a judicialização da política pública de educação infantil no … · direito, na área de...

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1 LUIZA ANDRADE CORRÊA A judicialização da política pública de educação infantil no Tribunal de Justiça de São Paulo Dissertação de Mestrado Orientação: Professor Dr. Marcos Paulo Verissimo. UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO SÃO PAULO 2014

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  • 1

    LUIZA ANDRADE CORRA

    A judicializao da poltica pblica de educao infantil no Tribunal de

    Justia de So Paulo

    Dissertao de Mestrado

    Orientao: Professor Dr. Marcos Paulo Verissimo.

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE DIREITO

    SO PAULO

    2014

  • 2

    LUIZA ANDRADE CORRA

    A judicializao da poltica pblica de educao infantil no Tribunal de Justia de

    So Paulo

    Dissertao apresentada Banca Examinadora do

    Programa de Ps-Graduao em Direito, da Faculdade

    de Direito da Universidade de So Paulo, como

    exigncia parcial pra obteno do ttulo de Mestre em

    Direito, na rea de concentrao Direito Constitucional,

    sob orientao do Professor Dr. Marcos Paulo

    Verissimo.

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE DIREITO

    SO PAULO

    2014

  • 3

    Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio

    convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

    Servio de Biblioteca e Documentao

    Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo

    Corra, Luiza Andrade

    C 844j A judicializao da poltica de educao infantil

    no Tribunal de Justia de So Paulo / Luiza Andrade

    Corra . -- So Paulo: USP / Faculdade de Direito, 2014.

    220 f. + anexos.

    Orientador: Prof. Dr. Marcos Paulo Verissimo

    Dissertao (Mestrado), Universidade de So Paulo,

    USP, Programa de Ps-Graduao em Direito, Direito do

    Estado, 2014.

    1. Creches. 2. Educao infantil. 3. Polticas

    pblicas. 4. Poder executivo. 5. Poder judicirio.

    6. Tribunal de Justia So Paulo. I. Verissimo, Marcos

    Paulo. II. Ttulo.

    CDU

  • 4

    Dedicatria

    Dedico este trabalho ao meu marido,

    Fernando Siqueira. Voc traz alegria para

    meus dias conturbados, arte para a minha

    razo e transforma nossa casa em lar.

    Gratido por todo o apoio! Amo-te.

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    Muitas pessoas foram essenciais para que este trabalho fosse possvel. Agradeo,

    primeiramente, ao meu orientador, Prof. Dr. Marcos Paulo Verissimo, que concedeu essa

    oportunidade, me inspirou com suas questes instigantes e me acompanhou ao longo de

    todo o percurso, sempre com comentrios apurados, sugerindo solues e ajudando nos

    tropeos. Sou tambm imensamente grata ao meu segundo orientador, Prof. Dr. Conrado

    Hbner Mendes, que durante todo o mestrado me aconselhou, acompanhou, ajudou e

    principalmente tem sido um modelo no qual me inspiro neste caminho acadmico.

    Tambm agradeo ao Prof. Titular Dr. Virglio Afonso da Silva que me possibilitou desde

    experincias de docncia a outras prticas coletivas na Faculdade de Direito. Vejo esses

    trs professores como mestres, colegas, amigos e, principalmente, como um espelho para

    meu futuro acadmico. Sonho em um dia ser pelo menos um pouquinho como eles.

    Apesar da atividade de pesquisa comumente ser solitria, tive a sorte de poder

    dividi-la. Fiz grandes amigas durante o mestrado. As reunies semanais para discutir

    nossas pesquisas me fizeram compreender os caminhos a tomar e me deram flego para

    continuar. Natlia Pires e Maria Olvia Junqueira, vocs foram imprescindveis para esse

    trabalho.

    Sou tambm imensamente grata queles que se disponibilizaram a ler, criticar e

    comentar meu trabalho: Andr Lus M. Freire, Bruna Pretzel, Carolina Cutrupi, Camila

    Batista Pinto, Ceclia Lima, Diogo Rais, Evorah Cardoso, Flvia Annenberg, Guilherme

    Klafke, Lia Pessoa, Lvia Guimares, Luciana Ramos, Luciano Del Monaco, Marcela

    Pedrazzoli e Victor Marcel. As crticas e sugestes de vocs foram precisas e me ajudaram

    muito a melhorar o trabalho. Um agradecimento muito especial aos dois amigos que me

    ajudaram com os grficos e manipulao de dados quantitativos: Guilherme Jardim Duarte

    e Maurcio Chavenco. Sem vocs este trabalho seria bem menos informativo.

    Agradeo minha me, Lcia Maria de Andrade, que me deu o gosto pela

    atividade intelectual, ao meu pai, Geraldo Melo Corra, que me inspirou o amor pelas

    questes sociais, e ao meu pai, Renato Alves Vale, que sempre foi meu apoio, meu porto

    seguro e sem o qual eu nunca teria chegado aqui. Muito obrigada aos meus irmos Andr,

    Bruno, Daniel, Marina e Thiago, seus respectivos maridos e esposas e meus muitos

  • 6

    sobrinhos, por alegrarem a minha vida e serem meus maiores amigos. Tambm agradeo

    ao meu marido, Fernando Siqueira, que me conforta, estimula e apoia.

    Sou imensamente grata a todos aqueles que gentilmente me concederam entrevistas

    e se dispuseram a me ajudar na construo do trabalho enviando documentos e

    informaes importantes. Sem vocs essa pesquisa simplesmente no existiria.

    Por fim, mas no menos importante, agradeo sbdp, nas pessoas de Roberta

    Sundfeld e do Prof. Carlos Ari Sundfeld. Sou eternamente grata pela oportunidade de

    iniciar meu caminho em uma instituio to brilhante. A sbdp me despertou a paixo pela

    vida acadmica e me possibilitou 5 anos de experincia em pesquisa e docncia intensas e

    de qualidade. A Escola de Formao fez parte de minha formao, tanto acadmica quanto

    pessoal, e responsvel por me fazer uma pessoa mais crtica e ao mesmo tempo tolerante,

    disposta a ouvir os outros e que valoriza o dilogo na construo do conhecimento. Ao

    Prof. Glauco Peres da Silva pela parceria e pelas incrveis lies de metodologia. E FGV

    DIREITO SP, nas pessoas de Jos Garcez e Marina Feferbaum, que me inspiram todos os

    dias prtica docente, bem como a todos os meus colegas pesquisadores dessa instituio.

    Vocs so, sem dvida, minha fora motriz.

  • 7

    RESUMO

    Luiza Andrade Corra. A judicializao da poltica pblica de educao infantil no

    Tribunal de Justia de So Paulo. Mestrado Faculdade de Direito, Universidade de So

    Paulo, So Paulo, 2014.

    A presente pesquisa investiga a judicializao da educao infantil no que diz respeito

    litigncia por vagas em creches e pr-escolas no mbito do Tribunal de Justia de So

    Paulo. Aps descrever a poltica pblica e o procedimento para a criao de novas vagas,

    feita uma anlise qualitativa das decises do Tribunal de Justia do Estado de So Paulo e

    de suas consequncias prticas. Depois, feito um estudo de caso sobre dois recursos do

    TJSP que funcionaram como um locus de dilogo e negociao interinstitucional. Assim,

    foi possvel perceber problemas nos efeitos da judicializao no TJSP, identificar uma

    prtica dialgica e alguns de seus efeitos e prever alguns desafios que sero provavelmente

    enfrentados pelos atores envolvidos e pelo TJSP de agora em diante.

    PALAVRAS-CHAVE: Creche, Educao Infantil, Judicializao, Poltica Pblica, Poder

    Executivo, Poder Judicirio, Tribunal de Justia de So Paulo

  • 8

    ABSTRACT

    Luiza Andrade Corra. The judicialization of the public policy for early childhood

    education in So Paulos Court of Justice. Master - Faculty of Law, University of So

    Paulo, So Paulo, 2014.

    This research investigates the judicialization of early childhood education with regard to

    litigation for places in kindergartens and pre-schools under the So Paulos Court of

    Justice (TJSP). After describing the general aspects of the public policy and the procedure

    to provide more enrollments of children, we carried out a qualitative analysis of the

    decisions of the So Paulos Court of Justice and its practical outcomes. Then, a case study

    of two actions in TJSP is provided. This court functioned as a locus for dialogue and inter-

    institutional negotiation. Thus, problems were revealed regarding the effects of

    judicialization in TJSP, a dialogic practice was identified, as well as some of its effects,

    and challenges that may be faced by the actors involved were presented.

    KEYWORDS: Nursery, Kindergarten, Adjudication, Public Policy, Executive,

    Judiciary, So Paulos Court of Justice

  • 9

    SUMRIO

    INTRODUO ..................................................................................................................14

    CAPTULO 1 - METODOLOGIA DA PESQUISA ..................................................18

    CAPTULO 2 - A JUDICIALIZAO DE DIREITOS SOCIAIS: A LITERATURA NA

    QUAL A PESQUISA SE INSERE .......................................................................................30

    2.1. Literatura sobre a judicializao de polticas pblicas no contexto brasileiro ... 35 2.2. Trabalhos sobre a judicializao da educao ................................................................. 40

    CAPTULO 3 - A POLTICA PBLICA DE EDUCAO INFANTIL .......................47

    3.1. O procedimento para abertura de novas vagas ............................................................... 56

    CAPTULO 4 - O PADRO DECISRIO DO TRIBUNAL DE JUSTIA DE SO PAULO

    .................................................................................................................................................62

    4.1. Contedo material (substantivo) das decises ................................................................ 62 4.2. Litigncia atomizada: monolgica ou dialgica? ............................................................. 74 4.3. As consequncias da judicializao atomizada segundoos atores que litigam .... 76 4.4. Os efeitos da judicializao atomizada ............................................................................... 80

    CAPTULO 5 - O ESTUDO DE CASO SOBRE AS APELAES DO GTIEI ............82

    5.1. Linha do tempo da judicializao por vagas da educao infantil ............................ 82 5.2. A atuao original de cada uma das instituies ............................................................. 85

    5.2.1. O Ministrio Pblico ......................................................................................................................... 85 5.2.2. A Organizao No Governamental Ao Educativa e o Movimento Creche para Todos ................................................................................................................................................................... 86 5.2.3. A Defensoria Pblica do Estado de So Paulo ........................................................................ 89 5.2.4. O escritrio Rubens Naves Santos Jr. Advogados ................................................................. 90

    5.3. A criao do Grupo de Trabalho Interinstitucional de Educao Infantil .............. 91 5.4. O parecer ........................................................................................................................................ 92 5.5. Unificao do discurso e a oportunidade de atuao .................................................... 94 5.6. O Programa de Metas da Prefeitura ..................................................................................... 96 5.7. O pedido das aes civis pblicas ......................................................................................... 97 5.8. A audincia pblica ................................................................................................................. 100 5.9. A deciso do TJSP ..................................................................................................................... 101 5.10. Apelaes GETIEI: monolgicas ou dialgicas? .......................................................... 103 5.11. Lies retiradas da prtica verificada neste estudo de caso ................................. 104 5.12. Os desafios a serem enfrentados pelo Grupo de Monitoramento da deciso . 108

    CONCLUSO .................................................................................................................. 111

    BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................. 116

    ANEXOS ........................................................................................................................... 124

    8.1. Anexo 1 - Modelo de Formulrio de Consentimento para Entrevista ................... 124 8.2. Anexo 2 Transcrio das entrevistas............................................................................. 126

    8.2.1.Entrevista com a advogada da ONG Ao Educativa Ester Rizzi .................................. 126 8.2.2. Entrevista com o defensor pblico Luiz Rascovski ........................................................... 142 8.2.3.Entrevista com o promotor Joo Paulo Faustinone e Silva ............................................. 153 8.2.4. Segunda entrevista com o promotor Joo Paulo Faustinone e Silva ......................... 166

  • 10

    8.2.5. Entrevista Lus Fernando Massonetto .......................................................................... 171 8.2.7. Entrevista Secretaria Municipal de Educao ..................................................................... 179 8.2.9. Entrevista com o Procurador do Municpio Felipe Gallardo ......................................... 202

    Anexo 3 Lista de acrdos do TJSP ......................................................................................... 217 Anexo 4 Linhas do tempo da judicializao da educao infantil no Municpio .... 227 Anexo 5 Programa de Metas da Prefeitura .......................................................................... 233

  • 11

    LISTA DE GRFICOS

    Grfico 1 Distribuio dos acrdos por Comarcas

    Grfico 2 Distribuio dos acrdos por ano

    Grfico 3 Tipos de pedidos e resultado

    Grfico 4 Recorrentes/Proponentes

    Grfico 5 Recursos propostos pelo Municpio

  • 12

    LEGENDA DE SIGLAS

    ACP Ao Civil Pblica

    AE Ao Educativa

    CEMEI Centro Municipal de Educao Infantil

    CEU Centros Educacionais Unificados

    CF/88 Constituio Federal de 1988

    DP Defensoria Pblica

    EC Emenda Constitucional

    EMEI Escolas Municipais de Educao Infantil

    FUNDEB Fundo de Manuteno e Desenvolvimento da Educao Bsica e de

    Valorizao dos Profissionais da Educao

    FUNDEF Fundo de Manuteno e Desenvolvimento da Educao Fundamental e de

    Valorizao dos Profissionais da Educao

    GEDUC Grupo Especial de Educao do Ministrio Pblico de So Paulo

    GTIEI Grupo de Trabalho Interinstitucional sobre Educao Infantil

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira

    LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educao

    MP Ministrio Pblico

    ONG Organizao No Governamental

    PJDIDCIJ - Promotoria de Justia de Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos da Infncia

    e da Juventude

    PNE Plano Nacional de Educao

    SEMPLA Secretaria Municipal de Planejamento, Oramento e Gesto

    SIURB Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras

    STF Supremo Tribunal Federal

  • 13

    TJSP Tribunal de Justia de So Paulo

  • 14

    INTRODUO

    Este trabalho investiga a judicializao1 da educao infantil no mbito do Tribunal de

    Justia de So Paulo. Mais especificamente, analisa a litigncia por vagas em creches e

    pr-escolas. Primeiro, fao uma descrio geral do quadro atual da poltica pblica e do

    procedimento para a criao de novas vagas, com o objetivo de que o leitor compreenda o

    contexto no qual este problema se insere. Segundo, analiso as decises do Tribunal de

    Justia do Estado de So Paulo para conhecer como decide e como argumenta sobre o

    tema. Em terceiro lugar, a partir de entrevistas com atores envolvidos nesses litgios,

    identifico suas consequncias prticas para a poltica pblica e, portanto, para o direito

    educao infantil visto de um ponto de vista estrutural e no apenas do indivduo

    destinatrio da deciso.

    Adiante, passo a um estudo de caso que diz respeito a dois recursos no mbito do TJSP

    que funcionaram como loci de dilogo e negociao interinstitucional. Estes casos, que

    aqui chamarei de Apelaes GTIEI2, se destacam dos demais por terem sido precedidos de

    uma grande articulao e planejamento das entidades litigantes, dando origem a uma

    audincia pblica, a diversas audincias de conciliao e a uma deciso que foge

    completamente ao padro do Tribunal e, poder-se-ia dizer, ao padro da judicializao de

    polticas pblicas no Brasil.

    A primeira fase da pesquisa, que descreve a judicializao do TJSP (chamada aqui de

    judicializao atomizada), possibilitou uma anlise acerca de seu status atual, seus efeitos.

    O estudo de caso permitiu identificar alguns efeitos simblicos e extrair lies da prtica,

    bem como compar-la com a prtica da judicializao atomizada. Assim, foi possvel

    prever alguns desafios que sero possivelmente enfrentados pelos atores envolvidos e pelo

    TJSP de agora em diante, no que se refere execuo da sentena, e sugerir caminhos.

    Pesquisar esta questo permite que os atores envolvidos no processo tenham uma

    compreenso ampla sobre o que tem ocorrido, j que sistematiza a jurisprudncia, o caso e

    1 A palavra judicializao comumente utilizada para identificar um fenmeno de levar ao Poder Judicirio a

    resoluo de questes que seriam tradicionalmente compreendidas como de competncia de outros Poderes.

    No captulo 3 desta pesquisa este fenmeno ser melhor explicado.

    2

    GTIEI ou Grupo de Trabalho Interinstitucional para Educao Infantil formado por atores de

    Organizaes No Governamentais Sem Fins Lucrativos e rgos de litigncia do Estado e um escritrio de

    advocacia que juntos discutem o problema e atuam na questo da educao infantil.

  • 15

    seus efeitos. Alm disso, a pesquisa contribui para a compreenso do fenmeno geral de

    judicializao das polticas pblicas e ajuda a refletir sobre o papel das instituies

    envolvidas, alm de gerar discusses acerca da legitimidade e capacidade das cortes para

    tomarem decises nesse mbito. Permite, por fim, uma anlise sobre as vantagens ou

    desvantagens dessas prticas para maior eficcia do prprio direito educao pleiteado

    em juzo.

    Garantir o direito educao infantil um fator de desenvolvimento nacional, que tem

    consequncias para as crianas em termos pedaggicos, para os pais, que podem trabalhar

    enquanto as crianas so deixadas nas escolas, e at mesmo para o nvel nutricional das

    crianas que frequentam as escolas, j que recebem merendas todos os dias.

    A educao infantil, segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educao, a primeira

    etapa da educao bsica e tem como finalidade o desenvolvimento integral da criana de

    at 5 (cinco) anos, em seus aspectos fsico, psicolgico, intelectual e social,

    complementando a ao da famlia e da comunidade.

    O relatrio de parmetros de qualidade para educao infantil da Fundao Carlos

    Chagas, em seu segundo volume, indica que:

    Os professores e os demais profissionais que atuam nessas instituies

    devem, portanto, valorizar igualmente atividades de alimentao, leitura

    de historias, troca de fraldas, desenho, musica, banho, jogos coletivos,

    brincadeiras, sono, descanso, entre outras tantas propostas realizadas

    cotidianamente com as crianas. (BRASIL, 2006b)

    O Brasil um pas de grandes desigualdades sociais e, apesar de ter sado do mapa da

    fome da Organizao das Naes Unidas no ano de 2014 (SAIR, 2014), ainda ocupa a

    posio de nmero trinta e oito dos quarenta pases analisados no ranking de educao

    feito pela empresa Pearson, que mede a capacidade cognitiva dos estudantes e a frequncia

    escolar (PEARSON, 2014).

    O Censo Escolar do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio

    Teixeira INEP do ano de 2013 demonstra que o Municpio de So Paulo teve 498.446

    matrculas em instituies de ensino infantil, entre creches e pr-escolas, sendo a maioria

    em tempo integral e gerida pelo Municpio3. As escolas pblicas municipais, apenas no

    ensino pr-escolar, contavam com 7.602 docentes distribudos em 523 escolas no ano de

    3 Dados disponveis em .

    http://portal.inep.gov.br/basica-censo

  • 16

    20124. Relatrio publicado em outubro de 2013 pela Prefeitura demonstra que o Municpio

    de So Paulo contava com uma demanda no atendida de 170.472 vagas em creches e

    14.701 vagas em pr-escolas5.

    A questo da demanda por vagas tem ganhado cada vez mais espao no debate pblico.

    Recentemente, o Deutsche Bank, banco supostamente utilizado pelo ex-prefeito Paulo

    Maluf para movimentar dinheiro pblico desviado do Municpio, aceitou fazer um acordo

    com o Ministrio Pblico para evitar ao judicial. O acordo resultar no pagamento de

    uma quantia de 20 milhes de dlares, que ser principalmente destinada segundo o atual

    prefeito, construo de dez novas creches pblicas na cidade (MULTA, 2014).

    O problema do fornecimento de vagas em creches e pr-escolas j foi, inclusive,

    tratado pelo Supremo Tribunal Federal em paradigmtico acrdo proferido no Recurso

    Extraordinrio no 410.715/SP, julgado em 22 de novembro de 2005, no qual o voto

    condutor do Ministro Celso de Mello determinou a obrigatoriedade de prestao de servio

    de educao tambm para o ensino infantil.

    Naquele momento a Constituio ainda no determinava tal obrigatoriedade, que

    surgiu em nosso ordenamento jurdico pouco aps esta deciso, a partir da Emenda

    Constitucional no 53 de 2006.

    Segundo argumentou o Ministro no acrdo, o Poder Judicirio no poderia se eximir

    do encargo de tornar efetivos os direitos sociais. Seria legtimo, portanto, o Judicirio

    intervir naqueles casos em que os rgos estatais competentes descumprissem seus

    encargos poltico-jurdicos, comprometendo a eficcia dos direitos sociais. O Executivo,

    segundo a deciso, teria sua discricionariedade limitada pelos termos da Constituio, que

    determina prioridade absoluta dos direitos da criana e do adolescente. O Supremo

    legitimou, assim, a concretizao do direito educao infantil por meio da judicializao

    desta poltica.

    Mesmo aps essa deciso do STF, muitas aes relacionadas ao direito de acesso s

    creches e pr-escolas continuaram chegando ao Supremo, que acabou por declarar a

    repercusso geral da questo, tendo como recurso paradigma o Agravo de Instrumento em

    4 Dados disponveis em

    . 5

    Disponvel no site da Secretaria Municipal de Educao de So Paulo, em

    , ltimo acesso em 24 de janeiro de 2014 s 18h30.

    http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/temas.php?lang=&codmun=355030&idtema=117&search=sao-paulo|sao-paulo|ensino-matriculas-docentes-e-rede-escolar-2012http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/temas.php?lang=&codmun=355030&idtema=117&search=sao-paulo|sao-paulo|ensino-matriculas-docentes-e-rede-escolar-2012

  • 17

    Recurso Extraordinrio no 761.908, que est sob relatoria do Min. Luiz Fux e pendente de

    deciso.

    No mbito do Tribunal de Justia de So Paulo existe um forte movimento de

    judicializao da questo. A iniciativa de diversos atores litigando por vagas em

    instituies de ensino infantil acabou por impulsionar uma articulao entre eles, que deu

    origem a uma deciso que condena o Municpio de So a conceder 150 mil vagas em

    instituies de ensino infantil, conforme ser descrito adiante. Segundo os relatos da

    Defensoria Pblica do Estado de So Paulo, continuam sendo protocoladas por este rgo

    entre 60 e 80 aes diariamente solicitando vagas em creches ou pr-escolas6.

    Esta dissertao se estrutura em cinco captulos. O primeiro apresenta a metodologia

    utilizada, as questes de pesquisa e as fontes de trabalho. O segundo situa esta pesquisa na

    literatura sobre judicializao de polticas pblicas, em especial as polticas sociais. O

    captulo seguinte desenha um panorama da poltica pblica de educao no Municpio de

    So Paulo e o procedimento para criao de novas vagas, seja a poltica anterior ou

    posterior a uma deciso judicial. O quarto captulo traz a descrio das decises do

    Tribunal de Justia de So Paulo e faz uma anlise de seus efeitos a partir da viso dos

    atores envolvidos no problema. O captulo seguinte descreve todo o histrico que deu

    origem s Apelaes GTIEI e a diferena entre esse grupo de casos e os demais do TJSP.

    Por fim, a concluso da pesquisa traz a comparao entre essas duas maneiras de proceder

    do TJSP, as consequncias da judicializao atomizada para a poltica pblica e para o

    direito educao infantil e os desafios que as Apelaes GTIEI ainda tero de enfrentar

    em sua fase de execuo para no incorrer nestes mesmos problemas.

    6 O Ministrio Pblico, a Defensoria Pblica e Associaes que estejam constitudas h mais de um ano e

    tenham em seu estatuto social a finalidade de proteo ao patrimnio pblico e social esto legitimados, por

    meio da Lei da Ao Civil Pblica (Lei 7.347/85), a propor aes coletivas ou individuais homogneas ou

    no [no entendi esse ou no] para solucionar problemas relacionados aos direitos sociais, em especial

    demanda no atendida por vagas em instituies de ensino infantil. Existe, inclusive, um vdeo tutorial da

    Defensoria Pblica disponibilizado na internet [interessante indicar o link], que explica aos assistidos como

    proceder para obter sua vaga por meio do Poder Judicirio.

  • 18

    CAPTULO 1

    METODOLOGIA DA PESQUISA

    O presente captulo tem por funo esclarecer os caminhos adotados pela pesquisa e

    sua justificativa, bem como esclarecer as premissas e referncias tericas e metodolgicas

    em que o trabalho se apoia.

    Esta dissertao est baseada em uma pergunta central: Como ocorre a judicializao

    da educao infantil no TJSP?

    Desta pergunta decorreram duas outras perguntas importantes para a formulao da

    pesquisa (1) Quais so os efeitos da judicializao atomizada no que diz respeito

    judicializao por vagas em instituies de ensino infantil? e (2) Em que diferem as

    Apelaes GTIEI da judicializao atomizada e quais as consequncias dessa diferena?

    A hiptese para estas questes era que, apesar de o TJSP sempre, ou quase sempre,

    decidir em favor dos direitos dos menores e condenar o Estado a matricular as crianas em

    instituies de ensino infantil, esta prtica teria pouca eficcia para a promoo do direito

    educao pensado coletivamente. As Apelaes GTIEI seriam diferentes desta prtica

    porque seriam decises mais dialgicas e, por conta disto, teriam um potencial mais alto de

    gerar eficcia coletiva do direito educao infantil, ou seja, maior potencial de concesso

    do direito a um grande nmero de crianas a partir da estruturao de uma poltica pblica

    e no apenas a algumas crianas destinatrias da deciso.

    Para responder a estas perguntas centrais formulei as seguintes perguntas-meio:

    1 O que diz a literatura sobre judicializao de polticas sociais?

    2 Quais so as normas que regem a poltica pblica de educao infantil? Quais so

    as principais caractersticas da poltica pblica e do contexto social? E especificamente no

    Municpio de So Paulo?

    3 - Como decide o Tribunal de Justia de So Paulo nos casos de demanda por vagas

    em instituies de ensino infantil? Quais as consequncias e efeitos dessas decises para a

    poltica pblica?

  • 19

    4 O que ocorreu no caso das Apelaes GTIEI para que o Tribunal tenha decidido de

    maneira distinta ao seu padro decisrio? Quais so os efeitos simblicos dessa deciso at

    o momento?

    A pesquisa buscou conhecer o movimento de judicializao por atendimento de

    menores de zero a cinco anos em escolas de educao infantil, compreender suas causas, a

    argumentao judicial, o resultado e suas consequncias. Em um primeiro momento da

    pesquisa, tratei da poltica pblica de educao infantil em si, analisando dados e

    procedimentos para a criao de vaga e, portanto, contextualizando a questo.

    Depois, analisei as decises do Tribunal de Justia do Estado de So Paulo para

    identificar se h um padro de resultado (se concedem ou no a vaga) e de argumentao

    nos casos que envolvam a demanda por vagas na educao infantil. Alm disso, busquei,

    nas falas dos atores envolvidos no processo de judicializao, identificar o que ocorre antes

    e depois da deciso judicial, para assim compreender as consequncias da deciso para a

    poltica pblica e, portanto, para o prprio direito educao pensado coletivamente.

    Foram investigados apenas aqueles casos concernentes demanda pelo direito do

    menor creche ou pr-escola no sentido mais estrito possvel, ou seja, questes ligadas

    criao de novas vagas permanentes ou por um certo perodo. Fiz essa escolha por

    imaginar que estas seriam as decises com maior potencial de impacto imediato no

    oramento pblico e na poltica pblica e, portanto, maior dificuldade de aplicao

    imediata. Todas as decises selecionadas tratavam de concesso de vagas, da construo

    de escolas ou da continuidade da prestao do servio no perodo de frias escolares.

    Analisei todos os casos presentes no banco de dados pblico do TJSP sobre a

    judicializao da educao infantil no que diz respeito s vagas. A chave de busca vaga e

    creche ou pr-escola ou educao infantil foi inserida no mecanismo de busca de TJSP e

    retornou 612 acrdos7, sendo que ao final analisei apenas os 216 acrdos das diversas

    comarcas do Estado de So Paulo8 que se encaixavam no recorte desta pesquisa, a partir do

    critrio acima descrito.

    Uma observao importante que possivelmente h falhas no banco de dados pblico

    do Tribunal, ou seja, nem todos os acrdos proferidos so de fato disponibilizados.

    7 A ltima busca foi realizada em 15 de fevereiro de 2014 s 20h46.

    8 Isso porque, apesar de a segunda parte da pesquisa focar no Municpio de So Paulo, devido diviso

    constitucional de competncias, importava para este primeiro momento obter um padro de comportamento

    do Tribunal em relao questo, e este padro se repete independentemente do Municpio contra o qual o

    direito do menor est sendo pleiteado.

  • 20

    Todavia, o nmero de acrdos encontrados foi suficiente para identificao de um padro

    decisrio9.

    A partir da leitura da ementa e, quando necessrio, do inteiro teor, exclu todos aqueles

    que tratavam de assuntos no diretamente relacionados ao tema deste trabalho, tais como

    matria de concurso pblico, provimento de cargo, aes penais, idade para incio da pr-

    escola ou do ensino fundamental, pedidos de tutores para crianas com necessidades

    especiais, fornecimento de transporte gratuito ou pedidos de transferncias das crianas

    para escolas perto de sua residncia10

    . Essa opo permitiu comparao mais prxima com

    as Apelaes GTIEI.

    Na segunda parte da pesquisa, realizei um estudo de caso sobre duas aes propostas

    pelo Movimento Creche para Todos que, ao chegarem no Tribunal de Justia, deram

    origem a uma Apelao e um Agravo Regimental (Apelaes GTIEI) que acabaram por

    gerar um espao de dilogo interinstitucional11

    . Escolhi estas aes como o caso para

    estudo porque (1) foram fruto de grande articulao entre membros da sociedade civil

    atuantes na causa; (2) geraram grande discusso no Judicirio em conjunto com membros

    da sociedade civil e de rgos de litigncia do Estado; (3) foram o primeiro caso na

    histria do TJSP a ensejar a convocao de uma Audincia Pblica; (4) ocasionaram uma

    9 Segundo informa Jos Reinaldo de Lima Lopes, no caso da Revista dos Tribunais do Tribunal de Justia do

    Estado de So Paulo todos os casos decididos so levados a uma Secretaria de Jurisprudncia e um

    funcionrio encarregado de revisar os acrdos. Essa reviso supervisionada por um juiz que seleciona

    algumas decises com um carimbo de J. Essas decises so separadas por temas e enviadas para os seis

    juzes do corpo editorial. Em algumas ocasies os prprios funcionrios selecionam as decises. Um nmero

    extremamente limitado de decises chega a ser publicado. Todavia, so os casos publicados que informam o

    pblico geral sobre as decises da Corte (LOPES, 2006). No h, no entanto, informaes sobre o

    procedimento para a publicao de acrdos no site do Tribunal.

    10 O critrio para excluso destes casos foi tratar ou no diretamente do acesso s escolas e da abertura de

    novas vagas. Apesar de a questo da transferncia ser importante para a questo da judicializao da

    educao, ela no implica diretamente alterao do nmero da demanda por vagas e criao de novas vagas

    como as demais. Essa e todas as demais questes so controversas e importantes no que diz respeito

    judicializao da educao infantil; todavia, esto fora do foco da pesquisa. Deste modo, esta uma agenda

    de pesquisa ainda em aberto. Nesta seleo, deixei de fora as decises monocrticas, que so tomadas apenas

    pelo Relator do processo quando h manifesta contradio com a jurisprudncia dos Tribunais Superiores. A

    maior parte das decises do TJSP monocrtica, porm, como a questo j est sumulada e existe grande

    homogeneidade nessas decises, no haver prejuzo para a anlise aqui realizada. Isso porque qualquer

    controvrsia relacionada a essas decises aparecer na pesquisa por meio dos agravos regimentais. Alm

    disso, o que pretendo verificar a existncia de um padro de comportamento do Tribunal, o que j est

    satisfatoriamente demonstrado nos acrdos.

    11 A primeira ao, proposta no Foro Regional de Santo Amaro no ano de 2008, a Apelao de n

    o 0150735-

    64.2008.8.26.0002 da Comarca de So Paulo, que tem como relator o Desembargador Samuel Jr. A segunda

    ao foi proposta no Foro Regional do Jabaquara no ano de 2010 e deu origem ao Agravo Regimental no

    0018645-21.2010.8.26.0003/50000, tambm de relatoria do Desembargador Samuel Jr. Para fins da pesquisa

    ambas sero denominadas Apelaes GTIEI.

  • 21

    srie de tentativas de conciliao intensamente discutidas; (5) deram origem a um tipo de

    deciso que foge ao padro decisrio do Tribunal, por terem inserido no dispositivo o

    cumprimento, pela Prefeitura, de seu prprio Plano de Metas; e (6) levaram criao de

    um Comit de Monitoramento, experincia nunca antes vista na histria do Judicirio

    brasileiro.

    Descrevi ento todo o caminho percorrido pelas instituies envolvidas at a deciso

    nas Apelaes GTIEI e o monitoramento de sua execuo. A principal fonte utilizada neste

    captulo foram as 11 entrevistas feitas com os atores participantes do processo, mas a

    anlise contou tambm com artigos e documentos disponveis na internet.

    Neste ponto, cumpre esclarecer que, ao longo de toda a pesquisa, foram feitas

    entrevistas qualitativas semiestruturadas ou semidirigidas, ou seja, com um roteiro

    previamente estabelecido, mas que podia ser alterado ao longo da entrevista medida que

    novas informaes aparecessem. Tenho conscincia de que a percepo dos atores no

    pode ser confundida com a realidade estudada, mas acredito que contribua fortemente para

    reconstruir o que de fato ocorreu (POUPART, 2012, p. 215-253).

    Selecionei, em primeiro lugar, pessoas envolvidas com o direito educao nos rgos

    de litigncia do Estado (Ministrio Pblico e Defensoria Pblica) e na Secretaria para

    Negcios Jurdicos do Municpio de So Paulo. A partir destas entrevistas, solicitei

    indicaes de outras pessoas que poderiam providenciar maiores informaes, ou

    selecionei pessoas a partir dos relatos. Com isso, fui levada a entrevistar outras pessoas

    envolvidas na questo da concesso de vagas. Ao final deste procedimento, cheguei

    seguinte lista de entrevistados:

    Defensoria Pblica Dr. Luiz Raskovski

    Membro do Grupo de Trabalho Interinstitucional sobre Educao Infantil

    (GTIEI).

    Ministrio Pblico Dr. Joo Paulo Faustinoni e Silva

    Promotor de Justia da Infncia e da Juventude, membro do Grupo de Atuao

    Especial de Educao (GEDUC) e do Grupo de Trabalho Interinstitucional

    sobre Educao Infantil (GTIEI).

    ONG Ao Educativa Ester Gammardella Rizzi

  • 22

    Advogada pela ONG Ao Educativa e membro do Grupo de Trabalho

    Interinstitucional sobre Educao Infantil (GTIEI).

    Rubens Naves Santos Jr. Advogados - Rubens Naves e Mariana Kiefer

    Kruchin

    Scio e advogada do escritrio e membros do Grupo de Trabalho

    Interinstitucional sobre Educao Infantil (GTIEI). O advogado Rubens Naves

    foi diretor da Fundao Abrinq pelos Direitos da Criana e do Adolescente e

    membro do conselho do Instituto Pro-Bono.

    Secretaria Municipal Para Negcios Jurdicos Secretrio Luiz Fernando

    Massonnetto

    Secretrio Municipal para Negcios Jurdicos. Professor de Direito Econmico

    e Economia Poltica na Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo.

    Secretaria Municipal de Educao

    Entrevistado solicitou no ser identificado

    Secretaria Municipal de Planejamento, Oramento e Gesto

    Entrevistado solicitou no ser identificado

    Secretaria Municipal de Planejamento, Oramento e Gesto

    Representante 2

    Entrevistado solicitou no ser identificado

    Procuradoria Geral do Municpio Felipe Gallardo

    Procurador do Municpio de So Paulo na Secretaria Municipal de Educao.

    Universidade de So Paulo USP - Prof. Ursula Dias Peres

    Possui graduao em Administrao Pblica pela Fundao Getulio Vargas -

    SP (1993), mestrado e doutorado em Economia pela Fundao Getulio Vargas -

    SP (2007). Tem experincia na rea de Administrao, com nfase em gesto

    pblica e controladoria do setor pblico. Atuou como gestora na rea de

  • 23

    oramento pblico e consultora de empresas e governos nas reas de

    planejamento e oramento, gesto de polticas pblicas, recursos da educao e

    fundos municipais. Foi Assessora Geral do Oramento na Secretaria de

    Finanas do Municpio de So Paulo. Foi Secretria Adjunta de Planejamento,

    Oramento e Gesto no Municpio de So Paulo. Atualmente Professora

    Doutora da EACH/USP no Curso de Gesto de Polticas Pblicas e nos

    Programas de Mestrado - Mudana Social e Participao Poltica e Gesto de

    Polticas Pblicas12

    .

    Outros atores, como os desembargadores, por exemplo, foram contatados para

    conceder entrevista, porm sem sucesso. Todas as entrevistas foram realizadas nos locais

    sugeridos pelo prprio entrevistado, que eram locais pblicos, de trabalho ou sua

    residncia, e tiveram durao entre 15 e 90 minutos. As entrevistas foram gravadas e suas

    transcries se encontram no Anexo 213

    . Por questo de tica na pesquisa foi solicitada

    autorizao para gravar a entrevista, bem como facultado aos entrevistados que sua

    identidade e/ou cargo na instituio fosse resguardado, conforme o Termo de

    Consentimento de Entrevista constante do Anexo 1. Ademais, os entrevistados puderam

    optar por receber ou no os udios e/ou transcrio da entrevista e efetuar eventuais

    correes, alteraes, excluses ou ainda optar por no autorizar o uso na pesquisa.

    Como o objetivo do estudo de caso descrever o que ocorreu e destacar pontos

    importantes que possam ser retirados do caso, a anlise das Apelaes GTIEI foi feita

    tambm baseada em outras fontes de pesquisa, tais como alguns artigos, dados obtidos dos

    sites das instituies e documentos enviados pelos atores ou obtidos pela internet. Os

    documentos foram analisados segundo o contexto em que se inserem, a partir da

    perspectiva da instituio que o emitiu e da sua interao com as demais instituies

    envolvidas.

    O caminho da pesquisa pode ser representado graficamente da seguinte forma:

    12

    Informaes retiradas da Plataforma Lattes:

    . 13

    Todavia, deve-se considerar que h perda de informao em se tratando de transcries, porque so

    incapazes de demonstrar as sutilezas da linguagem corporal e mesmo do discurso (pausas, suspiros, tom de

    voz, etc.). Ademais, foram suprimidos vcios de linguagem, interrupes, reformulaes ou erros, com o

    objetivo de facilitar a compreenso do texto e seu uso pelo trabalho.

    https://uspdigital.usp.br/tycho/CurriculoLattesMostrar?codpub=17A710514A51

  • 24

    Alm da descrio e anlise dos casos, baseei parte da metodologia deste trabalho no

    artigo Beyond the courtroom: the impact of judicial activism on socioeconomic rights in

    Latin America, de Csar Rodrguez-Garavito (2010-2011).

    Garavito estuda os structural cases, que classifica como aquelas decises da Corte

    Constitucional Colombiana que (1) afetam um grande nmero de pessoas que alegam

    violaes aos seus direitos; (2) implicam diversas instituies governamentais responsveis

    por polticas pblicas falhas que contribuem para a violao dos direitos; (3) envolvem

    remdios estruturais imperativos.

    No que diz respeito primeira parte desta pesquisa, que analisa a judicializao

    atomizada, os casos estudados separadamente no poderiam ser considerados casos

    estruturais, j que (1) afetam apenas aos destinatrios daquelas decises; (2) no so

    decises tomadas pela Corte Constitucional. Garavito considera casos estruturais apenas

    aquelas decises com grande potencial de impacto, cuja causa no repousa apenas na

    instituio demandada, mas em fatores estruturais da poltica pblica que necessitaro ser

    alterados aps a deciso. Esse tipo de deciso d lugar a inmeras tutelas, que se refletem

    na judicializao atomizada aqui descrita. Porm, considerei que, se as decises fossem

    consideradas em conjunto, haveria uma vantagem da aplicao desse mtodo de anlise

    para a judicializao atomizada, j que o conjunto de decises (1) tem potencial para gerar

    um grande impacto em um grande nmero de pessoas; (2) implica diversas instituies

    governamentais responsveis por polticas pblicas falhas; e (3) envolve remdios

    estruturais imperativos. Alm disso, o uso desse mtodo permitiria diagnosticar a eficcia

    desse tipo de deciso e, no futuro, compar-la com a eficcia das Apelaes GTIEI. Ento

    apliquei o mtodo de diagnstico sugerido por Garavito para o padro decisrio do

    Tribunal, considerado o impacto geral, e no para cada caso isoladamente.

  • 25

    J no que tange segunda parte da pesquisa, apesar de as Apelaes GTIEI no terem

    sido decididas pela Corte Constitucional, elas podem ser consideradas casos estruturais,

    porque (1) tm como destinatrias todas as crianas que se encontram na fila por vagas no

    Municpio de So Paulo; (2) implicam diversas instituies no Municpio, inclusive

    possivelmente mais de uma gesto, para rever a poltica pblica; e (3) claramente

    envolvem remdios estruturais imperativos para que seja possvel cumprir a deciso.

    O principal aprendizado que retirei do mencionado artigo foi a importncia de detectar

    os efeitos materiais e simblicos14

    das decises. Baseado nas evidncias de seus estudos de

    caso, Garavito defende que os efeitos relevantes compreendem no apenas a ao

    governamental especfica que se destina a cumprir o mandamento da sentena, mas

    tambm o reposicionamento dos direitos sociais como problemas de direitos humanos, o

    fortalecimento das capacidades de lidar com tais problemas, a formao de coalizes para

    incorporar a causa no processo de implementao da deciso, a promoo de deliberao

    pblica e uma busca coletiva de solues em questes complexas de alocao de recursos.

    Esta abordagem pde ser replicada na presente pesquisa, na qual dei ateno no apenas

    para a argumentao, mas tambm para os efeitos materiais e simblicos diretos e indiretos

    dos casos estudados. Para explicar o que so esses efeitos, Garavito (2010-2011) formulou

    o quadro abaixo:

    14

    Garavito (2010-2011) faz uso da expresso efeito simblico a partir da concepo trazida por Bourdieu em

    seu livro, O Poder Simblico, no captulo A fora do direito. Nele o autor esclarece que os smbolos

    seriam concepes semelhantes que permitiriam a concordncia de inteligncias, ou seja, a mesma percepo

    de tempo, espao, nmero, etc. Ainda segundo Bourdieu, os Tribunais seriam um espao separado onde o

    conflito social se transformaria em um dilogo entre peritos, que traduziriam aquele conflito em uma

    linguagem de direitos, identificando-os e revelando-os, de modo que as partes conflitantes aceitam

    tacitamente abrir mo de gerir o conflito em seus prprios termos, ficando o jurista com o exerccio do poder

    simblico. Assim, a competncia jurdica seria um instrumento de poder que funcionaria como uma

    porteira, ou seja, escolhendo aqueles conflitos que merecem entrar para o campo e se transformar em

    debates jurdicos. A evoluo do campo jurdico, segundo o autor, teria trazido para a linguagem do direito

    tambm um domnio prtico, at ento deixado para as formas pr-jurdicas de soluo de conflitos, o que se

    transforma em um ciclo no qual cada dimenso prtica, transformada em jurdica, gera novas necessidades

    jurdicas, novos interesses jurdicos e um novo campo de atuao dos juristas. J os juzes atuam como

    mandatrios autorizados de uma coletividade e suas decises produzem efeitos simblicos. Nas palavras do

    autor, O direito , sem dvida, a forma por excelncia do poder simblico de nomeao que cria as coisas

    nomeadas. (...) O direito a forma por excelncia do discurso atuante capaz, por sua prpria fora, de

    produzir efeitos. No demais dizer que ele faz o mundo social, mas com a condio de se no esquecer que

    ele feito por este (BOURDIEU, 1989).

  • 26

    Dessa tabela resultam quatro tipos de efeitos: (1) efeitos materiais diretos; (2) efeitos

    materiais indiretos; (3) efeitos simblicos diretos; e (4) efeitos simblicos indiretos.

    Utilizei esta classificao para conseguir detectar os efeitos na fala dos atores,

    independentemente de tentar encaix-los em cada um dos quadrantes.

    Outro argumento importante do artigo o de que decises dialgicas (ou seja, aquelas

    que, alm de proteger os direitos sociais, promovem deliberaes democrticas) seriam

    mais eficazes, no sentido de gerarem maiores efeitos para o direito social. Essas estariam

    em oposio s decises monolgicas (nas quais o juiz simplesmente concederia o direito

    requerido pela parte), que seriam ineficazes.

    Garavito (2010-2011) diferencia as decises dialgicas das monolgicas a partir de trs

    elementos: (1) afirmao de direitos no contedo substantivo da sentena; (2) remdios; e

    (3) monitoramento. O autor ento distingue as decises dialgicas das monolgicas

    afirmando que a deciso monolgica envolve ordens precisas (remdios fortes), enquanto

    numa deciso dialgica os juzes tendem a desenhar procedimentos e metas amplas

    (remdios moderados), e, alinhados com a concepo tradicional da separao de Poderes,

    deixar para o governo a funo de desenhar e implementar as polticas pblicas.

  • 27

    No quadro abaixo elaborei um resumo dos critrios que chamei de forte, moderado ou

    fraco, em relao declarao de direitos, a solues e remdios, e ao monitoramento,

    segundo os parmetros retirados do artigo de Garavito:

    FORTE MODERADO FRACO

    Declarao de direitos

    Trata o direito como um

    direito fundamental da

    pessoa humana e indica

    claramente que h violao

    deste direito.

    Estabelece a violao do

    direito.

    Nega a existncia de

    direito ou considera o

    direito de cunho

    programtico.

    Solues e Remdios

    Estabelece exatamente o

    que o Poder Executivo

    deve fazer e qual o prazo.

    Normalmente estabelece

    astreintes para o caso de

    no cumprimento.

    Desenha procedimentos e

    metas para que o Poder

    Executivo cumpra, podendo

    ser renegociadas ao longo

    do perodo de

    monitoramento. Deixa em

    aberto os possveis

    mecanismos de coero.

    Estabelece metas mas

    no abre a

    possibilidade de

    imposio de

    astreintes ou indica a

    existncia de um dever

    de prestao mas se

    abstm de condenar o

    Poder Executivo.

    Monitoramento

    Encoraja discusses de

    polticas alternativas para

    resolver o problema

    estrutural detectado no

    julgamento, muitas vezes

    envolve outros atores neste

    procedimento e

    acompanha cada etapa da

    implementao.

    Acompanha, diretamente

    ou por meio de juzo de

    primeira instncia, em

    conjunto com o Ministrio

    Pblico, a execuo da

    sentena. Todavia, faz isso

    de maneira isolada, sem

    envolver outros atores no

    processo.

    Deixa o monitoramento

    da execuo apenas a

    cargo do Ministrio

    Pblico.

    Esto destacadas em rosa no quadro aquelas opes que caracterizam uma deciso

    dialgica. Em resumo, cada tipo de deciso teria o seguinte aspecto:

    Monolgicas Dialgicas

    Declarao de direitos FORTE FORTE

    Solues e Remdios FORTES MODERADOS

    Monitoramento FRACO FORTE

  • 28

    A partir da comparao desses elementos em cada um dos casos, Garavito pde

    classificar decises como monolgicas ou dialgicas e seus efeitos. Apesar de no serem

    concluses que, segundo Garavito, possam ser consideradas firmes devido ao baixo

    nmero de casos, o resultado sugeriu que sentenas dialgicas aumentam a possibilidade

    de impacto na promoo dos direitos sociais.

    Nesta pesquisa, parti da hiptese que a judicializao atomizada era monolgica e as

    Apelaes GTIEI, dialgicas. Ento apliquei a diferenciao feita por Garavito para test-

    la. Todavia, no caso das Apelaes GTIEI o monitoramento da deciso est apenas no

    incio, de modo que possvel medir como ele foi previsto, mas no como ele ser de fato.

    Ainda assim, foi possvel detectar alguns efeitos simblicos da deciso. Ademais, acredito

    que seja vantajoso aplicar esta metodologia para alertar os atores envolvidos dos possveis

    desafios que enfrentaro para dar maior eficcia deciso, segundo os parmetros

    propostos por Garavito, e propor caminhos que poderiam ajudar neste percurso.

    Aps essa classificao, a primeira parte da pesquisa demonstrou os efeitos da

    judicializao atomizada e a segunda parte da pesquisa apresentou alguns efeitos j

    gerados pelas Apelaes GTIEI. Contudo, possvel que esta ltima gere efeitos para o

    futuro que ainda no so passveis de conhecimento, j que o prazo estipulado para

    cumprimento final da deciso o trmino do atual mandato da Prefeitura, ou seja,

    dezembro de 2016.

    Aqui, poderia se questionar a convenincia de se estudar este caso em um momento em

    que ainda no possvel identificar todos os efeitos. A primeira vantagem para a realizao

    do estudo de caso foi o fato de a deciso no ter perdido sua comoo pblica, estando em

    voga entre os atores da sociedade civil e da Prefeitura. Alm disso, em termos simblicos

    j possvel identificar diferenas entre esta deciso e a judicializao atomizada. Outro

    motivo para a pertinncia deste estudo trazer luz e estabelecer critrios para a

    comparao que poder ser feita no futuro sobre sua eficcia. Por fim e, principalmente, o

    estudo pode contribuir ao estabelecer parmetros, alertas e indicativos de como os atores

    poderiam agir ao longo do monitoramento para que esta deciso no repita os problemas

    da judicializao atomizada ou no seja ineficaz.

    Importante tambm destacar que procurei identificar quaisquer efeitos trazidos pelos

    atores, sejam eles materiais ou simblicos, diretos ou indiretos, mas no procurei

    classific-los em cada um dos tipos. Ademais, ao apontar os efeitos relatados pelos atores,

  • 29

    no tenho pretenso universalizante, ou seja, de informar de maneira decisiva sobre todos

    os efeitos diretos ou indiretos que aquela ao possa ter gerado. A pesquisa consegue

    apenas apresentar os efeitos informados pelos atores no momento da entrevista, sendo que

    os entrevistados podem ter percepo sobre outros efeitos que no foram relatados ou pode

    ser que existam efeitos no percebidos pelos atores envolvidos.

  • 30

    CAPTULO 2

    A JUDICIALIZAO DE DIREITOS SOCIAIS:

    A LITERATURA NA QUAL A PESQUISA SE INSERE

    Primeiramente, uma parte da literatura tenta explicar o fenmeno da judicializao dos

    direitos sociais a partir do aumento considervel desses direitos e suas garantias nas

    Constituies, que fizeram com que o Poder Judicirio passasse a ser responsvel por

    negar sua caracterstica programtica para afirmar a existncia de direitos subjetivos e que

    devem necessariamente ser providos. Houve uma massificao dos direitos sociais que

    assumiram um carter coletivo, aumentando a importncia e frequncia das aes coletivas

    (CAPPELLETTI, 1999). Anteriormente os direitos civis e polticos dependiam de atuao

    do Poder Judicirio no sentido de frear ou impedir abusos dos Poderes Executivo e

    Legislativo, assegurando a volta do status quo ante. J com os direitos sociais, por estarem

    condicionados a uma prestao estatal que demanda expressivos gastos pblicos, a sua

    realizao e proteo dependem de decises que ultrapassam o raciocnio jurdico-formal

    para efetivamente obrigar sua promoo (SILVA, 2008).

    Movimentos sociais progressivos e organizaes no-governamentais comearam a

    desenvolver litgios baseados em direitos sociais, tentando conseguir nos Tribunais o que

    no foi possvel obter nos outros canais polticos. Na Amrica Latina, a ordem e a

    linguagem jurdicas, que em princpio eram utilizadas como instrumento de conservao

    do poder e manuteno do status quo, passaram tambm a servir como ferramentas de

    transformao, com o objetivo de forar os governos a cumprirem suas obrigaes

    constitucionais (COUSO, 2006).

    Ernani de Carvalho divide a literatura que explica a judicializao entre normativa e

    analtica, sendo a primeira aquela que trata da supremacia constitucional e do debate sobre

    se o Judicirio deve ou no atuar neste mbito, e a segunda aquela que investiga o

    ambiente poltico institucional (CARVALHO, 2004).

    Por outro lado, alguns autores negam que a chamada judicializao da poltica seja

    um fenmeno uniforme. Para os autores, existe uma grande impreciso conceitual, j que o

  • 31

    mesmo termo utilizado para situaes muito distintas (KOENER, INATOMI &

    BARATTO, 2010).

    Para alm da explicao da existncia e do contexto histrico e normativo do fenmeno

    da judicializao, muitos autores engajam-se em um extenso debate sobre a legitimidade e

    a capacidade das Cortes para tomar decises sobre os direitos sociais.

    A perspectiva que considera a interveno do Judiciria legtima, em geral, prioriza o

    olhar sobre os direitos sociais, considerando que tm eficcia plena e so direitos

    subjetivos do indivduo, portanto, devem ser garantidos a qualquer custo e por qualquer

    que seja a instituio (MICHELMAN, 2007). Seria funo do Poder Judicirio a defesa das

    minorias e um contato mais prximo com os casos reais e concretos, sensvel s

    necessidades da populao (CAPPELLETTI, 1999). O papel dos juzes, portanto, seria

    essencial porque funcionaria como canal de comunicao das pessoas marginalizadas

    (GARGARELLA, 2006) e seria estratgico para a promoo de mudanas sociais em favor

    dos mais vulnerveis (GLOPPEN, 2006).

    Essa perspectiva nega a ideia de que apenas o Executivo legtimo para decidir

    sobre alocao de recursos pblicos, j que tambm para a aplicao dos direitos civis e

    polticos h custos envolvidos e, nestes ltimos, parece natural a interveno judicial

    (ABRAMOVICH; COURTIS, 2002). Alm disso, as Cortes serviriam para pressionar as

    instituies polticas inertes para que passem a atuar em relao ao direito social requerido

    judicialmente (SABLE; SIMON, 2004) e como uma estratgia para a promoo dos

    direitos sociais (CELS, 2008).

    Parte desta literatura entende que o alegado problema da falta de capacidade do

    Poder Judicirio de resolver questes complexas, por partir sempre de um modelo

    tradicional de litigncia, ou seja, bilateral e orientado para a proteo dos direitos de ndole

    liberal, poderia ser resolvido a partir da criao de novos mecanismos para ultrapassar essa

    barreira (COURTIS, , 2006). Nas ocasies em que o Judicirio se pusesse a realizar

    reformas estruturais, sua funo seria dar significado aos valores constitucionais,

    adaptando procedimentos tradicionais para a nova realidade social, a partir do

    reconhecimento do carter burocrtico do Estado (FISS, 2004). O juiz assumiria um papel

    ativo, buscando informaes, participando do processo, criando outros procedimentos e

    estimulando a negociao (CHAYES, 1975/76).

    A outra parcela da literatura, que considera a interveno do Judicirio negativa, em

    geral tem seus argumentos divididos entre aqueles relacionados falta de capacidade

  • 32

    tcnica do Poder Judicirio para decidir sobre tais questes e aqueles que enxergam no

    Judicirio uma ilegitimidade democrtica.

    O argumento da falta de capacidade institucional do Poder Judicirio indica a

    necessidade de que este Poder apreenda a questo dos direitos sociais como um problema

    coletivo, em uma perspectiva macro. Conceder esses direitos individualmente, como se

    direitos civis fossem, causa uma distribuio catica dos recursos pblicos. Se isso est

    correto, e se o Judicirio no capaz de pensar em sade, educao, moradia etc., de forma

    coletiva e global, talvez ele devesse deixar essa tarefa para o processo poltico (SILVA,

    2008). O Judicirio estaria apto, portanto, para decidir questes bilaterais, devendo deixar

    os problemas policntricos, ou seja, aqueles que possuem muitos centros de encontro e

    tenso, para um gerente, gestor ou administrador (FULLER, 1978/79).

    Segundo Diego Werneck Arguelhes e Fernando Leal, o argumento da capacidade

    institucional s deve ser construdo a partir de um raciocnio que considera a

    especializao funcional como pressuposto da separao de Poderes. Assim, qualquer

    instituio que pretenda atingir aos fins constitucionais ser passvel de erros em diferentes

    graus e a avaliao de deciso deve se dar segundo as consequncias para a eficcia

    daquele valor que se pretende proteger. O argumento que examina qual instituio mais

    capaz de decidir, portanto, s poderia ser construdo dentro de um contexto especfico e

    sempre sob uma perspectiva emprica comparativa das instituies envolvidas no

    problema. Os mtodos de deciso e as posturas judiciais devem, para o fim da avaliao da

    capacidade institucional, ser valorados em funo dos seus efeitos dinmicos, i.e. das suas

    consequncias no tempo para atores pblicos e privados de tipos variados. Trata-se,

    portanto, de comparar as vantagens institucionais de cada rgo dentro das regras postas de

    desenho institucional (ARGUELHES; LEAL, 2012, p. 30 ).

    Agrega-se a isto o argumento de que a capacidade do Judicirio deve ser aferida na

    medida em que contribua efetivamente para a promoo do direito social, no sob o ponto

    de vista individual do demandante, mas sob o ponto de vista coletivo do direito (FERRAZ,

    2011b).

    Partindo desta mesma premissa, boa parte da literatura prefere adotar uma

    perspectiva emprica para verificar se o Poder Judicirio contribui para a promoo dos

    direitos sociais. Muitos deles analisam a argumentao judicial e suas falhas (por exemplo,

    WANG, 2008), outros investigam as decises tomadas, em termos de resultado, ou seja,

  • 33

    concesso ou no concesso, e em termos de fundamentao, bem como inferem

    consequncias para a poltica pblica (por exemplo, VIEIRA; ZUCCHI, 2007).

    Existem tambm aqueles que avaliam a judicializao sob a perspectiva dos atores

    envolvidos (por exemplo CARVALHO, 2004; FANTI, 2009; MACIEL & KOERNER,

    2002). No que diz respeito aos direitos sociais, esses atores seriam principalmente o

    Ministrio Pblico (MCALLISTER, 2007), a Defensoria Pblica (NASSAR, 2011) e as

    entidades civis sem fins lucrativos (RIZZI; XIMENES, 2014).

    A maior parte da literatura emprica sobre judicializao de polticas pblicas analisa o

    fenmeno sob o ponto de vista interno ao Poder Judicirio, ou seja, tem como seu objeto

    de anlise exclusivo as prprias decises judiciais. Apesar de muitas vezes fazerem

    afirmaes acerca da consequncia dessa judicializao, no se preocupam em medi-la

    empiricamente. J existem, porm, autores interessados em investigar o que ocorre depois

    da deciso, tanto em termos de cumprimento da deciso, quanto em termos de impacto.

    Diana Kapiszewski e Matthew Taylor (2013), em artigo denominado Compliance:

    conceptualizing, measuring, and explaining adherence to judicial rulings, mapearam a

    bibliografia sobre o tema. Segundo eles, at recentemente a literatura no prestou muita

    ateno ao cumprimento das decises porque simplesmente pressupunha que elas eram

    cumpridas, o que no verdadeiro em variados nveis. Nesse artigo, os autores

    diagnosticam que a literatura investiga quatro tipos de medidas de cumprimento das

    decises (compliance), mas concentram o artigo no cumprimento das decises judiciais

    pelas autoridades pblicas. Definem, ento, o conceito de cumprimento como uma

    alterao no comportamento das autoridades com as quais a deciso se relaciona, que pode

    ser dividido entre os plos do total cumprimento e do descumprimento; no obstante,

    muitas vezes a realidade pode estar entre um e outro plo, com alguma medida de

    cumprimento parcial. Estudar o cumprimento das decises seria, portanto, relacionar o

    output das decises e essas reaes das autoridades. Os autores, alm de trabalhar com esse

    conceito de cumprimento, sugerem um modelo de anlise. O artigo tambm diferencia

    cumprimento de impacto das decises, j que este ltimo diz respeito a um conceito mais

    amplo, que inclui efeitos alm dos atos da autoridade que resultam diretamente da deciso

    (KAPISZEWSKI; TAYLOR, 2013).

    Apesar de ainda bastante incipiente, a literatura sobre impacto das decises vem

    crescendo. Siri Gloppen, por exemplo, prope um modelo de anlise das Cortes e de suas

  • 34

    decises nos pases em desenvolvimento, que envolve, dentre outras coisas, sua

    implementao e impacto (GLOPPEN, 2006).

    Csar Rodriguez Garavito tambm detectou o que chama de um ponto cego para a

    anlise e prtica, que seria a execuo dessas sentenas e seus efeitos diretos e indiretos.

    Diante desta lacuna, Garavito realizou diversos estudos sobre impacto de decises da Corte

    Constitucional Colombiana. O principal deles foi a pesquisa sobre a deciso T-025 de

    2004, sobre pessoas que so obrigadas a sair de suas casas em virtude da violncia

    (desplazamiento forzado), na qual a Corte declarou que havia um estado de coisas

    inconstitucional e, durante um perodo de 6 anos, proferiu 84 decises, realizou 14

    audincias pblicas e fez um balano do trabalho do Governo para garantir que suas ordens

    seriam cumpridas e proteger os direitos fundamentais dessa populao desplazada. Neste

    estudo, Garavito enumera e sistematiza as falhas estruturais apresentadas pela Corte

    Constitucional acerca da poltica pblica, compreendendo-as como efeitos bloqueadores da

    mudana, que seria facilitada pelo Poder Judicirio (GARAVITO; FRANCO, 2010). Na

    viso do autor, portanto, esse tipo de deciso estrutural geraria uma movimentao das

    instituies omissas, que possuem falhas crnicas no cumprimento de suas obrigaes e

    que se mostraram ao longo do tempo impermeveis aos demais mecanismos de controle

    (accountability) (SABLE; SIMON, 2004).

    Sua experincia ao longo desses estudos gerou o artigo Beyond the courtroom: the

    impact of judicial activism on socioeconomics rights in Latin America, j apresentado

    acima (GARAVITO, 2010-2011), no qual prope uma maneira de olhar para o problema.

    Nele, o autor procurou compreender os efeitos das decises tomadas no que chama de

    structural cases (casos estruturais) e investigou o que causa impactos distintos. A

    partir da comparao entre os direitos substancialmente assegurados na deciso, os

    remdios e o monitoramento em cada um dos casos, Garavito concluiu que sentenas

    dialgicas aumentam a possibilidade de impacto na promoo dos direitos sociais.

    No mbito do direito, pesquisas que pretendem compreender no apenas a

    argumentao jurdica, mas tambm sua interao com a poltica, contribuem tambm para

    a identificao da tecnologia jurdica utilizada para seu desenvolvimento (COUTINHO,

    2010). A proposta desta dissertao inserir-se neste ltimo mbito de anlise, ou seja,

    contribuir para a literatura emprica que estuda cumprimento e impacto (direto e indireto)

    das decises judiciais.

  • 35

    2.1. Literatura sobre a judicializao de polticas pblicas no contexto brasileiro

    Para alm de todo o debate terico acerca da legitimidade e capacidade do Poder

    Judicirio para decidir sobre polticas pblicas, diversos autores trabalham a judicializao

    de polticas sociais no contexto brasileiro.

    A doutrina brasileira costuma classificar as normas constitucionais quanto sua

    efetividade. Segundo essa doutrina, os direitos sociais so considerados direitos

    fundamentais e, portanto, tm aplicao imediata, constituindo direitos subjetivos dos

    cidados e, portanto, passveis de garantia pela via jurisdicional (ALMEIDA, 2007).

    Segundo este ponto de vista, para que os direitos sociais atinjam sua plena eficcia

    necessria a interveno judicial, principalmente considerando o artigo 5, inciso XXXV,

    da Constituio Federal, que probe que o Judicirio deixe de apreciar leso ou ameaa de

    leso a qualquer direito (PIOVESAN; VIEIRA, 2006). O Estado teria por obrigao

    conferir o mnimo existencial e seria vedado o retrocesso desses direitos (SARLET, 2008;

    SIQUEIRA, 2010).

    Jos Rodrigo Rodriguez e Marcos Nobre avaliam o fenmeno sob uma perspectiva

    social weberiana e entendem que, assim como os movimentos sociais foraram a abertura

    do parlamento para a deliberao, seria natural que esse movimento chegasse ao Poder

    Judicirio. Para esses autores, s se pode falar em judicializao da poltica se se partir

    de uma concepo particular de separao de Poderes, que enxerga o parlamento como

    central e o Judicirio como invasor da poltica. Seria um erro, na viso deles, pr-

    estabelecer concepes de funo para cada Poder e que os movimentos sociais deixassem

    de pressionar o Judicirio para que este se abra participao cidad. Essa concepo,

    descrita pelos autores como uma viso tradicional do direito, vedaria o acesso ao Judicirio

    como um locus de luta social em paralelo s demais e como um ambiente de traduo dos

    conflitos sociais para dentro do direito. Em seu ponto de vista, uma concepo no

    tradicional acerca do papel do direito permitiria compreender a judicializao da poltica

    e o ativismo judicial sob a perspectiva do processo de desenvolvimento das instituies

    democrticas. Sugerem, portanto, que, ao invs de se partir de uma concepo prvia

  • 36

    acerca de que lugar deve ocupar o Poder Judicirio, se acompanhe e descreva os conflitos

    como uma alternativa institucional (NOBRE; RODRIGUEZ, 2011)15

    .

    Porm, como diagnostica o artigo de Nobre e Rodriguez (2011), o principal elemento

    de discusso na literatura no seria a discusso prvia acerca da legitimidade do Poder

    Judicirio, mas a capacidade do Poder Judicirio de tomar boas decises, ou decises

    melhores que aquelas que o Poder Executivo seria capaz de tomar. A maior parte da

    literatura sobre a judicializao da poltica no Brasil se concentra na verificao deste

    argumento, a partir de estudos empricos que procuram demonstrar na prtica a atuao

    judicial. Grande parte dessas pesquisas se concentra na investigao do papel do Supremo

    Tribunal Federal, o controle da constitucionalidade das leis, seja ele difuso ou concentrado

    e os atores relacionados a ele (VIANNA, CARVALHO, MELO & BURGOS 1999;

    WANG, 2008; sbdp, 2010; sbdp 2011).

    Octvio Ferraz explica que no incio dos anos 90 o Poder Judicirio via os direitos

    sociais como normas programticas e, portanto, sem efeito imediato. Consequentemente,

    no eram consideradas normas passveis de adjudicao pelas cortes. Todavia, a partir de

    um caso paradigmtico em 1997, em que foi concedido um tratamento no incorporado

    pelo Sistema nico de Sade ou aprovado pela ANVISA e extremamente caro fora do

    Brasil, as cortes passaram a tratar o direito sade e vida como absoluto e a conced-lo a

    despeito de quaisquer reflexes sobre a reserva do possvel (FERRAZ, 2011b).

    15

    No meu ponto de vista esta abordagem est equivocada, j que judicializao da poltica significativamente diferente do que costuma ser chamado de ativismo judicial. Este ltimo diz respeito ao

    Poder Judicirio intervindo em questes legislativas, em geral a partir da declarao de inconstitucionalidade

    das normas. Esta situao carrega questes de legitimidade democrtica bastante fortes, j que o Poder

    Legislativo funciona a partir de eleies diretas em contraposio ao Judicirio, que no tem membros

    eleitos. Por outro lado, a judicializao da poltica se refere interveno judicial em polticas pblicas [Eu

    no sei se s isso, de acordo com a literatura brasileira. O Werneck Vianna, que costuma ser citado como

    referncia no tema, usa judicializao da poltica exatamente no sentido que voc usou para ativismo

    judicial declarao de inconstitucionalidade das normas. O conceito bastante disputado. Um artigo que

    achei muito bom sobre essa disputa de significado e sobre a utilidade do conceito A judicializao da

    poltica na Amrica Latina, do Alexandre Veronese. V. em

    http://www.casaruibarbosa.gov.br/escritos/numero03/FCRB_Escritos_3_13_Alexandre_Veronese.pdf], cuja

    execuo e, em grande parte formulao, so de competncia do Poder Executivo. A questo da legitimidade

    democrtica neste mbito muda de figura, j que, apesar de o Executivo ser um Poder representativo, trabalha

    com representao indireta a partir da nomeao de Ministros, no caso do Governo Federal, ou Secretrios,

    no caso dos estados ou municpios. No meu ponto de vista, o artigo erra ao no diferenciar estas perspectivas.

    [Talvez a sua crtica ao artigo tenha criado um espantalho, porque, como eu disse acima, parte considervel

    da literatura fala em judicializao da poltica no sentido que voc deu para ativismo. Eu acho que os autores

    tentaram dialogar com quem usa judicializao nesse sentido e no com quem fala de judicializao de

    polticas pblicas.]

  • 37

    A imensa maioria dos trabalhos sobre judicializao dos direitos sociais no Brasil trata

    do direito sade. Para Octvio Ferraz, um erro comum do Poder Judicirio seria tratar o

    direito social como um direito fundamental absoluto e inalienvel. Isto porque esta prtica

    garante a alguns indivduos tratamentos no contemplados na poltica pblica, gerando

    desigualdades e alocao irracional dos recursos. Ferraz tambm sustenta que, em pases

    com graves desigualdades como o Brasil, o sistema de sade deveria priorizar os mais

    necessitados em suas necessidades bsicas. Porm, o autor indica que h evidncias

    empricas de que a grande maioria dos casos judicializados dizem respeito a medicamentos

    de alto custo, que no foram includos no Sistema de Sade para maior eficincia dos

    gastos, com substitutos de menor custo, e outros sequer foram aprovados pela Agncia

    Nacional de Vigilncia Sanitria e no so vendidos no Brasil. Para o autor, em geral isso

    se d em benefcio das classes sociais mais elevadas (FERRAZ, 2011b).

    A maior parte dos trabalhos empricos apresenta cinco diagnsticos principais. O

    primeiro seria que a argumentao judicial inconsistente ou incoerente, e desconsidera

    questes de alocao de recursos. Daniel Wang, por exemplo, compara decises tomadas

    pelo STF em casos de sade, educao e pagamento de precatrios e conclui que a

    escassez de recursos, os custos dos direitos e a reserva do possvel no so trabalhados

    pelos Ministros nos casos concretos relacionados sade e educao; porm, esses so os

    principais argumentos, muitas vezes, em casos abstratos sobre esse tema. Esses

    argumentos tambm so muito utilizados nos casos sobre interveno federal nos Estados

    por falta de pagamento dos precatrios, nos quais o STF indefere a interveno (WANG,

    2008).

    O segundo diagnstico comum a muitos trabalhos que o Poder Judicirio trata os

    problemas de direitos sociais como se fossem questes bilaterais, sem enxergar a

    perspectiva coletiva que lhes inerente (SILVA, 2008; FERRAZ, 2011b). Especialmente

    no que diz respeito sade, uma interpretao adequada seria aquela que se concentrasse

    nos princpios da equidade e universalidade dos servios de sade (FERRAZ; VIEIRA,

    2009). A literatura emprica demonstra, todavia, que a maior parte das aes individual e

    que aes coletivas tm maior dificuldade de obter xito perante o Poder Judicirio

    (FERREIRA et al., 2005; PET-CAPES, 2005; FANTI, 2009).

    O terceiro diagnstico, consequncia deste segundo, alega que as inconsistncias da

    jurisprudncia e as constantes condenaes do Estado pem em risco a lgica coletiva das

    polticas pblicas e a racionalidade da alocao de recursos. As necessidades na rea da

  • 38

    sade so praticamente infinitas e os recursos a serem gastos com determinadas polticas

    pblicas so limitados, de modo que necessrio fazer escolhas racionais, muitas vezes

    difceis, sobre as prioridades para a alocao dos recursos (FERRAZ; VIEIRA, 2009).

    Porm, as condenaes pela judicializao no seguem a racionalidade da poltica pblica,

    alterando a ordem de prioridades. Apenas no ano de 2009, o equivalente a 0,4% do

    oramento nacional da sade foi gasto com judicializao, sendo que este valor

    representava 4% do oramento dedicado compra de medicamentos (FERRAZ, 2011a).

    Com a judicializao dessas polticas, o quarto diagnstico que se verifica a

    priorizao daqueles cidados que tm acesso ao Poder Judicirio, normalmente das

    classes sociais mdia e alta, em detrimento das classes mais baixas (BARROSO, [s.d.];

    FERRAZ, 2011a; FERRAZ, 2011b; VIEIRA; ZUCCHI, 2007). A maioria dos litgios em

    sade (90%) est localizada nos Estados e Municpios mais ricos do Sul e Sudeste do Pas,

    sendo que os estudos mostram baixssima prevalncia de litigantes residentes em distritos

    ou municpios mais carentes (FERRAZ, 2011a).

    O ltimo diagnstico que detectei como mais recorrente o de que o Poder Judicirio

    se substitui ao Executivo porque toma decises contraditrias s polticas pblicas j

    implementadas. Em especial no que diz respeito ao direito sade, muitas vezes o SUS

    contempla tratamentos mais baratos para determinadas doenas e o Judicirio determina a

    concesso de tratamentos mais custosos para os litigantes (VIEIRA, 2008).

    Pesquisa emprica realizada por Fabiola Vieira e Paola Zucchi, por exemplo, avalia

    aes judiciais movidas entre janeiro e dezembro de 2005 que solicitaram o fornecimento

    de medicamentos e conclui que o gasto total com medicamentos no listados pelo SUS foi

    de R$876 mil. Alm disso, identifica que o Judicirio no observa a repartio

    constitucional de competncias em suas sentenas, determinando a aquisio de muitos

    medicamentos no listados e muitas vezes prescritos por mdicos particulares, existindo,

    inclusive, determinao de fornecimento de medicamento no aprovado pela ANVISA e

    de medicamentos duplicados para tratamento do mesmo fim. Tudo isso, segundo as

    autoras, gera irracionalidade dos gastos pblicos e prejuzo equidade (VIEIRA;

    ZUCCHI, 2007).

    Barroso tenta definir os limites da atuao judicial a partir dos seguintes critrios: (1) o

    controle jurisdicional em matria de concesso de medicamentos deve ter por base uma

    norma jurdica especfica, caso em que ser possvel o controle pelo Poder Judicirio; (2)

  • 39

    alm desta hiptese, o Poder Judicirio apenas poderia atuar nos casos de violao ao

    mnimo existencial, completa omisso dos Poderes Pblicos ou atuao inconstitucional.

    Caso existam leis e atos administrativos sendo executados, o Judicirio no deve intervir.

    Alm disso, o autor formula uma srie de critrios para a concesso dos medicamentos

    pelo Poder Judicirio: (a) nas aes individuais o Poder Judicirio s pode conceder os

    medicamentos constantes da lista do SUS; (b) nas aes coletivas o Judicirio pode

    adicionar lista de medicamentos do SUS aqueles que tiverem sua eficcia comprovada,

    mas deve (c) sempre optar por aqueles disponveis no Brasil, (d) escolher o medicamento

    genrico de menor custo, e (e) verificar se o medicamento imprescindvel para a

    manuteno da vida. Alm disso, deve figurar no plo passivo da ao sempre aquele ente

    federado responsvel por listar aquele medicamento (BARROSO, 2007).

    Segundo Octvio Ferraz, pelo menos nos pases em que o direito sade foi

    constitucionalizado, as cortes poderiam praticar uma forma mais legtima de adjudicao,

    evitando decises que originassem implementao discriminatria dos direitos sociais em

    favor daqueles com acesso ao Judicirio. Na viso do autor, a corte poderia inclusive

    criticar a racionalidade das polticas pblicas, sem, todavia, se substituir vontade do

    gestor (FERRAZ, 2011b).

    Alm do direito sade, a judicializao de outras polticas tambm objeto de estudo,

    como por exemplo o direito moradia (NASSAR, 2011), educao (PANNUNZIO, 2009;

    CURY; FERREIRA, 2009; SILVEIRA, 2009, 2011, 2012; MARINHO, 2009), assistncia

    social, entre outros.

    No tema da moradia, Paulo Andr Silva Nassar chega a concluses parecidas quelas

    que dizem respeito judicializao da sade. O autor estuda 50 aes civis pblicas

    propostas pela Defensoria do Estado de So Paulo em face da Prefeitura de So Paulo, nas

    quais se pleiteou alterao das polticas habitacionais para contemplar os interesses de

    grupos marginalizados. O trabalho demonstra que os casos propostos pela Defensoria no

    tiveram sucesso no Judicirio. Conclui que, ao menos nos casos analisados, o potencial de

    transformao do Poder Judicirio foi limitado, j que, mesmo nos poucos casos em que as

    comunidades interessadas foram atendidas, isso no ocorreu em virtude ou no mbito

    da deciso judicial, mas decorreu de vontade poltica da Prefeitura. Outra concluso

    importante do trabalho foi que no h grande produo acadmica sobre a judicializao

    do direito moradia, que possui aspectos particulares, de maneira que no seria correta a

  • 40

    generalizao para judicializao dos direitos sociais, comum nos trabalhos sobre direito

    sade e educao (NASSAR, 2011).

    justamente por conta das particularidades, que tambm identifico no que se trata do

    direito educao, que reservei o tpico seguinte para descrever a literatura relativa

    especificamente judicializao do direito educao.

    2.2. Trabalhos sobre a judicializao da educao

    A maior parte da literatura sobre judicializao de polticas pblicas no Brasil trata das

    questes relacionadas ao direito sade. Contudo, a judicializao do direito educao

    tem algumas particularidades. Primeiro, no Brasil, esses direitos sociais tm tratamentos

    constitucionais diversos, no existindo na educao, por exemplo, questes relativas

    distribuio de competncias, que permeiam os debates sobre o direito sade. Outra

    diferena prtica que, no caso da judicializao por medicamentos, os atos do Poder

    Pblico decorrentes da deciso so razoavelmente simples se comparados necessidade de

    criao de novas vagas em instituies de ensino, conforme se verificar adiante nesta

    pesquisa.

    Ainda uma terceira diferena est no fato de que no h, no caso da educao, procura

    das classes mais elevadas para matricular crianas em instituies de ensino infantil. O

    principal ator responsvel por essas demandas a Defensoria Pblica, que apenas

    representa famlias pobres, na acepo jurdica do termo, enquanto no caso da sade as

    classes mais abastadas acessam o Judicirio com o objetivo de receber tratamentos ou

    medicamentos extremamente caros, conforme explicado anteriormente.

    Diferentemente do que acontece nos estudos sobre o direito sade, o estado da arte

    dos trabalhos sobre a judicializao da educao demonstra que mesmo os trabalhos

    empricos tm como premissa a aplicabilidade obrigatria e imediata do direito

    fundamental educao. Um ponto em comum entre a maior parte desses trabalhos que

    adotam a premissa de que o Judicirio deve atuar para assegurar a promoo do direito

    subjetivo educao, exaltando a faceta individual do direito subjetivo e desconsiderando

    sua dimenso coletiva, que se revela a partir de uma poltica pblica estruturada. Outra

    coincidncia entre eles que mesmo aqueles que fazem uma anlise exaustiva da

    jurisprudncia disponvel utilizam as decises como exemplos de como o Poder Judicirio

  • 41

    atua e para corroborar a afirmao de que esse poder pode atuar para garantir o direito

    educao.

    Assim como no direito sade, a doutrina brasileira sobre direito educao costuma

    compreend-lo como um direito fundamental social, com uma faceta individual e outra

    coletiva. Entende, portanto, que seus titulares possuem direitos subjetivos, apesar de

    estarem sob o manto da reserva do possvel por sua aplicao demandar recursos

    financeiros (RANIERI, 2009). O direito educao, no mbito desta literatura, seria um

    pressuposto para o exerccio da cidadania e um fim em si mesmo, j que estaria voltado

    para o desenvolvimento da pessoa e de sua dignidade (ARNESEN, 2010).

    Em resumo, a doutrina compreende o direito educao como um direito fundamental

    e, portanto, com eficcia plena e aplicabilidade imediata, sendo pressuposto para a

    qualificao para o trabalho, para a cidadania e dignidade, sendo oponvel contra o Estado,

    a famlia e a sociedade (ARNESEN, 2010; RANIERI, 2009). Alm disso, correntemente se

    afirma que o constituinte quis expressamente diferenciar o direito educao e permitir

    sua exigibilidade por meio do Poder Judicirio quando afirmou em seu artigo 208, 1,

    que o acesso ao ensino direito pblico subjetivo, cujo no oferecimento pelo Poder

    Pblico, ou sua oferta irregular, implica responsabilidade da autoridade competente

    (ARNESEN, 2010; DUARTE, 2004; RANIERI, 2009).

    Assim, a doutrina no avalia de fato as consequncias do fenmeno da judicializao

    para a prpria promoo do direito educao e essa perspectiva acaba sendo considerada

    como premissa para a maior parte dos trabalhos jurdicos no tema, mesmo aqueles com

    pretenses empricas. Por exemplo, o fato de o direito educao ser considerado um

    direito fundamental, segundo Eduardo Pannunzio, faz com que ele no deva ser visto como

    caridade, mas como prerrogativa, e que os titulares possam recorrer ao Poder Judicirio

    caso seus direitos estejam sendo violados. Em seu trabalho denominado O Poder

    Judicirio e o Direito Educao, o autor lista e explica os mecanismos processuais que

    podem ser utilizados para proteger o direito educao nos mbitos nacional e

    internacional e analisa as decises proferidas pelo Supremo Tribunal Federal sobre a

    educao, diferenciando por perodo e por tema, e tambm aquelas proferidas pelos rgos

    internacionais em relao ao Brasil. Indica que o direito educao passvel de

    adjudicao pelo Poder Judicirio, que teria, segundo ele, papel relevante para a promoo

    do direito educao, principalmente nos casos em que o Legislativo e o Executivo so

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    omissos; ressalta, no entanto, que a jurisprudncia do STF ainda incipiente. Sugere que o

    papel do Poder Judicirio seja ampliado a partir da capacitao dos juzes e ampliao da

    conscientizao dos cidados e ONGs para que acessem o Judicirio (PANNUNZIO,

    2009).

    No artigo denominado A judicializao da educao, os autores Carlos Roberto

    Jamil Cury e Luiz Antnio Miguel Ferreira apontam que, a partir da atual Constituio

    Federal, com a regulamentao do direto educao, o Judicirio passou a intervir nas

    questes educacionais. O artigo pressupe que os dispositivos constitucionais que dizem

    respeito ao direito educao so de eficcia plena e aplicabilidade imediata, conferindo

    ao cidado um direito subjetivo e pblico e que, portanto, seria direito de todos seu uso e

    gozo. Assim, se o Poder Executivo no os cumprir, pode o interessado solicitar o

    cumprimento ao Poder Judicirio. Exemplifica, ento, os diversos temas afetos educao

    decididos pelo Poder Judicirio, tais como obrigatoriedade de fornecimento regular de

    merenda de qualidade, obrigatoriedade de fornecer transporte escolar gratuito, obrigao

    de contratao de professores nos casos em que h cargos vagos, fornecimento das

    condies necessrias para que alunos especiais possam estudar, adequao do prdio

    escolar, vagas em creches e pr-escolas, entre outros assuntos. Conclui que a judicializao

    da educao configura um instrumento de proteo e obrigatoriedade de cumprimento dos

    direitos constitucionais, para transformar o que est estabelecido na lei em realidade

    (CURY; FERREIRA, 2009).

    Uma abordagem parecida aquela adotada por Adriana A. Dragone Silveira em seu

    artigo Judicializao da educao para a efetivao do direito educao bsica, no qual

    parte da premissa de que a educao bsica direito subjetivo estabelecido

    constitucionalmente e que sua no-oferta ou oferta irregular pelo Poder Pblico enseja

    interveno do Poder Judicirio, inclusive com responsabiliz