a jurisdição constitucional de hans kelsen

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Ademais, a neutralidade poderia ser caracterizada como o fornecimento de chance igual na volição estatal, na medida em que fosse conferida a paridade no direito de voto e igualdade universal da lei. Darseia a chance aos partidos de terem votos necessários para alcançarem seus objetivos. Por fim, haveria a neutralidade no sentido de paridade, isto é, admissão igual de todos os grupos e orientações de interesse, sob condições iguais e com tratamento isonômico na contemplação com vantagens ou demais prestações estatais. Por outro lado, a neutralidade poderia ser analisada sob a ótica positiva, seja no sentido da objetividade e imparcialidade com base em uma norma reconhecida; neutralidade com base em um conhecimento experto não egoísta e interessado (parecerista e consultor); neutralidade como expressão de uma unidade e totalidade que abrangeria os agrupamentos opostos e, destarte, relativizaria em si todas essas oposições; ou, ainda, neutralidade do estrangeiro que se encontraria de fora e que, na qualidade de terceiro, provocaria, de fora e em caso de necessidade, a decisão e, com isso, uma unidade. As divergências de opinião e diferenças entre os titulares de direitos políticos de decisão poderia ser resolvidas não judicialmente, mas por meio de um poder político mais forte situado acima das opiniões divergentes, ou mediante um órgão em relação de coordenação com os outros poderes constitucionais, ou seja, um terceiro neutro. Sob esse prisma, surge com Benjamin Constant a teoria do poder neutro, destinado a solucionar a luta da burguesia francesa por uma Constituição liberal contra o bonapartismo e restauração monárquica. A função do terceiro neutro seria intermediária, defensora e reguladora, ativa apenas em caso de emergência, mediante o poder preservador, uma vez que ela não deveria concorrer com os outros poderes no sentido de uma expansão do próprio poder. Insta ressaltar que o Presidente do Reich possuía poderes que o tornariam independente dos órgãos legislativos, embora vinculado à referenda dos ministros dependentes da confiança do parlamento. Ora, seus poderes constitucionais corresponderiam aos poderes do chefe de Estado, tal como idealizado por Benjamin Constant. Por isso sua posição só poderia ser construída no cenário da época com a ajuda de uma teoria mais desenvolvida de um poder neutro, sob pena de incompreensão dessa mistura contraditória de determinações constitucionais incompatíveis. Argumentase, então, que o guardião da Constituição deveria ser independente e políticopartidariamente neutro. Ao rechaçar a possível atribuição da guarda da Constituição ao Judiciário, aduzse que se a justiça fosse compelida a resolver todas as tarefas e decisões políticas, para as quais fossem desejadas independência e neutralidade políticopartidária, ela receberia uma carga insuportável. E mais: essa situação teria como obstáculo o princípio democrático. Às diversas independências corresponderiam inamovibilidades, imunidades e incompatibilidades. Além disso, a independência poderia corresponder à proteção defensiva e negativa contra a volição política ou, ao contrário, poderia garantir uma participação positiva na determinação ou influência da volição política. A independência dos membros do Judiciário, Legislativo e do Presidente do Reich deveria estar estritamente ligada com a idéia do todo da unidade política. Essa concepção contém uma oposição aos agrupamentos pluralistas da vida social e econômica. Segundo o autor, a própria Constituição de Weimar já estabeleceria o guardião da Constituição – o Presidente do Reich. Ele representaria o centro de todo o sistema de uma neutralidade e independência políticopartidárias, construído sobre uma base plebiscitária, estando dotado de poderes eficientes para uma proteção efetiva da Constituição. Essa previsão apenas materializaria o princípio democrático, sobre o qual se baseava a Constituição de Weimar. Com isso, ela procuraria formar um contrapeso para o pluralismo dos grupos sociais e econômicos de poder e defender a unidade do povo como uma totalidade política. 2. A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL DE HANS KELSEN Expoente jurista da República de Weimar, Hans Kelsen também teorizou acerca da guarda constitucional, porém, em oposição à ideia esposada por Carl Schmitt na obra O guardião da Constituição. Apesar de questionar diversas premissas da teoria da Guarda da Constituição schmittiana, Kelsen concordava quanto à pertinência de uma análise dos limites da jurisdição, enfatizando que, caso se almejasse restringir o poder dos tribunais, não se deveria “operar com chavões vagos como ‘liberdade’, ‘igualdade’, ‘justiça’, etc”, senão poderia ocorrer uma indesejável transferência de poder. Prosseguindo em seu estudo, Kelsen exteriorizava de forma mais clara que, nos casos mais importantes de violação constitucional, Parlamento e governo seriam partes litigantes, o que justificaria o reconhecimento do Judiciário como o poder neutro livre das tensões entre Parlamento e Governo. Hans Kelsen mostravase contrário à visão schmittiana de terse na figura do Presidente do Reich, única e exclusivamente, o Guardião da Constituição que, segundo o autor austríaco, seria um dos guardiões, zelando pelo controle de constitucionalidade sobre os atos emanados do Executivo e às vezes do Legislativo. A Constituição austríaca possuía duas jurisdições distintas: a jurisdição constitucional e a jurisdição administrativa. A primeira destinavase ao controle de constitucionalidade dos atos jurídicos, enquanto a segunda limitavase a aferir sua conformidade às leis. Assim sendo, a jurisdição constitucional era vista como uma jurisdição administrativa especial, pois controlava a constitucionalidade do ato administrativo, e não sua simples conformidade à lei. [2]

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Page 1: A Jurisdição Constitucional de Hans Kelsen

Ademais, a neutralidade poderia ser caracterizada como o fornecimento de chance igual na volição estatal, na medida emque fosse conferida a paridade no direito de voto e igualdade universal da lei. Dar­se­ia a chance aos partidos de terem votosnecessários para alcançarem seus objetivos.

Por fim, haveria a neutralidade no sentido de paridade, isto é, admissão igual de todos os grupos e orientações de interesse,sob condições iguais e com tratamento isonômico na contemplação com vantagens ou demais prestações estatais.

Por outro lado, a neutralidade poderia ser analisada sob a ótica positiva, seja no sentido da objetividade e imparcialidadecom base em uma norma reconhecida; neutralidade com base em um conhecimento experto não egoísta e interessado(parecerista e consultor); neutralidade como expressão de uma unidade e totalidade que abrangeria os agrupamentosopostos e, destarte, relativizaria em si todas essas oposições; ou, ainda, neutralidade do estrangeiro que se encontraria de forae que, na qualidade de terceiro, provocaria, de fora e em caso de necessidade, a decisão e, com isso, uma unidade.

As divergências de opinião e diferenças entre os titulares de direitos políticos de decisão poderia ser resolvidas nãojudicialmente, mas por meio de um poder político mais forte situado acima das opiniões divergentes, ou mediante um órgãoem relação de coordenação com os outros poderes constitucionais, ou seja, um terceiro neutro.

Sob esse prisma, surge com Benjamin Constant a teoria do poder neutro, destinado a solucionar a luta da burguesia francesapor uma Constituição liberal contra o bonapartismo e restauração monárquica. A função do terceiro neutro seriaintermediária, defensora e reguladora, ativa apenas em caso de emergência, mediante o poder preservador, uma vez que elanão deveria concorrer com os outros poderes no sentido de uma expansão do próprio poder.

Insta ressaltar que o Presidente do Reich possuía poderes que o tornariam independente dos órgãos legislativos, emboravinculado à referenda dos ministros dependentes da confiança do parlamento. Ora, seus poderes constitucionaiscorresponderiam aos poderes do chefe de Estado, tal como idealizado por Benjamin Constant. Por isso sua posição só poderiaser construída no cenário da época com a ajuda de uma teoria mais desenvolvida de um poder neutro, sob pena deincompreensão dessa mistura contraditória de determinações constitucionais incompatíveis.

Argumenta­se, então, que o guardião da Constituição deveria ser independente e político­partidariamente neutro. Aorechaçar a possível atribuição da guarda da Constituição ao Judiciário, aduz­se que se a justiça fosse compelida a resolvertodas as tarefas e decisões políticas, para as quais fossem desejadas independência e neutralidade político­partidária, elareceberia uma carga insuportável. E mais: essa situação teria como obstáculo o princípio democrático.

Às diversas independências corresponderiam inamovibilidades, imunidades e incompatibilidades. Além disso, aindependência poderia corresponder à proteção defensiva e negativa contra a volição política ou, ao contrário, poderiagarantir uma participação positiva na determinação ou influência da volição política. A independência dos membros doJudiciário, Legislativo e do Presidente do Reich deveria estar estritamente ligada com a idéia do todo da unidade política.Essa concepção contém uma oposição aos agrupamentos pluralistas da vida social e econômica.

Segundo o autor, a própria Constituição de Weimar já estabeleceria o guardião da Constituição – o Presidente do Reich. Elerepresentaria o centro de todo o sistema de uma neutralidade e independência político­partidárias, construído sobre umabase plebiscitária, estando dotado de poderes eficientes para uma proteção efetiva da Constituição. Essa previsão apenasmaterializaria o princípio democrático, sobre o qual se baseava a Constituição de Weimar. Com isso, ela procuraria formarum contrapeso para o pluralismo dos grupos sociais e econômicos de poder e defender a unidade do povo como umatotalidade política.

2. A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL DE HANS KELSEN

Expoente jurista da República de Weimar, Hans Kelsen também teorizou acerca da guarda constitucional, porém, emoposição à ideia esposada por Carl Schmitt na obra O guardião da Constituição.

Apesar de questionar diversas premissas da teoria da Guarda da Constituição schmittiana, Kelsen concordava quanto àpertinência de uma análise dos limites da jurisdição, enfatizando que, caso se almejasse restringir o poder dos tribunais, nãose deveria “operar com chavões vagos como ‘liberdade’, ‘igualdade’, ‘justiça’, etc”, senão poderia ocorrer uma indesejáveltransferência de poder.

Prosseguindo em seu estudo, Kelsen exteriorizava de forma mais clara que, nos casos mais importantes de violaçãoconstitucional, Parlamento e governo seriam partes litigantes, o que justificaria o reconhecimento do Judiciário como opoder neutro livre das tensões entre Parlamento e Governo.

Hans Kelsen mostrava­se contrário à visão schmittiana de ter­se na figura do Presidente do Reich, única e exclusivamente, oGuardião da Constituição que, segundo o autor austríaco, seria um dos guardiões, zelando pelo controle deconstitucionalidade sobre os atos emanados do Executivo e às vezes do Legislativo.

A Constituição austríaca possuía duas jurisdições distintas: a jurisdição constitucional e a jurisdição administrativa. Aprimeira destinava­se ao controle de constitucionalidade dos atos jurídicos, enquanto a segunda limitava­se a aferir suaconformidade às leis. Assim sendo, a jurisdição constitucional era vista como uma jurisdição administrativa especial, poiscontrolava a constitucionalidade do ato administrativo, e não sua simples conformidade à lei.

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Page 2: A Jurisdição Constitucional de Hans Kelsen

Em síntese, o limite teórico­jurídico entre jurisdição constitucional e jurisdição administrativa resultava tão somente dadiferença entre constitucionalidade direta e indireta. Todavia, existia um possibilidade mínima de controle a cargo dajurisdição administrativa, tendo em vista a necessidade da autoridade, ao aplicar a lei, verificar se aquilo que se apresentavacomo lei era de fato uma lei, isto é, se preenchia aos requisitos legais mínimos para sua configuração.

Em caso de um possível conflito entre lei federal e lei estadual, aplicava­se o princípio segundo o qual a lei posterior deveriaprevalecer sobre a lei anterior. A Constituição não previa a prevalência da lei federal sobre a lei estadual.

Ademais, a Corte Constitucional podia examinar de ofício a constitucionalidade de uma norma, desde que ela fossepressuposto para a resolução de determinado caso concreto sujeito a sua apreciação. Da mesma forma, as leis anteriores àvigência da Constituição, que foram recepcionadas por ela, eram consideradas igualmente objeto de controle deconstitucionalidade.

A declaração de inconstitucionalidade de uma lei acarretava a sua anulação, ou seja, essa decisão operava apenas para ofuturo, produzindo efeitos prospectivos, a partir de sua publicação. A referida anulação podia referir­se a toda a norma ouapenas a algumas de suas disposições, bem como a Corte Constitucional podia estabelecer um prazo, nunca inferior a seismeses, para a sua invalidação. Dessa forma, o Poder Legislativo podia, nesse intervalo, editar uma lei compatível com aConstituição.

Insta ressaltar que a decisão de anulação da lei inconstitucional poderia gozar de um certo efeito retroativo, na medida emque a Corte Constitucional, quando examinava e anulava de oficio uma norma que era considerada como pressuposto para asolução de uma lide, não teria mais como aplicar a lei anulada, não obstante o fato correspondente ao mérito da questãotenha ocorrido na vigência da norma.

O Tribunal Constitucional possuía, ainda, o poder de examinar decretos e anulá­los em caso de inconstitucionalidade. Nessecaso, o tribunal ordinário que considerasse que o decreto a ser aplicado no caso concreto era contrário à lei, deveriainterromper o processo e submeter à Corte Constitucional o pedido fundamentado de anulação do decreto. Diante dessasituação, todos os tribunais restavam vinculados á decisão da Corte, que produzia efeitos prospectivos.

Ocorre que a Corte Constitucional também podia anular de ofício um decreto em caso de ilegalidade, quando ele fossepressuposto para a solução de determinado caso concreto. Essa decisão produzia efeitos pro futuro, atingindo sempre o casopendente de solução que havia motivado o exame. Portanto, não era possível o estabelecimento de prazo para a cessação davigência de um decreto ilegal.

Como a Constituição regulava a elaboração das leis, a legislação seria, sob esse aspecto, aplicação do direito. Com relação aodecreto e outros atos normativos secundários, a lei seria criação do direito e o decreto seria aplicação do direito com respeito àlei e criação do direito com respeito à sentença e ao ato administrativo que o aplicariam. Por outro lado, enquanto aConstituição, a lei e o decreto seriam normas jurídicas gerais, a sentença e o ato administrativo constituiriam normasjurídicas individuais, de efeitos concretos.

A noção de Constituição, apesar das inúmeras transformações por que passou, teria conservado um núcleo essencial epermanente: ela seria sempre o fundamento do Estado, a base da ordem jurídica que se pretenderia apreender.

A Constituição poderia ser compreendida em um sentido amplo ou restrito. A Constituição em sentido estrito conteria tãosomente normas sobre os órgãos e o procedimento da legislação. O sentido amplo, por sua vez, pressuporia não apenas aexistência de normas sobre a organização do Estado, mas também normas que trariam direitos fundamentais ou liberdadesindividuais. Por isso costumava­se distinguir entre inconstitucionalidade formal e inconstitucionalidade material, uma vezque a primeira se trataria de uma violação apenas formal da Constituição, ou seja, de normas de procedimento e organizaçãodo Estado; enquanto a inconstitucionalidade material implicaria na violação de normas de conteúdo constitucional.

Por outro lado, distinguia­se entre inconstitucionalidade imediata, porquanto se trataria de normas imediatamentesubordinadas à Constituição, e inconstitucionalidade mediata, no caso de atos subordinados à Constituição apenas de formaindireta. Isso porque quando a Constituição estabelecia o princípio da legalidade, essa legalidade estaria ligada àconstitucionalidade, de forma indireta. Porém, nem sempre seria fácil distinguir entre inconstitucionalidade direta eindireta.

Outra espécie de norma diretamente subordinada à Constituição seria o tratado internacional, à semelhança das leis. Noentanto, como Kelsen era um internacionalista, ele ponderava que, se considerássemos a superioridade do direitointernacional sobre a ordem jurídica interna, o tratado internacional não seria equiparado à lei, mas apareceria comopertencente a uma ordem jurídica superior aos Estados contratantes, posicionando­se acima da lei e da própria Constituição.O tratado internacional apenas poderia ser revogado por outro tratado. Sob esse prisma do primado do direito internacional,as normas de direito internacional poderiam ser consideradas como parâmetros de controle de constitucionalidade.

Uma das principais garantias gerais que a técnica jurídica moderna teria desenvolvido quanto à regularidade dos atosestatais em geral seria a independência do órgão jurisdicional, enquanto garantia preventiva, de modo a evitar que elepudesse ser juridicamente obrigado, no exercício das suas funções, por alguma norma individual de outro órgão. Ele estariavinculado apenas às normas gerais, essencialmente às leis e aos regulamentos.

Outra garantia que mereceria destaque era a anulabilidade ou nulidade do ato irregular. Os atos das autoridades públicas, aocontrário dos atos dos particulares, gozariam de uma certa presunção de validez e obrigatoriedade até que o atosuperveniente de outra autoridade os fizesse desaparecer.

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Page 3: A Jurisdição Constitucional de Hans Kelsen

A principal objeção à existência de uma jurisdição constitucional, isto é, um tribunal constitucional encarregado daanulação dos atos inconstitucionais, seria a ofensa à soberania do Parlamento. Todavia, não haveria de se falar da soberaniade um órgão estatal particular, pois a soberania pertenceria à ordem estatal como um todo.

Em segundo plano, a objeção referente à separação dos poderes tampouco mereceria prosperar, uma vez que a anulação deatos inconstitucional pelo tribunal constitucional não representaria uma função verdadeiramente jurisdicional, maslegislativa, ao criar uma norma geral com sinal negativo, declarando­a inconstitucional para todos os efeitos.

Reafirmando a necessidade de uma jurisdição constitucional, Kelsen considerava que esta adquiriria maior importância noEstado federativo, devido a sua forma de organização descentralizada, em que algumas matérias seriam tratadas pela União,e outras estariam sob a competência dos Estados­membros. Dessa forma, tanto uma lei estadual poderia usurpar acompetência da União, como uma lei federal poderia avançar os limites dos Estados­membros. Ambos os casos deveriam seranalisados pelo tribunal constitucional.

As regras de direito, segundo Kelsen, seriam normas gerais, enquanto os atos jurídicos seriam especiais. Não obstante essadiferença, ambos possuiriam um traço comum o qual nos permitiria agrupá­los numa mesma hierarquia: seu caráter denormas. Nesse sentido, o autor se contrapunha a Duguit, que não admitia a reunião das regras e dos atos jurídicos em umamesma categoria, portanto, a seu ver, não haveria de se falar em hierarquia entre eles.

Kelsen argumentava que a declaração de inconstitucionalidade pelos tribunais ordinários poderia acarretar a incerteza einsegurança do Direito, ao dar margem a sentenças contraditórias a serem proferidas pelos diversos tribunais. Assim sendo, ajurisdição constitucional serviria principalmente para a centralização do contencioso e, em segundo plano, para o alcancegeral do julgado, não se limitando somente ao caso concreto submetido ao exame.

Kelsen voltava­se contra a supremacia e onipotência parlamentar, em especial contra a liberdade quase ilimitada de legislaratribuída constitucionalmente ao Parlamento. Defendia a mudança na visão que se tinha do parlamento, de forma a lheatribuir o papel de autoridade que exerceria suas funções sobre o império de uma lei constitucional que seria, de fato, o atode vontade primitivo, fundamental e limitador do verdadeiro soberano.

A Constituição representaria as forças políticas de determinado povo, isto é, a situação de equilíbrio relativo na qual os gruposem luta pelo poder permaneceriam até nova ordem. Caso houvesse necessidade de alteração da Constituição, isso significariaque esse equilíbrio de forças estaria abalado, buscando uma nova organização no plano constitucional. E nessa tentativa dealteração da Carta Política, dever­se­ia considerar não apenas a representação do grupo político detentor do poder noparlamento e sua influência sobre os poderes executivo e judiciário, mas também a amplitude e a natureza das camadassociais que seriam dominadas pela ideologia desse grupo político. Com efeito, essa ideologia constituiria a força e oinstrumento de sua organização.

O controle de constitucionalidade não deveria ser confiado a um dos órgãos cujos atos deveriam ser analisados em face de suacompatibilidade com a Constituição, ou seja, o legislativo e o executivo. Isso porque ninguém poderia ser juiz em causaprópria.

O autor criticava a tentativa de Schmitt de atribuir a guarda da Constituição, em uma república democrática, ao Chefe deEstado, sob a denominação de poder neutro, elaborada por Constant, por entender que essa concepção acabaria portransformar o Presidente do Reich em senhor soberano do Estado, não obstante a recusa de Schmitt em encarar a situaçãocomo uma possível ditadura do executivo, o qual afirmava que o temor de uma violação constitucional dirigir­se­ia tãosomente contra o legislador.

Um dos argumentos rechaçados por Kelsen refere­se ao pressuposto adotado por diversos doutrinadores de que entre afunção jurisdicional e a função política existiria uma contradição essencial, sendo que a declaração de inconstitucionalidadeconsistiria em ato político, e não jurídico. Ocorre que, como afirmava o autor, o exercício do poder não se restringiria aoprocesso legislativo, mas teria início com os órgãos executivos e com o próprio judiciário, uma vez que toda sentença seriacomposta por um elemento decisório, um elemento de exercício do poder, ainda que em menor grau. O caráter político dajurisdição variaria de acordo com o poder discricionário que a legislação lhe cedesse. Ao decidir um caso concreto, o juizestaria autorizado a criar direito, não se restringindo a função jurisdicional à mera aplicação do direito. Dessa forma, a leiconferiria à jurisdição o mesmo caráter político que possui a legislação.

A diferença entre um tribunal constitucional e um tribunal ordinário, civil, criminal ou administrativo seria o fato de que,apesar de ambos serem aplicadores e criadores do direito, o segundo produziria apenas normas individuais, enquanto oprimeiro, ao declarar a incompatibilidade de uma norma com a Constituição, eliminaria uma norma geral, atuando, pois,como um legislador negativo.

Kelsen também não aceitava o argumento de que o Presidente do Reich possuiria melhores condições para ser o guardião daConstituição, visto que, a seu ver, ele não gozaria da independência necessária à consecução desse fim, tampouco estariarevestido da neutralidade imprescindível para o desempenho desse papel. Por outro lado, o tribunal constitucional seria amelhor solução para esse dilema, uma vez que o juiz, além de gozar de independência funcional, seria impelido àneutralidade já por sua ética profissional.

CONCLUSÃO