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ARRUDA CAMPOS A JUSTIÇA A SERVIÇO DO CRIME fZdiqãA J>a*aú*a, tliãa Pa*iia 1959

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ARRUDA CAMPOS

A JUSTIÇA A SERVIÇO DO CRIME

fZdiqãA J>a*aú*a,tliãa Pa*iia

1959

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Í N D I C E

Capítulo I - IN TROD U ÇÃO ................................................................ 7

II ^ A LEI GERA O CRIM E ......................................... .......... 15

" III ~ A JUSTIÇA A PLIC A A LEI ... ................................ 34

" IV - A PEN A P E R V E R T E ................................................. .. 60

■' V — A LEI N Ã O Ê R E SP E IT A D A .......................................... 83

" V I - N O TAS AV U LSA S

1) Limites da ação do Juízo das Execuções . . . . . . 107

2) •— Trabalho de sentenciados Remuneração . . . 112

3) — Visita a um refocmatóvio inglês ............................ 115

4} Visita à União Soviética 120

5} Uma prisão soviética (2.f grau) ........................ 126

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C a p í t u l o I

I N T R O D U Ç Ã O

1, O direito ainda é unia cristalização da fôrça. Ê uma ficção sistematizada, que se criou para que os ho­mens possam viver em sociedade e defender seus privi­légios, sem clioques e sem lutas insolúveis. Constitui de certo modo uma projeção da humanidade, que não é fixa nem imutável, não tem pressupostos dos quais pos­sam ser extraídas deduções lógicas e exatas, invariáveis e uniformes, no tempo e no espaço. Suas regras não são como as da física, que permanecem constantes e não admitem progressos nem recuos. Diante delas, as leis dos indivíduos são garatujas hesitantes, grotescas e fre­qüentemente até anti-sociais.

Teorias ocasionais ganham corpo. Palavras adqui­rem sentido. Princípios se solidificam, enquanto outros, conforme se altera o regime social se liqüefazem ou se evaporam. Mas, enquanto subsistem, têm o ímpeto das coisas reais. Produzem efeitos. Criam uma certeza efêmera, adequada às conveniências de determinado ins­tante, em determinado lugar, durante determinado tempo.

Ridículos são os juristas, quando comparados aos que se dedicam às ciências positivas. Porque aludem à lei cia sucessão heredi tária e às invenções de Carnelutti e Chiovenda com a mesma convicção com que o físico se reporta à lei da gravidade e às teorias de Newton.

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s A liEC lJA CáM PO S

Ignoram que uma simples lei — lei que atualmente vige, ou está sendo cogitada em mais âe metade do mundo — poderá acabar com a alegria dos mais reno- mados jurisconsultos, com os esquemas complicados pelos mais Mbeis cultores do xadrez legislativo, dar fim a doutrinas, jurisprudências e seqüelas.

Basta uma lei que elimine a propriedade privada,

2. A grande e ingênua ficção brasileira é a Consti­tuição Federal* cujo cunho democrático é iniludível. Con­sidera que “ todo poder emana do povo e em seu nome será exercido” , lias eleições supõe que é o povo quem decide soberanamente. Consagra o binômio — maioria e minoria — e autoriza o eleitorado a atuar na formação do poder, com liberdade e igualdade.

Eleições, liberdade e igualdade, não implicam, pela Constituição, em conceitos apriorísticos, definidores de uma determinada orientação política. A vontade livre é do povo, que vota de acordo com seus anseios. E essa vontade pode voltar-se para a direita, para o centro ou para, a esquerda, pois, repita-se, o povo é soberano,

A ficção se revela quando se verifica, na realidade, que o ponto de partida é falso. O povo não é soberano, não tem igualdade, que eqüivale a eonlieeimento, nem finalmente pode voltar-se, por exemplo, para a esquerda, ou mesmo, para. a direita. Tal como a soberania da divindade, de “ infinita” misericórdia, que pode tudo — menos tirar a alma arrependida do Inferno.

3. Na técnica adotada pela Constituição,, três são os poderes do Estado: Legislativo, Executivo e Judiciário, index>endentes, mas harmônicos entre si. O Legislativo elabora as leis, o Executivo as faz cumprir e o Judiciário

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A .H JSÍTÇA A SE U V IÇO DO CRÍMÍii 0

julga das suas aplicações. Dos três, o que goza de menor grau de autonomia é o Judiciário, de cujo poder só muito remotamente se pode dizer que emana do povo, dada a circunstância de que é escravo da lei, até para a escolha de seus membros. Dos três, o que usufrui maior dose de amplitude, é o Legislativo, uma. Tez que lhe com­pete ditar as normas da vida da Nação. Dos três, o mais forte, é o Executivo, porque também guarda o di­nheiro e, conseqüentemente, tem duas fontes de energia: a que lhe vem do povo e a que lhe chega através do Tesouro,

Excluído o Judiciário, cujos juizes são escolhidos por concursos orientados por outros juizes, o. Legisla­tivo e o Executivo se organizam por delegação popular nas eleições,

Estas, porém, são falsificadas.No rigor da técnica democrática deveriam os can­

didatos agrupar-se em partidos, de acordo com orien­tações expostas à escolha do povo. Teríamos, então, como sucede em alguns raros países, partidos do centro, da direita e da esquerda, disputando a preferência do eleitorado. A maioria formaria o governo, até ser der­rotada na eleição seguinte, ou manter-se no poder. E assim p o r diante.

Como ficção que é a Constituição, esquematiza o regime, nessa base, consagrando a obrigatoriedade do respeito às suas normas. Do contrário, se outros fos­sem os alicerces constitucionais, o povo deixaria de ser soberano, tornando-se vítima da tirania, Não somente estiptila a periodicidade das eleições, como fixa o tempo do mandato. Estabelecendo a época da renovação do governo, defere ao povo a oportunidade de corrigir os

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1 0 ARRUDA CAMPOS

desvios ou assegurar a mesma orientação ideológica de seus representantes. E cria organismos de autodefesa, para que as suas regras sejam sempre acatadas, entre os quais o Exército Nacional é a expressão mais elevada, porque é a fôrça ao serviço do Direito.

Se um grupo empolga o poder e, derrotado nas eleições, recusa-se a abandoná-lo, ao Judiciário compete colocá-lo fora da lei. Ao Exército cumpre desalojá-lo da posição. Configura-se a usurpação.

Êsse é o esquema da Constituição Federal, sem dúvida magnífico. Contudo, como estamos diante de uma simples ficção, verifica-se em certos casos que, seguindo o. exemplo do Judiciário, as forças armadas se acumpliciam aos espoliadores, que dão golpes de Estado... .Homologam a tirania., prestigiando o. ditador. E mandam espaldeirar o povo soberano.

4, Em meio do emaranhado dessa crise que assober­ba o mundo, envolvendo o Brasil no roldão, a única atitu­de que um cidadão pode tomar, com dignidade e respeito ao próximo, é o de bater-se para. que, efetivamente cum­prida, deixe a Constituição Federal de ser uma ficção momentânea. Deve obedecê-la, mas deve também pug­nar por ela, inclusive através da luta. É possível que o povo se torne realmente soberano e esmague um dia aqueles que, dizendo que vão salvá-lo, contra êle esta­belecem a tirania, que condenam, mas que lhes convém.

5. Por ser democrática, a Constituição exige o plu~ riparticlarismo; mas, por ser uma ficção, permite que sejam extintos ou vivam partidos que inscrevam em seus programas a subversão da ordem econômica, O texto

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A JUSTIÇA A SEHVIÇG DO CRIME 11

usa de um eufemismo vago — é vedada a organização, o registro ou o funcionamento de qualquer partido político ou associação cujo programa ou ação contrarie o regime democrático, baseado na pluralidade dos partidos e na garcmtia dos direitos fundamentais do homem. Graças a esse dispositivo, são postos fora da lei todos os partidos que, em tese, contrariem os direitos fundamentais dos homens fortes. Inversamente, não são molestados os que, como os monarqiústas, querem a subversão do re­gime político sem a eliminação dos privilégios dos poderosos.

6. O primeiro ponto a ser considerado, e que suple­menta os itens anteriores, é o de que a lei do Legislativo está longe dé representar a vontade da maioria do povo. O eleitorado constitui insignificante minoria e a vontade dos que votam é adulterada pelo emprego de fórmulas eleiçoeiras fraudulentas, desde o engano puro e simples, através da demagogia, até a corrupção. Os partidos, por sua vez, não têm programas definidos, tanto que, uma vez eleitos, seus membros se bandeiam de uns para outros impunemente. Alguns partidos existem, eontra os quais não se exerce a vigilância das autoridades, que não passam de conjugado de letras, ou nomes, para rea­lização de transações visando a inclusão de candidatos em suas chapas.

Disso resulta que triunfam os mais fortes, que são, eostumeiramente, os que economicamente são mais po­derosos. Isso, apesar de inidôneos.

Por ser público e notório o fato dispensa compro­vação.

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n ARRUDA CAMPOS

7. A Constituição Federal aceita eomo fundamen­tais certos princípios que, na prática, não são observados. Culpa não é dela, senão do povo, que não é soberano, Que não tem sabido, ou não tem podido, valer-se dos direitos que lhe são outorgados. Contudo, não é aqui o lugar para a análise das causas'dêsse desajuste, uma vez que bem outro é o intuito dêste trabalho. Assinalada a falha pode-se passar adiante.

O poder que o povo aborta é o que conduz a Nação. É também o ponto de partida do presente ensaio: — um poder degenerado, mas poder.

Poder através do qual os grupos de homens fortes legitimam sua posição. Poder que, conforme se demons­trará adiante, é principalmente de ordem econômica, já que os vitoriosos nunca se digladiam por causa de idéias, senão apenas por motivo de interesses materiais. E êsse poder traz atrelado aquele terceiro, cujos mem­bros não são eleitos e que muito remotamente se ligam ao povo, em nome do qual atuam: — O Poder Judiciário.

8. Resulta mais, insista-se, que o povo, privado da soberania, não pode tomar a orientação que bem entenda, porque, não tendo amadurecido politicamente, ignora o exato valor do voto. E, uma vez que uma eleição sagTou os eleitos, fica subordinado à Autoridade, a qual, assumindo uma tutoria que não encontra raízes na Cons­tituição, passa a ditar as correntes doutrinárias que ao seu tutelado é vedado escolher, em nome dos direitos fundamentais dos homens.

9. Poder principalmente de ordem econômica, dis­semos. Porque, efetivamente, êle só faz sentir sua prc-

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ameix no instante em que entram em jôgo os grandesinteresses da coletividade.

Quando os republicanos iniciaram a sua campanha contra a monarquia, eram revolucionários que conspi­ravam contra o regime político e queriam a subversão do governo, pela abolição do trono, Foram combatidos, mas apenas no terreno das idéias, porque não preten­diam eliminar as vantagens das classes mais favorecidas, A prova de que a luta foi branda e serena está em que, mesmo plantando cafèzais, bs líderes do movimento con­seguiram ganhar fôrça política até alcançar a vitória, sem sangue, expulsando o Imperador.

Hoje, em que, atrás da luta aparente, está em jôgo a subversão da estrutura econômica, apesar de todos os progressos da humanidade e do culto das liberdades, a reação é mais 'violenta. As prisões ficam cheias. No auge do conflito cria-se, por exemplo, uma corte espe­cial, como o Tribunal de Segurança Nacional., pois que os homens fortes não depositam suficiente confiança na Justiça comum. Mesmo agora, quando o perigo parece amainado, temos uma dupla polícia política; a policial propriamente dita, opressora do pensamento, e a outra, eleitoral, senhora das oportunidades eletivas, que anula registros de partidos, cassa mandatos e nega inscrição aos candidatos que, acreditando nas liberdades ins­critas na Constituição Federal, professam ideologias quo não convêm aos homens fortes que monopolizam as comodidades da vida. São obrigados a votar, mas não têm o direito de ser votados \

1. Expressivo é o parecer do procurador-geral da República acolhido em 1956 pelo Supremo Tribunal Federal, no caso da denúncia formulada contra um yeneraí insubordinado, que manteve em custódia* o legitimo Presidente dn República, Sr. Çafé Fiího, por ocasião do çjolpe de 11 de novuiíibro de 1955,

A JUSTIÇA A SlltyiçO DO CBIME 13

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14 AR1UJDA CAMPOS

10. Com êsses argumentos pensamos haver comple­tado o círculo das noções elementares de Direito PiTblico que julgamos necessário incluir nesta introdução. Ocorre entre nós um processo degenerativo, em conseqüência do qual a Constituição, que teoricamente tem sólidas bases democráticas, perde a consistência normativa para se transformar em papel escrito, que certos liomens rasgam e colam novamente, ou rasgam e fazem outra em subs­tituição, com absoluto desprezo pela soberania do povo.

Diz o representante do Ministério Público Federal: — "Ora, não há notícia nos anais forenses de terem sido submetidos a processo os que hajam tomado parte em golpes militares ou movimentos revolucionários vitoriosos, por não serem considerados criminosos os atos por êles praticados em tais ocasiões” .

Arquivando a representação a que alude o parecer, confirmou o Supremo Tribunal Federal a tese de que o poder efetivamente não emana do povo, mas da fõrça triunfante, Se outro general chefiar um contragolpe que acabe ven­cedor, não teremos também atos criminosos a ser punidos, e assim por diante, até que o último, pela fõrça da espada, torne bandidos todos os heróis seus antecessores .— tal, aliás, — como aconteceu em Nuremberg.'

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C a p í t u l o I I

A LEI GERA O CRIME

II . O direito é uma ficção sistematizada qüe se criou para que os homens fortes possam viver em socie­dade e defender seus privilégios. Quando os fortes se reduzem a um pequeno número, que se subordinam a um, temos a ditadura de Hitler. de Mussolini, de Stalin, de Salazar ou de Franco,

Por baixo da camada de superfície, na infra-estru­tura da sociedade, lavra, porém, a permanente revolução, que vai modificar esse direito de mn, para fazer o de cem, ou o de cem mil, podendo-se imaginar que haverá um só direito quando êle chegar a ser o direito de todos.

Por isso, porque as famílias das nações ainda vivem em estágios diferentes de cultura, há um direito sovié­tico, 11111 direito francês, um direito norte-americano, um direito italiano, um direito brasileiro, mn direito boliviano, um direito paraguaio, um direito abissínio, um direito saudita, cada qual exprimindo um instante social, sem que signifique que, mais amplo e mais justo, outro não esteja em ebulição.

Durante séculos apresentou-se o poder do Rei como uma expressão do direito de Deus. Suhlevar-se contra o Rei, mais do que um crime de lesa-majestade, cons­tituía um ato de lesa-divindade, uma insuportável he­resia que podia ser salva apenas pelo auto-de-fé em fo-

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16 a k r t j d a c a m p o s

gueira. Os grupos dominados, todavia, continuaram a fermentar suas idéias e criaram a guilhotina.

Isso significa que há um direito que nasce-ao mesmo passo em que há outro que morre. Ihering, muitó antes, já liavia chegado a conclusão semelhante.

12. Tôdas as estruturas econômico-sociais têm o seu princípio, fastígio e têmio, como igualmente, na Natureza, os homens nascem, crescem e desaparecem. Inelutàvelmente, o direito acompanha a marcha da es­trutura à qual corresponde.

A sociedade organizada de um dado instante tem sempre uma crosta que não pode ser radicalmente rom­pida sem a ocorrência de fenômenos igualmente violentos de repercussão. Deve ser reformada para o momento seguinte, avançando, progressivamente, de acordo com os impulsos que recebe das camadas inferiores. Quando se haja de substituir uma viga, faz-se mister que outra esteja pronta, em condições de ser utilizada, para que, <:-om o resultado esperado, outro, inesperado, não so­brevenha.

A. estrutura do chamado mundo ocidental, com al­gumas alterações, é ainda a de Roma. Enquanto as ciências se desenvolveram, ao impulso das exigências fun­cionais, alcançando as Nações mais ricas elevados pa­drões de técnica, já o direito, sob um certo aspecto, permaneceu quase parado. Tal se deve à circunstância cie que, não tendo havido modificação profunda no re­gime econômico, ipso-facto não precisou êle ser reajus­tado substancialmente. Continuou atendendo os interes­ses das classes dominantes — e daí a razão pela qual tanto os j mistas se apoiam no Direito Romano.

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a jr s T tç À a s e r v iç o ao c r im e 17

Numa visão de profundidade percebe-se o vulto das reformas. As vigas mestras, porém, são quase as mes­mas. Imensas e seculares, nos pontos de apoio escon­dem-se em bases perdidas no tempo; — a propriedade privada, a herança e a eseravização do homem pelo dinheiro.

15. Dos romanos nos eliegou a noção de que não há crime sem uma lei anterior que o defina: — poena non irrogatur, nisi quçte guaque lege vél quo alio jure specialüer liuio delicio impo sita est. Êsse foi o ponto de partida da fórmula nullmn crimen, nulla poena, sine lege, celebrizada por Eeuefbach. Então, traçando os limites da figura delituosa, para enquadrar neles aque­les determinados atos que aos fortes convém sejam re­primidos, cria a lei o' fato punível. E mais: — no Brasil, com receio das idéias de Tobias Barreto, que preconizava a adoção do princípio da analogia, para dar fim à área da subdelinqüência, inscreveu-se na Constituição que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente e na forma de lei anterior” (art. 141, § 27).

É evidente que, em certos casos, o exime antecede à lei. A violação do direito à vida, por exemplo, cons­tituiu ato criminoso desde quando a humanidade su­perou a fase da barbárie, e ainda que, em certas nações, subsista a j)ena de morte.

Na generalidade dos casos, porém, é a lei que gera o crime, porque ela segue fielmente o direito posto ao serviço' da definição dos delitos.

Se o direito varia, de acordo com as alterações das estruturas eeonômico-soeiai s, a capitulação dos

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18 ARRUDA CAMPOS

atos, estigmatizados como delitos, fica ao arbítrio dolegislador.

Tudo depende do ponto de vista predominante do grupo que empolga a super estrutura da sociedade. O aluguel do trabalho liumano, por exemplo, considerado crime nos países comunistas, é lícito e constitui até uma das bases da prosperidade dos países capitalistas. Da escravidão humana, como a tivemos até recentemente, pode dizer-se a mesma coisa. E assim por diante.

A mudança do regime repercute intensamente nas ações das criaturas.

O Cristo pregou — não furtarás — e, todavia, os liomens continuaram furtando e em larga escala, por­que a. vida atual é cheia de tentações.

Na União Soviética, restringida a propriedade par­ticular,. deixou. de haver .a,.-usura,., acabou a usurpação de terras, excluídos foram os açambarcameiitos de gê­neros, terminou a exploração da economia popular, pelo que, ipsQ-facio, caíram extraordinariamente os níveis da incidência dos furtos, estelionatos e outros crimes contra o patrimônio. Em compensação, surgiram figuras no­vas, em substituição, que constituem delitos contra o Estado.

Colocada a questão dêsse ponto de vista, pode-se prever, quando se modifiquem, certos conceitos de nossa sociedade, o quase desaparecimento do crime de adul­tério, de contrabando e outros, mediante a simples ado­ção do divórcio e franquia das fronteiras, pois que há sempre um direito novo, em formação, pronto para substituir o velho, que caduca. Inversamente, teremos a lei criando novos delitos, como ainda agora aconteceu com essas que visam, com penas brandissimas, a proteção

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A JUSTIÇA A SERVIÇO DO CBIJIE 1!)

da economia popular, ou aqueles, que recebem eomina- ções gravíssimas, chamados geralmente de ('rimes polí­ticos ou contra a segurança nacional.

14. Georges Ripert assim se manifesta:

“Os estudos recentes, que possuímos sôbre as transformações do direito privado durante o século X IX mostram com perfeição como o desenvolvimento da civilização material e as mudanças na qualidade das riquezas tornaram necessária a reforma da legislação civil, e tam­bém como as nossas idéias e concepções foram em mais dum ponto transformadas por essas novas regras. Mas, ao ler êsses estudos, dir- -se-ia que essa evolução foi ao mesmo tempo fatál e benvindá. A uma sociedade nova cor­responde um direito novo; não é para espantar o ensino de que o direito é um produto da vida social, e devemos até felicitar-nos se tôdas as novidades forem consideradas como um progresso” 2.

Eqüivale dizer, mutatis mutandis, que cada. civili­zação tem seu crime, O cavalheiro de indústria tomou o lugar do cavalheiro de punhal.

15. Escolhendo com relativa liberdade os atos e fatos que devem ser definidos como crime, a lei despreza o conceito do que seja anti-social, substituindo-o pelo que. é antijurídieo.

2, O Regime Democrático e o Direito Civil Moderno, item primeiro.

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20 AliRÜBA. CAMPOS

Não vamos perquirir o que sejam o bem e o mal. Baste-nos a noção vulgar, que os homens sentem antes mesmo de compreender, e que subsiste, sempre, no co­ração da. criatura humana. Tal seria fôssemos dizer aqui o que seja o mal, o que seja o bem.

O delito é um fato. É mn fato que tem a sua re­percussão, porque cria, modifica ou faz desaparecer uma determinada situação pré-existente. O delito é também um ato. É um ato* porque depende da intercorreneia do elemento vontade.

Num conceito amplo, delito deveria ser todo mal praticado, dolosa ou culposamente, por causa do pre­juízo causado a alguém, ou à coletividade. Situado no espaço, seria todo o ato anti-social.

Anti-social, no sentido da comunidade perfeita que se procura alcançar, não a que subsiste em determinado momento e que se recobre de um direito para ela feito sob medida.

Á lei da classe dominante, porém, estabelece uma distinção. Abandonando o conceito do anti-social, que envolveria muitos dos atos praticados pelos seus elemen­tos mais representativos, cria, arbitràriamente, o concei­to menor, do ato antijunãico.

Essa distinção abre caminho à compreensão do que, restrito o exame ao campo do direito criminal, em se­guida se vai consignar.

Figurativamente são dois círculos que se contêm um dentro do outro. O maior envolve os atos anti-sociais e o menor apenas os atos antijurídicos. Entre os dois há um espaço. Há uma faixa circular, vazia, uma área que chamaremos de subdelinqüência, onde toão o

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mal praticado não implica na infração da lei penal, ainda que cause danos aos indivíduos ou à própria sociedade.

Todo o esfôrçò das infra-estruturas sociais, na pro­dução de um direito novo, tem por objetivo reduzir a largura dessa faixa, para que os dois círculos se con-

A JUSTIÇA A SERVÍÇO DO CRIME 21

fundam. Pode-se até estabelecer um critério para afe­rição do grau de cultura de um povo através da medida da largura dêsse espaço que os anseios populares pro­curam preencher*

Há um êrro.O êrro está em que, em vez de constituir uma ação

voltada contra a sociedade, o delito é considerado tão-

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AliFUÍJA CAMPOS

-somente uma ação voltada contra a lei, Pode o agente do ato atingir a sociedade, que não incidirá na lei penal. Permanecerá incólume e impune desde que não aban­done a área da subdelinqüêneia.

A êsse respeito nunca será excessivo lembrar que, se a transgressão do dever jurídico, no campo do di­reito civil, cria uma sanção, que, reduzida a números, pode ser considerada equivalente ao dano, já na esfera da criminalidade não há critério fixo que justifique as diferentes graduações estabelecidas pelo legislador. Mão há proporcionalidade constante entre as faltas co­metidas e as punições que elas acarretam. O crime de abandono de família dá margem a penas ridículas e mesmo o homicídio, que no Código de 1890 autorizava a condenação a 30 anos de prisão, no atual se ajusta ètitre 6 é 20 anos.

Da lei de Talião — ôlho por olho, dente por dente— pode dizer-se que tem efetiva aplicação no Direito Civil, É a indenização, são as perdas e danos, são os lucros cessantes, os juros da mora. É a regra, quase matemática, de correspondência entre uma coisa e outra, entre a infração e a compensação.

No crime, todavia, inclusive no capítulo da legíti­ma defesa, não há respeito a essa regra de proporção. O direito do cidadão fica à mereê de fórmulas, quase sempre vazias — da habilidade, ou ínaptidão do advo­gado, ou do promotor, e sujeito ao julgamento de cria­turas que projetam adiante seus próprios problemas e. geralmente decidem humanamente, ou seja, em função de suas angústias, de suas alegrias e de seus de­senganos.

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A JUSTIÇA A SERVIÇO 1)0 CRIME

16. A opinião que predomina entre os doutos é a de que o princípio nullum erimen m ie lege visa defender os cidadãos, colocando-os a salvo de quaisquer violências. Hão podem os governos, nem as polícias, nem os juizes, cometer ação contrária à lei, donde a conseqüência de que não podem perseguir ou f racionar a liberdade de quem quer que seja, se a pessoa visada não praticou atos definidos como delituosos.

Von Liszt é de opinião diferente, afiançando que tal sistema não protege ô cidadão comum, nem a ordem legalj nem mesmo a sociedade, mas o indivíduo que comete o crime — uma vez que lhe outorga o direito de não ser castigado, senão nas condições e dentro dos limites legais.

Parece-nos, todavia, que a questão é outra. O prr- ceito nullum erimen sine lege não visa a. proteção :do cidadão comum. O homem normal, vida a íora,- está sempre longe da delinqüência, pelo que lhe é indiferente essa modalidade de amparo legal. Igualmente não aco­berta o criminoso, porque constitui justamente o catálogo, das penas que lhe são cominadas. Quem se beneficia da aplicação dessa regra é o agente que pratica atos anti-sociais sem sair da faixa da subdelinqüência. Êsse não é o homem comum. Também não é o criminoso. É o indivíduo que usa o Código Penal como uma carta de navegação. Que faz o seu contrabando junto cios es­colhos e nunca avança para o. mar alto da honestidade.

17. 0 dogma nullum erimen sine lege está hoje suficientemente desmascarado. Entretanto, sua falsida­de se ressalta quando se cogita do que, num outro eu­femismo, os juristas chamam de crime iDolítieo.

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24 ARRUDA CAMPOS

Enquanto as conveniências dos grupos dominantes se ajustaram, certos homens da Alemanha, dos E, XX. A., da Franca, da Inglaterra, da Itália, da II. Ií,, S. S. e do Japão, eram tidos como grandes individualidades. Quando os interesses dêsses grupos, nas diferentes na­ções em que dominavam, entraram em choque, provocan­do a conflagração, passaram subitamente à condição de bandidos. E quando a guerra terminou, os veneidos foram considerados criminosos.

Seguindo a lei do mais forte, os governos triunfantes refluíram às fontes mais remotas, e conseqüentemente mais bárbaras, e delas retiraram novos princípios para justificativa da exemplificação que pretendiam fazer.

Com representantes dos juristas dos governos vi­toriosos,., foi criado um tribunal internacional para jul­gamento dos antigos grandes homens. A eôrte de jSTií- remberg exprimiu, num dado instante, o grau máximo da cultura jurídica das nações vitoriosas.

Contudo, o dogma nuMum crimen sine lege foi ba­nido. Guerreiros ilustres, que cumpriam ordens, que venceram batalhas, foram responsabilizados. Em ne­nhum texto penal se encontravam os dispositivos que pudessem enquadrar o seu patriotismo e a sua bravura. Todos os códigos que acaso fossem consultados — exce­ção feita do Dinamarquês e do Soviético — estipulavam uniformemente que não há crime sem a X3révia definição da figura delituosa, Não obstante, foram condenados. ISFão obstante, forám mortos3.

3, O Código Penal Dinamarquês de 1930, revelando o alto grati de ci- vilisação do país, adotou o princípio da analogia. Já o Código Soviético, eis elaboração, que substituirá a legislação penal das diferentes repúBlícas da URSS,

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A JUSTIÇA A SERVIÇO DO CRIME 25

Foram assassinados, como criminosos, em nome da ordem jurídica,.

Agora, que desapareceram, podem os tratadistas eontimiar cantando loas ao princípio de que nullum cri- men sine lege e proclamar que êle constitui a garantia do cidadão comum. Mas, os mesmos governos, que rearmam os alemães, italianos e japoneses vencidos, e lamentam o trueidamento a frio de tão bons cabos de guerra, que lhes poderiam ser úteis na próxima guerra que intentam preparar, já revelaram claramente que, quando convém aos seus grupos dominantes, podem até pisotear o direito.

18, Dentro ainda do eufemismo — crime político— liá tamoém a fórmula do julgamento de ordem pes­soal. Ê uma pequena digressão, mas o caso ajusta-se ao tema. Ao propagandista da paz, que quer pacifi­camente disputar mxia inocente eleição pode-se atribuir a intenção de subverter violentamente a sociedade, fa­zendo inclusive a guerra. Haja vista a decisão abaixo transcrita do egrégio Tribunal Regional da Justiça Elei­toral de São Paulo:

"Os três candidatos que se apresentam nes­sa qualidade, não como elementos do PTX, mas assim como candidatos a vereadores pela Alian­ça Popular pela Paz e contra a Carestia, en-

eíimmará o sistetna instituído em 1926 “ porque o delinqüência está de tal forma reduzida que não há necessidade de dar essa arma aos julgadores para que ajudem o governo no combate à criminalidade” .

A questão não ê de substância, mas simplesmente ilustrativa, Por isso, fica apenas o registra dda.

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ARRUDA CAMPOS

tidade desconhecida e ilegal, não escondem suas tendências, e o seu jôgo nos estribilhos de sempre, . . Há, finalmente, as incisivas infor­mações prestadas pelo Departamento de Ordem Política e Social do Estado.

Merece reparo a afirmação do Dr. Juiz de Direito, com fundamento num exame parcial da Constituição, de que ninguém tem o direi­to de impedir que o povo se oriente para a esquerda ou para a direita, porque o povo é soberano e sua vontade deve ser • respeitada donde a impossibilidade jurídica da criação de qualquer impecilho à expressão da vontade popular.

K que a citada Constituição, promulgada, pelos legítimos representantes do povo brasi­leiro, sem as influências de ideologias impostas por estranhos, ao mesmo tempo que declara livre a manifestação do pensamento, não tolera propaganda de guerra e de processos violentos para subverter a ordem política e social rei­nante no País (art. 141, § õ.°). Ora, os co­munistas ativistas pregam exatamente essa sub­versão violenta de nossos princípios e das nos­sas tradições. Ignorá-la é agir com evidente má-fé. 0 Partido Comunista Brasileiro foi declarado fora da lei por decisão de nosso mais alto tribunal. Não existe “de jure” , mas existe de fato, na sombra, embora em franco declínio. Não poderá, conseqüentemente, em ligação com inescrupulosos partidos, enquanto vigente a

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A JUSTIÇA A SEHVÍÇO i)0 CBTMfi

Constituição e as leis que cascaram seu registro, eleger representantes aos corpos legislativos do país. São Paulo, 8 de outubro de 1951” 4.

19, Para melhor preservação de seus interesses os grupos dominantes têm partidos políticos de reserva, que surgem ax>enas nas vésperas das eleições. São agre­miações fantasmas, que não incomodam os tribunais elei­torais, apesar do profundo mal que causam ao funciona­mento do sistema democrático. ■

Não passam de meras legendas, devidamente re­gistradas, que pertencem a determinados grupos, cuja função, além da venda de lugares a candidatos avulsos (para que seja assegurado o mínimo legal de votantes necessário à subsistência do suposto j>artido), é a de servir de cunha no jogo dos interesses contrariados, para favorecimento de alguns em detrimento dos demais.

Em relação a eles não há nenhuma providência defensiva do regime. A Justiça Eleitoral nada pode fazer — e nada faz.

Partidos, já o dissemos, deveriam ser órgãos da opinião pública. Deveriam ser estruturados democrati­camente, atraindo eleitores de acôrdo com seus progra­mas. Em vez disso, constituem pirâmides invertidas. São dirigidos de aeôrdo com as conveniências dos grupos que têm os nomes de seus membros inscritos nos regis­tros eleitorais. Tal, exatamente, como sucede com os privilégios de invenção, que são propriedade de al­guém.

4. Acórdão n,f 18.735 — Publicado no "Diário Oficial" do Estado, de 23 de outubro de 1951, pág. 46.

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2$ AiíiíUM CAMPOS

Quando os grupos dominantes se sentem realmente em perigo, quando o reeurso da chapa única se revela ineficaz, quando os poderes do Estado não conseguem conter a infra-estrutura, então recorrem ao gesto estre­mo, característico dos países subdesenvolvidos, onde a soberania do povo não passa de uma vaga e inexata ex­pressão : — rasgam a Constituição, como foi rasgada em 1930, depois em 1937, como rasgada acabou sendo a de 1946. Rasgada (1955) e colada, de novo. Para isso ela é de papel.

20. É assim que podemos voltar ao início dêste trabalho, quando escrevemos que o direito ainda é uma cristalização da força, ou uma ficção sistematizada, que se criou, para que os homens fortess, que se articulam na superestrutura da sociedade, possam defender seus privilégios, abafando as reivindicações dos que vivem na infra-estrutura,

Caricatos são os juristas quando comparados aos que se dedicam às ciências positivas, que aludem às doutrinas do Cor pus Juris com a mesma gravidade com que a matemático faz a demonstração de um teorema. Niãlmn crimen siâie lege} com exceção de Nuremberg— e do resto.

21. O resto age na área movediça da subdelin- qüêneia, fazendo uso das sondas para medir a profundi­dade dos lugares por onde conduzem a nave suspeita de seus perversos intuitos. São, em linhas gerais, os que rompem o equilíbrio entre o capital e o trabalho e abrem brechas no sistema capitalista, pelo fato de que auferem lucros injustos.

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A JÜSXIÇA SERVIÇO DO CRIME 29

C4rupos imensos e poderosos existem, que se íor- raaram como a borra da guerra, cujo ganho não en­contra justificativa nem mesmo nas complacentes normas da vacilante moral dos dias de hoje. Seu dinheiro vem drenado da infra-estrutura e causa o empobrecimento de dezenas de milhares de criaturas. Produz, além do mais, uma concentração pernieiosa, que os autoriza a gastos imoderados, a uma vida acintosa na abundância e no luxo, determinando a elevação geral do custo das utilidades.

Êsse lucro não surgiu do trabalho normal das na­ções capitalistas, como a Inglaterra, a França, a Itália, os Estados Unidos. Veio foi da desarticulação da so­ciedade, que se anestesiou e já não sabe se defender, jfi o lucro do que ganha com o (pie devia dar de graça, e que Santo Tomás define como* . caracterizador do usurário.

Consolidados 110 seu poderio econômico, êsses sub- delinqíientes, que praticam atos genuinamente anti-so­ciais, quase num suicídio coletivo, fazem mais, Rei­vindicam e conseguem 0 poder político. Para êles não existem informações da Polícia. Indivíduos que pra­ticaram crimes comuns, e que estão sendo processados pela Justiça, atravessam fàcümente os largos erivos da Justiça Eleitoral e compram votantes como se fossem mercadorias para conseguir a imunidade parlamentar que Ib.es dará a impunidade.

Quem semeia votos colhe legislação5.

Daí a notória incapacidade do legislador brasileiro, sobretudo quando se trata de reformar a legislação, dentro de um plano de conjunto, conseqüen­temente trabalhoso t difícil de ser levado adiante. Ê mais fácil ao Parlamento

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a r r u d a c a m p o s

22. São de Eipert estes conceitos: — “Os juristas não podem ignorar por quem, e como é feita a lei. Sabem que esta é apenas a expressão da vontade duma maioria de parlamentares, por sua vez eleitos por uma maioria de eleitores. Como os indiferentes são mais numerosos do que os atuantes, trata-se no fundo da expressão da vontade duma minoria, e, como sobre mais dum ponto nem os eleitores, nem os ];>arlamentares vêem com clareza, a lei representa simplesmente a vontade j>ersistente dum homem ou de alguns homens. Sabe-se que determinada lei foi preparada e proposta por determinada pessoa ou grupo, que o voto foi facilitado por uma campanha de imprensa, e que o dinheiro pagou determinada pro­paganda. l^os debates do Parlamento os grupos polí­ticos opõem-se: os homens lutam pelos seus interesses 011 a satisfação do seu orgulho; os parlamentares obe­decem às exigências imperiosas dum grupo ou dum in­divíduo; e por vêzes, 110 meio da indiferença geral, um indivíduo isolado impõe uma reforma, em nome não sei de que ideal, interesse ou capricho. Os juristas sa­bem-no, mas não o dizem. Desde que a luta dos interes­ses ou a indiferença geral permitiu o voto dum texto, êste, pela virtude do decreto de promulgação, torna-se para êles coisa sagrada. E, no entanto, quem poderia descobrir na elaboração legislativa moderna um plano

cuidar de urna reforma constitucional, que vise permitir a prorrogação de mandatos ou a reeleição dos ocupantes das mais altas posições «os governos, que elaborar ntaa pequenina lei que proteja as vítimas dos textos mal en­quadrados.

Assinale-se, todavia, que à falta de espirito democrático do Judiciário, que o leva a um estado de permanente acomodação, deve ser carregada uma parte da responsabilidade pelas omissões atuais. O Judiciário não aponta caminho, não reclama, não reivindica —* preferindo omitir-se, comodamente, a mostrar ao povo que está inocente e não tem meios de agir.

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A JUSTIÇA A SBÍ5VJÇ0 DO CRIME 31

de organização do paísl Se acaso tomássemos urna após outra as leis votadas «.estes últimos anos, poder-se-iam intentar curiosas açoes de paternidade. Âliás, um pro­jeto insj)irado pelós motivos mais diferentes sai muitas vêzes do Parlamento dilacerado pelas discussões e re­mendado com disposições cessionais. Tôdas as leis mo­dernas sofreram uma operação cirúrgica e os operadores são numerosos, se não desinteressados. Os tratados de direito civil não fazem nenhuma alusão a esta influência do poder político sôbre a confecção e a transformação das leis. Acusam com freqüência a inabilidade do legis­lador, mas nunca ousam dizer qual o interesse político que ditou o projeto ou deformou a lei. Ensinam que existe uma evolução do direito, mas obstinam-se em desconhecer os que se esforçam por levá-la a eabofí 6.

23, Amarrado à Constituição o Poder Judiciário cumpre a lei. Pelo menos em teoria. Não lhe é dado discutir as origens dela, nem investigar a intenção de seus autores. Não pode recorrer à analogia para al­cançar nas suas malhas os que agem contra a sociedade, empobrecendo-a injustamente, levando-a à miséria e, por fôrç-a da miséria, à própria escravidão. Não pode nem sequer salvar da ignorância as crianças que na época propícia aos estudos, são forçadas a ajudar seus geni­tores no ganho do pão de cada dia. Ao Judiciário cabe assistir de braços cruzados o desenvolvimento dêsse dra­ma da infância j>erdida, desse ato anti-social pavoroso que constitui, um crime de lesa-pátria. Há que se: cingir aos textos, impossibilitado de apanhar os que circulam

6. Ripert, ob. cit,, item 3,'-'

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33 a r íU -D a c a m p o s

entre os artigos do Código Penal, sem tocar em nenhum, porque cumpre o juramento constitucional e, no campo do direito criminal, segue o princípio de que mãlum cnimn sine lege.

Daí a razão pela qual a Justiça está ao serviço dos grupos de liomens fortes, que lhe distribuem as tarefas através de Códigos e leis esparsas. Castiga o “vigarista” que iludiu o paspalho, recebendo dinheiro bom a troco de papéis velhos, sem valor, mas não põe a mão no meorporador de sociedades anônimas irregulares, ou 310

instituídor de condomínios fantasmas, que iludem 0 mes­mo indivíduo, recebendo dêle dinheiro bom a trôco de papéis novos, sem valor, porque, num caso, agindo sob a disciplina do Código Penal, 0 agente perpetrou um estelionato, enquanto nos outros, manobrando sob a pro­teção do Código Civil, realizou apenas um negócio. São sutilezas que distinguem 0 ilícito civil do ilícito penal na área da subdelinqüência.

24, Todo 0 esforço da humanidade tem sido diri­gido no sentido de reduzir a extensão da faixa de sub- delinqüência. Em compensação, os que, sem títulos de propriedade, a ocupam, e que nela têm a sua lavoura de votantes, tratam de alargá-la cada vez mais.

Piquem pois assinalados, fortemente assinalados, estes quatro pontos que restringem 0 âmbito da primeira parte dêste pequeno estudo:

k) a lei representa o interesse dos grupos econô­micos dominantes;

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o Judiciário, escravo da lei, -mas Bem nenhum apoio no povo, serve aos interesses desses grupos;o delito, em vez de abranger o ato anti-social, envolve apenas o ato antijurídico;o princípio de que nulhmi erimen sine lege visa a proteção dos que, praticando atos anti-so­ciais, não chegam a violar a lei.

A JUSTIÇA A SERVIÇO DO CEIME 33

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C a p í t u l o I I I

A JUSTIÇA APLICA A LEI

25. Podemos agora, do plano geral, deseer ao par- ticular, abordando o assunto que nos moveu a compor o presente trabalho.

Para a defesa da snperestrutura, bem assim de algumas camadas privilegiadas da infra-estrutura social, o poder público estabelece normas, define os delitos e atribui a um ramo do Judiciário, — a Justiça Criminal— a tarefa de aplicá-las.

O objetivo básico da Justiça é o de selecionar o in­frator da legislação, sopesar-lhe a responsabilidade, me­dir o grau de sua perieulosidade, puni-lo,, reajustá-lo, devolvendo-o em seguida à coletividade para que seja um elemento útil no convívio social, É o essencial.

Pouco importam os intuitos subjetivos, que animam as discussões acadêmicas, quando se procura indagar se a pena constitui vingança, represália, castigo ou exem­plo. O interesse da sociedade é um . só. É o de que o delinqüente retorne curado, para que cuide corretamente de suas obrigações como a generalidade dos cidadãos.

Quaisquer que sejam, as teorias que procuram expli­car as razoes da punição eonfluem sempre na, questão do co m p o r ta m e n to do criminoso desde o instante em que termina o cumprimento da pena.

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A JUSTIÇA. A SERVIÇO DO CRIME

Nesse instante, das grades que se abrem, é que a sociedade vai ver se os homens que aceitaram a tarefade administrar a Justiça Criminal, são de fato dignos da missão que pleitearam, ou se, ao contrário, não passam de indivíduos enfatuados, balofos, senão mesmo perversos ou perniciosos.

26. O roteiro da Justiça Criminal é o Código Penal, que constitui o dicionário dos crimes e consigna o receituário das penas. No rigor com que trata os crimes contra a propriedade e, por exemplo, na foran- dura relativa aos delitos contra a honra, ou no esqueci­mento do mal decorrente das sonegações de impostos, ou da inércia quanto ao que produz a erosão das terras férteis, traz registrada a marca dos grupos dominantes. Dentro do mesmo exemplo pode-se ver que o Código garante a navegação dos subdeliflqüentes, ainda, que, através da evasão dos tributos legais, êles pratiquem um típico ato anti-social. Estão impedindo o poder pú­blico de prestar benefícios necessários à coletividade e locupletando-se ilicitamente em prejuízo do povo. Da mesma forma, o indivíduo que não combate a erosão do solo está saqueando as gerações futuras.

.0 Código Penal de 1940 foi elaborado por alguns juristas, que nunca passaram de teóricos, não propria­mente desumanos, mas anti-humanos. O texto que pro­duziram desconhece o homem e ignora a sociedade. Brutal e monstruoso, rasteja ao serviço dos poderosos, que, afinal, não pediram e não precisavam de tanto.

Pune o autor do desfalque, sem cogitar das causas que determinaram o crime. Finge não saber que o

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36 ABBTJDÂ CAMPOS

criminoso perdeu o dinheiro no jogo, e o perdeu porque aprendeu a jogar na infância, apostando estampas nos álbuns de guloseimas, de cuja venda o governo tira proveitos; viciou-se depois no “ jôgo do bicho” , que sub­siste porque os banqueiros subornam as autoridades que deveriam prendê-los; acabou de desviar-se, por fim, jo ­gando nas corridas de cavalos, antros miseráveis que gozam de proteção oficial e são considerados de utilidade pública.

Castiga o ladrão, sem ter em conta que, regra geral, êle é produto do meio em que foi abandonado, da miséria desesperada em que arrasta a sua existência. Não toma conhecimento das maltas de meninos desamparados, em relação às : quais o poder público nada faz ; filhos de sentenciados, de alcoólatras, de vagabundos, crianças sem lar, sem brinquedos, esquálidas, esfaimadas, rôtas, bi­chos que dormem nas ruas e que as autoridades, egoisti- camente, preferem simular que desconhecem.

O Código Penal não percebe que aqui o delinqüente tira o seu diploma nas escolas.de crimes que o Estado mantém. Passa por cima de todo êsse complexo e os­tensivo processo de. desintegração do caráter dos in­divíduos, das oportunidades que o Estado cria para que, cedendo às tentações, o adolescente enverede pela senda da criminalidade.

Foi elaborado na frieza dos gabinetes, sem que seus autores sentissem o cálido arfar de um só sentimento de humanidade. Obra gerada em regime de ditadura, surgiu, aberrante no seu rigor, divorciada da vida, so­bretudo da vida dos brasileiros. Bom, talvez, para a Suécia, onde o Estado não ensina as crianças a jogar, a

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A .JUSTIÇA A SERVIÇO ÍXJ CHIME

beber, nem muito menos a fazer um curso completo de subtração do albeio,

A desonestidade desses homens é patente, Os ju­ristas da ditadura, que souberam prever penas tão exa­geradas para certos crimes, também sabiam que não te- mos os estabelecimentos de regeneração que descreveram na Parte Greral. Fixaram as sanções visando tão-somen­te a segregação do elemento reputado mau, pelo maior tempo possível, para impedir que continuasse pertur­bando a tranqüilidade coletiva, sem se importar com a pessoa do delinqüente, nem ainda com o interesse da sociedade que terá um dia de recebê-lo de volta. Um, que é acionista de estabelecimentos bancários, majorou o castigo da apropriação indébita para defender o seu banco; e outro, que é rico e tem jóias em casa, puniu duramente o ladrão para resguardar as jóias'"de sua mulher.

O Código não teve em consideração o elemento hu­mano na paisagem social brasileira. Não levou em conta o desajustamento de nossos homens, que se desenvolve de uma forma diferente do que se passa na Escandinávia. Na Suécia, forma-se o cidadão, enquanto aqui temos máquinas de entortar crianças, de perverter jovens e adultos. Aqui, deforma-se o homem. O Código, porém, tratou-nos como se fôssemos uma nação do mais elevado grau de cultura.

Por tudo isso, e mais coisas ainda, deve defender-se o delinqüente dos rigores do Código Penal. Trata-se, afinal, de causar o menor. mal possível a um homem que, condenado, vai ser sacrificado. Tudo porque meia dúzia dc teóricos, de coração endurecido, etn- pafiados pelas suas culturas germanizadas, italianizadas

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3 8 ARRUDA CAMPOS

e afraneesadas, criou essa estrutura desalmada, em que mn defendeu o seu banco, outro as jóias da família, enquanto o terceiro, por via das dúvidas, pelo art. 240, tratou de pôr a salvo a própria mulher.

27, Bem longe poderíamos ir se fôssemos compa­rar os critérios do legislador na estipulaeão das penas, cominadas, por exemplo, aos delitos contra o patrimônio em relação aos crimes contra a honra. É vergonhosa a insignificância destas, sobretudo diante do exagero daquelas, numa demonstração clara de que, para o Có­digo Penal, a honra é o de menos, enquanto os valores materiais são o essencial

Haja vista o caso do latrocínio, que o legislador incluiu entre os crimes contra a propriedade, sem ter sequer a preocupação de lhe dar nomen guris: está de­finido no parágrafo de um artigo que capitula o roubo. Daí uma certa jurisprudência no sentido de que êsse delito não se inclui na esfera de competência, de jul­gamento do Tribunal do Júri.

O indivíduo mata, para roubar a quantia de dez mil cruzeiros.

Pune-se a subtração dos dez mil cruzeiros, com a majoração acessória decorrente da morte do paciente.

O indivíduo mata para roubar a quantia de dez cruzeiros.

Pune-se a subtração dos dez cruzeiros, com a, ma­joração acessória decorrente da morte do paciente.

O indivíduo mata para roubar uma carteira, que supunha estar cheia de dinheiro. Vendo-a vazia, aban- dona~a;sôbre cr cadáver da vítima.

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K JUSTIÇA A. SEBVIÇO ÍXJ CKTME 39

Pune-se a intenção de subtrair o dinheiro, em ca­ráter principal. Quanto à vida humana roubada, tem importância menor do que a carteira vazia.

Há mais.A mulher abandonada que pretenda alimentos,

mesmo os provisionais, para si e para seus filhos, deve ajuizar uma ação contra seu marido. Arma-sè um pro­cesso litigioso, com depoimentos pessoais, inquirição de testemunhas, vistorias, perícias, etc. Sujeito aos aza- res das pautas, prolonga-se o feito, ou arrasta-se, na conformidade das regras do contraditório. E trata-se de obter alimentos para que uma mulher e seus filhos não pereçam!

Como se a Vida se sujeitasse aos artigos dos códi­gos, meses se passam até que o assunto seja resolvido provisoriamente,.. Um. credor qualquer, porém, munido de uma promissória, ou de uma letra de câmbio, tem meios de exigir o pagamento do débito em vinte e qua­tro horas.

É a contraprova de que à lei capitalista pouco se lhe dá o sofrimento da criatura humana, contanto que o patrimônio do indivíduo seja resguardado.

Inverte-se o velho provérbio.Vão-se os dedos, mas fiquem os anéis.Contudo, não é apenas essa feição, que exaspera o

castigo dos que ameaçam o relógio e o quintal do le­gislador, que vicia e macula o Código Penal. Outras falhas existem, que só não são corrigidas porque até agora nenhum homem poderoso sentiu na carne os seus efeitos. É o caso da concessão do livramento condicional tão-somente para os condenados a penas de reclusão

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40 AteUD.i CAMPOS

ou detenção superiores a três anos, deixando, até êsse máximo, aberta a porta para a injustiça, pois fica im­possibilitado de obter o benefício todo o agente cuja condenação foi fixada abaixo dêsse limite. O condenado a cinco anos pode livrar-se' após dois anos e meio, en­quanto o que teve a sua pena graduada em três deve pagá-los integralmente, pois a lei, odiosamente, lhe re­cusa o direito ao livramento.

Yeja-se a imprescritibilidade da j>ena acessória (art. 118). quando prescrevem as penas principais, e tome-se tento da inépcia dos que ignoram a regra elementar de que o acessório segue o principal. O acanhado âm­bito da reabilitação (art. .119), que deveria ser muito mais amplo e alcançar tôdas as conseqüências adminis­trativas da pena; a questão do critério de reincidência para os crimes culposos e dolosos, a negativa do sursis ao reincidente que voltou a infringir a lei depois de longos anos de separação entre um delito e outro; o esquecimento da ameaça nos crimes de violência arbi­trária, com a preocupação apenas da violência física . ..

Bem longe poderíamos ir. Contudo, o que ficou assinalado é suficiente para nos livrar do prossegui-

. inento. Já é muito.

28. Falseado o conceito jurídico de crime, tudo o mais tem base precária, Não se aperceberam os juizes de que estão a serviço, não da Justiça, mas de uma jus­tiça de classe, de preconceitos, de interesses vulgares. Os próprios magistrados, que vão enquadrar os fatos à lei, são recrutados de modo vicioso. Embora a Cons­tituição declare que todo o poder emana do povo e em seu nome ê, exercido? o poder dos juizes emana de uma

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A .r - t h ;- , a sisitviro DD crímb 41

easta. JSao participa o povo, nunea participou, cie ne­nhum modo, do processo de escolha dos que devem jul­gá-lo 7. As constituições aparecem e desaparecem, mas não interferem na indicação dos que devem ser nomea­dos ou promovidos. Daí o desenvolvimento da política pessoal nos tribunais, que os transformam em convem tilhos togados, diante dos quais o povo e os próprios jui­zes são totalmente impotentes. Daí, também, o fato já apontado por alguns escritores, de que, enquanto o Exe­cutivo e o Legislativo reagem diante dos golpes de fôrça, o Judiciário sempre se rende. Preocupadíssimo com vantagens para seus membros, aceita a imposição e se aeumplicia aos vencedores, pois, mais apêgo têm certos magistrados eminentes a seus cargos que aos princípios que .juraram defender,

Á soberania do povo é uma simples palavra, desa­companhada de sentido, diante da majestade colosso de

7, A tese da eleição dos magistrados, ou pelo menos de certos magis­trados, não constitui novidade, nem muito menos nenhuma heresia.

Se o povo indica o presidente da República, nada impede que lhe caiba eleger pelo menos os presidentes dos tribunais, O mesmo princípio que levou o legislador constitucional a determinar que as cõrtes judiciárias reservem um quinto de seus lugares a cidadãos alheios à carreira — medida salutarissi- ma, que vai dando os melhores resultados — pode ser invocado para justi­ficativa da escolha dos presidentes dos tribunais pelo processo eletivo popular.

A má administração da justiça decorre exatamente dessa falha. Pela vontade doa juiíes, o ideal será a jüsíiça cara e demorada. Assim, os pos­tulantes desanimarão antes de ajuizar suas ações. Daí o prestígio crescente do brocardo segundo o qual é melhor um mau acordo do que uma ótima demanda —- optímae lití malã pacíio praeferenda.

É preciso que o povo, que sofre as conseqüências do péssimo regime ju­diciário, eleja quem redima a Justiça de suas falhas, ponha escrivães apro­veitadores na cadeia, numa palavra, faça o que os juizes não se mostram capazes de fazer.

O eleitorado brasileiro está em condições de atuar na formação do Poder Judiciário, pela simples razão de que quem pode o mais pode o menos. Quem elege o presidente da República pode escolher o presidente do Supremo Tri­bunal Federal.

Fora dai será preconceito.Serã a indébita íu(e!a do povo, muito do agrado dos oniscientes que

sabem o que interessa e o que não interessa à coletividade.

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42 AIÍÉUDA CAMPOS

pés de barro. O eleitorado, que elege o Congresso e o Presidente da República, não tem o jjoder de afastar um simples juiz relapso do exercício das funções, para as quais, à revelia da coletividade, foi escolhido.

Não é de se admirar, diante disso, que a Justiça cada vez mais se aproxime do poder e se afaste do povo. E, se os grupos dominantes a querem dessa forma, é por­que assim, ela lhes convém. Maleável, amoldável, quase como o líquido que toma a forma do vaso que o abriga.

29. Os Juizados de Menores, regra geral, são ine­ficientes e inoperantes.

Nos grandes centros transformam-se em Juíz-os de Maiores.

Limitam-se a consentir que a Polícia prenda os me­nores infratores, para que não continuem a dar tra­balho aos delegados, a servir a indústria e o comércio, fornecendo-lhes autorizações especiais de trabalho a menores — a crianças que ficarão inutilizadas, pela impossibilidade de levar adiante os estudos na época apropriada.

Os menores por aí se corrompem como se seus jui­zes não existissem. Mocinhas, no próprio serviço, nos balcões, são encantadas por indivíduos de escassos es­crúpulos. São seduzidas, são prostituídas, sem que providências de amparo sejam tomadas. Quanto aos rapazes, perdem-se nas más companhias e em número elevadíssimo enveredam pela senda da criminalidade.

O jôgo é franco. Joga-se até através de gulosei­mas destinadas à infância, por meio das chamadas ba­las figurinhas, que o governo federal, inconscientemen­te, autoriza sejam fabricadas e vendidas a crianças.

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A JUSTIÇA A SBRVfÇO 1)0 T E IM E

E as histórias de quadrinhos; de um poder deteriorai 1- te espantoso, que as autoridades superiores consentem contaminem a infância?

Não há necessidade de alongamento de exemplos. Diga-se apenas que os magistrados procuram se com­pensar e tranqüilizam a própria, consciência, iludindo- -se a si próprios. Daí o rigor com que agem nos bailes, teatros e cinemas, impedindo a entrada, de menores, ainda que acompanhados de seus genitores.

Em vez de protetores de imaturos são Juizes ds Garnmal,

30. No fundo os juizes tem uma vaga idéia da injustiça de sua justiça. A falsidade da lei penal pro­duziu a mecanização de sua aplicação. Gerou o processo puramente formal, frio, imóvel, do qual não se des­prende a nienor centelha de humanidade.

Entre Pedro e Paulo há a mesma diferença que entre 4 e 5, ainda que o Pedro seja. Pedro e, entre 4 e 5, rnedeie um ano de prisão.

A justificativa da pena — vingança, castigo, ensejo de recuperação — não é levada em conta. Pune-se, quase sempre, porque a lei assim o determina. O resto pouco importa. Tanto que os juizes têm mêdo de olhar os resultados de sua obra e de contemplar os destroços humanos que, enquanto avançam, vão ficando atrás.

O culto das teorias legais, tão do agrado dos ma­gistrados, pôsto não passe de citações superficiais, no fundo constitui o desabafo de um sentimento de culpa. Busca-se, não a verdadeira justiça, que consola o coração, mas o brilho de uma sentença que envaidece o espírito f■útil de seu prolator.

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ÁRRIJDA CAMPOS

Os magistrados que mais se destacam pelo ranço mau de sua orientação, igrejeiros, puritanos, melífluos ou inquisitoriais, são os que mais se dedicam à compi­lação de autores nacionais e estrangeiros. Empeteeam a maldade em que se comprazem,.citando acórdãos. Men­cionando frases de um latim, que, regra geral, não en­tendem, ou mais freqüentemente, os italianos, os fran­ceses, os espanhóis, que nada sabem da realidade bra­sileira, mas servem aos propósitos desalmados desses que, julgando o j^róximo, tratam preeipuamente da de­fesa de seus próprios interesses.

Por isso é que as referências eruditas, tão do agrado dos juizes brasileiros, enfeitam a maioria das suas de­cisões. São desculpas, conscientemente justas, para uma injustiça às vêzes inconsciente.

31. Em conseqüência do princípio,— que consti­tui quase uma característica dos povos latinos — se­gundo o qual os homens devem provar sua idoneidade antes de merecerem crédito, temos entre nós a consa­gração do perjúrio.

A testemunha falsa, como o perito falso, o tradu- tor ou intérprete, que minta, ou cale a verdade, cons­cientemente, até mediante suborno, tem direito à re­tratação, que eqüivale a um bill de impunidade

o fato deixa de ser punível, se, antes da sen­tença, q agente se retraía ou declara a verdade (Cód. Penal, art. 341, § 3.9).

O legislador pune apenas as conseqüências da fal­sidade, não a falsidade em si mesmo considerada.

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A JT S T IÇ A A SJ3JIVIÇ0 DO CUIMI5

Pelo Código Penal a imoralidade do ato, que cons­purca e contamina todo o Direito, não tem nenhuma significação.

Nos E. II. A., por exemplo, onde a posição do in­divíduo diante dos agentes do Poder Público é inver­sa, beneficiando-se os cidadãos, até prova em contrário, da presunção de idoneidade, o perjúrio é um dos de­litos mais graves. As autoridades norte-americanas são inexoráveis na perseguição dos que falseiam suas afirmações, porque êsse crime j)õe em perigo tôda a estrutura da justiça, que se baseia no pressuposto de honestidade de tôda pessoa humana. Tanto que, 110 cível, sentenças são proferidas, mesmo à revelia dos réus, bastando para isso que o advogado do autor afirme sob juramento que pessoalmente citou 0 requerido para a ação.

Basta uma palavra e cria-se uma certeza — en­quanto entre nós exige-se a fé pública de um oficial de justiça, que, muitas vezes, entra em conluio com a parte contrária, deixa-se subornar — e, principalmente, ja­mais gofre as conseqüências de seus crimes.

32. 0 fato criminoso é surpreendido pela autori­dade como um fenômeno isolado, inteiramente dissociado do respectivo meio. É como a chuva tropical, que num instante se forma, desaba e depois desaparece, sem que os homens tenham meios de evitá-la.

Não entra nas cogitações dos que decidem sobre as ações alheias a realização de um trabalho de avaliação das responsabilidades do meio social no aparecimento da delinqüência. Nem, aliás, adianta lembrar-se alguém dêsse fato, se as conseqüências de uma tal lembrança não

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4(> ARRUDA CAMPOS

podem influir eficazmente na solução do caso. A Justiça ignora até mesmo as modernas conquistas da psiquia­tria, tal Tez ■ (numa interpretação benigna), porque não haja psiquiatras em número suficiente para atendê-la, O indivíduo acusado é apenas um réu, não uma criatura, não um indivíduo, em grande |Darte produto do am­biente em que vive.

33. Êste trabalho seria apenas de ostentação se não insistisse, se não ferisse, para provocar reação. É preciso que se proclame que a Justiça Penal brasileira tem mêdo de olhar as conseqüências de sua atuação.

Pode-se compará-la à medicina, porque, em ambos os casos, o objetivo é a cura do doente.

É então como, num hospital, se os médicos se reu­nissem para diagnóstico de uma determinada enfermi­dade. B como se discutissem longamente sôbre o mal, em função do paciente, e de seus antecedentes, do local onde contraiu a doença e das circunstâncias que deter­minaram a contaminação. Ê como se chegassem por fim a uma conclusão definitiva, irremovivel, ou coisa julgada, que faz do prêto branco e de uma pedra um pedaço de madeira. E, uma vez atingido esse resultado, é como se os médicos enviassem o doente à enfermaria e abando­nassem o caso.

A Justiça alcança o diagnóstico final e manda o réu para o lazareto. Daí por diante, para ela, acabou-se o problema. Não quer saber se o tratamento dispensado é certo, se o doente está melhorando ou piorando, se êle está ou não contaminando os demais.

Nos hospitais verdadeiros é diferente. Os doentes são homens, não simplesmente números. Se a enfer-

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A JUSTIÇA. A SEim çO DO CRIME 47

maría é mal aparelhada, se não tem recursos, nem por isso a pessoa fica abandonada. Há sempre o médico caridoso que desce ao salão humilde e vai tomar, pelo menos, a temperatura de seu cliente. Para que êsse gesto de conforto e solidariedade- substitua o remédio que não existe.

Os médicos olham atrás e quase todos se orgulham do que fizeram.

34. O art. 261 do Código de Processo Penal, dis~ põe que nenhum acusado> ainda que ausente ou foragi­do, será processado ou julgado sem defensor.

B a regra, que decorre do texto constitucional:

“É assegurada aos acusados plena defesa, com todos os meios e recursos essenciais a ela, des­de a nota de culpa,, que, assinada pela autori­dade competente, com os nomes do acusador e das testemunhas, será entregue ao prêso den­tro de 24 horas” . — (Art. 141, § 25).

Por sua vez o art. 263 do Código de Processo Pe­nal declara que “ se o acusado não o tiver, ser-lhe-á no­meado defensor pelo juiz, ressalvado o direito de, a todo tempo, nomear outro de sua confiança, ou a si mesmo defender-se, caso tenha habilitação” .

Por derradeiro, o art. 265 do mesmo diploma es­tabelece mais que o defensor não poderá abandonar o processo senão por motivo imperioso, a critério do jtds, soh pena de m ulta...

A realidade, porém, sobretudo nos grandes centros urbanos, é muito outra.

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48 AREÜBA CAMPOS

O rico, ou mesmo o homem de recursos financeiros normais, que é chamado a prestar contas à Justiça, sempre, tem meios de consultar prèviamente um advo­gado, de modo a ajustar suas declarações à versão que o profissional vai sustentar nos seus arrazoados.

Quanto ao pobre, êsse liá de aceitar o dativo, no­meado na hora, com o qual. não troca palavra e de quem não recebe nenhuma orientação.

Nas metrópoles populosas a Justiça contenta-se eom a defesa formal do acusado: basta que tenha sido nomeado um advogado, basta que o advogado haja assi­nado os termos legais, para que a exigência constitu­cional seja considerada satisfeita.

Nos corredores dos Palácios da Justiça é comum assistir-se ao espetáculo de escrivães e escreventes pe­dindo a causídicos que assinem depoimentos de teste­munhas, ou interrogatórios já consumados, de juizes que fazem nomeações retroativas, para homologação de fallias insanáveis e de tribunais que se conformam com defesas puramente nominais, quando não ineptas, tão- -somente porque a regra da Carta Magna foi teorica­mente atendida.

35. Há também o êrro de fato, que decorre do defeito do sistema de captura do conhecimento.

Acompanhemos de novo um caso, desde que êle che­ga aos ouvidos de autoridade policial. Em vez de apu­rar a verdade, o delegado se limita a reunir elementos que são pròximamente contrários à posição cio indiciado, desprezando os antecedentes remotos, que possivelmente deram causa à ação. Se, por exemplo, o caso é o de um ladrão, não cogita saber se se trata de uma criança

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A JUSTIÇA A SERVIÇO DO CRIME m

abandonada, ou de fillio de um sentenciado, que cresceu ao léu, em malta de meninos vagabundos que a família. e o Estado não ampararam; se do autor de um desfalque, não pesquisa se o acusado não se viciou no jôgo, mesmo naquele estimulado pelo Estado; se de uma prostituta, não quer saber se a Fazenda Pública não cobrava dela um tributo pela “ casa de pensão” . O inquérito desco­nhece o organismo social, como o Código Penal desco­nhece o homem. Há por assim dizer um mecanismo psicológico que se repete. O Delegado de Polícia quer a condenação do indiciado para se livrar de novos tra­balhos, para se compensar do esforço que o processo lhe exige, para provar a seus superiores a sua eficiência. Descansa nessa hostilidade, que o faz esquecer de que não está levando em consideração o outro crime maior, praticado pela sociedade. Daí a espantosa freqüência com que o Judiciário repele, as conclusões dos inquéritos, quando não acontece, pela prova dos álibis, de apurar que “ confissões” foram obtidas por meios fraudulentos, não raro pela própria violência física,

36. O inquérito policial é uma peça indiciária, que aponta um crime e um criminoso. Parte do pressuposto de que a responsabilidade é exclusiva do delinqüente. Daí não se exigir uma busca minuciosa dos antecedentes, para dar ao julgador os meios necessários à imposição de uma penalidade justa. Parte do crime, quando devia começar das causas do crime. É como o médico que atalhasse a febre sem procurar indagar das causas da febre. O pior é que as testemunhas e as próprias partes, colocadas pela primeira vez diante de agentes do poder público, deixam-se muitas vêzes amedrontar, omi-

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tindo nu í*\'agerando fato^ em'st1"1 ai <1 a fix idu m s res­pectivas declarações, dando ao caso uma versão diversa da real.

Até hoje, não se deu a importâneia devida a êsse primeiro contacto, que vai servir de alicerce a todo o processo criminal. Certos fatos são levados a julgamen­to, até a última instância, em versões deturpadas, tão- -sòmente porque a peça inicial foi movimentada por investigador, por comissário, por escrivão, por um dele­gado, ou mesmo por uma vítima que não soube ou não quis agir com perfeita honestidade.

Os psiquiatras conhecem casos reservados de sedu­ção em que as ofendidas, na defesa do próprio pudor, inventam histórias as mais variadas para justificativa de sua aquiescência. São necessárias longas, reiteradas e insistentes entrevistas, até que se obtenha uma conclu­são que se supõe seja a verdadeira. Entretanto, quando uma jovem, se vê descoberta, é ouvida sumariamente por um indivíduo que mais se delicia com a obtenção de pormenores do ato sexual do que com o intuito de in­vestigar a existência de uni delito. E suas declarações passam a servir de base ao processo.

37. Na Inglaterra uma lei do século X IV con­sidera em estado de legítima defesa o indivíduo que é importunado pela curiosidade alheia. Pune-se quem es­pia indiscretamente, porque êsse gesto justifica a rea­ção do ofendido, criando ensejo para uma possível per- turbação da ordem pública.

Em conseqüência, quem passe à noite pelo Hyde Park, verá casais praticando intimidades, que não cons­tituem., objeto de atenção especial, de ninguém pela

50 ARRUDA CAMPOS

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A .JUSTIÇA A SERVIÇO DO CHIME 5.1

pademí; sei* obses^aéos-pelm curiosos :— que, por serem curiosos, são considerados provo- eadores.

Entre nós, num retorno à perseguição do pecado, nossa ineficiente Polícia, que não consegue defender a população, vai além da caca aos pares amorosos (como se fôsse possível impedir o acasalamento das criaturas humanas!) e invade os lugares mais discretos, inclu­sive hotéis, vexando os que lá se encontram. E quase sempre extorquindo dinheiro de porteiros, ou de seus proprietários — em nome da lei.

38. Vale citar, como simples sugestão o episódio relatado por H. «T, Laski, a que êle assistiu na União Soviética:

“ Ouvi um processo no qual se julgava uma mulher, vendedora de uma livraria, por haver furtado desta 170 rublos. Era uma mulher de 40 anos de idade e se tratava de seu segundo delito. Poi interrogada primeiro pelo juiz pro­fissional e a rispidez das suas perguntas fêz a ré cair em ohôro. Quando terminou o interro­gatório, passou a acusada a um dos juizes lei­gos, uma operária. Com uma ternura suave, impossível de se descrever, logrou que a pro­cessada referisse tôda a sua história. Ganhava 90 rublos por mês; tinha o marido inutilizado na guerra e quatro filhos pequenos; não havia freqüentado nenhuma escola noturna; nada se fazia para aliviar-lhe a carga de seus filhos. Tinha dívidas e se havia deixado arrastar por uma tentação repentina. Pelo telefone soliei-

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ABRDDá CAMPOS

tou-se o auxílio de um representante sindica­lista e de um membro da comissão 'diretora da casa de apartamentos em que vivia a proces­sada, Foram tomadas as providências neces­sárias para que ela pudesse tomar aulas de datilografia e taquigrafia, enquanto seus filhos visitavam os vizinhos e alguém cuidava de seu esposo durante três noites por semana. Foi- -Ihe dito que devolvesse dez rublos por mês enquanto ganhasse o seu salário atual; e quan­do seus novos conhecimentos lhe permitissem obter um aumento, pagaria quinze rublos por mês. Ao sair do tribunal a mulher era uma pessoa transformada j evidentemente, pela pri­meira vez, em muitos anos, a esperança havia entrado êm sua vida. Mas, ainda mais notável foi o que ocorreu depois de haver se retirado a ré. A mulher-juiz dirigiu-se ao seu colega profissional e o repreendeu pelos modos que havia manifestado; ao réu deve compreender-se, ajudar-se, não atacar-se. Se, em outra ocasião, ocorresse uma brutalidade semelhante, disse, ela levaria o caso ao “ soviet” local, porque tal atitude era incompatível com os hábitos da Justiça” .

E adiante:

“ Creio que é importante que os juizes se considerem obrigados a realizar uma tarefa de saneamento social Êles resolvem proble­mas de desequilíbrio social, não somente apli­cam penas,

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À JUSTIÇA A SEfcVIÇO DO CRIME 53

Vinculam os casos a resolver a tôdas as condições econômicas que podem descobrir. E no caso que acabo de narrar nada se teria ganho enviando a ré a um presídio; e muito pouco se fôsse colocada em liberdade depois de um período de prova, 0 que se fêz deu-lhe oportunidade de um desenvolvimento pessoal que lhe fortaleceu o auto-respeito; e isto se realizou com um mínimo de máquinas adminis­trativas, como parte da expressão natural de um ambiente ao qual os juizes pertenciam tanto quanto a própria processada” 8,

39, Um ensaio, que causou tremendo efeito ao desenvolvimento do sistema penitenciário brasileiro vul­garizou uma expressão fascinante; — Sua Excelência, o Réu. Partindo de pressuposto errado, seu autor, jogou com a comparação entre o tratamento dispensado ao réu e à vítima e tirou falsas conclusões. Deu forças aos displicentes, aos ignorantes e aos relapsos, que sa- colejam os ombros, e, como uma tábua de salvação* re­petem o título da monografia. Se as vítimas não obtêm reparação, por que tantos cuidados com os réus?

0 mal que êsse trabalho cansou ao Brasil é espan­toso. Parece que juizes e tribunais não queriam outra coisa senão alguém que lhes emprestasse forças para desenvolvimento de sua mazelas.

Ora, a situação do réu é uma e a da vítima é outra inteiramente diferente. Pouco importa que a vítima seja quase sempre abandonada. É abandonada por culpa

8. Laski, "Ei Peligro ds Ser Gentleman y Ofros Ensaios" — Buenos Aires s/d págs. 84/85.

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54 ARMT.7DA C A M P O S

do Estado, não da Justiça. Aos magistrados não com­pete velar pelas vítimas, senão apenas julgar os de­linqüentes, da mesma forma como ao médico não cabetratar da pessoa que levou o doente ao hospital, mas tão-sòmente do enfermo.

Se o Estado não se incomoda com as vítimas, êsse fato não deve agravar a situação dos réus. Aos juizes, está reservada a tarefa de médico, a quem os acom­panhantes não interessam, pois não são doentes.

Pugnemos pelas vítimas, que pagam pelo que não fizeram. É um dever social. Mas, pugnemos também pelos réus, que, se pagam pelo que fizeram, em com­pensação ao seu lado têm criaturas que sofrem sem nada ter feito. É uma. obrigação legal.

40. A Justiça brasileira não interessa o homem, já ficou dito, À. Justiça não interessa a Justiça, já ficou assinalado.

Então — pode perguntar-se — que afinal a in­teressa ?

à Justiça, do modo por que funciona, interessa tão- -sòmente o aspecto formal dos casos que lhe são sub­metidos a julgamento. Cultua a exterioiidade, não a essência. Assim, sendo o réu um nome, não uma pessoa que vive, palp ita, anseia e chora, pouco se lhe importa que seu procedimento seja justo.

Há aqui mais uma lamentável deformação.Justiça tarda não é justiça. Justiça que passa da

pessoa do delinqüente é injustiça. A Justiça, para quemereça êsse nome, há de ser malgrado a necessária re­dundância. - - uma justiça justa.

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A JU STIÇ A A SERVIÇO DO CRTM.E 55

41, Comumente acontece que o criminoso continua em liberdade após a prática do delito. Corre o processo lentamente, vagarosamente, porque não há possibilidade de que seja decidido depressa. O réu se arrepende e toma rumo na vida. Regenera-se, entrega-se ao trabalho honrado, assume compromissos, constrói até o seu lar. Quatro anos depois, num tribunal, trava-se uma grave discussão sôbre a arquitetura interna de um certo órgão feminino. Tratadistas insignes são mencionados. Exal­tam-se os julgadores, numa disputa acirrada., como se estivessem decidindo sôbre um dogma de fé. Surgem os depoimentos e as recordações pessoais. Os textos legais são esmiuçados, com citações de Manzini, Sabbatini, Del Vecchio. Busça-se, através das interpretações, autêntica, analógica, gramatical, autoritária e lógica, busca-se uma solução.. Naquele instante, dir-se-á que a segurança da sociedade depende de um pedaço de mucosa, sem quali­ficativos, que há quatro anos, segundo opinião de um médico recém-formado do interior, tanto podia ser com­placente como indiferente. E de repente, pelo voto de Minerva, que às vezes é aplicado contra o réu, a con­denação desaba sôbre a cabeça de um chefe de família, arrastando-o à prisão.

É o médico que, verificando que o doente sarou, ainda o remete à mesa de operações,

42, A Justiça brasileira não lida com homens. Daí o fato de que lhe é indiferente a.sorte do sentenciado. O homem pode ter mudado, ser outro, sem comparação com o que existia na ocasião do crime. Seu nome, po­rém, é o mesmo. O nome se agrega ao indivíduo e se confunde com a sua personalidade. Não há necessidade

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00 ÁtiRUDA C A M tO S

de se perder tempo em pesquisas visando um resultado que coincida com o desejo real da sociedade. ISTão há necessidade, nem ao menos de se indagar qual seja o ob­jetivo da pena. j^esse instante ficam de lado os teóricos que sustentam que a pena visa a regeneração, ou o casti­go, ou mesmo a vingança. Já pode ter havido a vingança, através de um outro erime; já pode ter havido o castigo, através de atos positivos, denotando a plena e acabada reforma do indivíduo.

Quatro ou cinco anos depois do fato, conforme as circunstâncias, expede-se um mandado de prisão, no qual vai lançado um nome. A pessoa, que leva êsse nome, é recolhida ao xadrez. A Justiça, agora se resume na eliminação de um chefe de família, na desagregação de um lar, na prostituição de uma esposa e no abandono de umas crianças que vão ser amanhã delinqüentes.

43. Apesar do que dêle dizem seus inimigos, o júri tem as suas vantagens. Seria excessivamente be­nevolente, Regra geral, porém, os que mais o criticam são os maiores facínoras da legalidade. São supostos entendidos, que, até agora, não compreenderam que a sociedade não quer apenas punir, senão recuperar o transviado para que êle não reincida. Que adianta a prisão, se não produz o resultado da regeneração?

Os homens simples do povo sentem essa realidade que os doutores ignoram. É por isso que o júri da roça freqüentemente se comove e os das capitais, ile­galmente selecionados, nas mais das vezes são incle­mentes. Os jurados, que julgam o fato com bom senso, estão fartos de conhecer a ineficácia dessa justiça que abandona o condenado e até o perverte. Somente os

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A JU STIÇ A Á SERVIÇO DO C fttM B

que se viciaram na sociedade e absorveram seus defeitos entendem que, é preciso esmagar o criminoso.

O júri tem defeitos, mas é um órgão que impede, no seu setor, a consumação de inúmeras e inúteis vio­lências. Mil vêzes a absolvição injusta do que a con­denação, porventura justa, que vai agravar o problema da delinqüência.

Se cada povo tem o governo que merece, assim também as pequenas comunidades têm o júri de que podem dispor, cujos membros também sofrem as san­ções de seus pares e reagem de acordo com o ambiente em que vivem, donde um equilíbrio relativo em suas ações.

Aos que pretendem a eliminação do Tribunal Po­pular pode perguntar-se: para substituí-lo por magis­trados insensíveis, calejados no ofício?

44. Na prescrição o Estado renuncia ao seu di­reito de punir. Considera a ação do tempo e entende que ela apaga a memória do delito. Concorda em que a sua inércia permitiu que a situação se modificasse e, ao dar o delito por prescrito, liberta, em definitivo, o agente do crime da sua obrigação de resgatá-lo. O instituto da prescrição marca o fim. Bali, a persegui­ção, que começou no instante em que o delinqüente foi condenado, não pode passar, É o que se pode chamar de ponto final, em oposição ao ato que constituiu o ponto de partida.

Ao legislador ea.be fixar o derradeiro marco. Tanto pode distendê-lo, como pode recuá-lo, porque a êle com­pete o julgamento da conveniência da maior ou menor distância entre os dois pontos.

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GS AÜBÜDA CAMSOS

Há uma IVilha na legislação penal que x oclemos apontar como sendo a que não escalona a prescrição, de modo a estabelecer prescrições parciais ou progressi­vas. Se o impulso — direito de punir •— vai se perder, inclusive porque, enquanto o tempo flui., Im a presunção de que o criminoso se corrigiu vivendo dentro da própria sociedade, é lógico que esse fatoi importantíssimo deve ser levado em conta na graduação da pena para que ela possa realmente preencher seus objetivos.

Nos países onde o trabalho do eaptura é mal or­ganizado, a prescrição sobrevêm freqüentemente, ou por­que o agente do delito proeurou-a deliberadamente, su­bornando por amizade ou por dinheiro os que deviam prendê-lo, ou em conseqüência dos próprios defeitos do sistema repressivo. Contudo,. há indivíduos que são condenados quase no fim do lapso em que perdura o direito de punir, e então, já readaptados, com a vida orientada num bom sentido, são subitamente arrancados de seu meio, sem que ninguém leve em conta que du­rante todo aquele período êies viveram honradamente, dando uma prova de que, sozinhos e espontâneamente, reconheceram sua falta e trataram de impedir que ela se repetisse.

A individualização da pena admite em parte a cor­reção dessa, falha. Mas, o que se vê, está longe de satisfazer os que têm sêde de justiça, A proporção que se percebe a aproximação do marco prescrieional intensifica-se o andamento do proeesso para que o li­mite não seja alcançado. 33 o mêdo dos agentes da Jus­tiça de serem chamados à responsabilidade. Então, quando o objetivo ê atingido, a lei é aplicada como se

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o delito não estivesse separado da sentença eondenatóriapelo fluxo de vários anos. A pena 6 calculada como se porventura o crime houvesse sido perpetrado meses antes e ainda perdurasse na sociedade o clamor que a sua execução provocou.

Um assunto dessa ordem, não deve ser entregue ao puro arbítrio do julgador. Ã lei cabe a fixação dos limites e o estabelecimento de prescrições parciais ou progressivas. Assim, de uma forma segura, o Código Penal terá incorporado no sistema da individualização da pena o princípio salutar da prescrição progressiva, forçando o magistrado a considerar, no instante em que vai exercitar a persecutio criminis, a prova de readap­tação que decorre necessariamente sempre que o delin­qüente não reincidiu e viveu normalmente na sociedade durante um determinado lapso de tempo.

A .ÍGSTIÇA A SBRVtÇO DO CTtIJII} 511

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C a p í t u l o I V

A PENA PERVERTE

45. Variam as penas eomo variaram os delitos através dos tempos. A morte foi. imposta sob modali­dades bizarras e cruéis: pelo fogo, nas fornalhas ou em praça pública, em piedosos autos-de-fé para os he- reges; pelo afogamento, para os parricidas; pela lapi­dação, para os adúlteros e traidores; pela crucificação, pelo esquartejamento, até pelo enterramento, como acon­tecia com as vestais. A morte chegava às vêzes em meio de festas, como um espetáculo, quando, no último ato, o condenado era atirado às feras. Havia a. forca, o baraço, o cutelo, a roda, o emprego do azeite ferventc. As mutilações, o cegamente, a amputação, a marcação com ferro em brasa. As galeras, cheias de homens, os homens que sirgavam as embarcações rios acima, os degredados, os condenados a trabalhos forçados, os de­sonrados por várias gerações. O pelourinho.

Só recentemente apareceu o cárcere. A prisão car­cerária é antiga, mas sempre excepcional; recente, mo­derna, é a sua vulgarização, o seu alargamento pela Europa, por volta do século X V III , ao ponto de subs­tituir a generalidade das outras penas.

No Brasil não temos uma verdadeira tradição no (pie diz respeito à aplicação de penas. Cabral deixou dois degredados, que ficaram na história como os pri-

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A JUSTIÇA A SERVIÇO DO CRIME 61

raeiros colonizadores. Tivemos alguns enforcamentos, ruidosos esquartej amentos, fuzilamentos e até degredo.

Contudo, talvez por causa da falta de pesquisas so­bre o assunto, parece certo que no Brasil-colônia nunca se passou do açoite, e da transportação para as colordas militares. Célebres foram o presídio de Fernando de Noronha, no norte, e as colônias de Itapura e Iguatemi, 11a zona sul, fundadas estas últimas inclusive com 0

objetivo de forçar a penetração e 0 domínio das áreas ocupadas pelos jesuítas espanhóis.

A cadeia pública teve uso generalizado entre nós, porque nosso desenvolvimento é contemporâneo da sua expansão em Portugal. Mas, desde 0 comêço, 0

cárcere foi amaldiçoado, como se vê do velho e probo Pereira e Souza: “ Pois que 0 objeto da prisão é asegurança do Réo, não deve a sua detenção na eadèia ser uma continuação de angustias, cuja ideia repugna tanto a humanidade como. a Justiça” .

Eis aí, como a prisão celular é recente. E basta, nesse sentido, uma leitura do livro quinto das Ordena­ções do Reino, para que se veja como a detenção indi­vidual constituía'efetivamente uma exceção, que acabou transformada 11a base da quase totalidade dos sistemas penitenciários.

46. Sentença da Alçada, proferida no Rio de Ja­neiro, a 18 de abril de 1792:

“PORTANTO, eondenmam ao réo Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha 0 Tiradentes, alteres que foi da tropa paga da capitania de Minas, a que com baraço e pregão seja con­

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Íi2 ARRUDA CAMPOS

duzido jjelas ruas publicas ao lugar da forca, e 11 '< i I; > morra morte natural para sempre, e «pie depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada à Yilla Bica, aonde em o lugar mais publico d?ella será pregada em um poste alto até que o tempo a consuma; o seu corpo será dividido em quatro quartos e pregados em pos­tes pelo caminho de Minas, no sitio da Yargi- nlia e de Sebolas, aonde o réo teve as suas infames praticas, e os mais nos sitios de maio­res povoações, até que o tempo também os con­suma. Declaram ao réo infame, e infames seus filhos e netos, tendo-os, e seus bens aplicam pa­ra o fisco e carnara real, e a easa em que vivia e.m Yilla Rica será arrasada e salgada, e que nunca mais no chão se edifique, e não sendo próprias, serão avaliadas e pagas ao sen dono pelos bens confiscados, e no mesmo clião se levantará um padrão pelo qual se conserve em memória a infâmia d7este ahominavel réo” .

47. O emprêgo indiscriminado da prisão carcerá­ria é uma decorrência do individualismo desenfreado que vai minando o organismo social. É nina conseqüên­cia, do imediatismo que inspira a maior parte das ações dos indivíduos em sociedade. É um paliativo, não mn remédio, nem ainda uma tentativa de solução.

Desaparecendo a vantagem das galés, pela meca­nização dos barcos, surgindo a indústria, que sufocou o artesanato, confinando-se a utilidade dos presídios-eo- lônia, e, sobretudo, crescendo a competição econômica entre os homens, tornou-se mister o estabelecimento de

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um novo regime de segregação dos'indivíduos pertur­badores da paz social, através-de um sistema que acarre­tasse um. mínimo de inconvenientes.

A característica principal dêsse tipo de punição ê de trazer pronto alívio. Contudo, seus efeitos ul • teriores são muito piores. Como sucede com o ópio, a cadeia, 110 primeiro instante, produz uma sensação de euforia coletiva. O delinqüente desaparece da circulação e êsse fato cria nas comunidades uma sensação de se­gurança. O problema humano, porém, continua em crise. Privada do chefe, a família do delinqüente se decompõe. O próprio criminoso sente que seu pátrio poder não atravessa as grades e. que não lhe é dado im­pedir a desagregação de seu lar. Em vez de um apoio, a partir do qual possa se reerguer, recebe a sua ração de desespero. A visão da mulher, que hesita, dos filhos, qüe se rebelam. E se atola por fim na ociosidade, para que se corrompa, em definitivo.

Anos depois, retorna ao convívio social. Em vez de voltai' arrependido, reaparece carregado de ódios. Ces­sado 0 efeito do ópio, não há senão aplicar-se outra dose, até que o organismo social se torne insensível.

A isso, a sociedade dá 0 nome de Justiça.

48. Kroptkine nos descreve uma prisão ■ modelar da França em fins do século passado, que “ tinha todo o aspecto de unia pequena cidade inanufatureira, ro­deada de hortas e campos de trigo e cercada de um muro” . Os presos eram bem tratados, com refeições quentes, simples, mas de boa qualidade, “e cada um de nós pôde obter um bom copo de vinho da região, que a cantina da prisão vendia aos prisioneiros pelo preço módico de

A JUSTIÇA A ' DO CRIME (53

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ABRUDÀ CAMPOS

24 cêntimos o litro”. Mostrou-lhe o diretor os quartos “ e como eu llie observasse que eram muito bons, mas um pouco pequenos para nós, êle nos deu mais alguns compartimentos do edifício que servia outrora de alo­jamento ao superior da abadia e onde funcionava agora n 111 hospital” .

Entretanto, falando do sistema dessa prisão, que está eem furos acima de qualquer casa de grades do Brasil, que diz o eminente escritor russo, que, da sua cela re­digia artigos para a Enciclopédia Britânica1?

Diz isto:

“Durante a minha estada em Líão eu co­meçara a perceber a influência desmoralizan- te do regime das prisões sobre os detentos. Minhas observações., durante a permanência de três anos, em Olairvaus, levaram-me a condenar mais tarde de maneira absoluta tôda institui­ção das prisões.

A anemia, que mata a energia e o gosto pelo trabalho, que enfraquece a vontade, des- trói a inteligência e perverte a imaginação, instiga mais ao crime do que a pletora, e é precisamente êsse inimigo da espécie humana que é produzido nas cadeias. O ar que se res­pira em tôdas as prisões é apenas uma glori­ficação dessa paixão pelos jogos de azar, que constituí a verdadeira essência do roubo e da fraude, da extorsão, e de outros atos anti-sociais da mesma natureza. Gerações inteiras de fu­turos prisioneiros criam-se nesses estabeleci­mentos, que o Estado mantém e a sociedade

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A JUSTIÇA A SERVIÇO DD CRIME 65

tolera, simplesmente porque não desejam que os seus próprios males sejam discutidos e dis­secados. “Aquele que estêve uma vez preso na mocidade torna-se prisioneiro para tôda a rido” eis o que ouvi dizer por todos os que se haviam ocupado dessas questões” .

E acrescenta:

“Assim, vendo aquelas crianças e imagi­nando o futuro que lhes estava reservado, não podia deixar de perguntar a mim mesmo: — Qual o mais criminoso'? A criança, ou o juiz que a condenou a semelhante destino f Admito que o crime dêsses juizes seja inconsciente. Porém, os crimes pelos quais se aprisionam as ■pessoas, serão todos tão conscientes como êm geral se supõe.

Durante as primeiras semanas da minha prisão fiquei muito impressionado com uma coisa, que, entretanto, escapa à atenção dos juizes e criminalistas. É que a prisão, na maio­ria dos casos, sem falar dos erros judiciários, pune mais severamente pessoas completamente inocentes do que os próprios condenados.

Quase todos os meus camaradas, que re­presentavam a verdadeira média da população operária, tinham mulher e filhos para susten­tar, ou, então, uma irmã, ou uma velha mãe, que viviam exclusivamente do seu salário. Abandonadas agora a si próprias, essas mulhe­res faziam o possível para encontrar trabalho, e algumas o encontravam, mas nenhuma che-

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60 ARRUDA CAMPOS

gava realmente a ganhar um franco e cinqüenta por clia. Fore francos por semana — e. mnitas vezes apenas sete — era o máximo que conse­guiam ganhar para Tiver, com os filhos.. Isso significava alimentação insuficiente, privações de tôda a esxoécie, enfraquecimento da saúde, diminuição da inteligência, da energia e da vontade. Compreendi, pois, que as condenações

■ pronunciadas pelos tribunais, inflingem a pes­soas inteiramente inocentes, sofrimentos de tôda. a sorte, na maioria dos casos piores do que os impostos aos próprios condenados.

Acredita-se geralmente que a lei pune o homem inílingindo-lhe diferentes torturas f í­sicas ou morais. Mas o homem é um ser que se habitua pouco a pouco a todas as condições de vida que "lhe são impostas. Não podendo furtar-se a elas, aceita-as, e, ao fim de certo tempo, adapta-se a elas da mesma maneira que se habitua a uma moléstia crônica, Mas, que acontece à mulher e aos filhos de um prisio­neiro, criaturas inocentes, cuja existêneia de­pende do trabalho dêlef São punidos muito mais cruelmente do que o próprio condenado. E graças ao nosso espírito rotineiro ninguém pensa na enorme injustiça que assim se comete. Eu mesmo só pensei nisso quando obrigado pela evidência dos fatos” 9.

49. O legislador sempre sentiu o mal do regime carcerário. É assim que encontramos, desde a Oonsti-

9. Em Târno de uma Vida, fcrad., Rio, Í946, cap, VII.

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A JUSTIÇA A SEBVIÇO DO CRIME 67

tuição Política do Império cio Brasil, Carta de Lei. de25 de março de 1824, art, 179, §§ 8.? e 1.0, disposições que se relacionam a detenção dos indivíduos — ninguém poderá ser prêso sem culpa formada ou à exceção de flagrante delito a prisão não pode ser executada■ se não por ordem escrita da autoridade legítima, e bem assim na legislação ordinária subseqüente, desde o Código Criminal de 1830 — ordenar a prisão de qualquer pessoa sem ter para isso competente autoridade, mandar meter em prisão, ou não mandar soltar dela o réu que der fiança legal, receber o carcereiro algum prêso sem ordem es Grita da competen te cmtoridMãe ete.

Deve suspeitar-se da exata ajjlicação dêsses dispo- si ti vos. que se limitaram a copiar as cartas constitucio­nais francesa e norte-americana, porque, ainda em 1835, pelo Decreto n.1’ 4, de 10 de junho, estabeleceu-se um processo especial'pára punição dos escravos que tentas­sem contra a vida de seus senhores, pessoas da família destes, feitores, etc., lei que vigorou até 1886, e que bania para os negros o preceito também constitucional de que a lei será igual para todos. Por ela matava-se o escravo, porventura condenado pelo júri do termo onde fôra o crime cometido, não cabendo recurso da decisão, que desde logo se tornava exeqüível, num linchamento lega­lizado. Como o regiíne era patriarcal, como o senhor de escravos mandava e desmandava, entregava-lhe o le­gislador, “ romanticamente liberal”, como costuma ser cantado, entregava-lhe a vida do escravo à discrição, para que a ceifasse, ou negociasse, na conformidade do grau de seus sentimentos.

Felizmente o amor do dinheiro salvava os míseros cativos.

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68 AftRDDá CAMPOS

Ma sua “Viagem às Províncias do Rio de Janeiro e São Paulo” , J. J. Yon Tschudi, depois de lembrar (já então!) que havia desaparecido dentre nós o respei­to ao direito, pergunta;

“ Quantas vezes aconteceu no Brasil que um homem rico e influente tivesse sentado no banco dos réus a fim de se justificar de. seus crimes? Quantas vêzes teria sido condenado tal homem ? Certamente nunca. O promotor público jamais ousaria proceder contra um ho­mem de posição. E se um promotor o quisesse fazer, não havia de faltar dinheiro que abafasse o escândalo; nem faltariam jurados convenci­dos da suprema importância e do direito oni­potente do dinheiro. Ai da testemunha que ousasse opor-se a um acusado desta espécie. Picaria na alternativa de desaparecer durante o processo ou sofrer a vingança pessoal do acusado quando terminasse o julgamento”.

Ilustrativo é êste trecho de seu depoimento:

"Certo escravo assassinou, por motivos de vingança, o genro de seu amo e a polícia con­seguiu deitar-lhe a mão a tempo de evitar a justiça privada do amo e o traneon no xadrez. Mas o dono do escravo não poupou esforços para libertar o criminoso, a fim de poder ir vendê-lo em outra Província, o que lhe evita­ria ao menos prejuízo financeiro” .

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A TüSÍIÇA. A SERVIÇO £>0 CRIME 6 0

Diante disso pergunta o ilustre embaixador da Suíça: — “Haverá melhor exemplo de decadência moral do que êstef”

■ Â cadeia, porém, aos poucos se generalizou. O ópio entrou a ser usado. E, à medida que as cidades surgiam ou cresciam, levantavam-se estabelecimentos dêsse gênero, para centralização do local de cumprimen­to das penas.

A República, prosaica, utilitária e imediatista, ho­mologou de uma vez por todas o regime carcerário. Ticiou-se no uso do alcalóide.

50. Quando se fala em delinqüente é preciso que se tenha em conta o efeito j>sicológico da palavra, que induz, a priori, a suposição de que se trata de um in­divíduo de maus sentimentos. Bem outra, todavia, é a realidade. A grande maioria dos criminosos é consti­tuída de homens normais, como os antigos degredados de Portugal. Apenas, neles predominou, em determi­nado instante, uma fraqueza, que deu margem à prática de um ato condenado. Em seguida sobreveio o arre­pendimento, mas, a essa altura, já o delito estava co­metido.

Êsse fato não pode deixar de ser tido em conta. É preciso que se proclame que a maior parte dos de­tentos não precisa da cadeia para que se regenere, pelo simples fato de que não necessita de regeneração. São homens que vão para o xadrez porque a pena visa tam­bém a intimidação. São homens para os quais subje­tivamente, o simptles arrependimento é suficiente. E que talvez, na sociedade futura, nem sejam considerados criminosos.

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7 0 ARIUJDÀ CAMPOS

A detenção de indivíduos assim constituídos, em promiscuidade, com outros de formação moral defor­mada, deveria constituir um delito previsto no Código Penal. Aos juizes não lhes assiste o direito de impor a alguém a vida em comum com pervertidos. A socie­dade, pelos seus magistrados, tem a obrigação de pro­curar redimir os vencidos, de lutar pela elevação, pela regeneração dos que se perderam. Êsse trabalho não deve ficar afeto ao detento de bons sentimentos, porque, na prisão, êle deve lutar contra a revolta que domina, mas precisa ser executado, de fora para dentro, através da mão estendida por entre as grades.

Infelizmente o problema é desonrado. A realidade, dura de ser dita, é a de que a promiscuidade faz as suas vítimas dentro da própria prisão. Em vez de so ergui-- mento, o que ocorre, nas cadeias brasileiras, é uma coisa só: o rebaixamento moral a um nível inferior ao das próprias sarjetas das ruas, o depauperamento, até a própria inutilizaçao física.

51. Estudando a lei e a justiça na Rússia Sovié­tica, refere o insígne e insuspeito Harold J. Laski que (xorig, na sua famosa investigação nos cárceres da U.R.S.S., verificou que não há uma razão geral para que se supunha que o criminoso comum seja muito diferente do homem que compõe a população ordinária.

'■'O vinco saliente do sistema, russo, tal co­mo funciona, é a sua capacidade de educar a massa de reclusos |mra o trabalho útil, de modo que podem retornar à vida normal sem temor da reincidência. O fato de que homens com

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A JUSTIÇA A SKHVfÇO DO CRTMB ■71

numerosas condenações converteram-se em en­genheiros, advogados, funcionários administra­tivos, diretores comerciais de êxito, de que alguns ingressaram no Exército Vermelho e no Partido Comunista e justificaram amplamen­te sua escolha, demonstra pelo menos que exis­tem fundamentos para experimentar, com a teoria russa, em um grau que nenhuma admi­nistração carcerária ocidental esteve disposta a fazer até o momento” I0.

52. Mesmo sem estatísticas pode dizer-se que, na cadeia encontram-se cêrca de 90% dos presidiários, se­jam sentenciados ou presos que aguardam julgamento, Uns, reincidentes, outros primários. Outros, ainda, nem sabem se vão ser . condenados ou absolvidos.

A cadeia se compõe de uma série de quartos, de­vidamente gradeados, providos cada um de uma latrina. Em algumas cidades o xadrez tem um chuveiro. Nas outras, que constituem a grande maioria, nada mais há, nem cama, nem mesa, nem cadeira, nem sequer uma janela envidraçada que possa ser fechada nos dias de chuva ou nas noites de frio.

Nesse recinto os presos pagam a pena que lhes foi imposta. As necessidades fisiológicas êles as satisfazem em público. Dormem no chão, sôbre colchões e esteiras, quando existem esteiras e colchões. Comem de marmita uma comida muitas vezes roubada pelo fornecedor. En­tretanto, o mesmo poder público que assim os trata,

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n ÀftRUtU c a m p o s

exige nos bares que os sanitários sejam afastados das salas de consumação e estas sejam revestidas de azulejos!

Escrevemos que os presos pagam a pena que lhes foi imposta, mas é óbvio que escrevemos mal. Sofrem a pena. O jovem tempestuoso, que reincidiu no crime de lesões corporais, é colocado junto do ladrão, que tem a malícia de quem já não encontra em si o menor res­quício de uma noção de moral. O homicida, que matou em legítima defesa, que foi absolvido no júri, mas de cujo julgamento pende recurso para o Tribunal, é con­servado em contacto com o estelionatário ou com o assas­sino profissional. Há, pois, uma grande desigualdade, que o juiz não considera ao lavrar sua sentença: mis suportam mais, outros, menos, o sofrimento da prisão. Até lá não desee a justiça, como o médico no hospital para verificar o estado de seus clientes. Como num zoológico, os homens manuseiam apenas dados numé­ricos e nomes; e, se foge um tigre, ou uma raposa, ou mesmo um gato selvagem, para êles ó problema é idên­tico e se resume numa coisa só : — no envio de guardas para que o fugitivo seja recapturado.

53. As medidas de segurança, tecnicamente' con­sideradas, não são penas. Eusebio Gomez as divide em curativas, educativas, tutelares e eliminatórias.

Curativas, quando consistem no tratamento ade­quado, em estabelecimentos especiais, dos. delinqüentes declarados inimputáveis, em razão de anomalias men­tais; educativas e tutelares, quando adotadas em rela­ção aos menores delinqüentes, para suprir a falta de educação e de amparo, ordinàriaraente a causa da sua

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A JÜSTIÇA A SBSVÍÇO DÓ CítIMg 73

delinqüência; e eliminatórias, aplicadas aos delinqüen­tes habituais,

Eo Brasil, de acôrdo com o Código Penal, as me­didas de segurança — que alcançam até objetos inani­mados — são de duas ordens: patrimoniais, pela inter­dição de estabelecimento ou sede de sociedade ou asso­ciação e pelo confisco; e pessoais pela internação em manicômio judiciário ou em casa de custódia e trata­mento, ou em colônia agrícola, ou em instituto de tra­balho, de reeducação ou de ensino profissional (deten- tivas), ou pela liberdade vigiada, pela proibição de freqüentar determinados lugares e pelo exílio local (não detentivas).

Tècnicamente, a medida de segurança não é pena.Então, por não se tratar de pena, muitos juizes car­

regam na medida de segurança, uma vez que estão pro­tegendo os delinqüentes. E os pobres ficam na mesma prisão comum, porque o Estado, que se arroga o di­reito de puni-los, não cumpre a sua obrigação de cons­truir os estabelecimentos adequados que êle próprio criou — no papel.

54. Cêrca de três quartos dos detentos são homens válidos, que estavam em plena faina quando foram recolhidos à prisão. Em muitas cadeias do interior a porcentagem chega a ser de cem por cento, quebrada apenas pelos ladrões e por alguns poucos de delinqüen­tes mais agressivos. Regra geral não há presos peri­gosos. Êstes dificilmente têm residência fixa e afluem para os grandes centros, onde, com maior dose de segurança, podem exercer a sua atividade, Nas prisões do interior encontram-se ordinariamente homens que

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74 AííRUftA CAMPoR

foram retirados do trabalho e que, em vez de continuar a prestar serviços à coletividade, passam,, sem nenhumproveito, a constituir um peso morto para o Estado.

A cadeia destrói a família. O detento casado cor- re o risco de perder a mulher. Be ela tem boa conduta, entre os dois se interpõem sentimentos de dúvida, ou pelo menos de indiferença. Os filhos, livres de fisca­lização, consomem-se 110 abandono, tendo de um lado o exemplo paterno, de outro as tentações cotidianas. O amor desaparece, da mesma forma como se extingue o princípio da autoridade paterna e marital. Com ex­cepcional gravidade, reponta o problema econômico. Por último, ao lado da insensibilidade, que liquida os laç-os familiares, surge a tuberculose,, que é doença dos cár­ceres.

O indivíduo prêso e que — diga-se outra ..vez. de passagem — na maior parte das vezes é um homem normal, sente, ferver em si o germe da revolta. Assiste à derrocada de seu lar, aumenta a sua própria agressi­vidade contra uma sociedade que o trata com tamanha crueldade. Se não consegue dominar-se, sozinho, resolve vingar- se, reincidindo.

“Aquêle que esteve uma vez prêso na mocidade, tor­na-se prisioneiro para, tôãa a vida” , . .

55. Há ainda um assunto que merece um item especial. Referimo-nos à questão sexual, tão aguda que, freqüentemente, desata paixões aberrantes e chega a dar margem à perpetraeão de horrorosos crimes passionais.

O prêso é um homem que tem a suas necessidades, entre as quais figura a da satisfação genésica. Desde

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A JU STIÇ A A S B W IÇ O Í30 C IU M fi

que se lhe nega o direito de manter relações carnais com a sua própria esposa, recorre ao onanismo ou à pederastia. O primeiro é inofensivo pôsto que depri­mente no adulto. A segunda, colocados de lado os que se divertem com ela, constitui uma violência a pessoa, que as leis penais punem com rigor.

Para a eliminação dêsse mal, já foram tentados nos estabelecimentos, bem organizados variados recursos, desde o emprego do regime alimentar adequado, até a dureza do serviço diário, visando o tolhimento das li­berdades da imaginação. Tudo tem sido feito sem pro­veito, conforme se vê dos desenhos que os detentos lan­çam nas paredes e que exprimem, as formas de evasão de que se sentem possuídos. A natureza impera, a na­tureza domina, a natureza, empresta ao indíviduo forças desconhecidas que, mesmo na prisão, o empurram para a delinqüência.

A lei penal prevê sanções j>ara os que ajudam ou criam facilidades à fuga de presos. Mas não há pena para os que submetem os detentos a mn regime dessa ordem, levando-os às vêzes, conforme as condições pes­soais de cada um, à prática de atos de desespero, x ara satisfação de uma necessidade física como outra qual­quer. Nao há pena para a autoridade insensível que obriga um homem a ri ver num lugar onde sabe que vai ser violentado.

O regime carcerário é assim: destrói os hábitossociais, abala a saúde, animaliza o indivíduo, determina grandes despesas ao Estado e por fim ainda estimula o crime em. quem já se encontra prêso.

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7 6 AftKÜOá CAMPOS

56. O Código do Processo Penal, no art, 295, tí­tulo relativo à prisão e à liberdade provisória, estipula que “ serão recolhidos a quartéis ou a prisão especial, à disposição da autoridade competente, quando sujei­tos a prisão antes de condenação definitiva: I, os mi­nistros de Estado; II, os governadores ou intervento­res de Estados, ou Territórios, o prefeito do Distrito Federal, seus respectivos secretários e chefes de Polí­cia; III , os membros do Parlamento JSTaeional e das Assembléias Legislativas dos Estados; IV , os cidadãos inscritos no “Livro de Mérito” ; V, os oficiais das For­ças Armadas e do Corpo de Bombeiros; V I, os magis­trados; V II, os diplomados por qualquer das faculda­des superiores da República; V III . os ministros de confissão religiosa; IX , os ministros do Tribunal de Contas; X , os cidadãos que já tiverem exercido efeti­vamente a função de jurado, salvo quando excluídos da lista por motivo de incapacidade para o exercício da­quela função” .

A lista dos privilegiados, porém, paulatinamente aumentou. É a legislação de favoritismo. Hoje, de um certo ponto de vista, a prisão chamada comum consti­tui a exceção.

Fazem jus à regalia da detenção especial mais os oficiais da marinha mercante, os dirigentes das entida­des sindicais e empregados no exercício de representa­ção profissional, os secretários do prefeito do Distrito Federal, os prefeitos, vereadores, chefes de Polícia, os funcionários públicos federais em serviço de Polícia,

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A JUSTIÇA A SERVIÇO DO CKIME 77

os funcionários públicos federais pertencentes à Guar­da Civil, à Polícia Marítima e Aérea e à Polícia Espe­cial, bem como os lotados nas delegacias de polícia, quan­do em função estritamente policial, os jornalistas, os comerciantes matriculados, etc.

A odiosidade dos regimes de excessão aí está, numa de suas mais repugnantes manifestações!

57. Há meia verdade na frase de Machado de Assis quando afirma que o provérbio está errado.

“Não é a ocasião que faz o ladrão” , dizia ele a alguém; o provérbio está errado. A for­ma exata deve ser esta; — “A ocasião faz o furto; o ladrão nasce feito”.

{Esaü e Jacó, cap. L X X V ).

Meia verdade, porque ninguém nasce ladrão, como ninguém nasce assassino, como ninguém nasce religioso. Admite-se que a influência hereditária deforme o caráter e as tendências do indivíduo — é uma possibilidade; mas que o meio social modela o cidadão — é uma certeza.

O ladrão, como já assinalamos em outro item, é formado na escola do crime, tolerada pelo Estado, ou oficializada pelo Estado. Os menores, que passam pelos institutos especializados, raramente se salvam, ordina­riamente se perdem, Há institutos de menores que são verdadeiras academias de criminalidade, perdendo ape­nas para as cadeias e casas de detenção, que são as universidades. Um inquérito realizado na Penitenciária de São Paulo chegou à seguinte e monstruosa conclusão;

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78 AltKUDA CAMPOS

de cada mil crianças do Estado de São Paulo tinia ê reco­lhida em abrigo de proteção; de cada mil abrigados, 140 encontravam-se condenados na Penitenciária, com sentença transitada em julgado, com exclusão portanto dos detidos nas cadeias e sujeitos a processo crime! 11

Significa que, pelo menos êsses chegaram à gatu- iiagem ]}or causa do mau encaminhamento que llies foi dado, na adolescência, pelo próprio Estado. Por aí a fora, liá, pois, ladrões que se formam sob a proteção oficial, embora, no instante da condenação, nenhum punho hesite em adotar contra êles a sanção máxima pre­vista no Código Penal!

Haja compreensão,' haja remorso, haja unia reação visando corrigir os grandes erros. Vá lá uma palavra de simpatia por êsses indivíduos que, na maioria das vezes,, são muito mais vítimas, -porque foram furtados na o]3ortunidacle de levar uma vida honesta. O ladrão subtrai o supérfluo de quem tem sobras e para tanto arrisca a sua liberdade, enquanto homens importantes existem que agem na área de subdelinqüência, que pro­vocam desequilíbrio social mais pronunciado. Êsses furtam da coletividade até mesmo o necessário e, não obstante, gozam da proteção da lei.

Ladrão que furta ladrão tem cem anos de perdão —> diz o provérbio popular. O ladrão investe contra a projmedade. E houve um homem, que era também um grande homem, J. P. Proudhon, que escreveu um livro para provai’ o axioma que adotou no título de sua obra:— a propriedade é um roubo. Amanhã, quando essa

11. Anais das "Semanas de- Estudos do Probíema de Menores", Sâo Paulo, 1952, pág. 125-

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A JUSTIÇA A SEHVIÇO DO 'CRIME 79

idéia prevalecer, se prevalecer, \e possivelinente j>reva- lecerá, os condenados de hoje ficarão na mesma situação dos jovens portugueses degredados por haverem dor­mido com freiras, ou queimados em praça pública por não abraçarem a religião católica.

Que pessoas de coração bem formado atentem no que fica assinalado. A índole dos detentos é boa. a maioria dos reclusos é constituída de indivíduos quase normais, seus atos podem não ser considerados crimes amanhã. Dentro das cadeias e das.penitenciárias o pior elemento é ordinariamente o ladrão. E, por causa dó ladrão, institui-se um regime de tratamento dos sen­tenciados verdadeiramente desumano.

58. Dizia-nos um amigo do alheio, do fundo de uma prisão: — Regenerar-se é o de menos. O difícil é permanecer regenerado com a pólícia que aí existe!

59, Não ficaria o quadro completo se aqui não tosse incluído um tópico sobre o carcereiro, essa figura genial a quem a Justiça comum entrega o trabalho d.o enfermeiro na cura de seus doentes.

Como sucede aos sacristãos, o carcereiro é de or­dinário um cretino, quando não um delinqüente, no mínimo em potencial, O contacto permanente com cri­minosos desperta-lhe estranhos sentimentos. Quase sem- pre desalmado, sádieo, é miniatura do carrasco medieval. Explora os detentos, eobra-lhes comissões nas vendas de pequenos objetos da insignificante indústria carcerária.

Se o detento é pessoa de recursos, comumente lhe outorga certas vantagens a troco de dinheiro — cela especial, cama, rádio, saída para banhos, cerveja e até

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80 ARRDDA CAMPOS

mulher. Se o prêso é miserável, dispensa-lhe uma aten­ção igualmente miserável. A alguns chega à perfeição de transformar em feras. Tanto assim que nesses casos confessa-se incapaz de entrar desacompanhado 110 xa­drez em que o delinqüente se encontra.

Exerce funções importantíssimas. Decide sobre as transferências de celas, coloca em contacto, 110 mesmo recinto, assim o ladrão de cavalos, criminoso veterano e malicioso, assim o primário que furtou um terno pela primeira vez e confessou, chorando, 0 delito. Raros os delegados, promotores ou juizes que lhe cerceiam 0 ar­bítrio discricionário nesse mister.

Nas prisões maiores êsse indivíduo transaciona com maconha e vende 0 seu silêncio quando um prêso jovém é estuprado pelos mais antigos.

O carcereiro é um homem vencido que tem sob as suas ordens outros homens vencidos. Então saboreia 0 seu poderio, porque está nas suas mãos a alegria e o sofrimento daquelas pobres criaturas, como agente que é da Justiça.

60. Estamos diante de uma realidade, que não podemos alterar de uma hora para a outra, e que reclama uma atitude, já que se não consegue para ela uma so­lução. Uma atitude, que implique na abertura de um caminho novo.

3STa sua insinceridade interesseira, 0 legislador limi­tou-se a repetir 0 que lhe vinha de trás, e que vinha vindo sempre sem aplicação. Recorreu aos princípios da laboxterapia, embora não cogitasse de dar meios de emprego dessa terapêutica. Nem |>or isso os juizes estão

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A JUSTIÇA A SERVIÇO DO CRIME 8 1

autorizados a cruzar os braços. Be algum magistrado deseja realmente dar desempenho às suas funções, há de tentai1 pelo menos cumprir o que a lei lhe determina, em vez de, antes de começada, abandonar a luta.

Todos estão cansados dé conhecer juizes que se tornam conhecidos pelo rigor das suas decisões e pela sua atuação 110 combate à criminalidade. São os que costumam aliviar a consciência quebrando a pena da caneta que lhes serviu para subscrever a sentença' eon- denatória. Quebram. Em seguida, compram nova pena. Bem poucos, todavia, têm notícias, dos juizes que adqui­riram nomeada pelo carinho que dispensam aos presos, procurando levantar-lhes 0 físico e 0 moral, dando-lhes trabalho para 0 corpo, com remuneração para amparo da família, inaís uma assistência espiritual constante, direta ou indireta, para que sejam realmente recupera­dos e voltem à sociedade como homens dispostos a ser dignos dela.

Juristas consagrados, aferrados à rotina, sem ne­nhuma experiência de regime carcerário, que vivem a vida através das suas exterioridades, e que, numa pa- Javra, nunca sentiram a crueza dêsse problema, são os que maior dose de interesse revelam em ignorar 0 que se passa nas cadeias. Fogem a um exame do assunto, para que não sintam 0 dedo acusador que se levanta do fundo de suas consciências. Acostumados a tomar 0

meio pelo fim, recusam-se mudar de atitude e perma­necem impenetráveis atrás de uma couraça de propo­sitada ignorância. É mais uma prova da falsidade ge­ral que minou 0 direito, principalmente o direito cri­minal : depois do dcsvirtuamento do princípio nullum crimen, mãla poena m ie lege, para proteção dos semi

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82 AEHTJDA CAMPOS

delinqüentes, surge o amolgamento final, do julgamento dos resultados da aplicação da lei.

Á ação dos juizes aeaba quando o prêso é recolhido ao xadrez. É o grande mal. Deveria acompanliá-lo en­quanto cumpre a pena e quando de novo é restituído ao convívio social. Meia justiça ou justiça pela metade.

61. O homem criou Deus à sua imagem e seme­lhança. Deus é apenas juiz. O executor da pena éo Demônio. E o clamor desesperado dos que, por causa de uma falha, sofrem a condenação eterna, nunca che­ga ao ouvido do excelso magistrado.

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C a p í t u l o Y

A LEI NÃO É RESPEITADA

62. Se a lei está cheia de defeitos, sua execução é ainda pior. Não podendo modificá-la, ao magistrado compete cumpri-la. Contudo, nem todos os direitos e garantias individuais, assegurados pela Constituição Fe­deral, encontram amparo por parte da maioria dos juizes. A vigilância, do Judiciário freqüentemente se esvai, conforme os humores dos magistrados.

Dispõe o art. 141:

■ 20'-— Ninguém será pfêso senão em fla­grante delito ou por ordem escrita da autori­dade competente, nos casos expressos em lei;

§ 21 ■— Ninguém será levado à prisão ou nela detido se prestar fiança permitida em le i;

§ 22 — A prisão ou detenção de qualquer pessoa será imediatamente comunicada ao juiz competente, que a relaxará, se não fôr legal, e, nos casos previstos em lei, promoverá a res­ponsabilidade da autoridade coatora.

Estabelece o Código Penal :

Art. 350 — Ordenar ou. executar medida privativa de liberdade individual, sem as. for­malidades legais, ou com abuso de poder:

Pena — Detenção, de um mês a um ano.

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84 ARKUDA CAMPOS

Parágrafo único — na mesma pena incor­re o funcionário que:

I —• ilegalmente recebe e recolhe alguém a prisão, ou a estabelecimento destinado à exe­cução de pena privativa de liberdade ou de medida de segurança.

Não é de hoje. que se luta contra a violência po­licial. São de João Mendes estas palavras, comentando as eirculares imperiais que, desde 1865, verberavam as detenções simplesmente policiais, através das quais, contra a Constituição, algumas autoridades se investiam em poderes.que jamais tiveram:

“ Sirva, isto de. estigma às autoridades que buscavam e de estímulo às autoridades que buscam eoonestar arbítrios, alegando a preten­dida necessidade de saltar por cimá da lei, com tôda. a coragem da prevaricação, eom o cinismo da afronta aos mais sagrados direitos, hipocritamente cobrindo a vilania do seu ca­ráter, ou a negligência no cumprimento do dever, com o pretexto da impossibilidade de, em. todos os casos, se subordinarem às forma­lidades legais” .

Aplica-se o Código Penal contra os delinqüentes que violam as normas garantidas pela polícia. Rara­mente, porém, sabe-se de alguma autoridade policial punida pelas violências perpetradas. A própria Cons­tituição Federal, na parte em que cerceia o campo de ação dos agentes policiais, submetendo-os à direta £is~

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A JUSTIÇA A SERVIÇO DO CM M B 85

ealização do Judiciário, poucas- vêzes' encontra quem, por sistema, se dê ao trabalho de executá-la. O que há, nessa parte, é o relaxamento geral. Para que a polícia não seja desprestigiada muitos juizes permitem que ela tome o freio nos dentes.

63. M o há nenhuma inovação nas disposições do Código Penal que tratam das penas de reclusão e de detenção, Não há novidade nem mesmo na desfaçatez com que o legislador redigiu o texto dos respectivos ar­tigos, com diferentes tipos de evasivas. Seguiu o exem­plo do Código Penal de 1890, como este repetiu o de 1830, ambos elegantemente formais, quando falavam em estabelecimentos penitenciários inexistentes, em regimes impraticáveis, nos quais aos detentos seria dispensadoo tratamento mais perfeito até então. imaginado- pelos mais insignes pèniteneiaristas.

A matéria é disciplinada pelos seguintes artigos;

REGRAS COMUNS ÃS PEN AS P R IV A T I­VAS DE LIBERD AD E

Art. 29 — A pena de reclusão e a de de­tenção devem ser cumpridas em penitenciária, ou, à sua falta, em seção especial de prisão comum.

§ 1.- — O sentenciado fica sujeito a traba­lho, que deve ser remunerado, e a isolamento durante o repouso noturno.

§ 2,° — As mulheres cumprem pena em estabelecimento especial, ou, à falta, em seção adequada de penitenciária ou prisão comum, ficando sujeitas a trabalho interno.

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AliHUtJA CAMPOS

§ 3.5 — As penas de reclusão e de detenção impostas pela justiça de um Estado podem ser cumpridas em estabelecimento de outro Estado 011 da União.

R E C L U S Ã O

Art. 30 — Mo período inicial do cumpri­mento da pena de reclusão, se o permitem as suas condições pessoais, fica o recluso também sujeito a isolamento durante o dia, por tempo não superior a três meses.

§ I. ' — O recluso passará, posteriormente, a trabalhar em comum, dentro do estabeleci­mento, ou em obras ou serviços públicos, fora dele.

'§ 2.- — O recluso de bom procedimento X-tode ser transferido para colônia penal ou es­tabelecimento similar:

I — se já cumpriu .metade da pena, quando esta não é superior a três anos;

I I — se já cumpriu um têrço da pena, quando esta é superior a três anos.

§ 3." — A pena de reclusão não admite suspensão condicional, salvo quando o conde­nado é menor de vinte e um anos ou maior de setenta, e a condenação não é por tempo superior a dois anos.

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A JDSTIÇÁ A SEKVIQO DO CRIME 87

D E T E N Ç Ã O

Art, 3.1 — O condenado a pena de detenção fica sempre separado dos condenados a pena de reclusão e não está sujeito ao período ini­cial de isolamento diurno.

Parágrafo único — O trabalho, desde que tenha caráter educativo, pode ser escolhido pe­lo detento, na conformidade de suas aptidões ou de suas ocupações anteriores.

Eao se diga que êsses dispositivos se referem tão- -sòmente aos estabelecimentos penitenciários especiais, devidamente aparelhados, nem muito menos que, em conseqüência, deixam de ter aplicação nas cadeias co­muns. Xão há na lei nenhuma determinação nesse sen­tido, ou mesmo, vagamente, que autorize semelhante en­tendimento. O que o art. 32 declara é què:

REGULAMENTO DAS PRISÕES

Art. 32 — Os regulamentos das prisões devem estabelecer a natureza, as condições e a extensão dos favores gradativos, bem como as restrições ou os castigos disciplinares, que mereça o condenado, mas, em hipótese alguma, podem autorizar medidas que exponham a pe­rigo a saúde ou ofendam a dignidade humana.

Parágrafo único — Salvo o disposto no art. 30, ou quando o exija interesse relevante da disciplina o isolamento não é permitido fora das horas de repouso noturno.

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88 ARRUDA CAMÍOS

Bepi1a-.se, portanto, desde logo, qualquer interpre­tação mais indolente, baseada numa atitude intelectual de quem se limita a desconhecer o problema, para não senti-lo, e que não quer senti-lo, para não se ver na eontigêneia de enfrentá-lo.

 maior parte dos presos cumpre penas, não nas penitenciárias, mas nas cadeias. Em tôdas deve haver um regulamento que atenda ao direito dos detentos de receber atenção favorável quando a mereçam. Essa é uma regra de caráter geral, imperativa, que não pode deixar de ser obedecida. Pois, se há meios de se man­ter um indivíduo no xadrez, também os há de se tirá-lo de lá. Para que tome sol, para que preste serviços in­ternos, para que acabe, como prêmio, trabalhando em obras ou serviços públicos, dentro ou fora do estabe­lecimento,

É espantoso como se pode só do delinqüente exigir o respeito à lei. Quando chega o instante dela ser cum­prida pelos agentes da Justiça, as autoridades se re­fugiam 110 argumento da impossibilidade, que às mais das vêzes, nada significa senão simples e acabado descaso.

64. O desfibramento dos juizes, que, recrutados à revelia do povo, cevam-se nas garantias de inamovi- bilidade, vitaliciedade e irredutibilidade de vencimentos, transparece no desprezo que votam ao poder que lhes foi concedido de agir independentemente de provocação da polícia ou do Ministério Público e, principalmente, ao instituto de haieas-corpus.

A persecutio cnmims originária não foi deferida aos magistrados em vão. Devem eles agir de ofício

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A J U S T I Ç A A SE ÍÍV IÇ O 3X> C R IM fê

quando falham os órgãos que os auxiliam.. Contudo, embora se trate de um dever legal, nem sempre se mo­vem. Exemplo típico é o que sucedeu em São Paulo, quando um ímprobo administrador trazia o Ministério Público de rédeas curtas e montava a polícia. O jôgo ilegal campeou. Delegados existiam, sem resquício de dignidade, que se incumbiam de proceder à arrecadação do numerário destinado ao pagamento da impunidade dos contraventores. Dentro dessa deletéria situação, raros foram os magistrados que deixaram de sacrificar a lei ao seu comodismo.

Mais clamoroso é o que se passa em relação ao haòeas-corpus. O remédio heróico, que a Constituição manda que os magistrados administrem de graça, sem requerimento, praticamente só beneficia os que têm dinheiro para pagá-lo. Somente nos casos de maior repercussão é impetrado por algum promotor desejoso de publicidade. Apesar de inscrito na Magna Carta, o hàbeas-corpus de ofício, se assim o podemos chamar, não existe.

A Constituição Federal, art. 141, dispõe:

“ § 22 — A prisão ou detenção de qualquer pessoa será imediatamente comunicada ao juiz competente, que a relaxará, se não for legal., e, nos easos previstos em lei, promoverá a res­ponsabilidade da autoridade coatora”.

O texto, como diria ítuy, é incisivo como uma lâ­mina de aço e infrangível como um círculo de ferro. Tôda prisão ou detenção será comunicada ao juiz com-

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90 ARRUDA CAMPOS

peteate, que a relaxará» se não fôr legal e promoverá aresponsabilidade do coator,

Não há possibilidade de duplo entendimento. As­sim, os juizes que, para se livrar de trabalhos, fingem ignorar o texto da Constituição, e que não impõem a seus delegados o sistema da pronta comunicação de tô­das as prisões efetuadas, estão sobrepondo seu indiferen- tismo a uma norma de fundamental importância para sobrevivência das instituições.

Com que direito agem dessa forma? Quem os autorizou pisotear a determinação legislativa superior! Que força moral podem ter para condenar delinqüentes, se são réus do crime comum de prevaricação?

Consultem-se as coleções dos provimentos dós tri­bunais. Nao há um que, diante do abuso, tenha uma só frase de reeriminação aos magistrados de primeira instância que se julgam em condições de revogar a Constituição. Reclamam contra os que exeedem prazos, contra os que simplificam demasiado as audiências, con­tra os que usam carbono nos termos dos processos, contra os que residem fora das respectivas comarcas, mas não têm uma única palavra visando lembrar os juizes de que têm obrigações a cumprir. Nem mesmo os titulares das Execuções Criminais, do Distrito Federal ou de São Paulo, prestam obediência a êsse preceito da Magna Carta, numa comprovação evidente de que o mal é geral.

Já se pensou em quanto as populações seriam res­guardadas se os investigadores, os soldados, os cabos, sargentos e delegados, soubessem que as detenções que efetuassem seriam comunicadas ao Juiz de Direito?

O habeas-corpus de ofício, de caráter correcional, é uma impostura constitucional. A Polícia faz o que en-

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A JUSTIÇA A SEBVXÇO fio CRIME 91

tende e o que todos sabem. E o Ministério Público, tão desfigurado quanto a magistratura, apesar de ser o fiscal da lei, nenhuma iniciativa toma para que o preceito da Constituição seja cumprido.

65, Apesar da relevância do assunto, que passa despercebido porque os humildes não têm quem os de­fenda, a verdade é que, diante da omissão dos magis­trados, qualquer pessoa pode fazer a comunicação da prisão ao juiz competente, para que a relaxe e promova a responsabilidade do culpado. Trata-se de garantia constitucional e, assim, a iniciativa de terceiros (Cons­tituição, art. 141, § 37), é perfeitamente legítima.

Que fazem os Promotores Públicos que não suprem a desídia do Judiciário?

.. Tecnicamente, não se trata de Jiabeasrcorpus, ..pela.razão de que não há o recurso ex-offieio, mas de medi­da. simplesmente eorrecional, que se . enquadra na alçada do Ministério Público.

Como observa o Professor Vicente Ráo, o § 22, do art, 141, do estatuto básico, confere ao juiz a atribuição de receber comunicação das prisões ou detenções efe­tuadas para os fins ali determinados. “ Se a Constitui­ção lhes outorga essa competência, implicitamente, mas necessariamente, também lhe impõe o dever de exercê-la, e, pois, o de exigir das autoridades policiais o cumpri­mento efetivo de sua obrigação de comunicarem as pri­sões ou detenções que efetuarem. Assim sucede, por se tratar de garantia constitucional de direitos, razão pela qual a inércia dos juizes, diante do não cumpri­mento sistemático do preceito constitucional, não se justifica.

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Ê óbvio que ao Ministério Público também compete promover a observância da mencionada, prescrição cons­titucional, pelos meios de direito de que dispuser; mas, daí não se infere devam, ou possam, os juizes, aguardar a iniciativa de quem quer que seja para tomar efetiva a acenada competência que, dada a sua natureza, cor* responde a um dever funcional,. A função principal do juiz' é, sem dúvida, a de julgar, — mas não é, essa, sua única função, pois à vista do art. 141, § 22 da Consti­tuição também lhe incumbe ser fiscal do respeito da liberdade física, como direito fundamental dos cidadãos. E mantendo ou relaxando uma prisão, comunicada, nada mais faz senão proferir uma decisão preliminar sôbre a legalidade ou ilegalidade dessa prisão. Ao conhecer dos processos criminais instaurados contra seus presos, ou ao conhecer de pedidos de conversão da simples de­tenção em prisão preventiva, os juizes têm ensejo de verificar a falta de cumprimento do citado preceito cons­titucional e, no entanto, não nos consta que, por sua vez, promovam a responsabilidade dos infratores, por inter­médio do Ministério Público.

É certo que os juizes não deverão condenar as au­toridades infratoras,. sem denúncia, sem processo; mas é também certo que podem e devem ordenar ao Minis­tério Público que promova a apuração da responsabi­lidade”

66, Recolhido ao xadrez, o detento também julga a Justiça que o condenou. Sabe que tem direitos e que êstes não lhe são reconhecidos. É um homem como qual­quer outro que sente a iniqüidade do tratamento que lhe é dispensado.

12, Vicente Rão, O Direito e a Vida dos Direitos, 2,’ voL, itera n,' 134.

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Dentro do sistema do Código Penal o prêso pode pleitear o livramento condicional E o princípio da in~ dividualização da pena que se prolonga e vai, atraves­sando os Consellio.s Penitenciários — a -cujo parecer, obrigatório, o juiz não está adstrito — influir na própria extensão do castigo.

Entretanto, de nenhum magistrado se sabe que tenha organizado um prontuário para o fim de acom­panhar o -comportamento do recluso, habilitando-se a informar com precisão o respectivo Conselho Peniten­ciário, quando da formulação do requerimento de graça. De nenhum que haja determinado aos delegados que lhe prestem informes periódicos, úteis a êsse esclarecimento. O x rêso não tem sequer oportunidade de mostrar que está desenvolvendo suas boas qualidades, para fazer jus ao livramento. Com êle, ninguém se incomoda. A Jus­tiça esvai-se quando o traneafia na pequena cela. Tal como se a sua missão fôsse apenas a de impor conde­nações,

67. Na técnica do Código Penal os presos ficarão repartidos, em dois gnrpos, conforme hajam sido conde­nados a penas de detenção ou de reclusão. A separação tem um fundo prático, porque a detenção abrange os menos desadaptados, ou os que mais facilmente podem ser recuperados. Incluem-se no segundo grupo os res­tantes, ainda que entre êles se encontrem indivíduos de boa formação.

Conhecidos os reclusos através da observação, a questão principal do j>equeno presídio se resolve na es­colha das celas e na distribuição — por alguém que tenha real interesse — das pessoas que devem ocupá-las,

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Yárias regras — isolamento diurno, transferência para colônia penal ou estabelecimento similar — não passam de disposições estabelecidas sem sentido prático, Já a prisão de mullieres depende de cuidado maior, porque a lei, em quanto a elas, ficou abaixo daquele mí­nimo de respeito à dignidade humana. No fundo do palavreado frouxo, que admite a falta do essencial, fica apenas a prisão comum, o xadrez 110 estilo medieval, que, para a mulher é degradante.

Os juizes devem exigir trabalho educativo para os detentos. Note-se que os presos geralmente indicam 0

caminho. Fabricam canetas, cabides, tinteiros, rêdes de pesca, covos, chapéus de palha, jacàzinhos, etc. Cedendo a um impulso interior incoercível, muitos procuram fu­gir do ócio e se entregam ao trabalho. Faz-se mister usar dessa fôrça regenerativa, que é como um protesto contra a inatividade forçada e uma prova de que 0 detento quer ganhar a vida honestamente para prover a própria subsistência e a dos seus.

68. Os membros do Judiciário só servirão a Jus­tiça quando, estipulando 0 cumprimento intransigente da lei, acompanharem de perto o processo recuperativo e se utilizarem, em benefício da regeneração dos indi­víduos, de todos os elementos que estiverem ao seu alcance: — o ambiente familiar, a religião, 0 interesse econômico. O detento do interior deve permanecer no interior, a não ser nos casos excepcionais. Há uma série de fatores de fixação e de fortalecimento ético, que existem nos meios provincianos e desaparecem nos gran­des centros, e que não podem ser desprezados,

De nada adianta a remessa do recluso para os es­tabelecimentos das capitais, quase sempre cadeias tam­

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A JU STIÇA A SERVIÇO DO C IH M E 95

bém, embora de grandes proporções, nas quais os pro­blemas ereseem na razão direta, do vulto da população carcerária, se, sabidamente, nelas o tratamento é inferior ao que pode ser dispensado aos presos no interior. En­quanto essa situação perdure, o princípio predominante há de ser o que manda o magistrado defender o sen­tenciado pela sua colocação no lugar onde melhor possa reencontrar as forças que o abandonaram.

O trabalho, na prisão, será forçosamente de natu­reza. simples. Ainda que se permaneça no artesanato, muita coisa se poderá fazer pela dignificação do homem, contanto que se tenha amor. A melhor política será a cio desenvolvimento da iniciativa do prêso, que desco­brirá a tarefa que lhe convém — exatamente como se preceitua na lei.

69. Tolice é negar-se ao detento a posse de certos instrumentos de trabalho, sob o fundamento de que as­sim se toma possível o cometimento de outros delitos. O estupro é comum nas prisões e nem por isso se cuida impedi-lo. Nos grandes estabelecimentos penitenciários de todo o mundo os sentenciados de bom comportamento manuseiam nos açougues internos facas afiadíssimas e rarissimamente delas se utilizam para matar os com­panheiros; nem os barbeiros das navalhas, nem os sa­pateiros das so velas; e, outros, têm em mãos serras capazes de eliminar quaisquer barras de ferro, sem que se lembrem de empregá-las a não ser no serviço que lhes está afeto. Em compensação, onde tudo é negado ao prêso, acha êle meios de trazer em seu poder nava­lhas, facas, sovelas e serras, com as quais, ou pratica novos delitos, ou então consegue a almejada evasão.

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A K IU -D A C A M P O S

Tudo di jk.•:mi.- de uma seleção adequada de pessoas e sobretudo de vigilância. A detenção é garantida, não tanto pelas grades materiais, mas principalmente por outras, de tipo diferente, que vão desde o olhar vigi­lante do guarda armado de metralhadora, até as barras da bondade e da confiança.

70. O que mais contribui para as desfigurações do sistema penal, impedindo o emprego de novas práticas, que visem o aperfeiçoamento e até a eliminação do regi­me carcerário, é o horror da responsabilidade. Há um sentimento difuso de mêdo que domina todos os setores, Mêdo sobretudo de que o recluso se evada.

Em certas nações a fuga é examinada de outro ân­gulo. Sabe-se que é considerada um episódio normal, ou, pelo menos, quase natural, Nas oficinas o acidente- do trabalho é também um evento que não pode sei* evi­tado, porque, em meio de uma coletividade de indivíduos, de quando em vez um ou outro sempre se deixa apanhar pelos dentes de uma engrenagem. Do mesmo modo nu­ma cadeia, ou numa penitenciária, não deve causar es­tranheza que um detento, que parecia recuperado, mas que na realidade era um simulador, ganhe liberdade à custa de um descuido ou em conseqüência de um abuso de confiança.

As evasões devem ser estudadas, porque as suas causas podem residir em defeitos do próprio sistema, adotado no estabelecimento. A durega do tratamento, por exemplo, costuma estimular fugas que em outras circunstâncias não ocorreriam. Só deve caber procedi­mento criminal para punição dos culpados quando sé verifique a existência de alguma interferência indébita,

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A JU STIÇ A A SERVIÇO DO C E IM 1 97

seja jjroduto cie negligência, imprudência ou imperícia, ou de dolo, praticada por funcionário ou por estranho. Uma dose de compreensão há que envolver os respon­sáveis quando se apure que agiram, ainda que cnlposa- mente, movidos por sentimentos generosos, com o obje­tivo de alcançar, pela bondade, um resultado superior.

Entre nós êsses pormenores não são levados em conta. O soldado tem medo do carcereiro. O carcereiro tem medo do delegado. O delegado tem mêdo do juiz. O juiz tem mêdo do tribunal. Quando ocorre uma fuga, o mêdo se canaliza e ganha fôrça. Busca-se o culpado, com mais afã do que o empregado na captura de nm delinqüente, porque o mêdo da responsabilidade tem que ser fixado numa pessoa, para que as outras respirem desafogadas. Para que sintam a sensação do dever cumprido.

71. A fuga deve ser combatida, mas desarrazoado ê que se lhe empreste importância que não tem

O foragido tem dois caminhos a seguir: ou se ajusta à vida normal, ou permanece à margem da conduta usual, No primeiro caso passa desapercebido, e, então, não há inconveniente em que continue em liberdade; no segundo, atrai sôbre sua pessoa a atenção dos agentes. da auto­ridade, retornando afinal à prisão.

As conseqüências de uma fuga, a não ser em casos muito especiais, nada têm de alarmante. Não obstante, para que um não fuja, os presos, regra geral, são todos esmagados. Por êsse preço é adquirido o descanso dos que não querem ter responsabilidades.

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ss ARROBA CAMPOS

72. Há uma curiosa inversão de valores, digna de um estudo mais aprofundado, no capítulo que diz respeito à evasão de sentenciados.

Ficou assinalado que uma fuga constitui sempre objeto de um processo administrativo especial, de ex­traordinário rigor, no qual se busca um responsável. Ficou demonstrado também que a fuga pode ser compa­rada ao acidente do trabalho, prosseguindo a fábrica na sua faina, sem que a produção seja paralisada para a realização de um inquérito. Ficou salientado, por úl­timo, que o prêso evadido, como decorrência necessária dessa situação, não cria, para a sociedade, qualquer pe­rigo extraordinário.

Como se explica então, além do medo, êsse senti­mento que invade a maioria dos agentes do poder público e que poderia ser chamado de complexo da evasão í

É possível que as autoridades se sintam diminuídas e queiram se compensar da injúria sofrida. É possível também que sejam movidas por um impulso sádico quan­do percebem que alguém logrou escapar dos ferros que o prendiam. É possível ainda que se vejam na situação de quem foi. roubado de determinado objeto cuja guarda lhe fôra confiada. É possível, e até provável, que pre­tendam demonstrar que a falha foi de terceiros.

Tudo é possível, em se tratando de uma reação do espírito humano diante de um fato inesperado e inde- sejado. Daí a valorização do evento, que é logo comen­tado publicamente, noticiado nos jornais, e que cria am­biente para agravos de amor-próprio e sugere represálias em vários sentidos.

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A JU STIÇ A A SERVIÇO DO CÍÍTME 90

73. Inversamente, há desvalorização quando se tempela frente um mandado de prisão não cumprido. Já não-há mêdo. A responsabilidade é diluída. O tribunal não pode inculpar o juiz. O juiz não pode se voltar contra o delegado. O delegado está impedido de agir contra o investigador e o soldado. Na frente de todos se encontra o delinqüente, o qual tem o poder de se ocultar quando percebe a aproximação dos agentes da lei, isentando a pirâmide hierárquica do ônus da res- jjonsabilidade 13.

74. Se foge mn preso deve providenciar-se a sua recaptura. Deve averiguar-se ainda se, para atingir êsse resultado, não foi ajudado por terceiros.

Assinalamos que não há inconveniente em que o preso foragido permaneça em liberdade: — o mal repon- ta quando êle volta a delinqüir.

A compreensão ãêsse fato, pela eliminação do receio da fuga, serviria para o estabelecimento de um regime maior de compreensão pela sorte dos sentenciados. Paz- -se mister uma radical mudança de atitude psicológica

13. Neste momento existem no Estado de São Pauío cêrca de 26.82 i mandados de prisão a ser cumpridos, São 26.821 indivíduos condenados que permanecem em liberdade, N o fundo são exatamente iguais aos que se eva~ diram das cadeias, cora a única diferença de que êstes jâ foram presos e os outros ainda devem, ser presos. Dèsses 26,521 inúmeros já faleceram, oü al­cançaram a prescrição, ou; fugiram para outros estados ou outras nações. Dá-se com êles a mesma coisa do mesmo dilema a seguir: — ou se ajustam ã vida normal, ou permanecem & margeai da conduta usual, No primeiro caso passam desapercebidos e então não há inconveniente em que continuem em liberdade; no segundo atrairão sôbre as suas pessoas, novamente, a atenção dos agentes da autoridade.

A situação não admite paralelos. Os que foram presos e fugiram não chegam a trezentos; os que ainda não foram presos sobem a 26.82Í. Contudo o alarme é dado por causa daqueles, e não por causa dêstes. E, entre êstes, muitos são os que compram a liberdade mediante subôrao, o que significa que continuam delinqüindo, corrompendo, sem que haja comentários, noticias nos jornais, ou mesmo Inquérito policial para apuração de responsabilidades pelos mandados não cumpridos (cf. "Diário Oficial" do Estado, de 25-1-1959, pág. 8),

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a respeito de um assunto que se reveste de tamanha sim­plicidade. . É preciso resistir, é preeiso, às vezes, en­frentar a crítica, até que se imponha êsse ponto de vista, em benefício da própria sociedade.

X a situação atual não há outra alternativa. Já que se'não dá ao prêso o tratamento mínimo que lhe deve ser dispensado, então pelo menos que se reconheça na fuga um ato de legítima defesa de quem se vê rou­bado em anos de vida.. Que o foragido ganhe êsse inundo, não reincida e viva honradamente.

75. O carcereiro.deve ser restituído à sua verda­deira função. Em cada cadeia precisa existir um au­xiliar do Juízo das. Execuções Criminais, cargo não re­munerado, provido sem quaisquer formalidades pelo magistrado responsável pela recuperação dos detentos. É fácil a obtenção de quem se incumba dêsse mister, porque, felizmente, ainda há generosidade no coração dos homens.

Elementos recrutados nas diferentes seitas religio- sas estão sempre prontos a servir e, costumeiramente, revelam nesse mister uma dedicação que chega a ser comovente. Êles se incumbirão de prestar aos senten­ciados o apoio de que necessitam, dentro e fora da prisão, até mesmo depois do cumprimento da pena, mediante a simples remuneração que consiste no sentimento de um dever cumprido, Há mesmo necessidade da gra­tuidade da função, para que o móvel do trabalho seja apenas a satisfação do coração.

76. Observou Harold J. Laski que nenhum agente da autoridade pode realizar adequadamente a sua tarefa

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k .1 !.'STIÇA A SEEVigO DO CEÍMJ3 101

se não acompanha cie perto a sorte dos homens por cujo destino é em grande parte responsável.

Na U.R.S.S. — diz o eminente jurista inglês — a ad­ministração carcerária se vê submetida a uma constante corrente critica pública que a obriga a cuidar atenta­mente de seus atos, Por isso, conclui:

“ Todos os reclusos realizam um trabalho industrial normal e todos recebem seu salário. Têm o direito de gozar férias; recebem visitas em abundância; sua faculdade de escrever e de receber cartas é praticamente ilimitada e não está submetida a censura. — Podem fumar quando não estão trabalhando. Não lhes é proibido conversar com . os . outros presos,, nem com os guardas. Ninguém que haja percor­rido uma prisão russa, comparando-a com uma prisão inglesa, duvidará das vantagens do sis­tema russo. Os presos com os quais conversei, jovens e velhos por igual, eram homens empe­nhados em sua regeneração. Sem dúvida eram fracassados. Todavia, tive a impressão defi­nida de que aqueles com quem palestrei, re­gressariam ao mundo muito melhor providos que antes para lutar com seus problemas. A disciplina não os havia convertido em máqui­nas. Compreenderam o valor do trabalho re­gular. Não se lhes fêz sentir que estavam excluídos do mundo exterior. Não temiam a sensação de estar sob a supervisão contínua de um ôlho inamistoso. Não são estas grandes vantagens as que permitem apreciar com acerto

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1 0 2 AIStíCDA CAMPOS

a teoria em que se baseia êste regime de tra­tamento. A. realização do trabalho industrial normal a troco do pagamento corrente é, por suposto, a tese básica dêste sistema. Contu­do, surpreender-me-ia se a experiência não demonstrasse que o uso orgânico das lioras de ócio pelo detento seja apenas menos im­portante. O rádio, aulas sôbre temas cul­turais e profissionais, livros, representações dramáticas, concertos para os presos ou exe­cutados por eles mesmos, um jornal do cárcere cuja característica principal é o direito de for­mular queixas, são manifestações correntes. Conheci presos que nas suas lioras de ócio assistiam a aulas na universidade* Iam e vi­nham da prisão sem guardas, nem temor de que' pudessem escapar. Conheci dois homens que cumprindo as suas penas, haviam sido di­plomados em advocacia e química na Univer­sidade de Moscou. Em uni estabelecimento penal, a admirável escola secundária tinha de­corações murais realizadas por um grupo de presos que haviam aprendido essa arte nas classes noturnas, da prisão. Chamaram-me a atenção as excelentes relações entre os presos e os guardas. E tive a sensação de homens que viviam uma vida útil, livre da tortura que significa a impossibilidade de exteriorizar a própria personalidade, característica predomi­nante de nosso sistema” M.

14, Easki, ob. ci.L, págs. 90/91.

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A JCSÍIÇA Á SERVIÇO DO C E IM E 103

77. Ai :é aqui tratamos da máquina judiciária e dos homens que a movimentam. Faltam outros que exercem funções paralelas, como o Delegado, o Promo­tor e o Advogado. A êles cabe a crítica formulada aos juizes, porque são coniventes com o descalabro. Ad­mitem, como pressuposto, que é assim, porque há de ser assim. Na polícia estamos habituados a encontrar no noticiário dos jornais informações sôbre barbarida­des ali cometidas. Há delegados que procuram suprir a própria indigêneia intelectual pelo emprego de mé­todos inquisitoriais, chegando ao ponto de matar as suas vítimas, ou levá-las ao suicídio. No Ministério Público reina, domina e fulgura a hipocrisia, elevada ao apogeu. Há promotores que se gabam do sen rigorismo e somam as condenações e os anos de cadeia que conseguiram, supondo — pobres úifedizes ■— que. assim estão subindo os degraus de uma nova escada de Jacó. Na advocacia, o enxurro dos incompetentes, contribui para um des- caimento do nível funcional da classe e permite a luta desigual entre o promotor calejado no ofício e o pro­fissional ignorante, em prejuízo do desgraçado réu, que é quatro vêzes réu: —• réu da opinião pública, réu do processo, réu do seu próprio defensor e réu do seu juiz,

A espantosa crise que assola o Brasil se manifesta na esfera da Justiça fechando os olhos às criaturas que vêem, entupindo os ouvidos às que ouvem, tapando a boca às que falam, que gritam e que proclamam o seu protesto.

Se, no dia do Juízo Final, o Senhor interpelar os que imrtieiparam da tragieomédia da Justiça Pública brasileira, indagando o que fizeram pelos que por êles foram sentenciados, bem poucos terão o que respondei1.

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104 ÀSKTJDA c a m í o s

Muitos dirão, ao ouvir um nome conhecido: — conde­nado. Bem poucos exclamarão eom firmeza na voz:— recuperado.

78, Trata-se em resumo, de uma simples mudan­ça de ponto de vista. Em lugar de presos, deve con­siderar-se que nas cadeias vivem homens. O homem tem uma dignidade que é preciso seja preservada, ainda mesmo no cárcere, ou principalmente no cárcere, porque todo o trabalho de reconstrução do delinqüente visa justamente o fortalecimento dêsse sentimento de digni­dade. É óbvio qne se a dignidade é esmagada, nada sobra para ser salvo.

Se os homens são desiguais, tratá-los com igualda­de, significa tratá-los eom injustiça, É preciso que haja coragem e que o princípio de que todos são iguais pe­rante a lei seja. entendido em termos, como manda a Justiça.

Dentro da cadeia deve haver um culto. Ali, mais do que em qualquer outro lugar, a noção do justo, deve ser venerada. Como a justiça humana é falha, ali tam­bém, mais do que em qualquer outro lugar, deve ser cultivado nos detentos a noção do perdão.

Que se possa dizer amanhã, aos presos que se sen­tirem vítimas, que nos perdoem; e aos que se sentirem simplesmente justiçados, que se reanimem, porque os juizes os ajudarão.

79. Chegamos ao fim. Antes, porém, queremos nos referir a um caso que ocorreu com um magistrado, que era agnóstico, e que, presidindo um júri, fo i sur­preendido pelo advogado de defesa com um pedido no

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A JUSTIÇA A SERVIÇO DO CSIME 105

sentido de que mandasse cerrar as cortinas do Cristo que pendia da parede. O advogado argumentou dizen­do que era materialista e se sentia mal falando diante cio símbolo de nina religião que não professava.

O juiz respondeu: — “ Deferido. O Cristo é um símbolo da religião católica e a Igreja está separada do Estado. O senhor Oficial de Justiça que cerre a cortina” .

Nos instantes finais do julgamento, quando interpe­lou os jurados sôbre se tinham algum esclarecimento a pedir ou algum requerimento a formular, um jurado, que era religioso, disse mais ou menos o seguinte: — “ Senhor juiz. Sou católico e só jaosso decidir tendo dian­te dos olhos a visão , do Cristo, Requeiro portanto a V. Ex.- que mande descerrar a cortina” .

Então o magistrado decidiu: — “ Se o senhor jurado é católico deve ter o Cristo no coração e não precisa dêle 11a parede. Indeferido” .

Êsse episódio, que até parece aneclótico, tem con­tudo um fundo expressionista admirável. Ê que a gran­de maioria dos homens não quer saber do Cristo, como Cristo, senão como uni objeto decorativo, ou o símbolo do poderio de uma religião sôbre as demais. Entroni- zam 0 Cristo no salão nobre, porque se trata do salão nobre. Ninguém se lembra que o Cristo também de­veria ser colocado no xadrez, na cela imunda, para edificação dos sentenciados. Para que êles, contem­plando dia e noite aquela figura triste, do homem pregado 11a cruz, com a cabeça coroada de espinhos, pudessem reencontrar as forcas que os haviam desam­parado e voltar curados ao convívio dos bons,

O problema da criminalidade tem uma profundi­dade que ninguém até hoje conseguiu medir. É 0

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1.06 A1WUDA C A M P O S

problema do homem, na mais dramática das suas ex­pressões. Porque não adianta apenas educar. Os maio­res delinqüentes são justamente os mais inteligentes e mais cultos. São às vezes educadíssimos.

O que adianta é entronizar o Cristo 110 coração de cada criatura, visando a purificação dos sentimentos humanos.

A linha que separa o lícito do ilícito é vária e ir­regular. Ela é traçada pelo legislador, que exprime uma tendência, uma conjuntura social e econômica. Por isso, temos a esperança de que surja, no mundo novo que se está formando e cujos prenúncios sentimos nessas lutas que se travam em todos os países, que nesse mundo novo apareça também um direito novo, que puna igual­mente o vigarista e o ineorporaclor de certas sociedades, e puna também o industrial e o comerciante podero­sos, que, à custa de lucros extraordinários, contribuem para o encareeimento da vida e criam a pobreza e a miséria coletivas.

Êsse mundo novo está à vista, embora ninguém saiba como se constituirá. Nele haverá mais igualdade e pos­sivelmente mais justiça. Os homens, nessa altura cum­prirão o preceito divino do cornerâs o teu pão com o suor do teu rosto. E, em vez de se digladiarem na porfia do lucro, do ganho à custa da perda de terceiros, res­peitarão a palavra do Cristo, dêsse Cristo suave e amo­roso, dêsse Cristo tão explorado, quando disse às pobres criaturas que somos nós: amai-vos. Amai-vos uns aos outros.

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C a p í t u l o V I

NOTAS AVULSAS

I

LIM ITES DA AÇÃO DO JUÍZO DAS' EXECU ÇÕES15

Êste ensaio aborda o problema das pequenas ca­deias e não o das penitenciárias. Como estas não têm capacidade para abrigo da maioria dos detentos, nem c conveniente o deslocamento de certos delinqüentes para os grandes centros urbanos, continua tendo atualidade, porque abrange o geral e não o especial.

15, Em 1956, na Capital paulista, por haver um repórter encontradona rua u:n sentenciado, praticamente recuperado, que, com licença de viajar sòzinho de uma prisão para outra, se desviara do trajeto normal, o egrégio Conselho Superior da Magistratura baixou uma determinação que até hojenão foi revogada:

"PROVIM ENTO XLVJO Conselho Superior da Magistratura, no uso de suas atri­

buições legais,DETERM INA aos senhores Jaízes de Direito da Capital e

do Inferior do ' Estado que fica proibida a saída de presos das cadeias públicas locais e estabelecimentos penais do Estado de São Paulo, para visitas em geral, casos de moléstia ou morte de pessoas da família, bem como poe qualquer ouito motivo, exceto para atos judiciais ou remoção de detentos para hospitais, emcasos de enfermidade pessoal, por determinação expressa dosjuizes competentes, Pubíiqae^se, registre e cumpra-se,

São Paulo, 10 de janéiro de 1956".(Diária Oficiai, de 12-1-1956).

Daí o pronunciamento do diretor do Departamento de Presídios do Es­tado, que transcrevemos data venia •— pela circunstância de que traz va­liosos subsídios para melhor estudo do assunto.

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108 ÀREUDA CAM POS

Quanto ao especial, saliente-se que até agora nem o Legislativo, nem a Justiça, decidiram a quem compete a orientação da reeducação dos reclusos nos estabele­cimentos de maior vulto, se às autoridades administra­tivas, se às judiciárias.

 êsse respeito parece oportuna a transcrição de trechos de 11111 trabalho que sôbre 0 assunto foi publicado 11a imprensa pelo Dr. João Gomes da Silva, quando diretor do Departamento de Presídios do Estado, 110

qual reinvidica sua competência, então negada pelo Con­selho Superior da Magistratura de São Paulo;

“ omissis.Cite-se, a propósito, Roberto Lira, que escreve:

“Em alguns Estados existe o juízo de execução, mas a. tendência é desenvolver a ação dos conselhos penitenciá­rios, sem retirar às autoridades carcerárias a indispen­sável margem de iniciativa e orientação. O problema da intervenção do juiz na execução preocupa e divide os especialistasf assumindo importância fundamental para os que preconizam a indeterminação da pena. Mesmo sob 0 regime de indeterminação relativa, como 0

nosso, sobretudo pela adoção das medidas de segurança, a matéria merece 0 maior apreço. Estudaram-na a Sociedade Geral das Prisões, na sessão de 12 de março de 1932, estabelecendo conclusões em tôrno dos debates de 23 de dezembro de 1931, 27 de janeiro e 27 de fe­vereiro de 1932; a União Belga de Direito Penal, a2 de junho de 1934; o Congresso Penal e Penitenciário Internacional, de Berlim, em agosto de 1935; 0 IV Con­gresso Internacional de Direito Penal, de Paris, em julho de 1937. No Congresso de Berlim predominou a solução alternativa. O conflito envolve a subsistência

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A JU ST IÇ A A SEEVIÇO DO C R IM E 109

e os limites do direito à execução ou às modalidades essenciais desta, abrangendo o conjunto do regime car­cerário” .

“ O Proí. Jorge Americano, em conferência proferi­da em 1943 nesta capital, numa semana de estudos penitenciários promovidos pela Secretaria da Justiça, escreveu: “Nessas condições, uma vez proferida umasentença pelo juiz, está cessada a sua função jurisdicio- nal. O Poder Judiciário, em princípio, não a tem na execução da pena, em face de não haver colisão de in­teresses da parte da sociedade em relação ao réu que vai cumprir a pena. Há coincidência de interesses, em­bora o réu não tenha dela consciência plena” . E mais; “Condenado esse homem, entrega-se, então, à autoridade representativa do interesse social o cumprimento- da pe­na. Deve ser só a autoridade administrativa a que providencie a execução da pena, ou deve ainda prolon­gar-se a função da autoridade judiciária durante a exe­cução da pena? Não seria possível entregá-lo à auto- ridade judiciária para ela mesma providenciar sôbre a execução da pena. Existe unia série de estabelecimen­tos conforme a natureza da pena a cumprir, uma série de providências, de tratamentos que distrairiam comple­tamente a autoridade de sua função jurisdicional .para transformá-la em mera autoridade administrativa, E se, em princípio, resolvêssemos atribuir à autoridade ju ­dicial a direção total na execução da pena, teríamos apenas nominalmente uma função jurisdicional. A au­toridade se transformaria em uma autoridade adminis­trativa para providenciar o tratamento penal, devido ao condenado”. Por fim, acrescenta o mestre: “A inter­venção da autoridade judiciária na execução da pena que

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11.0 ARRUDA C A M P O S

caráter reveste 9 Em certos casos, o caráter jurisdicional. Em certos outros, casos, o caráter administrativo. E em certos outros casos, o caráter de mera fiscalização e supervisão. Daí resulta a possibilidade de confusãode atribuições entre autoridades administrativas e juãi- oiwrias, e-, na prática, intervenções indébitas ás atribui­ções. Esta confusão que, em tese, pode ser prevista e será delimitada, suprimida ou reduzida a um mínimo desde que uma legislação adequada determine a rigor qual a função da autoridade administrativa, qual a in­tervenção da autoridade judiciária, distinguindo o poder jurisdicional do administrativo, e, dentro do poder ad­ministrativo, qual aquela autoridade a que deve competir e em que proporção, e conferindo à autoridade judiciária a faculdade de supervisão, cio controle da execução da pena que ela mesma pronunciou” Infelizmente, ainda não existe, entre nós, essa “ legislação adequada” . U m . anteprojeto de Código Penitenciário se fêz, aj>ós a IV Reunião Penitenciária Brasileira, que teve por sede Belo Horizonte, a fim de que se viesse a “ regular, de forma clara e definitiva, em todo o território nacional, tudo. o que diz respeito à execução das penas criminais e às medidas de segurança detentivas” (Da Justificação do anteprojeto). Êsse anteprojeto, entretanto, apesar de. entregue ao Governo Federal, ainda não foi transforma­do em lei” .

£fomissis . . .Cita em seguida uma cota do P rof. Mamínio Eá~

vero;“O atual governo por sua vez, reportando-se ao

Decreto-lei n.’ 13.298, de 1943, baixou o de n.# 24.531,

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A JU STIÇ A A SERVIÇO DO C R IM E 311

de 13 de maio de 1955, entre cujos “considerandos” cons­ta êste: “considerando que aquele decreto-lei necessita ser aplicado de forma a permitir que a organização penitenciária paulista tenha um, órgão que a supenten- da, dirija e oriente, a fim de preencher plenamente as suas finalidades, inclusive o cumprimento das determi­nações constantes do Código Penal e do Código do Pro­cesso Penal”, decreta, etc. Êsse “ órgão”, pelo decreto, outro não é senão o Departamento, de que sou o diretor- -geral, com essa atribuição de “ superintender” , “dirigir” e “ orientar” (art. 5.-). . A í está, portanto, o Executivo proclamando a intervenção da autoridade administra­tiva. E também o Legislativo o faz, x ois pela Lei n.- 2.699, de 17 de junho de 1954, importante atribuição se confere ao Departamento (art. 5.-), no sentido de. levar presidiários a cultivarem “ as terras. devolutas situadas nos arredores ou nas cidades cujos presídios não dis­ponham de áreas aproveitáveis” ,

“ O que há, pois, é uma divergência de interpretação, e nunca, jamais, falha ou abuso da autoridade admi­nistrativa. O Código de Processo Penal regula, o poder do juiz na execução da pena e seus incidentes, não me parecendo que lhe atribua função administrativa.. Esta, a meu ver, cabe ao órgão executivo. De outra parte, note-se que a concessão “ dos favores gradativos”, a que se refere o art, 32 do Código Penal, é matéria pertinente à administração prisional*”

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1 1 2 a r r u d a c a m i ?o s

TRABALHO DE SENTENCIADOS. — REMUNERAÇÃO lé

A Delegacia Regional do Trabalho, consultada pelo Departamento de Presídios do Estado sôbre a legali­dade do trabalho dos sentenciados na construção da Oasa de Detenção, na qual vão receber salários da firma vencedora da concorrência, opinou que o contrato de trabalho não poderá ser feito entre a companhia em- pregadora e os sentenciados. Admitiu, contudo, o con­trato de trabalho indireto, isto é, entre a firma e o di- retor-geral do Departamento de Presídios do Estado.

Essa foi a notícia que . xmi jornal, publicou e que não foi desmentida nem retificada. “Deverão ser res­peitados os direitos comuns aos operários em geral, como o salário mínimo, horário de trabalho, descanso semanal remunerado e demais direitos previstos na Consolidação das Leis Trabalhistas, tendo em vista o regime vigorante na Penitenciária, quanto ao “niodus vivendi” dos sen­tenciados que se |>ropõem a executar tais obras dentro das suas respectivas funções e possibilidades técnicas e profissionais.” Isso, entre aspas, consta da resposta da consulta, o que significa que a notícia se reveste de inteiro teor de veracidade, podendo servir de base ao presente comentário..

Apesar da boa vontade-que se nota nas duas partes, eonsultante e consultado, que proeuram encontrar, uma

16, So! nas Cadeias, artigo do A. irt "O Estado de São Paulo", de 2-11-1952,

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A <2 USTÍÇA A SERVIÇO DO C R IM E 113

solução para o caso dos detentos que querem trabalhar, não se pode deixai’ de observar que ambos partem de pressupostos inteiramente errados. Aliás, trata-se de uma reiteração, porque até o Conselho Penitenciário claudicou nesse mesmo ponto quando, examinando um processo oriundo de uma comarca do interior, onde exis­tem presos que trabalham, bateu na mesma teela da existência de contrato.

O prêso não trabalha porque assim o deseje. O trabalho é uma decorrência legal, um imperativo do Có­digo Penal, pouco importando que poucos o respeitem nesse ponto. Não há contrato, porque o contrato supõe acordo de vontades e não há vontade num detento que vai para o serviço porque a êle está obrigado. Ugo Conti esclarece bem a questão ao afirmar que o prêso “não presta o trabalho por- livre contrato, mas justa­mente por obrigação inerente à pena” . Um dos elabo- radoi'es de nosso Código Penal, Roberto Lira. sustenta o mesmo ponto de vista, que aliás transparece do texto do Código com meridiana clareza: — “ O trabalho car­cerário não se confunde, porém, com o trabalho espontâ­neo e contratual da vida livre, pois entra no conjunto dos deveres que integram a pena” . Conseqüentemente, são insustentáveis as afirmativas, e descabidos os receios tanto do Conselho Penitenciário quanto do relator da resposta da Delegacia Regional do Trabalho, quando admitem a possibilidade de existên cia de contrato comum, bilateral, entre duas partes livres e plenamente capazes, pela simples razão de que uma delas tem a sua vontade coaeta por um preceito de lei.

O assunto não é todavia muito claro quando se co­gita da denominação que se deve dar a retribuição do

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114 ARHUDA CAMPOS

trabalho do detento, porque aqui há divisão de opiniões, entendendo uns que se trata de salário, enquanto outros aludem a mera gratificação. Questão secundária, A nosso ver não há salário, mas uma compensação econô­mica que decorre cio princípio geral do direito civil de que o trabalho não se presume gratuito. Com o dinheiro conseguido através da prestação de serviços o recluso tem meios de preparar a sua vida honrada após o cum­primento da pena, em vez de sair da prisão, como agora, desajustado e sem dinheiro, ou preparado para reinci­dir na infração da lei penal.

Os presos podem trabalhar. Os presos devem tra­balhar. É necessário que os presos trabalhem. A lei exige que os presos trabalhem. Assim como ela foi aplicada contra o delinqüente, porque êle a violou, assim também deve ser aplicada a favor do delinqüente, para que êle encontre meios de se recuperar,

Se a doutrina não é clara, se há dificuldade na in­terpretação de certos textos, se não se esclareceu per­feitamente a questão da responsabilidade no caso de acidente, ainda assim às autoridades cumpre levar por diante a execução do programa de tratamento dos cri­minosos, deixando os' casos futuros para serem resolvi­dos quando apareçam. Se não há jurisprudência orien­tadora, pouco importa; à medida que as questões forem surgindo, os tribunais formarão a jurisprudência que falta, provocando a ação do próprio legislador para que regulamente melhor a matéria.

O que não é possível é a continuação dêsse regime atual, em que todo o mundo vê fantasmas, supõe perigose reage em. função de riscos imaginários. Porque, eu-

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A JUSTIÇA A SERVIÇO DO CRIME 115

quanto aqui fora uns pensam assim, e asseguram a pró­pria tranqüilidade, não criando casos, no cárcere cente­nas de criaturas sofrem porque não podem nem mesmo dar provas de que estão animadas de bons propósitos e querem demonstrar de forma inequívoca que nêles a pena atuou beneficamente.

I I I

V IS IT A A UM REPORMATÓRIO INGLÊS 17

Os ingleses não relutaram quando lhes manifestei o desejo de abrir mão de Camhridge por um simples reformatóiio de menores. Através, de uma explicação preliminar, percebi que muito mais desejariam mos­trar-me a famosa universidade, onde a mocidade se pre­para e se faz britânica. Contudo, nem foi preciso insis­tir, Nosso “ guia”, o magnífico Mr. Stow, da embaixada no Rio de Janeiro, deixou transpareeer que somente es­tava desapontado por causa do desapontamento que eu sentiria, E foi só. Levou meus companheiros ao tra­dicional centro de ensino e deu-me um carro para uma visita a Lewes.

Eoi assim, às nove e meia da manhã, num dia nu­blado e triste, que me pus a caminho rumo sul, como quem se dirige para o Canal da Mancha.

Londres demorou, mas cedeu. A cidade imensa acabou diluída em bairros e por fim numa rua. Al­cançamos a estrada de asfalto, rompemos por uma

17. Um Reformatório Inglês, artigo do A., inédito (1950),

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116 AKBUDÁ CAM POS

encantadora zona semi-nmü, entremeada de casasde campo e de aldeias. Cinqüenta e oito quilôme­tros, como de São Paulo a Jundiaí, cruzando carros pela esquerda, a perna cansada de tanto comprimir a tábua de apoio dos pés na procura de um pedal inexistente, Pelas tantas alcançamos os limites do condado de Sus- sex, onde a paisagem entrou bruscamente a se modi­ficar. Começaram a aparecer montanhas de formação calcárea, índice da aproximação de Dover.

Ao longe delineou-se a região de Hastings, em que os ingleses perderam a última batalha travada no solo da Grã-Bretanha. E de repente, por trás de uma dobra de terra, Lewes se incorporou aos meus olhos, como uma eidadezinha antiga, muito quieta,, de ruas estreitas e tor­tuosas, subindo e descendo elevações, criando o proble­ma máximo das autoridades policiais, que é apenas o do tráfego.

Vou direto para a cadeia, cujas instalações são mo­destas, limpas e se apresentam na mais perfeita ordem. Celas semelhantes às nossas, pôsto mais confortáveis, sem o aspecto de indignidade que caracteriza o xadrez típico brasileiro. As instalações sanitárias estão 110 pró­prio quarto, mas a descarga é dada do lado de fora, para que sejam evitados suicídios. Há camas e aparelhos de aquecimento para 0 inverno. O detento enfim é tra­tado como gente.

O delegado, Mr. Breffit, me exibe os livros comuns de registro de presos e lamenta não haver ninguém na prisão para que eu o interrogue. Há três meses não aparece nem mesmo um bêbado.

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k JTTStflÇA A S í t ím ç O fiO CRI M i) 117

Após o ahnôço, tio Wliite Art Hotel, encaminhamo- -nos para o ref ormatório de menores. Aqui nos esperam Mi'. MitchelI “deputy governor” ,' diretor do estabeleci­mento. Por primeiro mostra-nos o museu, no qual se destacam as peças de um processo universalmente fa­moso, muito recente, do cidadão qne usava ácido sulfú- rieo para dissolver os corpos de suas vítimas. Entre­tanto, muito mais interessante que a visão dos. vestígios de seus crimes, mais importante que a contemplação dos antigos instrumentos de suplício das várias idades pas­sadas, é um certo fato ocorrido com o célebre criminoso, que já estava na prisão de Lewes quando foi chamado de “vampiro” por um jornalista londrino. Pois bein. Da cadeia onde se encontrava, o preso moveu uma ação por injúria contra o autor , do qualificativo e: conseguiu fôsse êle condenado a três meses de detenção e ao paga­mento, de dez mil libras de multa.

Êsse fato, possível na Inglaterra, parece-me ver­dadeiramente espantoso. Imaginem se tal regime pu­desse ser aplicado no Brasil.

O ref ormatório é destinado a menores delinqüentes. Como aqui tudo é tradicional, penso que suas regras datam do século passado. Prédio velho, rodeado de muros altíssimos, de oitenta anos mais ou menos. Trin­ta guardas para 25Õ rapazes, dos quais 5 fo reincidentes e 23% duplamente reincidentes. Daí o motivo pelo qual os restantes, primários, sofrem horrores. Não é à toa que em todos os cantos são vistas grades de arame tipo “page” , estendidas horizontalmente, como as redes que defendem os acrobatas nos circos de cavalinhos. Para que os rapazes não sintam vontade de se matar.

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J.18 ARRUDA CAMPOS

O trabalho é forçado e executado sob constante vigilância. Fui informado de que podem conversar, mas o qu.e notei foi um silêncio pesado, em tôdas as ocasiões em que pude observá-los sem ser pressentido. Trabalhos de marcenaria, sapataria, trabalhos de pe­dreiro e fabricação de tapetes. Anoto esta última ati­vidade e vejo como é fácil produzir capachos. Penso em que pelo menos êsse tipo de serviço poderia ser adotado no jBrasil, como fonte de renda para os deten­tos, mas Mr. Mitehell me informa que vai abolir a fa­bricação do artigo por ter ficado provado que o serviço, é anti-higiênico.

À medida que percorro as diferentes salas do ca­sarão vou colhendo informações. Chaves em abundân­cia, cadeados a três por dois. Na biblioteca verifico que os rapazes lêem média de quatro livros por semana, que é o máximo que se lhes concede. Não têm propria­mente jantar, mas chocolate, seguido de uma hora de silêncio, nas celas, cujas portas ficam abertas. Então, os mais atrevidos se passam para os quartos vizinhos e quando apanhados são duramente castigados. Vinte e oito estavam sendo punidos.

Hospital vazio, o que à primeira vista significa­ria bom indício. Todavia, mostram-me objetos que os reclusos engolem, pregos inclusive, na esperança de sei tratados fora, quando então poderiam tentar a fuga. Êsse pormenor dá bem idéia do desespero daquela mo­cidade transviada e da revolta que ela há de sentir ao se ver tratada eom tamanha frieza.

O diretor lamenta a situação. O pior — dedara- -me —■ é que aqui se encontram menores que ainda não

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A J T r m Ç A A SERVIÇO n o CKTME 119

foram julgados. Isso é contra a lei., mas não há outro remédio. Ê preferível que fiquem aqui do (pie soltos. . .

A linguagem não me é desconhecida. O problema é idêntico ao de São Paulo e os ingleses não levam nenhuma vantagem quanto ao fator egoísmo. Lá e c á , ..

Tenho ponto, de vista firmado a respeito do assunto e acho que o menor delinqüente deve ser solto, para que roube à vontade, até que a sociedade aprenda e dê meios às autoridades para que possam tratá-lo. Nâo se pode sacrificar o menor porque a sociedade é desleixada, descuidada, desumana, e não procura socorrê-lo, Por­que o resultado é êsse: — liquida-se um jovem, corrom­pendo-o no contacto com elementos da pior espécie, por causa da indiferença da coletividade; e ela, vendo-se livre daquele elemento que podia ser recuperado, mas que entrega à perdição, não sente necessidade de reagir. Gasta fortunas imensas em festas, ein recepções, em “boites” , numa ostentação de riqueza que é uma afronta, para os humildes e recusa apoio a uma campanha, séria para concerto da situação. Um abominável círculo vi­cioso, que deveria ser quebrado por uma providência violenta e escandalosa, capaz de produzir pelo menos algum resultado prático.

Chego ao fim da visita. Da janela gradeada da enfermaria distendo os olhos e avisto uma faixa azul- -einzenta que rebrilha aos reflexos do sol. Já é o mar. Do outro lado do canal famoso adivinho o continente europeu.

Mr. Mitchell fala-me da limpeza rigorosa do esta­belecimento, dos banhos de imersão que os internados

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m ARRUDA CAMPOS

tomam uma vez por semana, cia alimentação que é abun­dante e. sadia. Percebeu minha tristeza em voltai’ de­cepcionado, sem uma idéia nova para trazer à minha terra. Eu olho e vejo. Yejo a limpeza rigorosa das coisas, os baldes vermelhos sempre cheios de água 1 1a previ são de um incêndio de colchões e conseqüentemente do velho prédio cia prisão. O x>iso encerado, as paredes imaculadas. Tudo rebrilhante. B, melaneòlicamente, concluo comigo que a limpeza é só das coisas inanima­das, Lá, como aqui, ninguém cuida de limpar o homein.

IV

V IS IT A À UNIÃO S O V IÉ T IC A 18

A camarada Tatiana S ergueiva, professora do Ins­tituto de Direito da Acaclemia de Ciências da U.R.S.S., que me concedeu unia entrevista especial para colheita de informes sôbre a situação atual do direito penal so­viético, conhece .com alguma, profundidade a legislação específica dos países da América Latina. Começa a, conversar livremente e 111 e pede a opinião sôbre pontos de interesse prático tão variados quef. às vêzes, me em­baraço na resposta. Pergunta-me como há tantos anos admitimos no Brasil 0 absurdo existente 110 Código Pe­nal do livramento condicional na metade do prazo de­ferido apenas ao sentenciado que deve cumprir uma pena superior a três anos, ficando os outros, de menos de três anos, obrigados a permanecer no cárcere por todo o período, sem qualquer benefício, ainda que hajam

Í8. Notas de um caderno de viagem à União Soviética (1955).

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A XÜSUÇA A SERVIÇO DO CRIMÍS 121

cometido delitos de menor gravidade. Observa-me que nosso Código mais defende a propriedade privada do que o indivíduo e quer saber dos índices de reincidência, pois não é possível que, ignorando a pessoa do crimi­noso, tal regime póssa produzir resultados práticos no sentido de reeducar o delinqüente. ■ Depois, sorrindo, diz-me que seu interesse é puramente científico, pois na TT.R.S.S. muitos erros tem sido cometidos.e é necessária uma atitude de permanente vigilância para que as fa­lhas sejam corrigidas. Assim, não faz críticas por mal, senão apenas porque quer permanecer sempre atenta, contribuindo com seu quinhão para a redenção dos homens. ■

Em seguida entra a explicar-me que 1 1a União So­viética, não havendo propriedade privada, nem a explo­ração do homem pelo liomem, foram de plano eliminadas as principais causas dos desajustes que entravam 0

progresso nas demais nações capitalistas. Não obstante, diz, ainda há muito que se fazer, pois é grande 0 número dos inadaptados que, por vícios educativos, derivam pa­ra a delinqüência.

NaU.R.S.S. 0 princípio constitucional de que “quem não trabalha não come” só não é cumprido por uma par­cela ínfima, da população. É justamente aquela que acaba na criminalidade. A experiência mostra que o trabalho constitui 0 melhor derivativo. Onde o homem se entrega às fainas produtivas, não ocorrem crimes a não ser |>or fôrça de motivos especialíssimos,

O furto ainda produz dores de cabeça e seu combate é feito indiretamente, pelo ataque às suas causas, pela educação dos que trabalham eom bens alheios, pela or­ganização de sistemas de “ controle” desses bens (geral-

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12 2 AIÍfiUBA CAMPOS

meiite do Estado) e, principalmente, pela melhoria das condições de vida do povo.

Em 1947 foram tomadas pelo govêmo duas reso­luções: — por uma se cogitou da defesa dos bens pú­blicos e, por outra, da dos bens particulares. Á res­ponsabilidade penal independe do valor do objeto subtraído e as sanções foram tomadas ainda mais seve­ras, por se ter veriíicado que as pimições anteriores não atingiam o resultado visado. Nao obstante, certos delitos de escassa gravidade foram contemplados com castigos menores, por se ter apurado que, nesses casos, o abrandamento da pena facilitava a recuperação.

Os delinqüentes primários fazem jus a um trata­mento que varia do trabalho de correção, em lugares que não constituem prisões (fábricas com assistência de pesquisadores sor-inis). ou de detenção de segundo grau, até um ano. No primeiro caso o sentenciado deve inde­nizar o Estado, pagando-lhe multa até 25% do salário, conforme a condenação. Perde ainda direito ao tempo para o efeito de aposentadoria, mas não o de fruição de férias, pois que estas são uma exigência biológica e não um prêmio. Em certos códigos das repúblicas sovié­ticas há o direito de opção, cabendo ao condenado a es­colha da punição que melhor consulte seus interesses pessoais ou familiares. Finalmente há o instituto do sursis} que é ordinariamente concedido, quase sem res­trições de qualquer natureza, depois de fixada a sanção.

As penas são sempre determinadas, isto é, tem pra­zo certo, embora os dirigentes dos estabelecimentos pe­nais tenham o arbítrio de reduzi-las. . É, conseqüente­mente, uma sanção provisória, que pode ser alterada

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A. -i ’ STi', A A SERVIÇO iffl CStM E 123

para menos, caso se verifique qiie houve exagero no. cálculo, mas nunca maj orada. O máximo é de 25 anos, excepcionalmente: na prática, não vai além de dez anos.

Existe a pena de morte em. tempo de paz, para os réus de crimes extraordinários: — homicídios qualifica­dos, eom requintes de perversidade, atos de banditismo, sabotagem, espionagem e traição da pátria. A pena de morte foi abolida em 1947 mas acabou sendo restabe­lecida por exigência da opinião pública entre 1950/52.

Laborterapia nas prisões, gozando o detento das re­galias comuns dos operários. Não quis responder sôbre a parte sexual. Há livramento condicional, existindo institutos especializados que se incumbem de verificar se o liberado de fato se readaptou.

A responsabilidade pessoal começa aos 14 anos, de acordo com os atos praticados e previamente definidos em lei. -Em outros, como no caso de homicídio e de furto, desde os 12, podendo a Justiça suspender o an­damento do processo e confiar o menor infrator aos seus genitores, bem assim, conforme a periculosidade, entre­gá-los a institutos de reeducação. Há também a plena imputabilidade, ou maioridade criminal, aos 18 anos, limite que a Dr.- Tatiana acha que vai ser elevado, em virtude das ponderações dos estudiosos soviéticos. Refere que o Código Penal deverá ser modificado, aca­bando-se inclusive com o instituto de analogia, o qual, diz, vem sendo muito mal compreendido no exterior.

“A analogia é do crime, não da condenação. Cri­me é uma ação perigosa contra a sociedade que esteja prevista em lei. Ora, o homem pode ser condenado se o ato que praticou ê semelhante a outro definido em lei como crime.”

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1.24 ARRUDA CAMPOS

Faz uma pausa e, ao procurar o exemplo, repete o que já sei: — no Brasil os indivíduos furtavam energia elétrica e não eram punidos, porque a lei, que só previa o furto de objetos, não enquadrava na sua definição o fluido da eletricidade. Havia o ato anti-social e não havia a defesa da. sociedade. Só mais tarde o legislador cuidou de ampliar a figura delituosa, apanhando tam­bém os ladrões de energia elétrica.

Observa que essa é uma questão por assim dizer acadêmica, sem nenhum interesse, prático, porque o Có­digo Penal dá U.R.S.S. é semelhante aos outros e está suficientemente aperfeiçoado, de modo que podemos dis­pensar a analogia. Raríssimas vezes a analogia é apli­cada, a tal ponto que cogita o governo eliminá-la, por desnecessária.

Prossegue : — a emoção não elimina a responsabili­dade, bem assim a embriaguez, a não ser quando total. Para fixação da responsabilidade entra em jogo como fator preponderante a execução dos atos preparatórios. Quanto aos delitos políticos, são todos aqueles atos que se voltam contra o interesse do Estado, ou contra o in­teresse do povo, os quais são julgados pelos tribunais superiores.

A U.R.S.S. também se utiliza da anistia e, em 1953, houve um amplo decreto que beneficiou centenas de de­linqüentes, inclusive políticos. Cogita-se agora de uma reforma total da legislação, com abrandamento de penas para os crimes comuns e estabelecimento de bases para unificação das leis penais, instituindo-se um Código Pe­nal único, com x^erfeita caracterização da norma de que a inocência se presume, cumprindo à acusação a pro­dução de prova em contrário.

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Em tôda a União Soviética passariam a vigorar estas normas principais:

1) O acusado teria direito a um advoga­do, a partir de u.m certo ponto da instrução preliminar;

2) Alguns delitos não mais seriam pu­nidos, segundo o Código Criminal, em parti­cular quanto ao artigo que prevê a condenação do acusado por analogia entre os delitos, o qual seria suprimido;

3) . As penas por propaganda contra-re- volucionária e vários outros delitos análogos seriam reduzidas.

0 novo Código -comportaria duas partes. Na pri­meira, seriam definidos os princípios gerais de juris­dição soviética. Na segunda, seriam enumerados os crimes e delitos que acarretam o procedimento criminal, em cinco capítulos:

a) Crimes contra a segurança do Estado e contra a paz:

b) Crimes e delitos que atentem contra os bens públicos e contra a economia socialista;

c) Crimes e delitos que atentem contra a administração do Estado, contra a Justiça e contra o Partido;

d) Crimes e delitos contra as pessoas;e) Crimes que atentem contra a defesa

nacional (delitos militares).

A JU STIÇ A A SERVIÇO DO CÍH M E 125

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1 2 6 ARRUDA CAMPOS

A pena de morte apenas será mantida em casos excepcionais. No que concerne às outras penas, seriam as seguintes:

Privação da liberdade (em princípio, dez anos no máximo) ; trabalhos de “ reeducação” ; privação dos di­reitos civis; proibição de permanência, multa, infâmia pública.

V

UMA PRISÃO SOVIÉTICA (2.ç grau) 19

Partimos para a colônia de reeducação de Kriixkovo, nos arredores de Moscou, que é a única das imediações. Não é jjròpriamente uma colônia, mas uma fábrica, tendo ao redor as demais instalações do estabelecimento. SoU; festivamente recebido e a mesa posta.no., gabinete, do diretor mostra que o dirigente da prisão já sabia da minha ida.

Adianta-me que aqui são abrigados os reclusos con­denados por crimes comuns (que envolvem os delitos de trabalho), os quais são inicialmente examinados paxa verificação de suas aptidões físicas e mentais, condições de família, etc. Os que são casados não devem sofrer preocupações, pois, como a pena não pode passar da pes­soa do delinqüente, se o salário fôr insuficiente, o Es­tado garante o restante necessário à subsistência dos seus, criando dessa forma condições propícias para que a readaptação se processe com rapidez. Constitui para o governo um excelente negócio a outorga do perdão no prazo mais breve possível, donde o amaeíamento

19. Notas de um caderno de viagem à União Soviética (1955).

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A JUSTIÇA. A SERVIÇO DO CRIME 127

psicológico do delinqüente, para que êle se arrependa e resolva retomai* o bom caminho.

A biotipologia é uma superfetação capitalista- Os presos são selecionados mais ou menos e postos a tra­balhar. Êsse e o sentido da expressão “ trabalho for­çado” do Código Penal Soviético, pois, tôda a faina recuperativa oficial é baseada na laborterapia, Se não há no presídio a especialidade do recluso, deve êle pro­curar outro serviço e aprender novo ofício.

A fábrica iJroduz utensílios de alumínio, filtros de óleo para automóveis e tratores, mostradores de relógios despertadores. Nada mais senão isso, o que me parece ridículo, dada a circunstância de que estão aqui reco­lhidos cêrca de oitoeentos delinqüentes, os quais são remunerados na- forma comum, peça por peça, na média de 300 a 400 rublos por mês.

Embora seja uma penitenciária fechada e reservada ao sexo masculino, vejo que trabalham, ao lado dos re­clusos, numerosas mulheres, contra todas as regras pre­conizadas pelos penitenciaristas que conheço. O diretor, porém, sorrindo, chama a primeira moça que apareee e- a submete a um breve interrogatório. Ela, que não conta mais do que 30 anos, trata-o de igual p a ra igual e, depois de uma breve troca de palavras, em russo, atende minha curiosidade. Através de intérprete asse­gurou-me que nunca foi desrespeitada por ninguém, mesmo porque não teria cabimento uma. coisas dessas num lugar de trabalho, sobretudo como êste. Ao con­trário, recebe a todo instante provas de consideração, É solteira e vive com. um operário que trabalha nos arredores. Antes de se retirar quer que eu saiba e proclame que o povo soviético é pela paz. , .

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1 2 8 AHHUDA CAMPOS

O diretor rne acrescenta que,, além das mulheres, existem outros trabalhadores voluntários, que servem mediante salários mais altos, para que os presos não percam o contacto com o mundo exterior e sintam o desejo de voltar à vida livre, onde podem ganhar im­portâncias mais elevadas.

Á alimentação é servida três vêzes por dia, gra­tuitamente, As roupas, entretanto, são adquiridas pelos detentos, Não há censura na correspondência e as vi­sitas das esposas são livres, havendo apartamentos onde elas podem passar alguns dias, periodicamente, com seus maridos.

O trabalho ocupa oito horas. O prédio tem bi­blioteca, com 7.500 volumes (freqüência de 86%), ci­nema grátis (duas ou três sessões por semana), campo de esportes, voleibol, bola-áo-cêsto, xadrez, ete. Conta com médico, clínica e ambulatório.

Ao que me assegura o diretor do estabelecimento, a produção da fábrica é de boa qualidade, a despeito da heterogeneidade do elemento humano com que pode contar, Há uma grande emulação entre os reclusos, não somente porque são ajudados pelos orientadores téc­nicos e assistentes sociais, como ainda porque “sentem” a diminuição da pena, conforme o grau de comporta­mento apresentado. Um dia de bom trabalho vale até3 dias de abatimento no castigo, quando se trate de serviço pesado, nas construções j>ara ampliação da co­lônia ; os na indústria, leves, justificam abono de um a dois dias.

Têm organizações sociais e um Conselho de Ativis­tas, escolhido pelos próprios presos, cuja função é a de estudar os problemas da produção e as dificuldades

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a j u s t i ç a a s m rrç o d o c r i m e 129

particulares de cada delinqüente. Êsse conselho faz admoestações aos rebeldes e pede providências adminis­trativas nos casos de falhas do estabelecimento, Existe também um tribunal de camaradas para julgamento dos atritos mais graves, cujos membros são escolhidos pelos presidiários, e que aplica sanções como a de privação de troca de cartas por períodos de 13 a 30 dias, ou de recebimento de visitas.

Ao ser liberado o sentenciado recebe passagem de volta e dinheiro para sua alimentação até o lugar de origem.

Continuo a reproduzir as minhas notas, tal como as colhi na ocasião, donde uma certa desordem na enu­meração dos fatos.

Os serviços da colônia podem ser criticados nos jornais murais mantidos pèlo Conselho dos Ativistas. Há uma escola para os de escassa instrução, chegando alguns a completar na prisão o curso secundário. Quan­to ao mais, procura-se dar. ofício a quem nada sabe.

O diretor me afiança que no ano passado, 1954, onze presos não tinham experiência alguma e que 29 mal conheciam o trabalho. Para êles foi aberto um curso de tratoristas e hoje estão prestes a tirar diploma, po­dendo conseqüentemente ganhar a vida honradamente.

A fábrica dá lucros, os quais são aplicados em parte na outorga de prêmios aos melhores elementos. Aliás, conta duas bandeiras, que são os seus títulos prin­cipais, conquistados, um pela produção e, outro, pela eficiência na reeducação, dado que não se verificam reincidências.

As penas variam, de um mês a dez anos. A maior parte, porém, é de condenações entre um e três anos.

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130 ASÍRUDA C A M P O S

.Nesse período o criminoso perde o direito ao uso do título do camarada.

Os presos trabalham em “brigadas” e recebem no­tas diárias de comportamento e aproveitamento que in­fluem na concessão do perdão, dada a circunstância de que, quando tôdas as informações coincidem, não há ra­zão para que o indivíduo fique retido na prisão. Â soltura é determinada pelo próprio diretor do presídio, sem. audiência senão de seus auxili.ar.es diretos, entre os quais figuram alguns presos. Há o caso de um que cumpriu a pena e não quis sair: — ficou, como operário voluntário, por sentir-se útil ao trabalho de recuperação dos demais.

Peço explicações ao meu informante sôbre as difi­culdades que tem encontrado no exercício de seu mister. Existem homicidas'? Èle me responde que não. Diz que os mais difíceis de serem tratados são os presos que não têm ofício definido, os quais são assim justamente por causa da vagabundagem anterior que os calejou.. Igual­mente, tanto os sem residência fixa como os sem família constituem problemas para a administração.

Os vadios são terríveis — assegura-me — mas nêles os castigos surtem resultados, embora não haja solitária nem punição corporal. O simples fato da prisão ser fechada já constitui, um elemento favorável ao trabalho.

O vice-diretor faz comentário em russo e o diretor me observa: — o meu colega está dizendo que os ladrões raramente criam outros casos a não ser o de que se recusam trabalhar. . .

— Então há muitos ladrões na U.R.S.S. %A resposta é veemente. Sim, muitos, mas não tan­

tos quanto nos países capitalistas,, onde a propriedade

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A .TUSTIÇA A SERVIÇO DO CRIME 131

privada constitui um estímulo para o furto. Aqui nem há o que roubar, a não ser pequenos objetos nos apar­tamentos, ou dinheiro abandonado sem cuidado nas mo­radias. Facilmente, porém, os gatunos são presos, por­que não sabem explicar a origem de sens bens.

Nesta hora penso comigo em que, no meu país, se fôssemos chamar a contas todos que não são capazes de explicar a origem de seus bens, teríamos de' executar o plano sarcástico de Oliveira Pilho, de mudar o Brasil para a ilha de Fernando de Noronha, de gradeá-la con­venientemente e deixar , o continente reservado à função de presídio aberto. . .

O diretor prossegue: — os piores elementos que já tivemos nesta colônia foram alguns vadios e ladrões que ofendiam os seus superiores, jogavam cartas e rou­bavam seus colegas de prisão. Eram dois e não tivemos outro recurso senão o de enviá-los a. uma penitenciária de terceiro grau.

A colônia de Kriukovo funciona há 21 anos e nunca registrou, nem fuga, nem suicídio. Não há razão, para uma coisa nem outra. Afinal, êles sabem que aqui nosso intuito é reformá-los, devolvendo-os à coletividade tão logo quanto nos seja possível. Recebem uma boa lição, afiam o seu senso de justiça, compreendem que erraram e não querem saber de voltar. Regra geral basta ensi­nar um ofício ao sentenciado para que êle reencontre a satisfação de viver e de trabalhar honradamente. No Brasil parece que não é hem assim, diz, e a essa altura procura na memória, recordar uma certa revolta, nu­ma certa ilha de um certo território.

■— Ilha Anehieta,

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132 ABRUDÀ CAMPOS

Êle não lembra o nome. Sabe apenas que foi nmna ilha no Brasil e condena as -prisões isoladas, so­bretudo assim, num lugar rodeado pelo mar, longe de tudo. Paz um comentário: — até o diretor se trans­forma em sentenciado. . .

Peço uma estatística dos detentos, classificados se­gundo os delitos cometidos. Depois de algum tempo a intérprete traduz-me o rol que demorou ser encontrado:

Roubo (propriedade particular e estatal) 432estupro ..................................... ......... .. 15crime militar .......................................... .. 21porte de armas . . .............. ........ .. 11especulação ............................... .......... . 17perturbação da ordem pública . . . . ... ... .. 258outros motivos ...................... ....................... 81

835

Tento explicações, já que não estou a par das de­finições legais e não posso formular um juízo seguro sobre tais delitos. Roubo da propriedade do Estado, por exemplo, é, entre nós, geralmente o peculato, em­bora outras figuras também possam coexistir, A intér­prete, todavia, encontra dificuldades na pesquisa dos vocábulos adequados. Entendi que a maior parte dos “ ladrões.” é constituída de indivíduos que dilapidaram bens da Nação, bem assim que os crimes militares são delitos comuns, de escassa importância, que dispensam julgamento militar, na maioria desordens.

Por que tantas condenações por fôrça de perturba­ção da ordem pública?

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A JT7STIÇÀ Á SERVIÇO DO CRÍMB

Explica-me o diretor que são indivíduos que se em­briagam habitualmente e criam incidentes de certa gra­vidade, inclusive com agressões. A bebida é um vício terrível, diz-me êle. E, num gracejo, ingere um cálice de vodca. Olha o vidro, úmido, pensa um instante, e, quando baixa o braço, faz uma afirmação peremptória:— mas está acabando. O povo precisa de álcool, por causa do frio. . Contudo, o governo subiu o preço do vodca e baixou o do vinho. O vinho demora mais para embriagar,

Quero saber se tem notícia de casos de homosse­xualidade e obtenho resposta negativa. Aqui, não. Nos estabelecimentos de terceiro grau já ouvi dizer que sim. fossos presos são tratados como homens, recebem suas mulheres e companheiras, não. precisam descer a essas baixezas. 3STo regime severo, porém, é possível que até isso aconteça, Não afirmo, mas acho possível. Be fôr verdade, trata-se de uma falha que temos de corrigir.

Tento novas investidas, mas o russo fecha-se no silêncio. 'Não acha correto falar sôbre assuntos sôbre os quais não tem elementos seguros. Propõe obter pa­ra mim uma visita a uma prisão dêsse tipo, mas acha também que é longe, porque essas penitenciárias estão associadas aos “ soveozes” mais distanciados. De minha parte agradeço, porque preciso retornar à minha terra.

Lembro-me de ter ouvido que os sentenciados na ü.Iv.S.S. têm direito a férias e não quero deixar passar o ensejo.

O diretor faz uma cara de espanto.— Mas, claro! Êles não são máquinas. Gozam férias,

vão para casa, descansam e dex3ois .retomam. Isso é na­tural.. .

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134 AÍMlCbA CAMPOS

À saída os dois diretores me observam que esqueci de bater fotografias. De fato, a câmara e,atava ao meu lado e não me ocorrera utilizá-la, Voltamos ao pátio e tiro várias chapas quando um prêso, engenheiro cons­trutor, se aproxima. Enquanto curiosamente inspeciona a máquina, indagam de mim se quero ouvi-lo. Segue-se um diálogo rápido;

— Sim, a condenação foi justa. Eu me aproveitei de muita coisa para construir minha “datcha”. Me­reci a pena que me foi imposta.

Pergunto aos que me acompanham se não há in­conveniente numa indagação sôbre a eficiência da ad­ministração. Dizem-me que não e a resposta é pronta.

— 3STo geral é boa, mas liá muita pulga. . Além dis­so, acho a direção muito, frouxa. Penso que se deveria agir com mais rigor, porque há muitos abusos. Se houvesse a necessária energia muitos sentenciados cui­dariam de sair da prisão mais depressa.

A resposta do engenheiro fez rir a todos, inclusive a êle.

K"o portão quero fotografar meus dois amáveis acompanhantes, mas êles se esquivam. Não é costume, dizem-me, e não insisto.

Oferecem-me de presente uma panela de alumínio, arredondada, capaz de abrigar um frango, fabricada no estabelecimento, que, apesar do pêso, faço questão de trazer de avião para tê-la em minha casa. E, no ins­tante da, despedida, o diretor me diz, com integral se­riedade: Eu queria dizer-lhe alguma coisa da qual o senhor pudesse se recordar. Tejo, porém, que aquela

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môça operária passou na minha frente e me roubou a palavra.

A princípio não compreendo. É a intérprete quem me esclarece; — êle se refere à que lhe falou em paz.

Olho para os dois e dígo-lhes, quase com solenidade;— Mir!

Êles vêm ao meu encontro e me abraçam calorosa­mente. A tal ponto que meu coração sentiu o ritmo das batidas dos seus corações. E, no mesmo instante, sen* timos os três que êles batiam no mesmo ritmo.

Paz, para os homens de boa vontade.Paz, para que êles se compreendam'e mutuamente

se ajudem, e mutuamente se perdoem, e mutuamente se amem — tal como, num velho, antigo e esquecido dia, recomendou -nos, de coração sangrando^ o Mlho de Deus,, feito Homem.

A JUSTIçà A SEli VIÇO i>0 CBIME lã S