a invenção moderna do trabalho

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Texto apresenta considerações sobre a noção de trabalho na sociedade moderna

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  • 2.1 A inveno moderna do trabalhoAuthor : Andr Languer

    Categories : xodo da sociedade salarial

    Date : 27/08/2004

    Gorz parte da constatao de que historicamente o trabalho nem sempre foi aquilo que ele hoje.O que ns nos acostumamos a chamar trabalho uma inveno da modernidade. A forma soba qual o conhecemos, praticamos e o situamos no centro da vida individual e social, foi inventada,e em seguida generalizada com o industrialismo[73]. A compreenso que dele temos e o lugarque lhe damos, so novos. Ele ocupou outro lugar em outras sociedades[74].

    No entanto, para uma viso mais ampla e menos asfixiante da noo de trabalho um olhar delongo prazo pode ser til. Gorz olha, particularmente, para a realidade e o significado destarealidade que denominamos trabalho entre os gregos.

    Os gregos faziam uma diferenciao mais aguda entre as atividades que constituam a vita activa.Eles distinguiam o labor, o trabalho e a ao. O labor diz respeito luta pela sobrevivncia fsicado corpo. realizado em vista da manuteno da vida e da sobrevivncia da espcie humana. Olabor est associado ao processo biolgico do corpo. H uma estreita relao entre produo econsumo. Tudo o que produzido pelo labor destinado ao consumo imediato, motivo pelo qualno deixa nada atrs de si[75].

    O labor rene estas caractersticas: menosprezado, no glorificado, pertence ao reino dasnecessidades, realizado na esfera domstica ou privada e distingue-se pela sua transitoriedade.Est no degrau mais baixo da hierarquia de valores do ideal grego. Enfim, marcado pela eternacircularidade entre produo e consumo.

    Um segundo grupo de atividades aquele denominado de trabalho[76].

    O trabalho a atividade correspondente ao artificialismo da existncia humana, existncia estano necessariamente contida no eterno ciclo vital da espcie, e cuja mortalidade no compensada por este ltimo. O trabalho produz um mundo artificial de coisas, nitidamentediferente de qualquer ambiente natural. Dentro de suas fronteiras habita a vida de cada indivduo,embora esse mundo se destine a sobreviver e a transcender todas as vidas individuais. Acondio humana do trabalho a mundanidade.[77]

    O homo faber, em contraposio ao animal laborans, que requer o organismo humano porinteiro, caracteriza-se pelo uso das mos. Com elas o homem fabrica a infinita variedade de coisasque o rodeiam e passam a constituir a sua mundanidade[78]. O homo faber dependente das

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  • suas mos; elas so o seu instrumento primordial[79]. Neste sentido, o homem j no mais labora,mas obra.

    Se o labor combina necessidade e futilidade, o trabalho combina permanncia e liberdade. Otrabalho, tambm chamado de poisis, no est mais a servio das necessidades e dosconstrangimentos materiais da subsistncia. Por esse motivo, ele pode prescindir deste nvelelementar e tornar-se criao, inovao, expresso, realizao de si.

    A terceira atividade fundamental da vita activa a ao ou a praxis. A ao, nica atividade quese exerce diretamente entre os homens sem a mediao das coisas ou da matria, corresponde condio humana da pluralidade, ao fato de que homens, e no o Homem, vivem na Terra ehabitam o mundo[80].

    Quatro so as caractersticas bsicas que distinguem a ao, tanto do labor como do trabalho: apluralidade, a no mediao material, o fato de ser exercida na esfera pblica e a liberdade. Nohomem, a alteridade, que ele tem em comum com tudo o que existe, e a distino, que ele partilhacom tudo o que vive, tornam-se singularidade, e a pluralidade humana a paradoxal pluralidadede seres singulares[81]. A singularidade prpria da ao aparece na sua intransferibilidade. possvel que algum faa outros trabalharem no seu lugar e assim lhe providenciam asobrevivncia, mas no possvel que abdique do discurso e da ao, uma vez que trata-se deuma iniciativa da qual nenhum ser humano pode abster-se sem deixar de ser humano[82]. No hvida humana sem ao.

    Ao contrrio do labor e do trabalho, a ao no tem mediao material. A prxis exercidadiretamente entre as pessoas. A ao e o discurso so capacidades humanas imprescindveis.Na ao e no discurso, os homens mostram quem so, revelam ativamente suas identidadespessoais e singulares [...][83]. Cada ser humano se revela plenamente aos outros naquilo que ,comunicando-se. no discurso e na ao que ele se mostra aos outros na sua individualidade.

    Por essas razes, o lugar prprio da ao ou da prxis a esfera pblica, no a vida privada. Apolis grega o lugar por excelncia onde se constri a comunidade pelo agir e pelo falar, mastambm o lugar da aparncia.[84]

    A ao produz uma realidade distinta da do labor e do trabalho; o produto mais imediato daao a realidade do prprio eu, da prpria identidade ou a realidade do mundo circundante. Aprxis no produz objetos, mas acima de tudo reflexes, ensinamentos, relaes. Refere-se produo de sentido, produo do humano nas pessoas e elas entre si. Por isso a insistnciade que s a ao prerrogativa exclusiva do homem[85].

    Mas, tal s pode ser alcanado num espao em que predomina a liberdade. evidente que nesteestgio o suposto fundamental que as necessidades j tenham sido atendidas. A polis no negaa esfera privada, o espao da famlia, da economia, da necessidade, mas a transcende. A vida

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  • domstica s existe em funo da vida na polis. A esfera da polis era a esfera da liberdade, e sehavia uma relao entre essas duas esferas era que a vitria sobre as necessidades da vida emfamlia constitua a condio natural para a liberdade na polis[86]. Por isso, cada cidado seesforava para reduzir ao mnimo o peso das necessidades da vida[87], para poder dispor demais tempo para a polis.

    Como se v, os gregos estabeleceram uma hierarquizao das atividades constitutivas da vitaactiva. Nessa hierarquia a prxis ocupava o lugar mais alto, ao passo que o labor ocupava odegrau mais baixo[88]. Destacar esse aspecto importante para perceber com mais clareza amutao de valores que a sociedade industrial ir introduzir na sua percepo do mundo e dasatividades humanas.

    O trabalho entre os gregos no gozava de nenhuma simpatia. Pelo contrrio, era visto comoalgo degradante, como um castigo, como algo que denegria a imagem de ser humano e decidado reinante entre os gregos. Dessa maneira, o trabalho no podia ser o fundamento do laosocial. As ligaes sociais estavam antes fundadas em outros lugares, que no a economia. Oscostumes, as leis, a magia e a religio, eram suportes fundamentais para a coeso e a integraosocial. Eles constituam um todo, no qual a organizao econmica constitua apenas um elemento[89]. A rigor, como enfatiza Gorz, o labor no pode jamais ser o fundamento da coeso social,pois no isso que ele realiza: este trabalho necessrio para a subsistncia no pode jamaisconverter-se num fator de integrao social. Era, antes, um princpio de excluso: aqueles que orealizavam eram tidos como inferiores em todas as sociedades pr-modernas[90]. Mais do queincluir, ele exclui; mais do que conduzir igualdade entre todas as pessoas, ele introduzirremediavelmente a submisso e a heteronomia.

    Gorz rel os gregos especialmente a partir das noes de labor e trabalho. Mas, vai dizer queaquilo que ns chamamos de trabalho no rigorosamente nem labor nem trabalho, mas umasimbiose das duas atividades. Para ele, esse novo trabalho tem as seguintes caractersticas:

    a) realizado na esfera pblica[91]. Ele sai do esconderijo da esfera privada a que era submetidono mundo antigo e passa a ser realizado no corao do espao pblico, vista de todos. Havia,no mundo antigo, uma certa simetria entre a esfera privada, o mundo da famlia e a economia. Amaior parte da economia uma atividade privada que no se desenvolve luz do dia, na praapblica, mas no seio do domnio familiar[92]. O novo trabalho precisa ser demandado,definido, reconhecido como til pelos outros[93].

    b) um esforo humano remunerado. O trabalho reconhecido como til pela sociedade aqueleque remunerado. Esta a principal caracterstica do trabalho moderno. Pelo trabalhoremunerado (e mais particularmente pelo trabalho assalariado) que pertencemos esferapblica, conseguimos uma existncia e uma identidade sociais (ou seja, uma profisso),estamos inseridos numa rede de relaes e intercmbios na qual nos medimos com os outros enos so conferidos direitos sobre eles em troca de nossos deveres para com os mesmos[94]. A

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  • transformao do trabalho assalariado no principal elemento de socializao foi responsvel nos para que a sociedade industrial se distinguisse de todas as sociedades precedentes, mas paraque se autodenominasse como sociedade de trabalhadores[95].

    c) fator de excluso social. fazendo esta volta ao passado, que Gorz alerta para o fato de queo trabalho necessrio para a sobrevivncia nunca pde converter-se num fator de integraosocial. Ao contrrio, sempre funcionou como princpio de excluso social. E isso porque aquelesque o realizavam sempre eram tidos como inferiores (escravos, mulheres...), pois pertenciam aoreino da necessidade[96]. A satisfao das necessidades exclua da cidadania, pois impedia aparticipao na polis. Fazendo a distino entre labor e trabalho, Gorz capaz de desvendar aincapacidade de libertao no trabalho, uma vez que ele sempre se realiza em condies de poderextremamente desiguais.

    A perspectiva de incluso social que o trabalho moderno arroga para si esconde uma outramutao na natureza do trabalho: de algo desprezvel, para os antigos, transforma-se numavirtude, num valor[97]. Por no ser um valor para os antigos a prpria idia de trabalhador erainconcebvel: condenado servido e recluso na domesticidade, o trabalho, longe deconferir uma identidade social, definia a existncia privada e exclua do domnio pblico quelas e queles que estavam submetidos a ele[98].

    Notas

    [73] GORZ, Andr. Mtamorphoses du travail: qute du sens. Critique de la raison conomique.Paris: Galile, 1988, p. 25.

    [74] Para ver como o trabalho era compreendido por outras sociedades, conferir: MDA, 1995, p.30-59; POLANYI, Karl. A grande transformao: as origens da nossa poca. 2. ed. Rio deJaneiro: Campus, 2000, p. 62-75.

    [75] Cf., ibid., p. 98.

    [76] Vale a pena recordar que entre os gregos no havia uma noo unvoca que englobasse osdiferentes ofcios e produtores. Cf. MDA, 1995, p. 39.

    [77] ARENDT, 1989, p. 15.

    [78] Ibid., p. 149.

    [79] Ibid., p. 157.

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  • [80] Ibid., p. 15.

    [81] ARENDT, 1989, p. 189.

    [82] ARENDT, loc. cit.

    [83] Ibid., p. 192.

    [84] Ibid., p. 211.

    [85] ARENDT, 1989, p. 31.

    [86] Ibid., p. 40.

    [87] GORZ, 1988, p. 28.

    [88] Cf. ARENDT, 1989, p. 25-26; MDA, 1995, p. 46.

    [89] Cf. POLANYI, op. cit., p. 75.

    [90] GORZ, 1988, p. 26.

    [91] Cf. GORZ, 1988, p. 25, 27-28.

    [92] Ibid., p. 27.

    [93] Ibid., p. 25.

    [94] GORZ, 1988, p. 25-26.

    [95] Cf., ibid., p. 26.

    [96] GORZ, loc. cit.

    [97] Cf. MDA, 1995; CHAUI, Marilena. Introduo. LAFARGUE, Paul. O direito preguia. 2.ed. So Paulo: Hucitec; Unesp, 1999. p. 9-56.

    [98] GORZ, 1988, p. 28.

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