.

Para Dolz e Schneuwly (2004, p. 97), uma sequência didática é um conjunto

de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um

gênero discursivo oral ou escrito. As sequências didáticas são importantes para dar

acesso aos alunos a práticas de linguagem novas ou dificilmente domináveis, pois

quando o gênero adentra a escola sofre modificação, ao menos parcial, em sua

função social, ele visa à prática didática tão somente.

Para a elaboração de uma sequência didática, devemos considerar, segundo

os autores, as dimensões ensináveis dos gêneros. “Essas dimensões ensináveis

dizem respeito às características de um texto de um dado gênero nos níveis do

contexto de produção, da organização textual [...] da linguagem.” (BUENO, p. 36).

Bueno (2011, p. 41) cita Kato (1995), que embora não colocando o gênero

como o centro no ensino da leitura, afirmara que durante a leitura de um texto,

ocorrem alguns processos, entre outros, que dependem do gênero que se está

lendo. Bueno também lembra que Kato menciona o fator do grau de maturidade de

um leitor naquele processo. Ao lembrar essas colocações de Kato, Bueno coloca

que um bom trabalho com os gêneros pode contribuir para essa maturação, na

medida em que leva a conhecer diversos gêneros, mobilizando o aluno tanto para a

produção, como para a compreensão de outros.

Assim, o trabalho com a sequência didática deve considerar o nível de

dificuldade dos alunos, bem como sua realidade social, a fim de que a aprendizagem

seja significante. Por meio da análise dos exemplares do gênero a ser explorado,

podemos facilitar o processo para que os alunos se apropriem das características do

gênero, compreendendo melhor as condições efetivas da produção de um gênero,

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os possíveis temas abordados pelo gênero, o tipo de suporte em que comumente

poderemos o encontrar, a finalidade, além dos elementos estruturais que

normalmente o compõem. Dessa forma, a sequência didática tem o papel de

orientar a intervenção dos professores, evidenciando as dimensões ensináveis.

Cabe ao professor, entretanto, priorizar ou descartar determinadas etapas

dessas dimensões, pois cada sala de aula, cada aluno, tem a sua realidade.

Colaborando para que isso seja possível, neste trabalho, pretendemos

apresentar uma proposta de leitura com enfoque em uma abordagem enunciativo-

discursiva da linguagem, ou socioenunciativa da linguagem, fundamentada na

concepção de linguagem do filósofo russo Bakhtin (BAKHTIN, 2000).

Ao elaborarmos a sequência didática para a leitura de contos, podemos

observar que nem todos os descritores da Prova Brasil aplicam-se às habilidades de

leitura adequadas ao gênero discursivo conto. Observamos que alguns deles

dificilmente podem ser aplicados à leitura de textos narrativos, como por exemplo, o

descritor que exige a habilidade de “identificar texto com auxílio de material gráfico

diverso (propagandas, quadrinhos, foto etc.)”. Sendo assim, tomamos o cuidado de

selecionar os descritores da Matriz de Referência da Prova Brasil que podem ser

aplicados ao conto e, ainda, de acrescentar elementos na nossa sequência didática

que contemplem características do gênero, mas que não são citados pela Matriz de

Referência por causa dos problemas já citados na seção 3.3.

Para elaboração da sequência didática para a leitura do conto, tomamos

como referência os seguintes descritores:

D1: Localizar informações explícitas em um texto;

D3: Inferir o sentido de uma palavra ou expressão;

D4: Inferir uma informação implícita em um texto;

D5: Interpretar texto com auxílio de material gráfico diverso (somente haverá

possibilidade de trabalhar atividades a partir desse descritor, se no suporte do conto

houver ilustrações.);

D6: Identificar o tema de um texto;

D10: Identificar o conflito gerador do enredo e os elementos que constroem a

narrativa;

D11: Estabelecer relações lógico-discursivas presentes no texto, marcadas

por conjunções, advérbios etc.;

D12: Identificar a finalidade de textos de diferentes gêneros;

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D16: Identificar efeitos de ironia ou humor em textos variados;

D17: Identificar o efeito de sentido decorrente do uso da pontuação e de

outras notações;

D18: Reconhecer o efeito de sentido decorrente da escolha de uma

determinada palavra ou expressão;

D19: Reconhecer o efeito de sentido decorrente da exploração de recursos

ortográficos e/ou morfossintáticos.

Procurando contemplar esses descritores da Matriz de Referência da Prova

Brasil, bem como as competências e habilidades estabelecidas pelo PISA e, ainda,

tendo como referência a sequência didática proposta por Lopes-Rossi et al (2011)

para a leitura de contos de mistério, propomos neste trabalho uma sequência

didática básica para a leitura do conto.

Lembramos que a escolha dos descritores leva em consideração o gênero

discursivo e a série/ano na qual ela será aplicada. A sequência didática proposta

deve ser reavaliada de acordo com a realidade de cada sala de aula, uma vez que

as etapas da sequência didática devem atender às necessidades do aluno e,

portanto, devem também ser reavaliadas quando do planejamento do professor,

adequando-as ao seu contexto de ensino.

Não podemos esquecer que o trabalho com a sequência didática em projetos

pedagógicos permite que se flexibilize a aprendizagem de acordo com o

desenvolvimento e a aprendizagem dos alunos, de modo que eles possam transpor

o conhecimento também a situações fora do âmbito escolar. Nesse sentido, é

importante que haja reflexões a respeito da maneira como o texto literário é recebido

pelos alunos, ou seja, entendendo, junto aos alunos, como a obra literária dialoga

com cada história pessoal e em que medida ela é cara ao equilíbrio humano em

sociedade.

Antes de iniciarmos um projeto de leitura de contos, tomando como ponto de

partida a sequência didática sugerida, acreditamos ser interessante procurar

despertar nos alunos o interesse à leitura, convidando-os a falarem sobre suas

experiências de ouvirem histórias, promovendo discussões como:

1- Ouviram histórias em sua infância? Quais histórias costumavam ouvir?

2- Gostavam de ouvir tais histórias? Por quê?

3- Quais os sentimentos elas despertavam?

4- Em algumas das vezes, pensaram que elas poderiam ser verdadeiras?

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5- Sentem saudades das narrativas que lhes eram contadas?

Esses questionamentos são importantes na medida em que despertam,

àqueles que já ouviam histórias quando crianças, sentimentos de nostalgia e de

vontade de querer ouvir mais, relembram o tempo passado ao lado de pessoas

queridas que lhe contavam tais histórias.

A fim de mobilizar os conhecimentos prévios a respeito do gênero discursivo

conto que os alunos já trazem consigo para a sala de aula, é importante promover

ainda questões como:

1- Vocês sabem o que é um conto?

2- Já leram um conto?

3- Onde podemos encontrar os contos?

4- Sabem para que serve um conto?

5- Quais os assuntos que podemos encontrar em um conto?

6- Existe, em especial, algum conto que vocês já leram e que ainda se

recordam da história?

7- O que normalmente encontramos nos contos: personagens, conflitos...?

8- Esses conflitos se resolvem ou não?

Esses questionamentos apontados como opção de um diálogo com a turma

são sugeridos para serem aplicados antes dos procedimentos de leitura constantes

da sequência didática proposta. O professor pode, durante o processo de ativar os

conhecimentos prévios dos alunos, ir construindo na lousa uma seleção de tópicos

com as palavras-chave mencionadas pelos alunos, a fim de que eles possam

visualizar suas ideias destacadas.

Seguem, a seguir, os quadros com os quatro procedimentos de leitura: a

leitura rápida, a leitura completa, a leitura detalhada e a leitura crítica, ficando a

critério do professor uma possível adaptação com outras possibilidades de

atividades que possam ser contempladas durante a prática desses procedimentos.

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Primeiro procedimento: leitura rápida (leitura global ou pré-leitura).

ATIVIDADES PROPOSTAS

O QUE SE PRETENDE: Descritores da Matriz de Referência da Prova Brasil associados às atividades.

1- Entregar uma cópia do conto escolhido aos

alunos, a fim de que seja feita uma leitura rápida do título, ilustração (se houver), alguma palavra que se destaque para ativação do conhecimento prévio do aluno sobre o conto a ser lido;

2- Fazer perguntas aos alunos para que eles respondam oralmente:

• Que pistas o título ou as ilustrações nos dão sobre o assunto do conto que iremos ler?

• Se houver imagens: de acordo com as imagens, quem são as personagens? O que deve ter acontecido na história?

• De acordo com as imagens, que sensações esse texto poderá provocar nos leitores?

CONHECIMENTO SOBRE O

GÊNERO CONTO

Levantamento das características sociocomunicativas do conto: condições de produção, circulação, temáticas, propósito comunicativo/finalidade/objetivo. (Esse levantamento já é feito antes da entrega do conto, conforme questionamentos sugeridos acima).

localização de informações explícitas (D1)

interpretação com auxílio de material gráfico (D5)

identificação da finalidade do texto (D12)

Nível de compreensão esperado: reconhecimento do gênero conto, aquisição de conhecimento novo sobre o gênero, levantamento de algumas hipóteses sobre a história, compreensão mínima.

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Segundo procedimento: Estabelecimento de objetivos para leitura completa

do conto.

ATIVIDADES PROPOSTAS

O QUE SE PRETENDE Descritores da Matriz de Referência da Prova Brasil associados às atividades.

1- Fornecer as perguntas antes da leitura e solicitar as respostas às perguntas por escrito, após a leitura:

O que aconteceu com as personagens?

Onde e quando acontecem as ações?

O que motivou o conflito?

O conflito se resolveu?

2- Pedir para que os alunos leiam o texto em silêncio e respondam as perguntas. (essa primeira leitura pode ser silenciosa, a fim de que os alunos desenvolvam a habilidade de concentração na leitura de um texto).

Em um segundo momento, o professor pode pedir para que os alunos leiam em voz alta: cada aluno pode ler um parágrafo ou se houver personagens, pode haver um narrador e um leitor para cada personagem. (esse tipo de atividade pode favorecer a desinibição de alguns alunos que sentem vontade de ler, mas são tímidos). Em um terceiro momento, caso o professor acreditar que seja necessário, fazer, ele próprio, a leitura para os alunos, a fim de que eles percebam a entonação e a expressividade, que porventura não tenham acontecido quando da leitura feita pelos alunos. 3- Retomar as perguntas respondidas pelos alunos

e corrigi-las. Deve-se dar abertura e tempo necessário para que os alunos possam se expressar a respeito dos personagens, do espaço, do tempo, do conflito.

localização de informações explícitas (D1);

Inferências sobre o comportamento das personagens (D4)

Identificação do conflito gerador do enredo e dos elementos que constroem a narrativa (D10);

Estabelecimento de relação causa e consequência entre partes e elementos do texto (D11);

Nível de compreensão esperado: compreensão básica dos fatos que compõem a história (a narrativa).

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Terceiro procedimento: Estabelecimento de objetivos para uma leitura

detalhada de certas partes do conto.

ATIVIDADES PROPOSTAS

O QUE SE PRETENDE Descritores da Matriz de referência da Prova Brasil associados às atividades.

1- Fornecer as perguntas e solicitar respostas por escrito.

• De acordo com o enredo do conto, qual é o

tema (ideia) central da narrativa?

• Como vocês puderam identificar o tema do

conto?

• Que elementos do conto favorecem ou

provocam o conflito na narrativa?

• Existem palavras ou expressões do texto

ajudam a criar o ambiente da narrativa,

favorecendo a identificação do tema do

conto?

• No texto, o que significa a palavra (...)?

(esse item se aplica quando houver termos

ou expressões difíceis e que mereçam ser

explorados)

• Pergunta para distinção de fato ou opinião

do personagem ou narrador. (se houver

possibilidade de explorar isso no conto).

2- Corrigir oralmente com os alunos.

Identificação do tema do texto (D6)

Inferência de informações implícitas (D4)

Estabelecimento de relações entre partes do texto (D11)

Identificação de efeito de sentido

decorrente do uso da pontuação e de outras notações (D17)

Reconhecimento do efeito de sentido decorrente da escolha de uma determinada palavra ou expressão (D18)

Reconhecimento do efeito de sentido decorrente da exploração de recursos ortográficos e/ou morfossintáticos (D18) e (D19)

Identificação de ironia ou humor

(D16)

Inferência de sentido de palavra ou expressão (D3)

Nível de compreensão esperado: Compreensão minimamente crítica do conto; percepção dos elementos da narrativa com ênfase nos característicos do conto; identificação das informações relevantes; utilização de conhecimento formal ou público para levantar hipóteses e avaliar criticamente um texto.

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Quarto procedimento: Posicionamento crítico do leitor relacionado à qualidade

do texto e ao tratamento das informações, de acordo com as características do

gênero.

ATIVIDADES PROPOSTAS

O QUE SE PRETENDE Descritores da Matriz de Referência da Prova Brasil associados às atividades

1- Fornecer as perguntas e solicitar as

respostas por escrito:

Você gostou da história? Por quê?

O desfecho da narrativa correspondeu ao que você esperava? Você daria um desfecho diferente?

Esse tipo de história pode acontecer em nossa realidade? (deixar os alunos comentarem fatos reais que pode haver acontecido nos últimos tempos e que remetem ao tema da narrativa)

A leitura do conto despertou em você algum sentimento? Por quê? Em que momento?

2- Estimular os alunos a colocarem sua

opinião oralmente a respeito de determinados momentos do conto, colocarem seu ponto de vista; dar oportunidade para que, mesmo os alunos mais tímidos, emitam sua opinião, seus sentimentos.

3- Discutir as respostas oralmente, pedindo para que os próprios alunos as comparem, concluindo se existe alguma colocação que se possa elegê-la melhor.

OBS.: Não há descritores da Prova Brasil referentes a esse nível de inferência.

Esse último procedimento visa à reflexão para que haja a possibilidade de múltiplas leituras, com comparações e contrastes com outras obras, a partir do texto lido. Visa também à sensibilização do aluno ao interesse e prazer por novas leituras, de novos textos.

As questões propostas nesse procedimento buscam ratificar o dialogismo inerente à comunicação.

Nível de compreensão esperado: Reflexão e avaliação crítica do conto.

Essas perguntas constantes da sequência didática se apresentam como

sugestões, que podem ser complementadas ou adaptadas pelo professor de acordo

com contexto de sua realidade de sala de aula e com o interesse dos alunos em

explorar o texto. Elas podem ser aplicadas à leitura de qualquer conto.

Lembramos, ainda, que os alunos podem ser desafiados a dramatizarem a

narrativa, montando cenário e figurino de acordo com o período histórico (pode ser

interessante apresentar aos alunos quem é o autor do texto e em que período

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histórico ele foi produzido, como meio de contextualizá-lo). Também podemos

sugerir aos discentes que adaptem a narrativa aos nossos dias, escrevendo e

dramatizando o conto recriado por eles.

No próximo capítulo, são sugeridos cinco contos, a partir dos quais

exemplificamos sua leitura e análise de acordo com a sequência didática básica

proposta neste trabalho.

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CAPÍTULO 4

AS APLICAÇÕES DA SEQUÊNCIA DIDÁTICO-PEDAGÓGICA NA

LEITURA DO GÊNERO DISCURSIVO CONTO

O necessário é fazer da escola uma comunidade de leitores que recorrem aos textos buscando resposta para os problemas que necessitam resolver, tratando de encontrar informação para compreender melhor algum aspecto do mundo que é objeto de suas preocupações... desejando conhecer outros modos de vida, identificar-se com outros autores e personagens ou se diferenciar deles, viver outras aventuras, inteirar-se de outras histórias, descobrir outras formas de linguagem para criar novos sentidos. (ABRAMOVICH, 2004, p. 17-18)

A escola é o lugar social de ensino e aprendizagem em que temos a chance

de compartilhar leituras, descobrindo nossa capacidade de compreensão para além

das letras grafadas em um papel; em que temos a chance de nos posicionarmos,

relacionando nossos valores e ideologias ao discurso de um texto. Tomar o texto

literário como objeto de estudo em sala de aula é nos acercarmos do uso da palavra

elaborada, o que requer do professor conhecimento de toda a riqueza e diversidade

da linguagem literária: sutilezas e ambiguidades. Segundo os Parâmetros

Curriculares Nacionais (1998), a literatura deve ter lugar de destaque na formação

escolar.

É com o intuito de despertar o interesse pela literatura enquanto necessidade

metodológica para o ensino da leitura significativo e formador, que apontamos a

análise de cinco contos, a partir da sequência didática básica, apresentada no

capítulo anterior.

4.1 Procedimento prévio ao início da sequência didática de leitura do conto

Conforme argumentado no capítulo anterior, no início de um projeto de leitura

de contos, é importante ouvir os alunos e destacar os termos apontados pelos

alunos que rementem à palavra conto. Repetimos aqui as principais questões a

serem atribuídas aos alunos como motivação de atividades de leitura:

1- Ouviram histórias em sua infância?

2- Quais histórias costumavam ouvir?

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3- Gostavam de ouvir tais histórias? Por quê? Quais os sentimentos elas

despertavam?

4- Em algumas das vezes, pensaram que elas poderiam ser verdadeiras?

5- Sentem saudades das narrativas que lhes eram contadas?

6- Vocês sabem o que é um conto?

7- Já leram um conto?

8- Onde podemos encontrar os contos?

9- Sabem para que servem os contos?

10- Quais os assuntos podemos encontrar em um conto?

11- Existe, em especial, algum conto que vocês já leram e que ainda se

recordam da história?

12- O que normalmente encontramos nos contos: personagens, conflitos...?

Esses conflitos se resolvem ou não?

Para exemplificar as atividades de leitura a partir dos procedimentos de leitura

da sequência didática básica, escolhemos os contos: “A devota das Almas”,

Cascudo (1952); “Conto de escola”, Assis (1840); “Com certeza tenho amor”,

Colasanti (2005); “Restos do carnaval”, Lispector (1998) e “O arquivo” (Giudice,

1986). Escolhemos esses contos cada qual por sua razão: o primeiro, por se tratar

de um conto de origem remota, levando os alunos a conhecerem um pouco dos

contos que tiveram origem na tradição oral; o segundo, com o objetivo de que os

alunos tenham a oportunidade de conhecer a realidade da escola do século XIX,

podendo compará-la à realidade atual; outra razão para a escolha é o fato de se

tratar de Machado de Assis, um autor clássico da literatura brasileira; o terceiro,

escolhemos por se tratar de uma autora contemporânea que traz de volta todo o

encanto dos contos de fadas, capaz de envolver tanto crianças como adultos por

sua linguagem poética; o quarto, por se tratar de um conto psicológico, introspectivo,

ao qual poucos alunos tem acesso antes do Ensino Médio. E o quinto e último conto,

por registrar, de modo surpreendente, a exploração do ser humano, ainda

persistente em nossa sociedade atual.

Lembramos que cabe ao professor a preparação do ambiente em que serão

realizadas as leituras dos textos. Havendo possibilidade, o professor pode planejar

uma sala ambiente de acordo com a história a ser lida, como por exemplo,

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preparando a sala disposta em forma círculo ou decorando-a de acordo com a

temática da narrativa, favorecendo a capacidade imaginativa.

4.2 Leitura do conto “A devota das almas”, versão segundo Cascudo (1952)

O conto sobre o qual nos debruçamos relembra as narrativas de tradição oral

e que traziam ensinamentos de ordem moral ou religiosa, tratando de supostos

seres sobrenaturais. Ele é uma versão de um conto muito antigo de tradição oral nos

países nórdicos, tendo sido registrado pela primeira vez pelos Irmãos Grimm, com o

título “As três fiandeiras”.

Reproduziremos aqui novamente os procedimentos da sequência didática, um

a um, com os comentários que acreditamos pertinentes ao conto. As perguntas

básicas dos procedimentos de leitura foram adaptadas, acrescentadas ou

suprimidas, em alguns poucos aspectos, de acordo com as possibilidades de

exploração do conto.

Primeiro procedimento: leitura rápida (leitura global ou pré-leitura).

ATIVIDADES PROPOSTAS

1- Entregar uma cópia do conto escolhido aos alunos, a fim de que seja feita uma

leitura rápida do título, ilustração (se houver), alguma palavra que se destaque para ativação do conhecimento prévio do aluno sobre o conto a ser lido;

2- Fazer perguntas aos alunos para que eles respondam oralmente:

• Que pistas o título nos dá sobre o assunto do conto que iremos ler? • Por meio do título é possível prever quem serão as personagens e o que

acontecerá a elas?

O título poderá dar pistas importantes aos alunos a respeito do conto a ser

lido: “A devota das almas”. A palavra “devota” é feminina, antecedida de artigo

definido, deixando claro que no conto teremos, provavelmente, uma personagem

protagonista feminina. Por que o nome da personagem não aparece no título?

Talvez com a proposta do autor de que seus leitores espelhem suas vidas na vida

da personagem.

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E por que seria a personagem devota das “almas”? Que “almas” haveriam de

ser essas? Será que se trata de um conto de mistério ou de assombração, por conta

da existência do substantivo “almas” no título do conto? Somente pelo título não dá

para prevermos de que tipo de conto se trata, mas pelo conhecimento de mundo que

os alunos possam ter, eles poderão acreditar que se trata de algum conto de

assombração. No entanto, se nos voltarmos ao significado da palavra “devota”,

veremos que dificilmente essa possibilidade de o conto ser de mistério ou de

assombração fica remota, pois “devota” significa “dedicada”, “piedosa” (FERREIRA,

2011, p. 321).

Segundo procedimento: Estabelecimento de objetivos para leitura completa

do conto.

ATIVIDADES PROPOSTAS

1- Fornecer as perguntas antes da leitura e solicitar as respostas às perguntas por escrito:

O que aconteceu com as personagens?

Onde e quando acontecem as ações?

O que motivou o conflito?

O conflito se resolveu?

2- Pedir para que os alunos leiam o texto em silêncio.

Essa primeira leitura pode ser silenciosa, a fim de que os alunos desenvolvam a habilidade de concentração na leitura de um texto.

Por fim, caso o professor acreditar seja necessário, fazer, ele próprio, a leitura para os alunos, a fim de que eles percebam a entonação e a expressividade, que porventura não tenham acontecido quando da leitura feita pelos alunos.10

3- Retomar as perguntas respondidas pelos alunos, confirmando as respostas ou

corrigindo-as. Deve-se dar abertura e tempo necessário para que os alunos possam se expressar a respeito dos personagens, do espaço, do tempo, do conflito.

Antes da leitura do texto, e ainda por meio da leitura do título, podemos

levantar junto aos alunos hipóteses a respeito da personagem “devota”. Por que ela

foi nomeada pelo seu adjetivo? Podemos entender que esse adjetivo será definitivo

10

Segundo Silva (2009, p. 35), quando a leitura é feita por um “leitor-guia” que vai desvendando junto com os leitores as entrelinhas do texto, esse tipo de leitura prepara o leitor para uma leitura autônoma. Um professor que pratica esse tipo de leitura junto aos seus alunos pode levar os jovens do prazer de ler à apreciação do texto. (SILVA, 2009, p. 44).

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para o desenvolvimento do enredo, bem como a presença do substantivo “almas”

será decisiva para a resolução do conflito, pois a devoção que a personagem

despende em relação às personagens favorecerá a resolução da situação de conflito

em que a personagem se envolveu em razão de uma brincadeira.

Há outras personagens na narrativa, além da “devota” e das “almas”? Elas

são importantes para desenvolvimento do enredo. Existem outras personagens: as

amigas, personagens que geram o conflito, pois elas que promovem a intriga para a

personagem protagonista; o “rei”, que se casa com a “devota” e as três velhas

senhoras. Deixar os alunos se posicionarem a respeito das características que

observaram ser mais interessantes nas personagens, como, por exemplo, o fato de

nenhum personagem ser denominado por seu nome próprio.

Podemos inferir que as “três senhoras altas, magras e muito esquisitas,

vestidas de branco” são as almas, cujas vestes são brancas. O branco remete à

pureza, qualidade que, pela tradição popular, se entende como inerente às “puras

almas”. As características físicas das velhas senhoras foram carregadas pelo

exagero, já antecipado pelo advérbio de intensidade “muito”, ou seja, “muito

esquisitas”: uma corcovada, outra de olhos esbugalhados e a terceira, com os

braços exageradamente cumpridos.

Ao discutirmos a questão do espaço da narrativa, é interessante lembrarmos

aos alunos de que a narrativa é de tradição oral, cuja origem é muito remota,

remetendo-nos ao tempo em que havia castelos, príncipes e princesas, cujos

costumes também eram muito diferentes dos nossos. Haverá castelos ou reinados

no conto a ser lido? No conto temos a referência ao palácio, local em que moravam

o rei e a devota. Pode-se pedir aos alunos que imaginem como deveria ser esse

palácio: o tamanho dos cômodos, os empregados, a torre, as cores, os materiais de

que era feito.

O conflito, motivado pela intriga realizada pelas amigas da devota, culmina

com o casamento, que acontece mesmo com a personagem sabendo que seria

degolada, uma vez que não haveria de saber fazer a camisa. No entanto, para

surpresa de todos, aparecem no palácio três senhoras “muito esquisitas” que se

diziam tias da protagonista. Essas senhoras são a razão da solução do conflito

vivido pela personagem, pois vieram trazer a solução para o problema sofrido. Com

suas aparências estranhas. Seus aspectos físicos foram a razão para que o rei

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desistisse da ideia de fazer com que sua esposa fosse “escrava do lar”, pois não

queria que a mulher “tão moça, tão bonita, ficasse feia como as três velhas”.

É importante dar tempo para que todos tenham a oportunidade de falar se

confirmaram suas hipóteses.

Ao finalizarmos esse segundo procedimento de leitura, podemos dar

continuidade com o terceiro procedimento: estabelecimento de objetivos para uma

leitura detalhada de certas partes do conto.

ATIVIDADES PROPOSTAS

1- Fornecer as perguntas e solicitar respostas por escrito.

• De acordo com o enredo do conto, qual é o tema (ideia) central da narrativa?

• Como vocês puderam identificar o tema do conto?

• Que elementos do conto favorecem ou provocam o conflito na narrativa?

• Existem palavras ou expressões do texto ajudam a criar o ambiente da narrativa

que favorece a identificação do tema do conto?

• No texto, o que significam as palavras “fiar”, “fuso” e “cutelo”?

• O que se pode entender do título e das últimas palavras do conto?

2- Corrigir oralmente com os alunos.

Percebemos que o tema central da narrativa está voltado para “as

consequências de uma brincadeira impensada”. A ideia central está relacionada ao

fato que gerou o conflito. Podemos identificar o tema da narrativa logo no primeiro

parágrafo. A conjunção “mas” indica que haverá uma quebra no estado inicial de

equilíbrio, o que se confirma logo a seguir, no mesmo parágrafo, com a traição das

amigas, que culmina com o casamento.

Podemos concluir que a brincadeira provocou o conflito, favorecido pela

“intriga” das “amigas”. A atitude imprudente de confiar nas amigas e inventar uma

brincadeira acerca de uma tarefa que não poderia cumprir acabou quase lhe

custando a vida. Será que isso acontece ainda hoje, em nossa realidade cotidiana?

Como os alunos se posicionam diante da atitude dessas “falsas amigas”? É uma

atitude aprovável?

Podemos observar também, junto com os alunos, a presença de elementos

do conto fantástico, uma vez que as almas são seres sobrenaturais que

transpassam, portanto, a realidade. Seres que assumem a imagem do humano,

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livrando a protagonista da morte em situações improváveis, e promovendo um final

feliz.

As expressões “correram e foram mais que depressa contar ao rei o que a

moça havia falado” indicam que os fatos aconteceram de modo muito rápido,

provando que as “amigas”, na verdade, não passavam de traiçoeiras que queriam o

pior para a protagonista. O rei acolhe a “intriga” como uma boa novidade e diz que

irá se casar, mas intima: “se ela não fizesse a camisa como havia prometido, iria

para o cutelo. A moça ficou muito triste porque sabia que seria degolada, mas não

teve outro jeito senão se casar com o rei”. Após a afirmação de que a moça ficara

muito triste porque seria degolada, o significado de “cutelo” já pode ser inferido por

todos. Para entender que cutelo será a sentença de morte da “devota”, os alunos

não precisam saber o que é cutelo, mas podemos explicar-lhes que, segundo

Ferreira (2011, p. 276), “cutelo” é um instrumento cortante, semicircular, de ferro. No

Brasil, é comum a referência ao cutelo como o “facão” utilizado pelos açougueiros.

Existem ainda outros termos que podem ser desconhecidos pelos alunos

como: “fiar”, “bordar”, “engomar” e “fuso” e que remetem a atividades femininas, não

mais comuns em nossos costumes contemporâneos. Os verbos fiar, bordar e

engomar estão relacionados a atividades de costura.11 Logo, os alunos poderão,

sem o auxílio do dicionário, inferir de que “fuso” é um instrumento também

relacionado à costura.

As características das velhas que aparecem no palácio estão relacionadas a

cada uma das ações de fiar, bordar e engomar. Ao conversarem com o rei e com a

moça, explicaram as razões de suas aparências: “A primeira disse que estava assim

corcovada de tanto engomar; a segunda, que estava com os olhos esbugalhados

assim de tanto bordar; e a terceira, com os braços tão compridos, de fiar.” Desse

modo, o rei desistiu de exigir o cumprimento da tarefa por sua mulher, por medo de

que ficasse “feia com as três velhas”.

No quarto e último procedimento, privilegiamos o posicionamento crítico do

leitor relacionado à qualidade do texto e ao tratamento das informações, de acordo

com as características do gênero.

11

Fiar significa “reduzir a fio (lã, algodão, etc., em estado bruto)” (FERREIRA, 2011, p. 430); bordar, “fazer bordado” (FERREIRA, 2011, p. 151) e engomar, “pôr goma em; gomar [...] Passar roupa com goma.” (FERREIRA, 2011, p. 366).

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ATIVIDADES PROPOSTAS

1- Fornecer as perguntas e solicitar as respostas por escrito:

Você gostou da história? Por quê?

O desfecho da narrativa correspondeu ao que você esperava? Você daria um desfecho diferente?

Esse tipo de história pode acontecer em nossa realidade? (deixar os alunos comentarem fatos reais que pode haver acontecido nos últimos tempos e que remetem ao tema da narrativa)

A leitura do conto despertou em você algum sentimento? Por quê? Em que momento?

2- Estimular os alunos a colocarem sua opinião oralmente a respeito de

determinados momentos do conto, colocarem seu ponto de vista; dar oportunidade para que, mesmo os alunos mais tímidos, emitam sua opinião, seus sentimentos.

3- Discutir as respostas oralmente, pedindo para que os próprios alunos as comparem, concluindo se existe alguma colocação que se possa elegê-la melhor.

A protagonista se vê obrigada a aprender a fiar, a bordar e a engomar, como

consequência de uma brincadeira feita com as amigas. A partir dessa informação, é

interessante discutir com os alunos qual o provável período do acontecimento dos

fatos narrados. Os costumes referidos na narrativa como os de fiar, bordar e

engomar, são próprios de uma época bastante remota, em que predominava o

machismo exacerbado, para o qual as mulheres deveriam ser exímias cumpridoras

dos deveres domésticos, portanto, a narrativa remete a tempos muito antigos, no

qual as mulheres não tinham voz.

No entanto, é interessante discutir com os alunos que na atualidade em nossa

sociedade, embora não sejam comuns as atividades de bordar, fiar e engomar,

ainda é comum a exploração das mulheres por outros motivos. Podemos deixá-los

expor quais motivos seriam estes: na sociedade ou na família; deixá-los à vontade

para comentarem se conhecem algum caso de exploração de mulheres. Ainda é

comum encontrarmos casos de homens machistas que exigem que suas mulheres

cumpram atividades domésticas de modo abusivo.

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Para inibir abusos contra as mulheres, atualmente, existem leis que protegem

a mulher, como a Lei Maria da Penha12, de número 11.340, que entrou em vigor em

22 de setembro de 2006 (BRASIL, 2012). Ainda assim, podemos encontrar muitos

casos de mulheres que sofrem com a agressão, sendo que muitas sequer

denunciam os agressores, por medo de sofrerem ainda mais violência.

Dialogando as realidades vividas pelos alunos e a ideia central do texto,

podemos concluir que o texto traz a lição de que não devemos fazer promessas as

quais não teremos condições de cumprir, pois isso pode ter consequências

desastrosas para nossas vidas. Também faz-nos refletir a respeito de nossas

amizades e prestar atenção àqueles que gostam de fazer intrigas. Será que

devemos confiar em todos aqueles que se dizem nossos amigos?

A narrativa tem como desfecho a salvação da vida da personagem pela

intervenção das almas. Portanto, pelo desfecho, podemos concluir que o título “A

devota das almas” permite e confirma a hipótese de que as personagens das velhas

como figuras fantásticas tiveram papel decisivo no final feliz atribuído à protagonista

graças à sua devoção.

4.3 Leitura do “Conto de escola” (1884)

“Conto de escola” foi publicado pela primeira vez no jornal “Gazeta de

Notícias”, em 1884. A leitura do “Conto de escola”, de Machado de Assis, pode ser

muito gratificante para todas as idades, pois tal qual o conto anteriormente

explorado, “A devota das almas”, traz lembranças de um tempo passado,

reavivando-nos a memória. A linguagem é simples, em um curto espaço de tempo,

ações e sentimentos, promovendo reflexões acerca de como era a escola no século

XIX. No entanto, podemos encontrar nesse conto alguns aspectos próximos à

realidade vivenciada pelos alunos, uma vez que apresenta uma personagem que

tem contato, pela primeira vez, com a corrupção e a delação.

12

Essa lei foi criada com o objetivo de proteger os direitos da mulher, na tentativa de impedir que haja qualquer violência doméstica e familiar contra a mulher, seja ação ou omissão “que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.” (BRASIL, 2012, Disponível em: <http://www.in.gov.br/visualiza/index.jsp?data=08/08/2006&jornal=1&pagina=1&totalArquivos=56> Acesso em: 22 mar. 2012.)

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Primeiro procedimento: leitura rápida (leitura global ou pré-leitura).

ATIVIDADES PROPOSTAS

1- Entregar uma cópia do conto escolhido aos alunos, a fim de que seja feita uma

leitura rápida do título, ilustração (se houver), alguma palavra que se destaque para ativação do conhecimento prévio do aluno sobre o conto a ser lido;

2- Fazer perguntas aos alunos para que eles respondam oralmente:

• Que pistas o título nos dá sobre o assunto do conto que iremos ler? • Se houver imagens: de acordo com as imagens, quem são as personagens? O

que deve ter acontecido na história? • De acordo com as imagens, que sensações esse texto poderá provocar nos

leitores?

Já a partir da leitura do título podemos questionar os alunos a respeito de que

hipóteses podem levantar com relação ao assunto que irá ser abordado no conto.

Quais os assuntos mais comuns relacionados à escola: a educação? O estudo? Os

livros? As provas? As tarefas? As relações entre professor e aluno? As relações

entre os colegas de sala? A indisciplina? O gostar ou não da escola? E o que mais?

Deixar os alunos levantarem as hipóteses.

Assim, de acordo com a sequência didática proposta neste trabalho, após a

exploração da leitura do título, reiterando também as questões apontadas no

primeiro procedimento de leitura (a leitura rápida), estabelecemos alguns objetivos, a

fim de que os alunos possam fazer uma primeira leitura da narrativa com foco na

resolução dos questionamentos.

De acordo como o título, podemos prever que, entre as personagens, estarão

envolvidos alunos em uma escola, hipótese que irá se confirmar, uma vez que o

próprio protagonista é um aluno. O termo “conto” já antecipa que o gênero discursivo

a ser lido será um conto, prevendo que a narrativa se desenvolverá em um curto

espaço de tempo, com reduzido número de personagens.

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Segundo procedimento: estabelecimento de objetivos para uma leitura

detalhada de certas partes do conto.

ATIVIDADES PROPOSTAS

1- Fornecer as perguntas antes da leitura e solicitar as respostas às perguntas por escrito:

O que aconteceu com as personagens?

Onde e quando acontecem as ações?

O que motivou o conflito?

O conflito se resolveu?

2- Pedir para que os alunos leiam o texto em silêncio.

Essa primeira leitura pode ser silenciosa, a fim de que os alunos desenvolvam a habilidade de concentração na leitura de um texto.

3- Retomar e confrontar as hipóteses anteriormente levantadas pelos alunos,

confirmando-as ou eliminando-as. Deve-se dar abertura e tempo necessário para que os alunos possam se expressar a respeito dos personagens, do espaço, do tempo, por exemplo.

A maior parte do desenvolvimento do enredo acontece dentro da escola,

conforme nos remete o título. Pilar é um garoto que gosta de cabular aulas. Assim, a

narrativa tem como enredo um desses dias em que Pilar resolve aparecer na escola,

movido pela lembrança do último castigo que recebera de seu pai. Pilar recebe um

desafio de seu colega de sala, Raimundo, um desafio contrário às regras da escola,

e Policarpo, que era o professor, acaba por descobrir o ato ilícito praticado pelos

alunos. Há ainda, o “delator”, Curvelo, o garoto também colega de sala, responsável

pela descoberta pelo professor.

O conto é narrado em primeira pessoa, um narrador-protagonista, em que o

narrador, ele próprio, tece lembranças da escola, promovendo um caráter maior de

verossimilhança aos olhos do leitor. O narrador conta sobre um dia que marcou sua

vida por ter lhe trazido o conhecimento de dois conceitos: o da corrupção e o da

delação.

O fato de o conto ser narrado em primeira pessoa, sendo um narrador-

protagonista, favorece o fato de ele ter atribuído a si uma imagem otimista e positiva,

relegando às demais personagens um caráter negativo. Pilar era um dos alunos

mais inteligentes e espertos como o próprio narrador-protagonista afirma:

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Começou a lição de escrita. Custa-me dizer que eu era dos mais adiantados da escola; mas era. Não digo também que era dos mais inteligentes, por um escrúpulo fácil de entender e de excelente efeito no estilo, mas não tenho outra convicção. Note-se que não era pálido nem mofino: tinha boas cores e músculos de ferro. Na lição de escrita, por exemplo, acabava sempre antes de todos, mas deixava-me estar a recortar narizes no papel ou na tábua, ocupação sem nobreza nem espiritualidade, mas em todo caso ingênua.

No entanto, “não era um menino de virtudes”, quando menciona o fato de

cabular aulas e de receber o castigo do pai. Esse deveria ser, provavelmente, seu

maior defeito ante os olhos do pai, que “era um velho empregado do Arsenal de

Guerra, ríspido e intolerante” e que sonhava para o filho “uma grande posição

comercial”. A característica de ser ríspido se comprova pelos castigos que Pilar

recebe, pois as sovas de vara de marmeleiro lhe “doíam por muito tempo”. A última

sova recebera há uma semana dos relatos do conto e podemos inferir ainda lhe

doessem por ocasião da decisão de ir à escola naquele dia.

O professor, Policarpo, também não era diferente do pai na intolerância e na

rispidez. Isso se comprova pela fala do narrador: “Subi a escada com cautela, para

não ser ouvido do mestre, e cheguei a tempo; ele entrou na sala três ou quatro

minutos depois”. Podemos perceber o extremo cuidado que tem para não contrariar

o professor: uma figura bastante antiquada de acordo com as descrições do

narrador: “em chinelas de cordovão, com a jaqueta de brim lavada e desbotada,

calça branca e tesa e grande colarinho caído”. O professor era considerado

bastante severo por conta das palmatórias, mas não tão severo quanto o era com o

filho, Raimundo (“O mestre era mais severo com ele do que conosco” [...] “buscava-

o muitas vezes com os olhos, para trazê-lo mais aperreado.”).

Raimundo, filho de Policarpo e colega de Pilar:

[...] gastava duas horas em reter aquilo que a outros levava apenas trinta ou cinquenta minutos; vencia com o tempo o que não podia fazer logo com o cérebro. Reunia a isso um grande medo ao pai. Era uma criança fina, pálida, cara doente; raramente estava alegre.

Raimundo tinha grande dificuldade e, ao contrário do colega, Pilar acabava a

lição antes de todos, e é por isso que Raimundo se atreveu a pedir ajuda. A ajuda

viria em troca de uma moedinha, à qual o protagonista demonstrou interesse: “Era

uma moeda do tempo do rei, cuido que doze vinténs ou dois tostões, não me

lembro; mas era uma moeda, e tal moeda que me fez pular o sangue no coração.”

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O conflito tem início, portanto, quando Pilar recebe a oferta da moeda por

Raimundo. Ele “não queria recebê-la”, mas custava-lhe recusá-la ante a insistência

de seu colega, apresentando-lhe a moeda, que, segundo o narrador-protagonista,

era “bonita, fina, branca, muito branca; e para mim, que só trazia cobre no bolso,

quando trazia alguma coisa, um cobre feio, grosso, azinhavrado...”.

Para tristeza de Pilar e de Raimundo, seu colega de sala, Curvelo, “um pouco

levado do diabo”, com onze anos e mais velho que os outros dois, presencia a

atitude de ambos. Pelas descrições, já podemos prever que o ato não ficará às

escondidas, será delatado ao professor por Curvelo que não tirou os olhos dos dois

colegas, aguardando pelo motivo e pelo desfecho da conversa dissimulada.

O conflito tem como clímax o contrato descoberto pelo professor, ou melhor, o

momento em que o ato inadequado havia sido delatado por Curvelo ao professor. A

descoberta foi o estopim para mais uma das sessões de palmatória e xingamentos

de Policarpo.

O conflito tem seu desfecho, pois, com o castigo, levando o protagonista a

refletir diante de sua atitude e primeira experiência ante a corrupção. Mas, por fim,

deixa-se seduzir novamente pelo “tambor” dos fuzileiros, esquecendo a moeda e a

vingança, cabulando as aulas novamente em sua inocência de infância.

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Terceiro procedimento de leitura: estabelecimento de objetivos para uma

leitura detalhada de certas partes do conto.

ATIVIDADES PROPOSTAS

1- Fornecer as perguntas e solicitar respostas por escrito.

• De acordo com o enredo do conto, qual é o tema (ideia) central da narrativa?

• Como vocês puderam identificar o tema do conto?

• Que elementos do conto favorecem ou provocam o conflito na narrativa?

• Existem palavras ou expressões do texto ajudam a criar o ambiente da narrativa

que favorece a identificação do tema do conto?

• No texto, o que significa a palavra (...)? (esse item se aplica quando houver termos

ou expressões difíceis e que mereçam ser explorados)

• Pergunta para distinção de fato ou opinião do personagem ou narrador. (se houver

possibilidade de explorar isso no conto).

2- Corrigir oralmente com os alunos.

Podemos concluir que o tema central da narrativa é o da corrupção, uma vez

que ela é a principal geradora do conflito e em torno dela se desenvolvem as ações

principais das personagens.

Mas o que motivou a corrupção? Conforme descrito pelo narrador-

personagem, Raimundo era uma criança que sofria com os castigos do pai mais que

os colegas da escola. À severidade do pai, soma-se a dificuldade em cumprir com

facilidade as lições da escola, razão pela qual se vê na necessidade de pedir ajuda

ao colega, Pilar. Em troca da ajuda de uma lição de sintaxe, oferece uma

“moedinha” que havia ganhado da mãe, possivelmente mais compreensiva e amável

que o pai. O ato ilícito, dessa maneira, surge do medo do pai que também era o

professor.

Pilar, por sua vez, não queria aceitar, apesar de sua inocência própria da

infância e de admitir que sabia bem enganar com mentiras de criança, sentiu que

aquela não seria uma atitude aprovada:

Tive uma sensação esquisita. Não é que eu possuísse da virtude uma ideia antes própria de homem; não é também que não fosse fácil em empregar uma ou outra mentira de criança. Sabíamos ambos enganar ao mestre. A novidade estava nos termos da proposta, na troca de lição e dinheiro, compra franca, positiva, toma lá, dá cá; tal foi a causa da sensação. Fiquei a olhar para ele, à toa, sem poder dizer nada.

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Explica, por suas palavras, que a razão da “sensação esquisita”, estava na

“novidade”, “nos termos da proposta”. Afirma ser “novidade” a experiência de alguém

lhe oferecer dinheiro em troca da lição, ou seja, lhe era novidade a ideia da

corrupção.

A insistência foi tamanha que não resistiu à “tentação”, a “pratinha fuzilava-lhe

entre os dedos, como se fora diamante...”. O medo do mestre foi vencido pelo

desejo de possuir a moeda. No entanto, a posse da moeda durou menos tempo que

a negociação e surtiu efeitos por demais dolorosos.

As consequências sofridas pelo narrador remetem-nos às características de

um conto de exemplo. Podemos inferir que, quando o narrador-personagem afirma

ter uma “sensação esquisita” diante da ideia de aceitar a moeda em troca da ajuda,

ele já tem uma formação moral, embora ainda criança, de que tal atitude não seria

aprovada pela sociedade. Essa inferência se confirma após a descoberta do ato pelo

professor: “Ele enterrou-me pela consciência dentro um par de olhos pontudos”, ao

se referir à consciência, refere-se à questão moral, que fica arraigada à consciência.

Os “olhos pontudos” revelam a dor de se ter a consciência ferida, como algo que lhe

perfurasse atingindo o mais profundo de um ser humano.

No entanto, a dor não fora suficiente para que esquecesse a moeda: “E

sonhei com a moeda; sonhei que, ao tornar à escola, no dia seguinte, dera com ela

na rua, e a apanhara, sem medo nem escrúpulos...”. Acordou com a ideia de

buscar a moeda e saiu de casa, “como se fosse trepar ao trono de Jerusalém.”

Expressão que nos remete à posição de rei, que é bem como ele já estava se

sentindo: havia ganhado uma calça nova de sua mãe e foi correndo para a escola,

cuidando para que não a sujasse. Seu objetivo era encontrar a moeda, mas “o

diabo do tambor” o fez esquecer a moeda, voltando para a casa com as calças

sujas, manchadas.

O desfecho do conto nos mostra que apesar de tudo, não restou

ressentimento na alma de Pilar. Sua ingenuidade infantil prevaleceu sobre a

ambição e a vingança.

É interessante discutir com os alunos o uso de alguns termos que remetem ao

tempo e ao espaço dos acontecimentos da narrativa. Com relação ao período

histórico temos, no texto, a referência ao tempo “no fim da Regência”.

O período regencial, na História do Brasil, aconteceu entre 1831 a 1840,

compreendido entre a abdicação de D. Pedro I e o chamado “Golpe da

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Maioridade”, quando seu filho D. Pedro II teve a maioridade proclamada. Foi um

dos mais importantes e agitados períodos da História brasileira, pois nele se

firmaram a unidade territorial do país e a estruturação das Forças Armadas. Várias

rebeliões marcaram o período regencial, como a Revolução Farroupilha ou Guerra

dos Farrapos (1835-1845), que foi a considerada a mais importante e duradoura.

Apesar das intensas revoltas ocorridas no período, a ordem social latifundiária e

escravista foi mantida. (DOMINGUES; FIUSA, 2000, p. 104)

Ainda nos remetendo ao período histórico, o narrador-protagonista faz

referência ao fato de que “Policarpo tinha decerto algum partido”. Quando se refere

a partido, refere-se às facções políticas que surgiram à época: os liberais e os

restauradores. Os liberais, subdivididos entre moderados (designados também

como “chimangos”) e exaltados (também denominados “farroupilhas” ou

“jurujubas”), tinham posições políticas diversas que iam desde a manutenção de

estruturas monárquicas à formulação de um novo governo republicano. Os

restauradores, dos quais faziam parte funcionários públicos, militares

conservadores e comerciantes portugueses, acreditavam que a estabilidade

deveria ser reavida com o retorno de D. Pedro I. (DOMINGUES; FIUSA, 2000, p.

101-102)

Com relação ao espaço temos a referência à Rua do Costa, ao morro de S.

Diogo, ao Campo Sant’Ana e à praia da Gamboa, todas referências à cidade do Rio

de Janeiro. Interessante observar com os alunos que a referência à praia da

Gamboa, também aparece em outra obra de Machado de Assis, “Quincas Borba”,

publicado em 1892. Gamboa, localizado em uma região de águas mais calmas da

Baía de Guanabara, é um bairro da Zona Portuária do Rio de Janeiro, bairro central

da cidade, com comércios, indústrias e residências da classe média baixa. No

entanto, entre o final do século XVIII e boa parte do século XIX, era um local

escolhido pelas pessoas de maior poder aquisitivo para suas chácaras e mansões.

Outros termos como: “chinelas de cordovão” (chilenas feitas de couro de

cabra); “calça branca e tesa” (esticada); e “boceta de rapé” (um acessório

indispensável que acompanhava a indumentária masculina brasileira no período

colonial; uma caixa pequena e oval que carregava o rapé, um pó feito do tabaco e

estimulante do nariz para provocar o espirro; ainda hoje é possível encontrá-lo em

tabacarias) são usados para caracterizar Policarpo, apresentando-o como uma

figura típica do século XIX.

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Quarto procedimento: Posicionamento crítico do leitor.

ATIVIDADES PROPOSTAS

1- Fornecer as perguntas e solicitar as respostas por escrito:

Você gostou da história? Por quê?

O desfecho da narrativa correspondeu ao que você esperava? Você daria um desfecho diferente?

Esse tipo de história pode acontecer em nossa realidade? (deixar os alunos comentarem fatos reais que pode haver acontecido nos últimos tempos e que remetem ao tema da narrativa)

A leitura do conto despertou em você algum sentimento? Por quê? Em que momento?

2- Estimular os alunos a colocarem sua opinião oralmente a respeito de

determinados momentos do conto, colocarem seu ponto de vista; dar oportunidade para que, mesmo os alunos mais tímidos, emitam sua opinião, seus sentimentos.

3- Discutir as respostas oralmente, pedindo para que os próprios alunos as comparem, concluindo se existe alguma colocação que se possa elegê-la melhor.

O narrador finaliza o conto da seguinte maneira: “E contudo a pratinha era

bonita e foram eles, Raimundo e Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento,

um da corrupção, outro da delação; mas o diabo do tambor...”. Por meio dessa

afirmação, podemos duvidar que houve verdadeiro arrependimento por parte de

Pilar. Apesar de haver sofrido diversos “impropérios”13 por parte do professor,

sentiu vontade de reaver a moeda e por conta de uma atração irresistível ao tambor

dos fuzileiros, esquece a moeda, esquece a vingança e esquece a escola. Por final,

na última frase, utiliza da adversativa “mas”, como que contrariado pela ideia de

haver perdido a moeda em troca do tambor, ao qual se refere com um xingamento:

“o diabo”.

Assim, podemos concluir que, não obstante se trate de um conto de exemplo,

Machado de Assis se utiliza de um tom de ironia ao tratar do tema da corrupção,

deixando aos leitores a tarefa de refletir acerca do arrependimento ou não por parte

do narrador-protagonista: será que ele não aceitaria a moeda, se novamente fosse

interpelado por algum colega? Pelo texto, podemos inferir que sim, pois estava

13

Impropérios, segundo Ferreira (2011, p. 498) significa ato ou palavra repreensível, ofensiva; vitupério; repreensão injuriosa.

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decidido a voltar e obter a moeda de volta, bem como a se vingar de Curvelo.

Esqueceu momentaneamente, em virtude de suas brincadeiras de moleque.

Há que se ressaltar também que o autor deixa subjacente a ideia de que nós,

seres humanos, desde a infância, já tomamos conhecimento de atitudes ilícitas, e

muitas vezes podemos ser atraídos por elas. Pilar sentiu teve uma sensação

esquisita quando lhe fora oferecida a moeda, no entanto, o instinto de possuir a

moeda foi mais forte. Será que já nascemos predispostos às atitudes ilícitas?

Segundo Freud (1930), o homem é constituído de duas naturezas distintas dirigidas

por “Eros” e “Tânatos”, que, segundo a mitologia grega, são duas figuras que se

opõem, o deus grego do amor e a personificação da morte. O homem é movido por

estas duas pulsões: Eros, a pulsão da vida, e Tânatos, a pulsão da morte. Portanto,

será o meio em que vive o homem que fará com que no homem se sobressaia uma

ou outra natureza.

No caso de Pilar, quando afirma: “Ele enterrou-me pela consciência dentro um

par de olhos pontudos”, utilizando-se do termo consciência, demonstra que tinha

formação ética e moral internalizada, no entanto, agiu movido pela pulsão, que não

se encontra na consciência, e sim, em um reservatório de pulsões, ao qual Freud

(1930) denominou “id”, que também se manifestou quando não mente para a mãe

(mas não conta exatamente a verdade), evitando assim mais castigos e

xingamentos: “Em casa não contei nada, é claro; mas para explicar as mãos

inchadas, menti a minha mãe, disse-lhe que não tinha sabido a lição.”

É interessante discutir com os alunos que os castigos aplicados naquela

época, meados do século XIX, tais como, a “vara de marmeleiro” e a “palmatória”, e

aprovados pela sociedade daquele século, são muito dolorosos e não são mais

tolerados. Atualmente, existem leis que protegem a criança e o adolescente de

qualquer situação de abandono ou de violência, como, por exemplo, o ECA

(Estatuto da Criança e do Adolescente), instituído pela Lei 8.069, no dia 13 de julho

de 1990.

Durante séculos, a “palmatória” era instrumento permitido dentro das escolas

para castigar os alunos indisciplinados, com golpes em suas mãos. No entanto,

hoje é considerado crime em muitos países, inclusive no Brasil. Os castigos físicos

não são mais permitidos nas escolas ou dentro das famílias. Países do primeiro

mundo, hoje, autorizam pais e professores a usarem os antigos instrumentos de

castigo. Recentemente, em 2004, o parlamento inglês voltou a discutir a

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necessidade de aplicar castigos físicos como medida educacional legítima. (LIMA,

2004). Propor um diálogo entre os alunos para que opinem a favor ou não a

respeito desses meios coercitivos pode ser um meio de proporcioná-los uma

atividade de interação de modo que eles possam argumentar diante dessa

situação, imaginando-se como partícipes daquela realidade.

4.4 Leitura do conto: “Com certeza tenho amor” (COLASANTI, 2005)

O conto faz parte do livro “23 histórias de um viajante”, de Marina Colasanti

(2005). A leitura do conto de Marina Colasanti, “Com certeza tenho amor”, remete-

nos ao mundo dos príncipes e princesas, ao mundo dos contos de fadas, sendo

assim, também nos faz reavivar a memória, retomando narrativas imortalizadas

pela tradição oral. A sensibilidade da linguagem literária da autora nos transporta a

um mundo de castelos e de sonhos, fazendo-nos refletir sobre valores reais da

alma humana.

Primeiro procedimento: leitura rápida (leitura global ou pré-leitura).

ATIVIDADES PROPOSTAS

1- Entregar uma cópia do conto escolhido aos alunos, a fim de que seja feita uma

leitura rápida do título, ilustração (se houver), alguma palavra que se destaque para ativação do conhecimento prévio do aluno sobre o conto a ser lido;

2- Fazer perguntas aos alunos para que eles respondam oralmente:

• Que pistas o título ou as ilustrações nos dão sobre o assunto do conto que iremos ler?

• Se houver imagens: de acordo com as imagens, quem são as personagens? O que deve ter acontecido na história?

• De acordo com as imagens, que sensações esse texto poderá provocar nos leitores?

O título permite-nos inferir que a narrativa irá tratar de uma história de amor;

a hipótese levantada irá se confirmar no decorrer da narrativa. Pelo uso da primeira

pessoa no título, podemos inferir que existe uma personagem que descobriu o

sentimento de amor. Logo, também é possível prever que nessa narrativa haverá

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ao menos duas personagens e que uma delas acaba por afirmar a certeza no

amor.

Segundo procedimento: estabelecimento de objetivos para uma leitura

detalhada de certas partes do conto.

ATIVIDADES PROPOSTAS

1- Fornecer as perguntas antes da leitura e solicitar as respostas às perguntas por escrito:

O que aconteceu com as personagens?

Onde e quando acontecem as ações?

O que motivou o conflito?

O conflito se resolveu?

2- Pedir para que os alunos leiam o texto em silêncio.

Essa primeira leitura pode ser silenciosa, a fim de que os alunos desenvolvam a habilidade de concentração na leitura de um texto.

3- Em um segundo momento, o professor pode pedir para que os alunos leiam em voz

alta: cada aluno pode ler um parágrafo ou se houver personagens, pode haver um narrador e um leitor para cada personagem. (esse tipo de atividade pode favorecer a desinibição de alguns alunos que sentem vontade de ler, mas são tímidos).

Por fim, caso o professor acreditar seja necessário, fazer, ele próprio, a leitura para os alunos, a fim de que eles percebam a entonação e a expressividade, que porventura não tenham acontecido quando da leitura feita pelos alunos.

Retomar as perguntas respondidas pelos alunos, confirmando as respostas ou corrigindo-as. Deve-se dar abertura e tempo necessário para que os alunos possam se expressar a respeito dos personagens, do espaço, do tempo, do conflito.

O texto é narrado em terceira pessoa, por um narrador que conhece os

sentimentos e emoções das personagens, favorecendo a revelação da vida íntima

das personagens, deixando entrever seus sentimentos. Podemos confirmar a

existência de duas personagens que são tocadas pelo sentimento de amor: uma

moça e um jovem saltimbanco, protagonistas dessa narrativa. Há, também,

personagens secundárias: a ama, o pai da moça e os irmãos do jovem.

Podemos confirmar a existência de um sentimento de amor por meio das

atitudes das personagens descritas pelo narrador. O jovem valente é tomado por

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“uma fraqueza que não conhecia deslizou para dentro de seu peito”, “à noite

suspirava” como se estivesse doente. A moça ria e cantava – note-se o uso do

pretérito imperfeito, conferindo a ideia de ações que se repetiam por muitas vezes.

Ambos deixavam a comida de lado, uma vez que o amor lhes consumia os

pensamentos.

Mas o narrador deixa claro que se trata de um amor proibido. O texto não

menciona o nível social da moça, mas podemos prever que se tratava de alguma

filha de pessoa nobre, uma vez que tinha uma “ama”, uma criada, que a

acompanhava. O pai acreditava ter criado a filha com “tanto esmero”, ou seja, com

tanto cuidado e refinamento, que não admitia que a filha saísse para a feira, com

medo que ela se engraçasse por um “saltimbanco”: “Artista popular que se exibe,

geralmente, em circos e feiras, sobre estrado.” (FERREIRA, 2011, p. 792).

Quanto ao jovem, sabemos que é um saltimbanco, provindo de família

humilde. Entre os onze irmãos, “era o mais jovem era o mais forte era o mais

valente”, dotado, pois, de características nobres, embora não ocupasse posição

social nobre.

Não nos é mencionado a época em que ocorreram os fatos da narrativa, mas

as personagens nos remete à um tempo bem distante de reis e rainhas, de príncipes

e princesas, de castelos e de heróis salvando donzelas: a moça, acompanhada

sempre por uma ama, usava um véu, cobrindo metade do rosto, e o rapaz usava

“calçados de feltro”.

O espaço também é muito restrito: as ações acontecem em uma rua próxima

à feira e sabemos que a moça mora em uma casa, pois o pai “trancou-a no quarto

mais alto de sua alta casa”, portanto não seria uma princesa que morasse em um

castelo, mas sim filha de um nobre e este almejava para ela um bom casamento.

A moça era “tão resguardada” por seus pais. O primeiro período do texto traz

pistas para entendermos a razão do início do conflito: a moça “não deveria ter ido à

feira”. O uso do futuro do pretérito anuncia uma ação que não poderia ter

acontecido, mas a locução verbal “ter ido” indica que a ação já se consumou: ela

não foi à feira, mas convenceu a ama a tomar outro caminho para a igreja, passando

por uma rua “tão perto da feira que seus sons a percorriam como água e as cores

todas da feira pareciam espelhar-se nas paredes claras”.

Ir à feira seria considerado um perigo para a filha, na opinião de seus pais,

que queriam protegê-la de algo que previam que poderia acontecer: a moça deixar-

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se encantar por alguém de um nível social menos privilegiado, encantar-se por

alguém em uma “feira”: “um lugar público, onde se expõem e vendem mercadorias”

(FERREIRA, 2011, p. 426).

O clímax da narrativa acontece quando o pai da moça resolve trancá-la no

quarto mais alto da casa, pois as atitudes da moça dentro de casa denunciaram que

ela havia se encontrado com alguém, por quem havia se apaixonado.

De nada adiantou o pai trancar a filha. A adversativa “mas” indica que a

contrariedade da filha em relação ao pai levará ao desfecho: “Mas era com o

saltimbanco que ela queria se casar”. Ao mesmo tempo a adversativa prenuncia um

desfecho que será contrário à atitude do pai: “o saltimbanco, ajudado por seus dez

irmãos, começou a se preparar para chegar até ela”.

O desfecho, entretanto, fica em aberto para levantarmos hipóteses. Após

grande esforço, o saltimbanco consegue chegar até a “donzela”, mas o narrador não

nos convida a entrar e descobrir que rumo tomará esse encontro. Podemos levantar

hipóteses: haverá fuga do casal? O pai irá descobrir e matar o jovem? O pai irá

aceitar o relacionamento dos dois? Eles serão felizes para sempre? Fica como

sugestão ao professor, deixar que os alunos deem uma conclusão ao desfecho de

acordo com suas expectativas.

Terceiro procedimento de leitura: estabelecimento de objetivos para uma

leitura detalhada de certas partes do conto.

ATIVIDADES PROPOSTAS

1- Fornecer as perguntas e solicitar respostas por escrito.

• Qual é o tema (ideia) central da narrativa?

• Como, ou em que parte do texto, vocês identificaram o tema da narrativa?

• Que elementos do conto favorecem ou provocam o conflito na narrativa?

• Trata-se de um conto de suspense, de humor, de terror, de fadas, de exemplo,

religioso? (conforme os alunos forem levantando outras classificações).

• Que palavras ou expressões do texto ajudam a criar o ambiente da narrativa que

favorece a identificação da espécie do conto narrado?

• No texto, o que significam as palavras “ama” e “saltimbanco”?

2- Corrigir oralmente com os alunos.

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Quem conhece Marina Colasanti sabe de sua predileção por histórias de

fadas e princesas. Embora aparentemente seja um mundo tão distante de nós, em

pleno século XXI, após a leitura do texto, podemos concluir que se trata de um tema

capaz de tocar a todo ser humano, de qualquer lugar ou época. Os contos de fadas

nos seduzem pela fantasia, pelo sentimento de nostalgia, de necessidade de

completude. Os contos de fadas dialogam com nossa realidade sonhada ou

concreta, por isso é tão fundamental para o encontro do “eu” consigo mesmo,

fazendo-o refletir a respeito de suas atitudes, formando identidades.

O conto “Com certeza tenho amor” pode ser classificado também como um

conto de amor, pois temos que o tema central da narrativa é o amor proibido entre

uma jovem donzela e um jovem saltimbanco. O jovem enfrenta obstáculos para

encontrar sua amada, como qualquer jovem valente e apaixonado o faria nos dias

atuais.

Por outro lado, o conto de Colasanti permite a intertextualidade com o conto

“Rapunzel”, conto de fadas alemão, dos Irmãos Grimm. Nesse conto, a princesa

também fica presa em uma torre por uma bruxa malvada e é salva por um príncipe,

que luta contra a bruxa vilã, sendo castigado com a cegueira. No final, recupera a

visão pelas lágrimas da amada e são felizes para sempre. O fato de o protagonista

do conto “Com certeza tenho amor” escalar uma torre alta, necessitando da ajuda

dos outros irmãos, nos remete ao conto de fadas, em que se destacam a valentia e o

ato heroico do protagonista, que em uma atitude de muita força de vontade, uma vez

que a torre composta de irmãos (algo mágico) não dá conta de alcançar a janela, ele

a alcança por seu próprio esforço.

Há, ainda, outras referências na narrativa que nos remetem a esse tipo de

conto, como a menção à figura da “ama”; ao pai que se preocupa em resguardar a

filha e a tranca no quarto mais alto da casa; além do fato de os personagens não

serem nomeados, apontando para uma situação universal, em que não se necessita

que sejam nomeados personagens e espaços.

O termo “rubor” não é muito comum de encontrarmos em nossos diálogos

cotidianos. Podemos levantar hipóteses com os alunos: o termo “rubor” foi utilizado

pelo narrador, revelando que algo estranho lhe acontecia. O que poderia ser esse

“rubor”, sendo que é precedido da questão: “- Que tens?”? Antes de responder,

abaixou “a cabeça sobre o seu rubor”, ou seja, tinha vergonha de seus sentimentos,

dos quais já tinha certeza: “creio... que tenho amor”. O verbo “crer” remete-nos a sua

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certeza, pois ele não disse “acho”, ou “penso”, ele já tinha a certeza. Para o

protagonista, ter certeza do amor seria razão de vergonha, visto que o

relacionamento seria provavelmente reprovado pela sociedade.

Também a moça revela seus sentimentos à ama, quando esta lhe pergunta o

que tinha. Ela responde que com certeza tem amor.

Após a revelação das personagens, contrariando os sentimentos das

personagens, o narrador utiliza da adversativa, mencionando o fato de tais

revelações não terem alegrado nem aos irmãos e nem a ama. No entanto, também

não disse que tal revelação entristeceu, deixando ao leitor a tarefa de entender

como tristeza ou não.

Logo após, o narrador lança, como que estabelecendo um diálogo com o

leitor, uma pergunta: “Pois como alegrar-se com um amor que não podia ser?”.

Agora o narrador não mais utiliza o verbo no futuro do pretérito, como utilizara no

primeiro período do texto: “poderia”; ele utiliza “podia”, o verbo no pretérito

imperfeito, portanto conferindo ao texto a ideia de prolongamento de uma ação que

se mantém, mesmo após o acontecido.

Há ainda muito que se discutir com relação à riqueza da linguagem literária

que encontramos nesse conto, a começar pela comparação, que colabora para

construção de uma imagem composta pelo encantamento, como no trecho: “[...] e a

rua que tomaram passava tão perto da feira que seus sons a percorriam como a

água e as cores todas da feira pareciam espelhar-se nas paredes claras.”. A

comparação aqui confere ao texto toda a singularidade que a rua havia ganhado em

função de ser a rua na qual os olhares dos protagonistas se encontraram pela

primeira vez. Percebemos também nesse trecho a musicalidade proporcionada pela

aliteração: repetição do som consonantal da sibilante /s/.

Outra comparação também a se destacar é com relação ao estado emocional

em que ficou o saltimbanco depois do primeiro encontro com a moça: “[...] À noite

suspirava como se doente.” Remetendo-nos à ideia de que o amor pode doer como

uma doença.

Há que se destacar também as repetições como em: “Sabia apenas que a

moça velada aparecia em seus sonhos, e que parecia sonhar mesmo acordado

porque mesmo acordado a tinha diante dos olhos.” Percebemos a musicalidade

deste trecho, como em um poema, novamente podemos perceber a aliteração pela

repetição das sibilantes, conferindo também a possível confusão de sentimentos

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pela qual ainda passava o saltimbanco, uma vez que ainda não havia confirmado

sua certeza diante de seu sentimento, havia uma perturbação do estado de espírito

diante de um sentimento estranho que se desperta pela primeira vez.

Temos a repetição de expressões novamente em: “Mas ele a procurou em

todas as outras ruas da cidade até vê-la passar, esperou diante da igreja até vê-la

entrar, acompanhou-a ao longe até vê-la chegar em casa.” Nesse trecho ocorre a

repetição da mesma ordem sintática, com destaque para a anáfora por meio da

expressão: “[...] até vê-la [...]”, conferindo o sentido de que houve uma insistência por

parte do rapaz em ver a moça novamente e vê-la muitas vezes era muito importante.

Por fim, podemos entrever a sensibilidade da linguagem poética da autora por

meio da personificação presente no trecho: “Seus pés calçados de feltro calavam-se

sobre as pedras.”, fazendo referência ao calçado feito de uma espécie de lã ou de

pelo e que não fazia barulho.

Quarto procedimento: Posicionamento crítico do leitor.

ATIVIDADES PROPOSTAS

1- Fornecer as perguntas e solicitar as respostas por escrito:

Você gostou da história? Por quê?

O desfecho da narrativa correspondeu ao que você esperava? Você daria um desfecho diferente?

Esse tipo de história pode acontecer em nossa realidade? (deixar os alunos comentarem fatos reais que pode haver acontecido nos últimos tempos e que remetem ao tema da narrativa).

A leitura do conto despertou em você algum sentimento? Por quê? Em que momento?

2- Estimular os alunos a colocarem sua opinião oralmente a respeito de

determinados momentos do conto, colocarem seu ponto de vista; dar oportunidade para que, mesmo os alunos mais tímidos, emitam sua opinião, seus sentimentos.

3- Discutir as respostas oralmente, pedindo para que os próprios alunos as comparem, concluindo se existe alguma colocação que se possa elegê-la melhor.

O narrador deixou o desfecho inacabado uma vez que o leitor desconhece o

que aconteceu após a janela ter sido aberta pela protagonista. Cabe a nós, leitores,

formularmos hipóteses do que teria acontecido. O final surpreende não pelo fato de

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o saltimbanco haver alcançado a janela, mas porque não segue a tradicional

assertiva máxima dos contos de fadas: “E viveram felizes para sempre...”, este é o

final esperado para as histórias que contém atos heroicos em razão de um amor por

uma donzela. Portanto, muitos dos leitores poderiam criticar a atitude da autora e

sentir-se seduzidos a darem um desfecho mais concreto, sem que a felicidade do

casal ficasse à mercê de hipóteses.

Por outro lado, podemos entender o desfecho como mágico, permitindo-nos à

reflexão, favorecendo o dialogismo entre o imaginário e o real. Aquele final em que,

após tempos do término da leitura, ainda estamos a fantasiar e a criar, e a fantasia é

essencial ao bom desenvolvimento humano, para compreendermos melhor nossas

crenças e identidades.

Lembrando as colocações de Candido (2004): a literatura tem a capacidade de

humanizar os homens – no sentido de que ela é capaz de organizar nossas

emoções, propiciando uma vida mais humana e, portanto, uma melhor qualidade de

vida a todos os seres humanos, sem distinção – a literatura é também (quando

utilizada na escola, desvinculada de funções pedagógicas pré-determinadas pelos

livros didáticos) a possibilidade de uma vida melhor aos alunos, a possibilidade de

encontro com o mundo da fantasia, do sonho, do desejo, tão necessário para

construção da identidade de um homem “inteiro”, livre das amarras sociais,

autônomo para a construção de sua própria realidade, autônomo para agir no mundo

real, de maneira consciente e responsável, capaz de se conhecer e de se entender

enquanto sujeito social e histórico.

Esse texto de Colasanti (2005), portanto, é capaz de despertar nos

questionamentos acerca dos preconceitos que ainda hoje existem em nossa

sociedade em relação à diferença social, à diferença cultural e à diferença racial.

Faz-nos refletir: até que ponto nós mesmos somos preconceituosos com relação à

diferença? O que podemos fazer para mudar essa situação? Muitas pessoas,

atualmente, casam-se pelo “status”, fazem, na verdade, um contrato, preocupados

com a mera aparência social.

Se pudéssemos mudar a história, certamente tentaríamos convencer os pais

da moça de que não deveria haver a proibição, visto se tratar de um amor

verdadeiro. Sabemos ser verdadeiro porque houve um grande esforço por parte do

protagonista em atingir o alto da torre, o fato não se deu por uma simples mágica.

Podemos discutir com os alunos a respeito da metáfora da torre, que simboliza todos

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os obstáculos que existem entre um casal que se ama e a oposição da família e da

sociedade.

A moça, ao abrir a janela, contraria a oposição imposta pelo pai, atitude que

pode levar-nos a refletir se essa seria uma atitude virtuosa ou não. Afinal, ela não

teria outra chance de ficar com seu amado a não ser esta, pois podemos inferir pela

ação do pai no conto que não havia possibilidade de diálogo entre eles, muito menos

com a mãe, personagem que, por não possuir voz alguma, sequer aparece no conto.

Interessante discutir nesse momento com os alunos a respeito da importância do

diálogo com os pais, com as outras gerações.

Reiteramos aqui a necessidade e o direito à literatura defendidos por Candido

(2004). Um texto literário pode ser um veículo de discussões entre o universo

pessoal e social de nossos alunos com os temas inerentes à sociedade. As

possibilidades de trabalho com a literatura são capazes de formar, promovendo o

crescimento de um ser humano competente para agir em um ambiente social.

Produzimos, ainda, mais duas análises de dois contos a seguir, porém não

faremos a repetição dos procedimentos de leitura, evitando que o texto dessa

pesquisa não se torne prolixo.

4.5 Leitura do conto “Restos do carnaval” (LISPECTOR, 1971)

O conto “Restos do Carnaval” foi publicado no livro “Felicidade clandestina”

de Clarice Lispector em 1971. Não obstante, tenha sido publicado em tão remota

data, esse é um dos muitos contos da autora que se destacam até os nossos dias

por suas temáticas de caráter universal, marcadas pela introspecção. Como em

grande parte dos textos dessa autora, sua narrativa não obedece ao tempo

cronológico, pois é envolvida pelas lembranças de um passado vivido pela

personagem, privilegiando o tempo psicológico. Quem conhece um pouco da história

de vida de Clarice Lispector sabe que muitos de seus contos, especialmente os que

fazem parte da obra “Felicidade Clandestina”, dialogam com sua própria história de

vida.

Por meio do primeiro procedimento de leitura, o da leitura rápida, podemos

fazer algumas inferências a partir do título. Ele nos dá pistas de que o assunto

principal do texto será a festa do carnaval. No entanto, o termo “restos” nos remete a

algo melancólico contrastando ao termo carnaval, que lembra a alegria. Conhecendo

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as características da escritora, que privilegia em suas obras o psicológico, inferimos

que o conto nos trará lembranças saudosistas de um remoto carnaval.

Quando da primeira leitura e a partir do segundo procedimento da sequência

didática, podemos compreender quem são as personagens, o que aconteceram a

elas, onde e quando aconteceram as ações, o que motivara o conflito e se ele se

resolveu.

O texto é narrado em primeira pessoa, sendo que a narradora é a

personagem protagonista do conto, relatando lembranças e sensações relacionadas

àquelas. A narradora-personagem relembra um dos carnavais de sua infância e,

junto à sua lembrança, também traz a figura da mãe e faz menção às irmãs, à mãe

de uma amiga, à amiga e a um garoto “de uns 12 anos”.

As lembranças se referem a um carnaval que se passava nas “ruas e praças

do Recife”. A narradora-protagonista inicia a narrativa tecendo lembranças da

emoção inexplicável que a tomava quando a data da festa ia se aproximando.

Considerava o carnaval dela: “Carnaval era meu, meu.” Entretanto, a própria

narradora nos alerta para o caráter imaginário dessa posse, marcando com a

adversativa: “No entanto, na realidade, eu dele pouco participava.” Essa afirmação

nos remete para o fato de que a festa do carnaval para a narradora era de muita

alegria, mas, ao mesmo tempo, suas lembranças eram tristes.

Pelas pistas que nos dá o texto, podemos caracterizar a personagem como

uma criança triste, “aprendera a pedir pouco”, vivia em função da doença da mãe (na

vida real, sabemos que a mãe de Clarice Lispector morreu quando ela tinha 11 anos

e sua família passava muitas dificuldades financeiras). Ela tinha o sonho de ser

moça, escapar da “meninice”. A mãe, talvez em virtude da doença, nunca lhe dera

uma fantasia para o carnaval, bem como talvez nunca lhe contara histórias sobre

fadas ou príncipes encantados. A narradora não se refere à mãe, em momento

algum, como alguém que lhe havia inspirado a fantasia. Podemos inferir isso, pois a

narradora diz que ela mesma lia as narrativas encantadas: “[...] como nas histórias

que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas [...]”. Além

disso, a mãe sequer poderia lhe confeccionar uma fantasia para o carnaval, pois era

doente.

Quanto às irmãs, também viviam em função da doença da mãe, mas

tentavam agradar a menina.

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A mãe da amiga foi uma personagem importante na vida da narradora-

protagonista, que talvez atendendo ao seu “apelo mudo”, ao seu “mudo desespero

de inveja”, ou “talvez por pura bondade”, construiu-lhe uma fantasia rosa com o

papel que sobrara da fantasia de sua filha, amiga da protagonista.

Observamos que as personagens não receberam nomes no texto, podemos

contemplá-las como a imagem de qualquer ser comum ao nosso real.

Até o quarto parágrafo existe uma intensa recordação da festa do carnaval

que em todos os anos eram iguais para a menina: “Nunca tinha ido a um baile

infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas

11 horas da noite à porta do pé da escada [...] olhando ávida os outros se

divertirem.” Por essas palavras da narradora-protagonista, inferimos que essa

menina sentia muita vontade de participar efetivamente do carnaval, mas era

impedida. Muito pouco que ela alcançava do carnaval já a fazia feliz. Essas

recordações são tão tristes, que ao começar a escrevê-las suspira: “Ah, está se

tornando difícil escrever.”

Os fatos relembrados na narrativa acontecem na cidade do Recife e temos a

prevalência do tempo psicológico, em que a personagem se vê envolvida nas

sensações do passado. Temos poucos momentos de referência ao tempo

cronológico na narrativa, podemos destacar, entre esses, as ações que ocorreram

quando dos preparativos para a primeira vez em que a menina iria vestir uma

fantasia para o carnaval: “[...] Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade.”.

A partir do quinto parágrafo, a narradora introduz uma adversativa, indicando

que haverá um acontecimento que mudará a situação de frustração anteriormente

descrita de outros carnavais. A este carnaval especial ela se refere milagroso: “Mas

houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia

acreditar que tanto me fosse dado [...].”

A partir dessa afirmação entendemos a importância desse carnaval relatado

no conto, que se destacou entre os demais. Começa, então, a descrever todas as

sensações advindas da expectativa de finalmente participar de um carnaval com

uma fantasia feita pela mãe da amiga. Era mais que isso, a possibilidade de ser

outra, de sair do mundo de tristezas vividas em sua casa: “[...] ia ser outra que não

eu mesma.”. O fato de ter conseguido a fantasia por causa das sobras da amiga,

aceitou com humildade, pois nada mais lhe importava: “[...] engoli com alguma dor

meu orgulho que sempre fora feroz, [...]”.

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A grande expectativa, entretanto, é quebrada por uma situação inesperada.

Novamente a autora se utiliza da adversativa para marcar outro momento importante

na narrativa: o momento em que seu sonho de usar a fantasia se vê ameaçado pelo

agravamento da enfermidade da mãe. Assim, no oitavo parágrafo, a narradora

adjetiva este carnaval como “melancólico”: “Mas por que exatamente aquele

carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico?”. Tem início o conflito na

narrativa.

O fato do agravamento da situação da mãe fora por demais doloroso à

menina sonhadora: “Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já

perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora[...]”. Com a piora do

estado de saúde da mãe, foi-lhe dada a ordem de ir à farmácia comprar um remédio.

Ela já estava vestida de rosa para o carnaval, mas o rosto “ainda nu não tinha a

máscara de moça” que cobriria sua “tão exposta vida infantil”. Ela enfatiza: “fui

correndo, correndo”. O carnaval deixara, por alguns instantes de ser sinônimo de

felicidade; a alegria dos outros por quem ela passava a espantava. Observamos que

a narradora-protagonista em nenhum momento cita algum sentimento de dor em

relação à situação da mãe. O que mais lhe dói é perder a alegria do carnaval, por

tantas vezes lhe arrebatada.

Depois que a situação tinha se acalmado, a irmã a penteou e a pintou. Mas já

era tarde, ela se sentia “desencantada”, sentia como se algo havia morrido em seu

espírito. Às vezes começava a ficar alegre novamente, mas a narradora revela sentir

remorso em, mesmo com o advento da piora da mãe, continuar com a “fome de

sentir êxtase”, ao lembrar a mãe.

Ao chegarmos ao final do conto, vemos que não há propriamente uma

resolução do conflito, há um abrandamento da tristeza que chega com a “salvação”:

um menino, de uns 12 anos, que parou a sua frente e lhe cobriu os cabelos de

confete, ficando por um instante a defrontá-la. Para ela, esse menino significava um

rapaz que finalmente a considerava “a moça” que ela tanto desejara ser. Tal qual

nas histórias de contos de fadas, o menino aparece na narrativa para “salvar” a

protagonista, como um príncipe encantado salvando sua princesa.

Com o término desse segundo procedimento de leitura, passaremos a uma

leitura mais detalhada, discutindo os tópicos relacionados no terceiro procedimento.

O primeiro deles diz respeito ao tema da narrativa. Podemos entender que o

tema é o contraste da festa do carnaval com a tristeza da menina em não poder

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participar da comemoração da maneira desejada. A festa do carnaval seria a chance

de a menina sair de seu mundo de privações da infância, tornar-se moça poderia

salvar-lhe dessas privações. Tal qual imaginam ou imaginaram muitas das jovens

que pensam que ao saírem de casa para um casamento, como em um conto de

fadas, salvas por um príncipe, elas serão felizes para sempre. Portanto, concluímos

que o tema central é a superação da infância.

O tema vai se delimitando a partir das descrições que a narradora-

protagonista faz das emoções que a festa do carnaval lhe proporcionava,

enriquecidas pelas comparações:

Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se as vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim.

A narradora faz referência à rosa escarlate logo no primeiro parágrafo do

conto, apresentando-a como resultante da abertura de um botão. Temos o marcador

textual “enfim”, ou seja, significando algo muito desejado. Esse fato nos remete ao

desejo da menina em se tornar moça na tentativa de se livrar da vida angustiada que

sofria em sua infância. A metáfora do botão que se abre para uma rosa vermelha

remete ao início de uma nova etapa na sexualidade da menina, sedenta para o

desabrochar de uma nova vida. A rosa vermelha ainda nos remete ao sangue e à

carne, tal qual a festa do carnaval, que significa a “festa da carne”.

No segundo parágrafo, ela apresenta quão dura era sua realidade de infância:

do carnaval pouco participava. Intensifica essa afirmação por meio do advérbio de

negação “nunca”, que confere ainda mais força ao fato de ainda não ter ido a um

baile, bem como a ninguém tê-la fantasiado.

Devido a tantos aspectos introspectivos, podemos classificar esse conto como

um conto psicológico, no qual o foco está no interior da personagem. Mais

importantes que os acontecimentos, são as reflexões acerca das consequências

daqueles para os sentimentos da personagem.

A expressão negativa “nunca” e as adversativas “mas” repetidas por diversas

vezes reforçam a ideia do tema do contraste entre a felicidade do carnaval e a

angústia da sofrida infância vivida pela personagem.

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No final do texto, ela reforça a ideia da importância de fantasiar-se para o

carnaval, no figurino “rosa”. Novamente temos a menção ao termo “rosa”, que pode

ter diversas conotações. De acordo com o contexto do conto, a cor “rosa” nos

remete à pureza ou à inocência e à feminilidade, contrastando ao escarlate que tem

conotação de ordem carnal, sensual. Quanto à flor rosa, também é interessante

lembrarmos que é do senso comum que ela é oferecida a quem se ama, é a flor do

amor.

Podemos inferir também que a rosa represente a inocência que fora roubada

da menina de maneira precoce. Ela afirma:

[...] se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.

É interessante observar junto aos alunos que a narradora deixa clara a

importância do elemento fantasia para o desenvolvimento das crianças. No entanto,

logo mais ela afirma também: “Não me fantasiavam: no meio das preocupações com

minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança.”. Ela

conhecia as fantasias das crianças, mas delas era privada.

Quanto à referência à palavra máscara, remete-nos ao mistério e também ao

contraste entre real e fantasia. Quando utilizada, permite ao homem se esconder por

trás de um real, reinventando-se, tornando-se apto a enfrentar qualquer situação

adversa.

O conto termina com a frase: “E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei

pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.”.

Contrastando a figura de uma mulher com a criança de 8 anos, a narradora se

qualifica como “mulherzinha”: acredita que o menino mais velho que ela a havia

reconhecido como figura feminina. Até então, não obstante usasse a fantasia e os

lábios pintados, ela “não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios

encarnados”, pois estava frustrada.

Feitas essas análises, podemos expor nossa opinião e ouvir o que os alunos

têm a dizer acerca do conto lido. Passamos dessa forma aos procedimentos que

privilegiam o posicionamento crítico do leitor.

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A narrativa é capaz de despertar o sentimento de piedade com relação à

menina que sofria as privações em sua vida da infância, em virtude da vida de

menina ser sacrificada em favor da doença da mãe.

Ela afirma, no final do conto, que após “a atmosfera em casa” ter-se

acalmado, “alguma coisa tinha morrido” nela. Nesse sentido, ela compara esse fato

com as histórias de fadas que ela já havia lido “que encantavam e desencantavam

pessoas”, ela “fora desencantada”, saíra do mundo da fantasia que a transportava a

um jogo real/imaginário essencial à espécie humana. Essa importância ao elemento

fantasia dada pela autora nos remete às ideias de Huizinga, que entende o jogo

como elemento essencial à vida humana, desde a mais tenra idade. A capacidade

de criar e de representar é inata ao ser humano, daí decorrer o fato de que todas as

formas de jogo carregarem em si o belo e o sagrado, o lúdico e a seriedade.

(HUIZINGA, 1971, p. 3-31)

A narradora-protagonista acostumara-se com pouco durante toda a sua vida

de criança, seja em virtude das dificuldades financeiras (“Duas coisas preciosas eu

ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias [...]”), seja

em virtude da doença da mãe. Ela afirma se sentir triste, “de coração escuro”, ao

constatar: “mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta

que um quase nada já me tornava uma menina feliz.”.

Podemos inferir que a menina do conto era carente de tudo um pouco: do

amor de mãe, de bens materiais e das fantasias de criança, o que a faziam querer a

“salvação”, o que significaria para ela a libertação de um estado, ou de uma situação

indesejável: a busca de sua identidade enquanto pessoa.

Concluímos que os fatos narrados são passíveis de serem vivenciados por

muitos seres humanos reais, pois refletem a busca da felicidade em meio às

situações adversas. Não podemos esquecer que há muitas crianças que trabalham

para ajudar no sustento da família, seja no trabalho escravo, na prostituição ou nas

ruas pedindo esmolas, permanecendo a fase da infância privadas das condições

mínimas de dignidade.

4.6 Leitura do conto “O arquivo” (GIUDICE, 1972)

“O arquivo” foi publicado pela primeira vez na obra “Necrológio”, em 1972,

que foi o primeiro volume de contos do autor. O conto “O arquivo” denuncia uma

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situação muito comum em nossa sociedade: as leis de mercado e a consequente

coisificação do ser humano. Esse conto de Victor Giudice foi um dos contos

brasileiros mais publicados no exterior. Foi publicado originalmente no livro “O

necrológio”, em 1972.

A partir do título tão somente, no caso de não haver imagem alguma, pouco

podemos inferir a respeito do assunto a ser tratado no texto. Notamos, porém, que o

substantivo “arquivo” é precedido do artigo definido “o”; logo, não se trata de um

arquivo qualquer, ele está singularizado.

Ainda como procedimento inicial de leitura, podemos inferir que o enredo do

conto se passa provavelmente em um escritório, onde normalmente encontramos

arquivos. É possível discutir com os alunos também qual é a finalidade de um

arquivo, ou seja, para que ele serve; de que material ele é feito.

O título não nos dá muitas pistas de quem serão as personagens desse

conto, mas podemos levantar hipóteses de que, por haver no título a referência ao

“arquivo”, se trata de um objeto encontrado comumente em escritórios ou junto a

secretarias, imaginamos que no conto haverá também pessoas que normalmente

frequentam esses locais, como empregados, clientes ou patrões.

Confirmaremos, após a primeira leitura, que existe como personagem

principal do conto um empregado de nome João.

O conto é narrado em terceira pessoa e tem início delimitando o início do

tempo na narrativa: “No fim de um ano de trabalho.” Já sabemos, portanto, que se

trata realmente de um conto relacionado ao trabalho, confirmando a hipótese

anteriormente aventada.

Logo no primeiro parágrafo temos também a referência à personagem

protagonista: “João”. O dado que nos causa estranheza é o fato de que, após um

ano de trabalho, “João obteve uma redução de quinze por cento de seus

vencimentos.” O comum é, após um ano de trabalho, o empregado obter aumento

de salário e não redução. Esse fato nos faz levantar a hipótese de que os

acontecimentos que se sucederão na narrativa não serão felizes para a

personagem.

No início do segundo parágrafo, o nome da personagem aparece com a inicial

minúscula e isso se repete no restante do texto, contrariando as normas ortográficas

que exigem o uso da inicial maiúscula para substantivos próprios. Então,

questionamos: o nome de João deixou de ser substantivo próprio para se tornar

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substantivo comum? A partir da leitura do conto, podemos verificar que esse foi um

meio simbólico de direcionar ao desfecho metafórico e fantástico da narrativa: a

personagem se transformar em um objeto, em um arquivo.

Podemos inferir que as ações se passam em uma cidade grande, pois o

narrador nos dá pistas: “[...] mudou-se para um quarto mais distante do centro da

cidade. [...] Passou a tomar duas conduções para chegar ao trabalho.” Mas a

narrativa ocorre, principalmente, no escritório em que o protagonista trabalha, lá

acontecem as ações que acarretam mudanças na vida da personagem.

Ao final do conto descobrimos que os fatos aconteceram durante um período

de 40 anos de vida da personagem. Não houve um conflito, mas vários conflitos que

se sucedem na vida de “joão”, iniciam-se quando tinha apenas um ano de trabalho,

e podemos concluir, ao final da leitura, que não há uma resolução deles aceitável

como fato real, mas um fato pertencente ao mundo fantástico ou ao mundo do

absurdo: um ser humano se transformar em um arquivo, havendo, assim, a morte

enquanto pessoa.

Após essas breves análises iniciais do conto, aprofundamo-nos em uma

leitura detalhada, a partir da qual compreendemos que o tema central da narrativa é

a desintegração do ser humano em razão das necessidades exacerbadas do

mercado.

Situando a publicação do texto de Victor Giudice (1934-1997) em seu

contexto de produção, relembramos que o ano de 1972 está situado no período do

Governo Médici (1969 a 1974), que teve como objetivo central manter o índice de

crescimento econômico e estabilizar a taxa da inflação em torno de 20% ao ano.

(DOMINGUES; FIUSA, 2000, p. 358-362). Esse período da História do Brasil

também foi conhecido como o período do “Milagre Econômico”, uma vez que houve

um crescimento econômico acelerado, ocasionando uma acentuada concentração

de renda nas classes alta e média.

Para as camadas de menor poder aquisitivo houve aumento da oferta de emprego. [...] Além disso, muitas empresas elevaram ao máximo a intensidade de trabalho, generalizando-se o trabalho em horas extraordinárias. [...] Por conseguinte, nas classes populares cresceu o número de acidentes de trabalho, que, em 1974, já era um dos mais altos do mundo. Agravou-se a desnutrição das camadas mais pobres da população urbana [...]. Esses dados demonstram que houve realmente queda do padrão de vida dessas classes. (DOMINGUES; FIUSA, 2000, p. 360).

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135

Interessante notar com os alunos esse diálogo existente entre a História e os

fatos presentes na narrativa. Podemos relacionar, portanto, o tema do conto a esse

crescimento econômico desordenado e voraz pelo qual passava nosso país, do qual

muitos dos brasileiros, especialmente os da classe menos favorecida, sofreram

diretamente as consequências.

Destacamos, a partir dessas ideias expostas, o dialogismo inerente a todo

discurso, segundo afirma Bakhtin (2000, p. 313):

Pode-se colocar que a palavra existe para o locutor sob três aspectos: como palavra neutra da língua e que não pertence a ninguém; como palavra do outro pertencente aos outros e que preenche o eco dos enunciados alheios; e, finalmente, como palavra minha, pois, na medida em que uso essa palavra numa determinada situação, com uma intenção discursiva, ela já se impregnou de minha expressividade. Sob estes dois últimos aspectos, a palavra é expressiva, mas esta expressividade, repetimos, não pertence à própria palavra: nasce no ponto de contato entre a palavra e a realidade efetiva, nas circunstâncias de uma situação real, que se atualiza através do enunciado individual.

Quando lemos o conto, também estamos dialogando com a palavra, com a

ideologia de uma época, com o outro, com nossas próprias convicções, a todo o

momento. Por isso, o caráter dialógico da língua, que produz ecos.

As palavras do narrador, logo no início do texto, evidenciam que os fatos não

eram os melhores para o protagonista: “uma redução de quinze por cento em seus

vencimentos.” No entanto, resignado, mesmo tendo se esforçado durante o tempo

de trabalho, um ano de seu primeiro emprego, sem ter “uma só falta ou atraso”,

agradeceu a seu chefe, limitando-se a sorrir. Todo o texto é composto de ironias,

vale discutir com os alunos a respeito do conceito de ironia e qual o efeito de seu

uso.

Todas as “promoções” e “recompensas” conferidas à personagem são

negativas, portanto, irônicas. No dia seguinte, começam as sequências de

desventuras pelas quais a personagem irá passar após a primeira redução do

salário. A primeira delas foi mudar-se “para um quarto mais distante”, o salário havia

sido reduzido e não poderia pagar aluguel maior. Notemos que a palavra “quarto”

nos remete a apenas um cômodo – para que precisava de mais, se sairia do

emprego apenas para dormir – sendo a nova moradia mais longe do centro,

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chegaria mais tarde em casa e sairia mais cedo: “Passou a tomar duas conduções

para chegar ao trabalho.”

Nesse sentido, podemos entender a metáfora (ou a ironia) da redução dos

vencimentos relatada pelo narrador como sendo simbolicamente a redução do poder

aquisitivo da personagem. Podemos confirmar essa hipótese pelos dados históricos

que nos remetem a uma situação econômica real, que mostrava que as altas taxas

da inflação atingiram duramente as camadas sociais menos privilegiadas, em que os

salários eram mantidos abaixo do índice do custo de vida. (DOMINGUES; FIUSA,

2000, p. 358).

Assim, observamos que, em contraste com o desenvolvimento da empresa

em que trabalhava – “a empresa atravessava um período excelente” –, seus ganhos

eram cada vez mais insuficientes para se sustentar. Sua situação foi se agravando

cada vez mais: uma redução do salário maior ainda, de 17%; novamente a mudança

de moradia; três conduções para o local de trabalho; comia menos; sua pele tornou-

se menos rosada; ficou mais esbelto. Entretanto, ironicamente, o narrador reitera por

diversas vezes a maior disposição, os agradecimentos e o contentamento de “joão”,

reforçando a ideia de “satisfação” por parte da personagem. A personagem não se

dá conta do desgaste físico e mental que está lhe tomando o corpo e o espírito: não

tem família, não tem amigos, não tem vida social, come mal e dorme mal.

Podemos comparar essa situação vivenciada pela personagem com situações

reais em nossa sociedade, pois muitas pessoas não percebem que estão deixando

de viver em função do trabalho, estão se desgastando em nome de um capitalismo e

de um consumismo exacerbado presentes no mundo pós-moderno. Muitos acabam

perdendo a família, a dignidade ou até mesmo a vida, em função de uma vida de

trabalho desenfreada, coisificam-se.

O fato de a personagem se transformar em um arquivo, remete-nos a outra

obra literária que tematiza ironicamente a mesma questão: “o trabalho excessivo

desumanizador”. Podemos entender que o conto “O arquivo”, dialoga com o texto de

Franz Kafka, “A metamorfose”, publicado pela primeira vez em 1915. Nessa obra, o

protagonista acorda um dia acreditando ser uma barata, sua família pouco se

importa com ele, que valia apenas pelo seu trabalho, excessivo, pois era ele que

sustentava a família. Portanto, o desfecho é também da ordem do fantástico: a

personagem se transforma em uma barata. Podemos concluir que o conto “O

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arquivo” é um conto fantástico uma vez que trata de uma situação surreal, ou seja,

uma situação que transpassa a realidade pelo caráter absurdo.

Importante observarmos com os alunos que há uma gradação da gravidade

das situações pelas quais passa a personagem até chegar à situação absurda de se

tornar um arquivo (podemos aqui inferir que talvez arquivo também remeta à ideia

que conhecemos como “arquivo morto”, onde se colocam os documentos que não

irão mais ser utilizados com frequência).

No início do texto, “João” tinha um nome com a inicial maiúscula. Logo da

primeira vez que perde uma porcentagem de seu salário, já perde a dignidade de se

ter um nome próprio. No final do conto, quando já lhe fora retirado tudo com todos os

“prêmios”, e ele já nem tinha resposta para “agradecer”, resta-lhe pedir a

aposentadoria, mas ele não a recebe, transforma-se no arquivo antes do benefício.

Muitas pessoas foram reféns de um crescimento desenfreado do capitalismo

e, como “joão”, não tinham voz. O texto nos traz a impressão de que a única vez que

o protagonista coloca sua posição: “Agradeço tudo que fizeram em meu benefício.

Mas desejo requerer minha aposentadoria”, essa posição é marcada pela

adversativa “mas”, indicando contrariedade a todas as situações adversas sofridas

pela personagem. Entretanto, de nada valeu colocar seu desejo, não foi

compreendido, morreu antes de adquirir o verdadeiro benefício de todo o texto,

marcado pela ironia.

Antes de se tornar um arquivo, entretanto, o protagonista também passou por

uma animalização. Ou seja, antes se alimentava, ainda que fosse difícil a situação,

ele se alimentava. Quando da segunda redução do salário, “comia menos”, além de

se mudar para mais longe ainda, pois desta vez precisava esperar três conduções.

Quando da terceira redução, seguida do rebaixamento do posto com menos dias de

férias, o narrador faz referência ao local onde “joão” morava: o subúrbio. E ainda

assim, mudou-se mais uma vez e agora já não mais jantava; o almoço era um

sanduíche; já não precisava de muita roupa, não tinha mais lavadeira e pensão.

Porém, ainda ia de ônibus e de trem para o trabalho.

A consumação do estado de animalização acontece quando seu ordenado

passa a equivaler “a dois por cento do inicial” (o que equivale à perda salarial que é

uma situação muito comum em nossa realidade social). A partir dessa situação, seu

“organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das

estradas.” – Tal imagem nos remete à atitude de um animal, como por exemplo, um

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asno que se alimenta de raízes ou capim, à beira de uma estrada. – Agora ele era

transportado por um caminhão anônimo. Como um animal, ou até mesmo em pior

situação – pois até um animal irracional necessita de uma moradia – “não tinha mais

problemas de moradia ou vestimenta. Vivia nos campos, entre árvores refrescantes,

cobria-se com os farrapos de um lençol adquirido há muito tempo.”

A situação é dramática: ele sequer conseguia falar quando foi convocado pela

última vez, para receber a função de limpador de sanitários, sem direito a férias. E

quando, finalmente, o chefe lhe dá a chance de emitir sua opinião a respeito de ser

um “desassalariado” e tendo que, dentro de alguns meses, “pagar a taxa inicial para

permanecer” naquele quadro de profissionais, “joão” começa a tomar a forma de um

arquivo. “Tornou-se cinzento”.

A cor cinza pode ser associada à tristeza e a morte. Os dias nublados,

cinzentos, normalmente, são mais tristes, as pessoas tendem a ficar em suas casas.

Podemos inferir, que “joão” era todo tristeza, bem como foi a maior parte de sua

vida, vindo a tornar-se cinzento, por evasão, para separar-se de tudo e permanecer

à margem, morrer para todos os problemas, definitivamente.

Vemos na mídia diversos casos de pessoas que morrem no local de trabalho,

vítimas de acidente; há ainda muitas outras pessoas que não conseguem a “tão

sonhada” aposentadoria, morrem à espera desse benefício. Logo, a narrativa pode

despertar em nós o sentimento de tristeza e de piedade, pois ainda hoje, em nossa

sociedade, existem muitas vítimas da situação de desigualdade social, de

consumismo, de exploração de trabalho. Não obstante a existência de muitas leis

que protegem o trabalhador, muitas vezes elas são ineficientes, causando frustação,

tornando os indivíduos pacíficos e incrédulos, reféns da injustiça social.

Por outro lado, a narrativa pode despertar nos leitores a criticidade e a ação

na tentativa de reverter as situações de exploração, como: promover debates nas

comunidades, criando meios para se ajudar as pessoas idosas a conseguirem,

enfim, o benefício da aposentadoria (que costuma ser um processo tão burocrático);

participar ativamente de campanhas sociais e zelar para que as leis sejam

cumpridas. Essas são as atitudes que esperamos de todos os cidadãos.

Por meio dessas breves análises, esperamos que haja uma contribuição ao

trabalho do professor em seu papel de mediador nas atividades de leitura,

enriquecendo suas aulas, oferecendo as condições necessárias para que os jovens

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cresçam e se desenvolvam intelectualmente, promovendo a construção do

conhecimento de modo significativo.

Há muitas outras leituras que podemos fazer do texto literário e os

significados devem ser construídos de modo dialógico: leitor/texto; texto/leitor;

leitor/mundo. A construção do conhecimento e o desenvolvimento de habilidades

para compreender um texto devem ser construídos no diálogo e no coletivo.

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CONCLUSÃO

Certa palavra dorme na sombra De um livro raro. Como desencantá-la? É a senha da vida A senha do mundo. Vou procurá-la. [...]

(Carlos Drummond de Andrade)

Essa pesquisa teve como objetivo geral indicar possibilidades de trabalhos de

leitura do gênero discursivo conto em sala de aula, visando a subsidiar propostas

didático-pedagógicas de leitura desse gênero discursivo e colaborando para a

consecução do projeto OBSERVATÓRIO/UNITAU 2011 - 2014 Competências e

habilidades de leitura: da reflexão teórica ao desenvolvimento e aplicação de

propostas didático-pedagógicas, aprovado pelo Programa Observatório da

Educação CAPES/INEP sob nº 23038010000201076.

Considerando a Matriz de Referência do Sistema Nacional de Avaliação da

Educação Básica e os níveis de proficiência na escala de leitura do PISA, essa

pesquisa indicou habilidades de leitura que podem ser exploradas no gênero conto.

A proposta dessa pesquisa atentou, principalmente, para a carência de materiais

didáticos disponíveis que abordem especificamente a leitura e compreensão do

conto, objetivando a melhoria nos níveis de proficiência na qualidade da leitura,

especialmente nas séries finais do Ensino Fundamental. Sendo assim, esperamos

que os professores de todas as redes de ensino, bem como os graduandos da

Universidade de Taubaté participantes dos projetos PIBID e Prodocência, possam

utilizá-la como referência auxiliar para aprofundamento em seus conhecimentos

teóricos e aperfeiçoamento em seus trabalhos em sala de aula.

Por meio da pesquisa, conforme apontado no capítulo 3, pudemos identificar

que os resultados apontados pelas avaliações oficiais quanto à leitura no Ensino

Fundamental no Brasil apresentam, com relação a determinadas habilidades, uma

baixa porcentagem de acerto. Dessa forma, essa pesquisa cumpre parte da

urgência na tentativa de conquistar uma melhoria nos resultados, ao apresentar

propostas que favoreçam o desenvolvimento de competências de leitura nas séries

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finais do ensino fundamental, a fim que os alunos adquiram habilidades que os

preparem também para os desafios da vida social.

A literatura é um importante caminho para se buscar uma melhor qualidade

da educação. Corroborando o que afirmam os PCN (BRASIL, 1998), podemos

concluir que por meio da literatura é possível confrontar linguagens nas práticas

sociais e na história, explorar recursos de linguagem, reconhecer valores sociais e

humanos.

Para colaborar com o conhecimento acerca da origem e das especificidades

do conto, no capítulo 1, destacamos algumas abordagens teóricas básicas acerca

desse gênero. Constatamos que, não obstante a estrutura de um conto seja sempre

a mesma: apresentação, desenvolvimento ou complicação, clímax e desfecho,

assim como seus elementos: narrador, foco narrativo, personagens, tempo e

espaço, a classificação frequentemente utilizada para diferenciá-lo não é unânime

entre os autores. Provavelmente essa seja a razão pela qual podemos encontrar as

mais diversas classificações em nossos materiais didáticos disponíveis.

No intuito de colaborar para o entendimento do processo de compreensão na

leitura, relacionamos as principais concepções de leitura no capítulo 2, destacando

para nossos estudos a abordagem sociocognitiva de leitura, na qual sobressaem no

processo de compreensão os conceitos de conhecimento prévio e de inferência.

Segundo essa concepção, as operações que envolvem a apreensão do

conhecimento são muito mais abrangentes, uma vez que envolvem várias ações

conjuntas praticadas pelos indivíduos.

Destarte, ao elaborarmos a sequência didática básica para a leitura de contos

no capítulo 3, visamos a um trabalho que proporcionasse aos alunos, além do prazer

pela leitura, uma compreensão melhor do gênero, em toda a sua dimensão dialógica

e contextualizada. A leitura do conto permite um diálogo entre ficção e realidade,

favorecendo a construção de sentidos que colaboram para a construção da

identidade de um jovem, permitindo-o refletir também acerca de suas práticas

sociais em sociedade.

É importante lembrar que os procedimentos de leitura apontados na

constituição da sequência didática e que foram exemplificados na leitura dos cinco

contos são apenas sugestões, cada professor, portanto, fará as adequações

necessárias à sua realidade de sala de aula.

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Os procedimentos constantes da proposta da sequência didática que

organizamos contemplam, além dos aspectos explícitos dos contos e das hipóteses

prévias à leitura indispensáveis para um processo de compreensão abrangente,

reflexões críticas que podem fomentar o interesse pela leitura, promovendo sentidos

ao ato de ler, entendendo que ler não é simplesmente decodificar, que a leitura

implica o entendimento de outras possibilidades.

Por meio da elaboração da sequência didática e tomando-a como referência

para a análise dos contos no capítulo 4, chegamos à conclusão de que a leitura do

conto, quando utilizada em sala de aula como meio de prazer e de desenvolvimento

de habilidades de leitura, torna-se também uma importante atividade para

desenvolver a capacidade imaginativa e crítica dos alunos, uma vez que as

narrativas literárias são representações da realidade dos seres humanos, são

verossimilhantes.

Esperamos, dessa forma, que essa pesquisa contribua para que os

professores encontrem mais subsídios para sua prática em sala de aula,

promovendo projetos de leitura que contemplem a leitura do conto como fonte de

fruição estética e saber, em que dialogam sentidos e conhecimento.

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ANEXOS

ANEXO A A DEVOTA DAS ALMAS (1952)

ANEXO B CONTO DE ESCOLA (1884)

ANEXO C COM CERTEZA TENHO AMOR (2005)

ANEXO D RESTOS DE CARNAVAL (1971)

ANEXO E O ARQUIVO (1972)

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ANEXO A

A DEVOTA DAS ALMAS (1952)

Havia uma moça que era muito devota das almas. Ela não sabia nem fiar,

nem bordar, nem engomar, mas, um dia, conversando com as amigas, disse por

pilhéria que se se casasse com o rei havia de lhe fiar, bordar e engomar uma

camisa, como ele nunca tinha vestido. Por intriga, correram e foram mais que

depressa contar ao rei o que a moça havia falado. O rei mandou chamá-la e disse-

lhe que ia se casar com ela, porém, se ela não fizesse a camisa como havia

prometido, iria para o cutelo. A moça ficou muito triste porque sabia que seria

degolada, mas não teve outro jeito senão se casar com o rei.

Quando foi no dia seguinte ao do casamento, apareceram em palácio, para

visitá-la, dizendo que eram suas tias, três senhoras altas, magras e muito esquisitas,

vestidas de branco. A moça nunca as tinha visto, porém estava tão desgostosa da

vida, que nem disse nada. Uma era demais alta e muito corcovada, com uma giba

enorme; outra tinha os olhos esbugalhados e vermelhos, que fazia medo; e a outra,

por fim, tinha os braços tão compridos, que quase arrastavam no chão. Começaram

a conversar com o rei e com a moça. A primeira disse que estava assim corcovada

de tanto engomar; a segunda, que estava com os olhos esbugalhados assim de

tanto bordar; e a terceira, com os braços tão compridos, de fiar. O rei, que estava

com a mulher tão moça, tão bonita, com medo de que ela ficasse feia como as três

velhas, disse-lhe muito depressa:

- Está vendo? Eu não quero mais, nem por sonho, que você pegue no fuso

para fiar, nem na agulha para bordar, nem no ferro para engomar.

A moça ficou logo com o coração aliviado, muito alegre, reconhecendo que

aquelas três senhoras eram almas que tinham vindo livrá-la da morte. Não disse

nada ao marido, com quem viveu feliz por muitos anos sem deixar nunca a sua

devoção. (CASCUDO, p. 286-287)

Obs.: classificado como conto de encantamento por Cascudo.

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ANEXO B

CONTO DE ESCOLA (1884)

A escola era na Rua do Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era

de 1840. Naquele dia - uma segunda-feira, do mês de maio - deixei-me estar

alguns instantes na Rua da Princesa a ver onde iria brincar a manhã. Hesitava

entre o morro de S. Diogo e o Campo de Sant'Ana, que não era então esse parque

atual, construção de gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos infinito,

alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o

problema. De repente disse comigo que o melhor era a escola. E guiei para a

escola. Aqui vai a razão.

Na semana anterior tinha feito dois suetos, e, descoberto o caso, recebi o

pagamento das mãos de meu pai, que me deu uma sova de vara de marmeleiro.

As sovas de meu pai doíam por muito tempo. Era um velho empregado do Arsenal

de Guerra, ríspido e intolerante. Sonhava para mim uma grande posição comercial,

e tinha ânsia de me ver com os elementos mercantis, ler, escrever e contar, para

me meter de caixeiro. Citava-me nomes de capitalistas que tinham começado ao

balcão. Ora, foi a lembrança do último castigo que me levou naquela manhã para o

colégio. Não era um menino de virtudes.

Subi a escada com cautela, para não ser ouvido do mestre, e cheguei a

tempo; ele entrou na sala três ou quatro minutos depois. Entrou com o andar

manso do costume, em chinelas de cordovão, com a jaqueta de brim lavada e

desbotada, calça branca e tesa e grande colarinho caído. Chamava-se Policarpo e

tinha perto de cinquenta anos ou mais. Uma vez sentado, extraiu da jaqueta a

boceta de rapé e o lenço vermelho, pô-los na gaveta; depois relanceou os olhos

pela sala. Os meninos, que se conservaram de pé durante a entrada dele, tornaram

a sentar-se. Tudo estava em ordem; começaram os trabalhos.

- Seu Pilar, eu preciso falar com você, disse-me baixinho o filho do mestre.

Chamava-se Raimundo este pequeno, e era mole, aplicado, inteligência tarda.

Raimundo gastava duas horas em reter aquilo que a outros levava apenas trinta ou

cinquenta minutos; vencia com o tempo o que não podia fazer logo com o cérebro.

Reunia a isso um grande medo ao pai. Era uma criança fina, pálida, cara doente;

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raramente estava alegre. Entrava na escola depois do pai e retirava-se antes. O

mestre era mais severo com ele do que conosco.

- O que é que você quer?

- Logo, respondeu ele com voz trêmula.

Começou a lição de escrita. Custa-me dizer que eu era dos mais adiantados

da escola; mas era. Não digo também que era dos mais inteligentes, por um

escrúpulo fácil de entender e de excelente efeito no estilo, mas não tenho outra

convicção. Note-se que não era pálido nem mofino: tinha boas cores e músculos de

ferro. Na lição de escrita, por exemplo, acabava sempre antes de todos, mas

deixava-me estar a recortar narizes no papel ou na tábua, ocupação sem nobreza

nem espiritualidade, mas em todo caso ingênua. Naquele dia foi a mesma coisa;

tão depressa acabei, como entrei a reproduzir o nariz do mestre, dando-lhe cinco

ou seis atitudes diferentes, das quais recordo a interrogativa, a admirativa, a

dubitativa e a cogitativa. Não lhes punha esses nomes, pobre estudante de

primeiras letras que era; mas, instintivamente, dava-lhes essas expressões. Os

outros foram acabando; não tive remédio senão acabar também, entregar a escrita,

e voltar para o meu lugar.

Com franqueza, estava arrependido de ter vindo. Agora que ficava preso,

ardia por andar lá fora, e recapitulava o campo e o morro, pensava nos outros

meninos vadios, o Chico Telha, o Américo, o Carlos das Escadinhas, a fina flor do

bairro e do gênero humano. Para cúmulo de desespero, vi através das vidraças da

escola, no claro azul do céu, por cima do morro do Livramento, um papagaio de

papel, alto e largo, preso de uma corda imensa, que bojava no ar, uma coisa

soberba. E eu na escola, sentado, pernas unidas, com o livro de leitura e a

gramática nos joelhos.

- Fui um bobo em vir, disse eu ao Raimundo.

- Não diga isso, murmurou ele.

Olhei para ele; estava mais pálido. Então lembrou-me outra vez que queria

pedir-me alguma coisa, e perguntei-lhe o que era. Raimundo estremeceu de novo,

e, rápido, disse-me que esperasse um pouco; era uma coisa particular.

- Seu Pilar... murmurou ele daí a alguns minutos.

- Que é?

- Você...

- Você quê?

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Ele deitou os olhos ao pai, e depois a alguns outros meninos. Um destes, o

Curvelo, olhava para ele, desconfiado, e o Raimundo, notando-me essa

circunstância, pediu alguns minutos mais de espera. Confesso que começava a

arder de curiosidade. Olhei para o Curvelo, e vi que parecia atento; podia ser uma

simples curiosidade vaga, natural indiscrição; mas podia ser também alguma coisa

entre eles. Esse Curvelo era um pouco levado do diabo. Tinha onze anos, era mais

velho que nós.

Que me quereria o Raimundo? Continuei inquieto, remexendo-me muito,

falando-lhe baixo, com instância, que me dissesse o que era, que ninguém cuidava

dele nem de mim. Ou então, de tarde...

- De tarde, não, interrompeu-me ele; não pode ser de tarde.

- Então agora...

- Papai está olhando.

Na verdade, o mestre fitava-nos. Como era mais severo para o filho, buscava-

o muitas vezes com os olhos, para trazê-lo mais aperreado. Mas nós também

éramos finos; metemos o nariz no livro, e continuamos a ler. Afinal cansou e tomou

as folhas do dia, três ou quatro, que ele lia devagar, mastigando as ideias e as

paixões. Não esqueçam que estávamos então no fim da Regência, e que era

grande a agitação pública. Policarpo tinha decerto algum partido, mas nunca pude

averiguar esse ponto. O pior que ele podia ter, para nós, era a palmatória. E essa lá

estava, pendurada do portal da janela, à direita, com os seus cinco olhos do diabo.

Era só levantar a mão, despendurá-la e brandi-la, com a força do costume, que não

era pouca. E daí, pode ser que alguma vez as paixões políticas dominassem nele a

ponto de poupar-nos uma ou outra correção. Naquele dia, ao menos, pareceu-me

que lia as folhas com muito interesse; levantava os olhos de quando em quando, ou

tomava uma pitada, mas tornava logo aos jornais, e lia a valer.

No fim de algum tempo - dez ou doze minutos - Raimundo meteu a mão no

bolso das calças e olhou para mim.

- Sabe o que tenho aqui?

- Não.

- Uma pratinha que mamãe me deu.

- Hoje?

- Não, no outro dia, quando fiz anos...

- Pratinha de verdade?

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- De verdade.

Tirou-a vagarosamente, e mostrou-me de longe. Era uma moeda do tempo do

rei, cuido que doze vinténs ou dois tostões, não me lembro; mas era uma moeda, e

tal moeda que me fez pular o sangue no coração. Raimundo revolveu em mim o

olhar pálido; depois perguntou-me se a queria para mim. Respondi-lhe que estava

caçoando, mas ele jurou que não.

- Mas então você fica sem ela?

- Mamãe depois me arranja outra. Ela tem muitas que vovô lhe deixou, numa

caixinha; algumas são de ouro. Você quer esta?

Minha resposta foi estender-lhe a mão disfarçadamente, depois de olhar para

a mesa do mestre. Raimundo recuou a mão dele e deu à boca um gesto amarelo,

que queria sorrir. Em seguida propôs-me um negócio, uma troca de serviços; ele

me daria a moeda, eu lhe explicaria um ponto da lição de sintaxe. Não conseguira

reter nada do livro, e estava com medo do pai. E concluía a proposta esfregando a

pratinha nos joelhos...

Tive uma sensação esquisita. Não é que eu possuísse da virtude uma ideia

antes própria de homem; não é também que não fosse fácil em empregar uma ou

outra mentira de criança. Sabíamos ambos enganar ao mestre. A novidade estava

nos termos da proposta, na troca de lição e dinheiro, compra franca, positiva, toma

lá, dá cá; tal foi a causa da sensação. Fiquei a olhar para ele, à toa, sem poder

dizer nada.

Compreende-se que o ponto da lição era difícil, e que o Raimundo, não o

tendo aprendido, recorria a um meio que lhe pareceu útil para escapar ao castigo

do pai. Se me tem pedido a coisa por favor, alcançá-la-ia do mesmo modo, como

de outras vezes, mas parece que era lembrança das outras vezes, o medo de

achar a minha vontade frouxa ou cansada, e não aprender como queria, - e pode

ser mesmo que em alguma ocasião lhe tivesse ensinado mal, - parece que tal foi a

causa da proposta. O pobre-diabo contava com o favor, - mas queria assegurar-lhe

a eficácia, e daí recorreu à moeda que a mãe lhe dera e que ele guardava como

relíquia ou brinquedo; pegou dela e veio esfregá-la nos joelhos, à minha vista,

como uma tentação... Realmente, era bonita, fina, branca, muito branca; e para

mim, que só trazia cobre no bolso, quando trazia alguma coisa, um cobre feio,

grosso, azinhavrado...

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Não queria recebê-la, e custava-me recusá-la. Olhei para o mestre, que

continuava a ler, com tal interesse, que lhe pingava o rapé do nariz. - Ande, tome,

dizia-me baixinho o filho. E a pratinha fuzilava-lhe entre os dedos, como se fora

diamante... Em verdade, se o mestre não visse nada, que mal havia? E ele não

podia ver nada, estava agarrado aos jornais, lendo com fogo, com indignação...

- Tome, tome...

Relancei os olhos pela sala, e dei com os do Curvelo em nós; disse ao

Raimundo que esperasse. Pareceu-me que o outro nos observava, então

dissimulei; mas daí a pouco deitei-lhe outra vez o olho, e - tanto se ilude a vontade!

- não lhe vi mais nada. Então cobrei ânimo.

- Dê cá...

Raimundo deu-me a pratinha, sorrateiramente; eu meti-a na algibeira das

calças, com um alvoroço que não posso definir. Cá estava ela comigo, pegadinha à

perna. Restava prestar o serviço, ensinar a lição e não me demorei em fazê-lo, nem

o fiz mal, ao menos conscientemente; passava-lhe a explicação em um retalho de

papel que ele recebeu com cautela e cheio de atenção. Sentia-se que despendia

um esforço cinco ou seis vezes maior para aprender um nada; mas contanto que

ele escapasse ao castigo, tudo iria bem.

De repente, olhei para o Curvelo e estremeci; tinha os olhos em nós, com um

riso que me pareceu mau. Disfarcei; mas daí a pouco, voltando-me outra vez para

ele, achei-o do mesmo modo, com o mesmo ar, acrescendo que entrava a

remexer-se no banco, impaciente. Sorri para ele e ele não sorriu; ao contrário,

franziu a testa, o que lhe deu um aspecto ameaçador. O coração bateu-me muito.

- Precisamos muito cuidado, disse eu ao Raimundo.

- Diga-me isto só, murmurou ele.

Fiz-lhe sinal que se calasse; mas ele instava, e a moeda, cá no bolso,

lembrava-me o contrato feito. Ensinei-lhe o que era, disfarçando muito; depois,

tornei a olhar para o Curvelo, que me pareceu ainda mais inquieto, e o riso, dantes

mau, estava agora pior. Não é preciso dizer que também eu ficara em brasas,

ansioso que a aula acabasse; mas nem o relógio andava como das outras vezes,

nem o mestre fazia caso da escola; este lia os jornais, artigo por artigo, pontuando-

os com exclamações, com gestos de ombros, com uma ou duas pancadinhas na

mesa. E lá fora, no céu azul, por cima do morro, o mesmo eterno papagaio,

guinando a um lado e outro, como se me chamasse a ir ter com ele. Imaginei-me

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ali, com os livros e a pedra embaixo da mangueira, e a pratinha no bolso das

calças, que eu não daria a ninguém, nem que me serrassem; guardá-la-ia em casa,

dizendo a mamãe que a tinha achado na rua. Para que me não fugisse, ia-a

apalpando, roçando-lhe os dedos pelo cunho, quase lendo pelo tato a inscrição,

com uma grande vontade de espiá-la.

- Oh! Seu Pilar! Bradou o mestre com voz de trovão.

Estremeci como se acordasse de um sonho, e levantei-me às pressas. Dei

com o mestre, olhando para mim, cara fechada, jornais dispersos, e ao pé da

mesa, em pé, o Curvelo. Pareceu-me adivinhar tudo.

- Venha cá! Bradou o mestre.

Fui e parei diante dele. Ele enterrou-me pela consciência dentro um par de

olhos pontudos; depois chamou o filho. Toda a escola tinha parado; ninguém mais

lia, ninguém fazia um só movimento. Eu, conquanto não tirasse os olhos do mestre,

sentia no ar a curiosidade e o pavor de todos.

- Então o senhor recebe dinheiro para ensinar as lições aos outros? disse-me

o Policarpo.

- Eu...

- Dê cá a moeda que este seu colega lhe deu! - Clamou.

Não obedeci logo, mas não pude negar nada. Continuei a tremer muito.

Policarpo bradou de novo que lhe desse a moeda, e eu não resisti mais, meti a

mão no bolso, vagarosamente, saquei-a e entreguei-lha. Ele examinou-a de um e

outro lado, bufando de raiva; depois estendeu o braço e atirou-a à rua. E então

disse-nos uma porção de coisas duras, que tanto o filho como eu acabávamos de

praticar uma ação feia, indigna, baixa, uma vilania, e para emenda e exemplo

íamos ser castigados. Aqui pegou da palmatória.

- Perdão, seu mestre... - solucei eu.

- Não há perdão! Dê cá a mão! Dê cá! Vamos! Sem-vergonha! Dê cá a mão!

- Mas, seu mestre...

- Olhe que é pior!

Estendi-lhe a mão direita, depois a esquerda, e fui recebendo os bolos uns

por cima dos outros, até completar doze, que me deixaram as palmas vermelhas e

inchadas. Chegou a vez do filho, e foi a mesma coisa; não lhe poupou nada, dois,

quatro, oito, doze bolos. Acabou, pregou-nos outro sermão. Chamou-nos sem-

vergonhas, desaforados, e jurou que se repetíssemos o negócio apanharíamos tal

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castigo que nos havia de lembrar para todo o sempre. E exclamava: Porcalhões!

Tratantes! Faltos de brio!

Eu, por mim, tinha a cara no chão. Não ousava fitar ninguém, sentia todos os

olhos em nós. Recolhi-me ao banco, soluçando, fustigado pelos impropérios do

mestre. Na sala arquejava o terror; posso dizer que naquele dia ninguém faria igual

negócio. Creio que o próprio Curvelo enfiara de medo. Não olhei logo para ele, cá

dentro de mim jurava quebrar-lhe a cara, na rua, logo que saíssemos, tão certo

como três e dois serem cinco.

Daí a algum tempo olhei para ele; ele também olhava para mim, mas desviou

a cara, e penso que empalideceu. Compôs-se e entrou a ler em voz alta; estava

com medo. Começou a variar de atitude, agitando-se à toa, coçando os joelhos, o

nariz. Pode ser até que se arrependesse de nos ter denunciado; e na verdade, por

que denunciar-nos? Em que é que lhe tirávamos alguma coisa?

- Tu me pagas! tão duro como osso! dizia eu comigo.

Veio a hora de sair, e saímos; ele foi adiante, apressado, e eu não queria

brigar ali mesmo, na Rua do Costa, perto do colégio; havia de ser na Rua larga São

Joaquim. Quando, porém, cheguei à esquina, já o não vi; provavelmente

escondera-se em algum corredor ou loja; entrei numa botica, espiei em outras

casas, perguntei por ele a algumas pessoas, ninguém me deu notícia. De tarde

faltou à escola.

Em casa não contei nada, é claro; mas para explicar as mãos inchadas, menti

a minha mãe, disse-lhe que não tinha sabido a lição. Dormi nessa noite, mandando

ao diabo os dois meninos, tanto o da denúncia como o da moeda. E sonhei com a

moeda; sonhei que, ao tornar à escola, no dia seguinte, dera com ela na rua, e a

apanhara, sem medo nem escrúpulos...

De manhã, acordei cedo. A idéia de ir procurar a moeda fez-me vestir

depressa. O dia estava esplêndido, um dia de maio, sol magnífico, ar brando, sem

contar as calças novas que minha mãe me deu, por sinal que eram amarelas. Tudo

isso, e a pratinha... Saí de casa, como se fosse trepar ao trono de Jerusalém.

Piquei o passo para que ninguém chegasse antes de mim à escola; ainda assim

não andei tão depressa que amarrotasse as calças. Não, que elas eram bonitas!

Mirava-as, fugia aos encontros, ao lixo da rua...

Na rua encontrei uma companhia do batalhão de fuzileiros, tambor à frente,

rufando. Não podia ouvir isto quieto. Os soldados vinham batendo o pé rápido,

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igual, direita, esquerda, ao som do rufo; vinham, passaram por mim, e foram

andando. Eu senti uma comichão nos pés, e tive ímpeto de ir atrás deles. Já lhes

disse: o dia estava lindo, e depois o tambor... Olhei para um e outro lado; afinal,

não sei como foi, entrei a marchar também ao som do rufo, creio que cantarolando

alguma coisa: Rato na casaca... Não fui à escola, acompanhei os fuzileiros, depois

enfiei pela Saúde, e acabei a manhã na Praia da Gamboa. Voltei para casa com as

calças enxovalhadas, sem pratinha no bolso nem ressentimento na alma. E

contudo a pratinha era bonita e foram eles, Raimundo e Curvelo, que me deram o

primeiro conhecimento, um da corrupção, outro da delação; mas o diabo do

tambor... (ASSIS, 1985)

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ANEXO C

COM CERTEZA TENHO AMOR (2005)

Moça tão resguardada por seus pais não deveria ter ido à feira. Nem foi,

embora muito o desejasse. Mas porque o desejava, convenceu a ama que a

acompanhava a tomar uma rua em vez da outra para ir à igreja, e a rua que

tomaram passava tão perto da feira que seus sons a percorriam como água e as

cores todas da feira pareciam espelhar-se nas paredes claras. Foi dessa rua,

olhando através do véu que lhe cobria metade do rosto, que a moça viu os

saltimbancos em suas acrobacias.

E foi nessa rua, recortada como uma silhueta em suas roupas escuras, o

rosto meio coberto por um véu, que o mais jovem dos saltimbancos, atrasado a

caminho da feira, a viu.

Era o mais jovem era o mais forte era o mais valente entre os onze irmãos. A

partir daquele encontro, porém, uma fraqueza que não conhecia deslizou para

dentro do seu peito. À noite suspirava como se doente.

- Que tens? – perguntaram-lhe os irmãos.

- Não sei – respondeu. E era verdade. Sabia apenas que a moça velada

aparecia nos seus sonhos, e que parecia sonhar mesmo acordado porque mesmo

acordado a tinha diante dos olhos.

Àquela rua a moça não voltou mais. Mas ele a procurou em todas as outras

ruas da cidade até vê-la passar, esperou diante da igreja até vê-la entrar,

acompanhou-a ao longe até vê-la chegar em casa.

Agora sorria, cantava, embora de repente largasse a comida no prato porque

nada mais lhe passava na garganta.

- Que tens? – perguntaram-lhe os irmãos.

- Acho, não sei... – respondeu ele abaixando a cabeça sobre o seu rubor –

creio... que tenho amor.

Na sua casa, a moça também sorria e cantava, largava de repente a comida

no prato e se punha a chorar.

- Tenho... sim... com certeza tenho amor - respondeu à ama que lhe

perguntou o que tinha.

Mas nem a ama se alegrou, nem se alegraram os dez irmãos. Pois como

alegrar-se com um amor que não podia ser?

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De fato, tanto riso, tanto choro acabaram chamando a atenção do pai da

moça que, vigilante e sem precisar perguntar, trancou-a no quarto mais alto da sua

casa. Não era com um saltimbanco que havia de casar a filha criada com tanto

esmero.

Mas era com o saltimbanco que ela queria se casar.

E o saltimbanco, ajudado por seus dez irmãos, começou a se preparar para

chegar até ela.

Afinal uma noite, lua nenhuma que os denunciasse, encaminharam-se os

onze para a casa da moça. Seus pés calçados de feltro calavam-se sobre as pedras.

O mais jovem era o mais forte, teria ele que sustentar os demais. Pernas

abertas e firmes, cravou-se no chão bem debaixo da janela dela. O segundo irmão

subiu para os seus ombros, estendeu a mão e o terceiro subiu. O quarto escalou os

outros até subir nos ombros do terceiro. E, um por cima do outro, foram se

construindo como uma torre. Até que o último chegou ao topo.

O último chegou ao topo, e o topo não chegou à altura da janela da moça. De

cima a baixo os irmãos passaram-se a palavra. Os onze pareceram ondejar por um

instante. Então o mais jovem e mais forte saiu debaixo dos pés do seu irmão

deixando-o suspenso no ar, e tomando a mão que este lhe estendeu subiu

rapidamente por ele, galgando seus irmãos um a um.

No alto, a janela se abriu. (COLASANTI, 2005)

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ANEXO D

RESTOS DO CARNAVAL (1971)

Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou

para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde

esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu

cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se

segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa já ia se

aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o mundo se

abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do

Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas

enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era

meu, meu.

No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um

baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até

umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos,

olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e

economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um

saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de

coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era

de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.

E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque

vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também

fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado

falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo

interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas

com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para

mim.

Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente,

ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de

minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto

desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante

três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso

de ser uma moça - eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável - e

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pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces.

Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.

Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não

conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É

que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era

no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa,

com os quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu

assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o

papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das

fantasias mais belas que jamais vira.

Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel

crepom, e muito. E a mãe de minha amiga - talvez atendendo a meu mudo apelo, ao

meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel -

resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de

material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre

quisera: ia ser outra que não eu mesma.

Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão

ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da

fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo

menos estaríamos de algum modo vestidas – à idéia de uma chuva que de repente

nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua,

morríamos previamente de vergonha - mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria!

Quando ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli

com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o

destino me dava de esmola.

Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser

tão melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados

para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de

tanta ansiedade. Enfim, enfim! Chegaram três horas da tarde: com cuidado para não

rasgar o papel, eu me vesti de rosa.

Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No

entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é

irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado,

ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge - minha mãe de súbito

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piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me

comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa - mas o

rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida

infantil - fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos

de carnaval. A alegria dos outros me espantava.

Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me

penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas

histórias que eu havia lido, sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas,

eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina.

Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios

encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas

com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.

Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é

porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim

significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa

mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já

lisos de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu

então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me

havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa. (LISPECTOR, 1998)

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ANEXO E

O ARQUIVO (1972)

No fim de um ano de trabalho, João obteve uma redução de quinze por cento

em seus vencimentos.

joão era moço. Aquele era seu primeiro emprego. Não se mostrou orgulhoso,

embora tenha sido um dos poucos contemplados. Afinal, esforçara-se. Não tivera

uma só falta ou atraso. Limitou-se a sorrir, a agradecer ao chefe.

No dia seguinte, mudou-se para um quarto mais distante do centro da cidade.

Com o salário reduzido, podia pagar um aluguel menor.

Passou a tomar duas conduções para chegar ao trabalho. No entanto, estava

satisfeito. Acordava mais cedo, e isto parecia aumentar-lhe a disposição.

Dois anos mais tarde, veio outra recompensa.

O chefe chamou-o e lhe comunicou o segundo corte salarial.

Desta vez, a empresa atravessava um período excelente. A redução foi um

pouco maior: dezessete por cento.

Novos sorrisos, novos agradecimentos, nova mudança.

Agora joão acordava às cinco da manhã. Esperava três conduções. Em

compensação, comia menos. Ficou mais esbelto. Sua pele tornou-se menos rosada.

O contentamento aumentou.

Prosseguiu a luta.

Porém, nos quatro anos seguintes, nada de extraordinário aconteceu.

joão preocupava-se. Perdia o sono, envenenado em intrigas de colegas

invejosos. Odiava-os. Torturava-se com a incompreensão do chefe. Mas não

desistia. Passou a trabalhar mais duas horas diárias.

Uma tarde, quase ao fim do expediente, foi chamado ao escritório principal.

Respirou descompassado.

— Seu joão. Nossa firma tem uma grande dívida com o senhor.

joão baixou a cabeça em sinal de modéstia.

— Sabemos de todos os seus esforços. É nosso desejo dar-lhe uma prova

substancial de nosso reconhecimento.

O coração parava.

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— Além de uma redução de dezesseis por cento em seu ordenado,

resolvemos, na reunião de ontem, rebaixá-lo de posto.

A revelação deslumbrou-o. Todos sorriam.

— De hoje em diante, o senhor passará a auxiliar de contabilidade, com

menos cinco dias de férias. Contente?

Radiante, joão gaguejou alguma coisa ininteligível, cumprimentou a diretoria,

voltou ao trabalho.

Nesta noite, joão não pensou em nada. Dormiu pacífico, no silêncio do

subúrbio.

Mais uma vez, mudou-se. Finalmente, deixara de jantar. O almoço reduzira-se

a um sanduíche. Emagrecia, sentia-se mais leve, mais ágil. Não havia necessidade

de muita roupa. Eliminara certas despesas inúteis, lavadeira, pensão.

Chegava em casa às onze da noite, levantava-se às três da madrugada.

Esfarelava-se num trem e dois ônibus para garantir meia hora de antecedência.

A vida foi passando, com novos prêmios.

Aos sessenta anos, o ordenado equivalia a dois por cento do inicial. O

organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das

estradas. Dormia apenas quinze minutos. Não tinha mais problemas de moradia ou

vestimenta. Vivia nos campos, entre árvores refrescantes, cobria-se com os farrapos

de um lençol adquirido há muito tempo.

O corpo era um monte de rugas sorridentes.

Todos os dias, um caminhão anônimo transportava-o ao trabalho.

Quando completou quarenta anos de serviço, foi convocado pela chefia:

— Seu joão. O senhor acaba de ter seu salário eliminado. Não haverá mais

férias. E sua função, a partir de amanhã, será a de limpador de nossos sanitários.

O crânio seco comprimiu-se. Do olho amarelado, escorreu um líquido tênue. A

boca tremeu, mas nada disse. Sentia-se cansado. Enfim, atingira todos os objetivos.

Tentou sorrir:

— Agradeço tudo que fizeram em meu benefício. Mas desejo requerer minha

aposentadoria.

O chefe não compreendeu:

— Mas seu joão, logo agora que o senhor está desassalariado? Por quê?

Dentro de alguns meses terá de pagar a taxa inicial para permanecer em nosso

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quadro. Desprezar tudo isto? Quarenta anos de convívio? O senhor ainda está forte.

Que acha?

A emoção impediu qualquer resposta.

joão afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu, ficou lisa. A

estatura regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As formas desumanizaram-se,

planas, compactas. Nos lados, havia duas arestas. Tornou-se cinzento.

João transformou-se num arquivo de metal. (GIUDICE, 1986)