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1 Departamento de MedicinaPreventiva e Social,Faculdade de CiênciasMédicas, UniversidadeEstadual de Campinas. RuaTessália Vieira de Camargo126. 13083-970 CampinasSP. [email protected]

A intersubjetividade no cuidado à Saúde Mental:narrativas de técnicos e auxiliares de enfermagemde um Centro de Atenção Psicossocial

Intersubjectivity in Mental Health care: narrativesof nursing technicians at a Psychosocial Care Center

Resumo Diante da demanda por atenção emSaúde Mental e na tentativa de se renovar o tra-tamento psiquiátrico destinado a portadores detranstornos mentais severos, surgiram os Centrosde Atenção Psicossocial (Caps). Este artigo visa àanálise de repercussões subjetivas do trabalho nosCaps nos profissionais de nível médio, buscando-se contribuir para o planejamento em saúde. Re-alizaram-se dois grupos focais com trabalhadoresde um Caps III. A metodologia utilizada para aná-lise alicerça-se na abordagem hermenêutico-crí-tica proposta por Ricoeur e na filosofia gadameri-ana. Revelou-se como principal desencadeante desofrimento a desvalorização do trabalho. Desta-caram-se temas como dificuldade de cooperaçãocom familiares de usuários, a fraca interligaçãodo Caps com a rede de saúde, a responsabilizaçãopelo plantão noturno, controvérsias sobre a libe-ração de pacientes em leito-noite e excesso de car-ga horária. Propõe-se adequado planejamento deestrutura e de organização institucional quandoda abertura de novos Caps, visando diminuirimpacto de trabalho nos técnicos e melhorar odesempenho clínico da equipe.Palavras-chave Pesquisa avaliativa, Saúde Men-tal, Políticas de saúde, Planejamento em saúde,Narrativa, Hermenêutica

Abstract Psychosocial Care Centers (Caps) wereestablished as a result of the demand for MentalHealth care and were an attempt to update psy-chiatric treatment for those afflicted with severemental disorders. This article seeks to analyzesubjective repercussions of work conducted in Capson mid-level professionals and to contribute tohealthcare planning. Two focal groups were con-ducted with workers of a Caps III. The methodol-ogy applied to the analysis was based on the crit-ical hermeneutical approach proposed by Ricoeurand espoused by Gadamerian philosophy. Lack ofappreciation in the workplace was revealed asbeing the main cause of suffering. Several themesstood out including the difficulty of obtaining thecooperation of users’ relatives, the tenuous inter-connection between Caps and the health network,the attribution of responsibility for the night shift,controversies regarding overnight-stay patientsand an excessive workload. Adequate structuralplanning and institutional organization is pro-posed when opening new Caps in order to reducethe workload of technicians and improve the clin-ical performance of the team.Key words Evaluative research, Mental health,Health policies, Health planning, Narrative,Hermeneutics

Rosana Onocko Campos 1

Ivana Preto Baccari 1

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Introdução

Apesar de significativa a prevalência de transtor-nos mentais – no Brasil, 3% severos e persisten-tes, 6% de dependência química –, a relevânciadada à Saúde Mental está muito aquém daquelaconcedida à saúde física1. No Sistema Único deSaúde (SUS) brasileiro, a reconstrução dos mo-delos de assistência, desencadeada pela ReformaPsiquiátrica desde os anos 80, vincula-se maisrecentemente à emergência dos Centros de Aten-ção Psicossocial (Caps), comprometidos em con-solidar práticas e saberes condizentes com umtratamento terapêutico renovado. Nesse senti-do, por meio da gradativa substituição dos leitosem hospitais psiquiátricos por serviços ofereci-dos pelo Caps, busca-se o deslocamento de umalógica baseada na exclusão para uma outra,apoiada na busca de recursos para que o sujeitoseja reintegrado à sociedade e recupere, na medi-da do possível, sua autonomia.

A Portaria no 224/922 do Ministério da Saúdeestabeleceu critérios para os novos serviços deresponsabilidade do Sistema Único de Saúde,permitindo o suporte necessário à expansão darede – que se ampliou consideravelmente, che-gando a cerca de 1.400 unidades em 20083.

A preocupação com um compromisso inadi-ável de mudança de paradigma torna necessárioque sejam rompidos pelo menos quatro referen-ciais: o método epistêmico da psiquiatria; o con-ceito de doença mental como taxativo de erro oudesrazão e sua arbitrária correlação com a peri-culosidade; o princípio pineliano de isolamentoterapêutico; e o tratamento moral que permeiaos métodos de cuidado hegemônicos4. Soma-sea essas negações a afirmação da prática de umaclínica ampliada, que priorize o sujeito e que odestaque5,6.

Tais considerações situam-se em uma áreaem que se entrelaçam práticas e saberes relacio-nados à Saúde Mental e à Saúde Coletiva7, o queeleva o patamar de complexidade das discussõese análises. Essa interface viabilizaria a resoluçãode problemas e favoreceria medidas que visas-sem à evolução de um modelo de atenção consis-tente e de fato comprometido com o bem-estarde todos os agentes envolvidos. Precisa-se supe-rar a distância artificialmente construída entreesses campos do conhecimento8. Estudos recen-tes apontam como, no cenário europeu, a cons-tituição de serviços comunitários e alternativosobedece a singularidades próprias de cada siste-ma nacional de saúde9, e a singular conformaçãoda rede brasileira e a importância dos Caps nela10.

No presente estudo, considerou-se fonte ade-quada de informação as histórias de profissio-nais diariamente envolvidos na prática da aten-ção – auxiliares e técnicos de enfermagem – paratrazer à tona problemáticas, reflexões e soluçõesapropriadas a circunstâncias similares às encon-tradas na assistência nos Caps III. Espera-se con-tribuir para a resolução de entraves identificáveisna estrutura do Caps, com o intuito de estimularos benefícios que a expansão do sistema confi-gura10.

A categoria profissional de nível médio foi es-colhida por se constituir maioria dentro dos ser-viços e devido às características de sua rotina, emgeral exaustiva, o que implicaria suscetibilidadeaos impactos provenientes do contato emocionalenvolvido em suas práticas. Realizamos esta in-vestigação no marco de uma pesquisa avaliativamaior na qual outras categorias de trabalhadoresdos Caps foram escutadas. Tratando-se de umcampo numa cidade que conta com numerososCaps III (acolhimento diuturno), a categoria detécnicos e auxiliares de enfermagem se destacoutambém por serem esses profissionais a maioriados que trabalham no período da noite, quandoa falta de outros profissionais os torna responsá-veis pelos pacientes em leito-noite.

Efetuou-se assim, nesta investigação, umaaposta naquilo que um grupo homogêneo deprofissionais de nível médio teria a dizer sobre aprática dos serviços, sem a inibição supostamentecausada pela presença de pessoas de outros nú-cleos funcionais e pelas relações de poder. Op-tou-se por uma equipe pertencente ao único Capsda cidade que prevê em sua organização institu-cional o rodízio de auxiliares e técnicos durantetodos os turnos, de maneira que cada profissio-nal sempre participa da atenção em todos oshorários, o que – em tese – permitiria uma abor-dagem mais integral dos pacientes, mas tambémsubmete os trabalhadores a variações frequentesde seu horário de trabalho. Mostrou-se inviável,do ponto de vista logístico, a realização de gru-pos em todos os Caps da cidade.

Este projeto teve por objetivo geral a análisede repercussões subjetivas do trabalho no Capsno profissional de nível médio, buscando-se con-tribuir com as políticas de planejamento em saú-de. Foram objetivos específicos:

– Permitir a expressão de experiências, difi-culdades e motivações particulares à rotina deauxiliares e técnicos de enfermagem;

– Identificar perspectivas e abordagens emer-gentes do processo de atendimento diário e que,embora fundamentais, passem despercebidas.

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Materiais e métodos

Elegeu-se a pesquisa avaliativa como instrumen-to detector de conceitos envolvidos na implemen-tação desta rede e de entraves que a dificulta-riam11. A pesquisa realizou-se numa cidade degrande porte, cuja rede de Caps III distingue-sepor sua complexidade e natureza pioneira nouniverso dos serviços substitutivos de saúdemental implementados a partir dos alicerces es-tabelecidos pela Reforma Psiquiátrica.

As informações foram obtidas por meio datécnica de grupos focais, caracterizada por ses-sões previamente planejadas entre pessoas quecompartilham um traço comum e durante asquais se discutem assuntos pertinentes aos inte-resses tanto do pesquisador quanto dos partici-pantes12-14. Durante seu desenvolvimento, a mo-deradora propôs os temas de interesse de manei-ra a adequar-se à imprevisibilidade das respos-tas e cuidando para que a discussão não fugissedos propósitos do trabalho. Tal dinâmica flexí-vel não comprometeu o cumprimento dos obje-tivos e sim facilitou a construção de um diálogoverdadeiramente recíproco12.

O primeiro grupo reunido contou com seistrabalhadores, a moderadora, uma observado-ra e uma anotadora. Foi moderado, gravado emáudio, transcrito e transformado em narrativapela moderadora. Embora construído pelo pes-quisador, este texto teve por alicerce as opiniõesdiscutidas pelos sujeitos da pesquisa e retornoua eles, reforçando a ideia de que um sentido mai-or e mais abrangente pode ser resgatado pormeio de uma postura pautada na bilateralidadee efetivada no laço social15.

Visando à aproximação ao preceito herme-nêutico de passar várias vezes pelo mesmo lu-gar16, optou-se pela realização de uma segundaetapa de campo, em que a primeira narrativa foilida a um grupo de quatro auxiliares e técnicos domesmo serviço, momento no qual a narrativapôde ser validada, mas também corrigida e com-pletada por novas reflexões e aprofundamentos.

O segundo grupo foi conduzido pela mesmamoderadora e contou com uma observadora.Seguiram-se nova transcrição e construção denarrativa, com aprofundamento de questões edesdobramento de outras.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Éticada instituição, e cada um dos sujeitos envolvidosautorizou o uso das informações gravadas, desdeque mantido o sigilo de suas identidades por meiode um termo de consentimento livre e esclarecido.Foram critérios de inclusão nos grupos focais:

– Exercer função de auxiliar ou de técnico emenfermagem no Caps escolhido;

– Trabalhar no serviço há pelo menos seismeses;

– Ter interesse em colaborar com a pesquisa.A metodologia utilizada para interpretação

sustenta-se na abordagem hermenêutico-crítica,proposta por Ricoeur, segundo a qual as narra-tivas (construídas a partir do material coletadoem campo) são propícias para o estudo de con-ceitos, de práticas e para a elaboração de linhasinterpretativas. Para Ricoeur17, as narrativas nadamais são do que “histórias não (ainda) narra-das”, cuja vinda à tona explicitaria e tornaria pú-blicas práticas que já estão inseridas no social. Adistância necessária entre fato e interpretaçõesseria propiciada pela fixação textual pela escrita.Dessa forma, se de algo se fala, é porque o fatonão mais está situado em sua circunstância deocorrência, mas em algum lugar do passado. Épor meio de um tempo (distância efeitual), por-tanto, que se revela, e sua vinda à tona faz partede um movimento de instância interpretativa17,18.

A partir de uma revisão do modelo aristoté-lico de mimese, Ricoeur define três estágios, su-cessivos e contínuos, em que pode se basear omovimento reconstrutivo da experiência pormeio da mediação do texto. Do emaranhado deintrigas em que está mergulhada a vida real, nosenso comum (mimese I) emergem narrativas,cuja construção em forma de tessitura (mimeseII) pode ser entendida como intermediária entrea linguagem e a ação. Depois, no ato da leitura anarrativa é devolvida ao tempo da ação (mimeseIII)17. Nesse sentido, os textos são processos mi-méticos que permitem ao pesquisador a aproxi-mação a versões de mundo presentes nas experi-ências cotidianas17. A leitura da primeira narrati-va permitiu que os sujeitos da pesquisa reconhe-cessem seu discurso e refletissem sobre suas ações,de maneira que o círculo metodológico não setornasse vicioso, já que passou pelo mesmo pontosempre em uma altitude diferente em termos deentendimento11,16.

Ainda apoiando-se na filosofia de Gadamer,em cujo fundamento se prevê iluminar os pre-conceitos no movimento analítico16, o grupo fo-cal surgiu a partir da iniciativa do pesquisador,porém permitiu que houvesse natural conver-gência de conveniências múltiplas. Nesse senti-do, a aplicação está sempre pressuposta pelo pró-prio ato de pesquisar, uma vez que o questiona-mento levantado pelo pesquisador e a predispo-sição dos sujeitos a participarem da pesquisaapontam a pertinência do tema.

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O objeto do estudo emana no bojo da con-fluência entre os programas de saúde coletiva emental. Para Gadamer, o destaque do objeto só épossível pelo seu contraste com aquilo de que édestacado16. Ao ser eleito, ele se projeta à manei-ra de uma escultura em alto-relevo, isto é, seuplano de fundo é parte integrante e fundamentalda obra. Utilizando-se dessa concepção, torna-se possível supor que aquilo que foi narrado éuma representação qualitativa de uma realidadesubjacente. As histórias estão inseridas no con-texto dos Caps de Campinas (SP), que por suavez incluem-se nos serviços de saúde pública bra-sileiros, no contexto da Reforma PsiquiátricaBrasileira.

Resultados

A desvalorização do trabalho pelos colegas daequipe, decorrente da ausência de reconhecimentode sua competência, foi apontada como princi-pal desencadeante de sofrimento. Conflitos rela-cionados à hierarquia levam estes profissionais aacreditarem que sua experiência – advinda deamplo contato diário com os doentes – seja des-cartada, pelo fato de eles não terem nível superi-or de estudo. Afirmam que esse fator os desesti-mula a compartilhar seus saberes e provoca umaqueda em sua autoestima.

Outra repercussão é descrita como uma re-sistência da equipe a considerar o encaminha-mento de pacientes para o hospital geral ou mes-mo conseguir uma reavaliação pelo psiquiatraresponsável de um ponto de vista clínico amplia-do. Tal dificuldade faz com que muitos pacientessofram por problemas não psiquiátricos e pos-terga diagnóstico e tratamento adequados. Essapostura favorece a medicalização, pois eles refe-rem que às vezes são testados numerosos psico-trópicos a fim de que se excluam todos os diag-nósticos relativos à Saúde Mental antes que sefaça uma internação no hospital geral – dadoque faz vislumbrar um verdadeiro paradoxo pro-duzido pela Reforma Psiquiátrica. Relataram-secasos variados: pneumonia avançada, neoplasiade medula, crises desencadeadas por medicamen-tos – problemas clínicos que, na análise dos au-xiliares e técnicos, foram subestimados e seus sin-tomas considerados alucinações.

Conflito com a equipe também é estabeleci-do quanto ao fato de os auxiliares e técnicos dis-cordarem da liberação de pacientes em leito-noi-te para projetos externos. Consideram que se opaciente está no leito de acolhimento noturno

está internado, e isso porque está em risco; se eleestivesse apto para sair sozinho, também estariapara ir para casa. No entanto, é comum que sejadada essa permissão pela equipe graduada, o queos técnicos de enfermagem consideram particu-larmente problemático nos casos de usuários dedrogas. Esses pacientes, medicados e sob respon-sabilidade da enfermagem para acompanhamen-to mais rigoroso, estão ausentes quando pro-curados para controle no leito, sendo recorren-tes casos em que usam outras drogas antes deretornarem ao Caps.

O fato de o trabalho noturno ser restrito aesses profissionais trouxe à tona a discussão de aresponsabilidade pelo paciente recair integralmen-te sobre eles durante esse turno. Verificaram-seprogressos no período entre a realização dos doisgrupos (quatro meses): duas enfermeiras foramcontratadas e trabalham em algumas noites,embora auxiliares e técnicos continuem sozinhosna maioria das vezes.

É pertinente ainda a questão de a estruturafísica dos Caps favorecer riscos a acidentes, jáque há muitos vidros em janelas e portas, sendonarrados casos em que funcionários tenham secortado na tentativa de socorrer pacientes que osquebraram.

Destaque foi dado à dificuldade de coopera-ção com familiares, o que causa dor aos profissi-onais na medida em que impede ou dificulta oprogresso do tratamento, por conseguinte, pro-vocando uma sensação de inutilidade das açõesimplementadas. Quanto a esse aspecto, sugeriu-se o desenvolvimento de um projeto que incenti-ve e apoie mudanças jurídicas no sentido de darmaior autonomia aos pacientes para decidiremsobre a utilização do benefício financeiro, quetende a ficar com familiares que não o assistem.No segundo encontro realizado, ponderou-se quea forma de organização do trabalho nos Capsnão é favorável para um adequado acompanha-mento familiar: seria necessário um programainstitucional que estabelecesse a divisão de res-ponsabilidades de forma a integrar à rotina avisita domiciliar, sem que se prejudiquem os ser-viços de atendimento à demanda e à emergência.

Todos os participantes afirmam trabalhar naatividade por inclinação e livre escolha, mostran-do-se confortáveis quanto a seu papel profissio-nal, embora relatem formação deficiente, com-pensada pela rica experiência adquirida no dia adia. Narraram-se episódios geradores de desgas-te e sofrimento – a maioria situada na época emque eles começaram a trabalhar no Caps – e cujaangústia foi superada sem ajuda terapêutica, pois

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afirmam que a classe não possui condições finan-ceiras para tal. Essas situações foram considera-das determinantes de amadurecimento pessoal;outras fazem parte da rotina, e foram descritoscasos que geraram sensibilização ao trabalhador.Fazem-se pertinentes os temas do excesso de car-ga horária a que estão sujeitos e do salário incon-dizente com a atuação profissional: cumpremuma jornada de trinta e seis horas semanais, en-quanto a dos graduados é de vinte a trinta horas.

As narrativas também tornaram públicas for-mas afirmativas postas em prática no manejo dasexperiências. Apesar de o trabalho em Saúde Men-tal ser considerado maior do que em outras áre-as, é visto como uma lição de vida. Os profissio-nais contam que nele aprenderam a valorizar aspequenas coisas e a mudar seus valores, além depreferirem o Caps ao hospital. Quanto a isso, éde extrema importância esclarecer que conside-ram os problemas de trabalho nos Caps menosacentuados do que em outros locais nos quais játrabalharam – centros de saúde, hospitais gerais,hospitais psiquiátricos. Reconhecem que o traba-lho é exercido de maneira muito mais horizontalno Caps. Exceção é dada às questões do melhoracesso aos familiares e domicílios, cujo progressopercebem maior nos centros de saúde pela im-plantação da Estratégia Saúde da Família. No en-tanto, pelo avanço que os Caps representam paraa atenção, creem que muitos dos entraves poderi-am ser superados. Afirmam que nas suas práti-cas no Caps sofrem, sentem tristeza, angústia,impotência; mas também amadurecem, apren-dem que não podem fazer tudo, e descobrem quehá limites para o alcance de suas intervenções.

Discussão

Sobre os efeitos do método

Dos sujeitos da pesquisaà intersubjetividadeA escolha das experiências narradas as evi-

denciou como significativas para o grupo, e asrepercussões de sua exposição durante os gru-pos focais não se descolaram do sujeito que asvivenciou, obrigado que foi a refletir sobre elas.Também a fixação pela escrita operada permitiudestacar os principais núcleos argumentais sus-tentados durante a discussão e não a mera re-produção das fitas gravadas. Isto, além de darleveza ao encontro, teve efeitos de narrativida-de19, produzido na apresentação de uma históriaque “se deixa seguir” na construção narrativa17.

Foi notável o efeito causado pelo confrontoentre os grupos e seu discurso transformado emnarrativa. A leitura da primeira narrativa provo-cou a reconstrução de muitos diálogos no se-gundo encontro: as palavras tornaram-se porvezes mais suaves, embora as ideias quase sem-pre se mantivessem; desabafos transformaram-se em análise de problemas e sugestões para quea realidade pudesse ser modificada. Nesse per-curso, os agentes perceberam a possibilidade dese deslocar da posição de queixosos à de agentesativos na proposição de mudanças, um ganhosecundário não pouco interessante desse tipo depesquisa20.

Do subjetivo ao objeto do planejamentoAs narrativas de fenômenos vivenciados não

são, todavia, isentas, pois das inúmeras experi-ências diárias algumas foram escolhidas pelossujeitos da pesquisa para serem narradas. Porsua vez, estava também presente o pesquisador,levando consigo sua visão e a discussão que foipor ele provocada e moderada. Assim, o ato decontar uma história torna-se também, e sobre-tudo, a eleição de pontos de vista a serem eviden-ciados, por estarem enovelados à história priori-zada. Surge com isso uma travessia da existênciainexorável à outra, suscetível de intervenção.

A reflexão sobre a ação narrada é mediadapelo conhecimento de efeitos da prática em situa-ções análogas e, portanto, já não pode ser impar-cial, torna-se encarnada. Somam-se estratégiasconstruídas a partir de eventos anteriores, e o ní-vel de reflexão e consequentemente a amplitudeda abordagem tendem a se elevar – assim como oconjunto dos conhecimentos disponíveis para quese planejem formas de agir em cada conjuntura.Dessa forma, o resultado é o apontamento desaídas ou a compreensão da possibilidade de bus-cá-las. À situação impõem-se novas verdades emétodos. “A narrativa torna-se ela mesma ação”21,na medida em que a pesquisa torna-se tambémtexto passível de ser compartilhado17.

Sobre as relações dos achadoscom a conjuntura das políticas públicas

A dificuldade decorrente da hierarquiamostrou-se o principal obstáculo para que po-tenciais contribuições de trabalhadores da mes-ma equipe pudessem ser aproveitadas de formaútil na solução dos problemas. Há necessidadede incentivar maior escuta entre os profissionaise favorecer o respeito às opiniões de auxiliares etécnicos de enfermagem sobre seu campo, ainda

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que permaneçam questões cuja decisão final cai-ba a profissionais de nível superior – por ser esteseu núcleo de trabalho. A queixa dos auxiliares etécnicos reflete a dimensão da divisão social dotrabalho e ecoa a imensa desigualdade brasileira,cuja pirâmide salarial não tem par nos sistemasde saúde do mundo desenvolvido. São esses téc-nicos os mesmos que moram no bairro, ao qualos outros profissionais só vão para trabalhar.Eles se sentem discriminados negativamente pelafalta de estudo universitário e apontam a nãovalorização da experiência pela equipe. Esses acha-dos salientam a importância de estudos que deemvoz aos próprios trabalhadores de saúde22 e dainstituição de modalidades democráticas e parti-cipativas de gestão como recurso promotor desaúde mental nas equipes de nível médio5.

Levanta-se também a problemática da res-ponsabilidade pelo plantão noturno como algoque precisa ser reavaliado, tanto porque a quali-dade da assistência nesse período mostra-se com-prometida quanto pelo fato de que, em circuns-tâncias de emergência, auxiliares e técnicos sãochamados a executar procedimentos que eles con-sideram fugir de sua capacitação – evidencian-do-se a carência de uma contratação mínimapara que seja garantido o atendimento integralem todos os turnos. Essa característica escanca-ra uma das fragilidades do sistema de saúde bra-sileiro: a de travestir de interdisciplinaridade e dedesmedicalização o “abaratamento” dos serviços,como se o cuidado de pacientes graves pudesseprescindir de contar com os recursos qualifica-dos necessários.

Ademais, o dilema acerca de se o paciente emleito e sob a responsabilidade da equipe deve per-manecer no serviço ou sair, acompanhado ou nãode um funcionário, está no âmago da concepçãode Caps. O serviço substitutivo prevê o uso deleito noturno como recurso que não se equiparaà internação integral, podendo ser utilizado aindaque o paciente não se encontre em risco, comorecurso terapêutico para determinados casos.Quanto a isso, ressalta-se que cada paciente pre-cisa ser tomado em sua individualidade e de for-ma integrada pela equipe. Significa, portanto, queum profissional universitário pode em determi-nadas circunstâncias autorizar a saída do pacien-te; contudo, deveria fazê-lo considerando sua si-tuação – se foi medicado, quão grande pode ser orisco de deixá-lo sair –, e para tal precisará aomenos informar-se com a equipe de enfermagema respeito dos medicamentos que foram admi-nistrados. Entretanto, vale destacar que esse equí-voco de identificar leito-noite com a internação

clássica foi uma exceção no discurso dos auxilia-res e técnicos, que se mostraram bastante engaja-dos aos preceitos da Reforma Psiquiátrica.

O modelo de trabalho em centros de saúdeque implantaram a Estratégia Saúde da Família éuma deixa para se constatar que, apesar da de-manda e do atendimento dispensado às emer-gências, é possível que se realizem visitas domici-liares de forma sistemática. Os técnicos avaliamque o tratamento psiquiátrico de pacientes comapoio familiar evolui de forma consideravelmentemelhor; no entanto, a dificuldade de trazer o fa-miliar para o Caps é grande. Salientam-se assimas vantagens de os trabalhadores estarem inseri-dos na rede social e familiar para que esses laçossejam resgatados. Com relação à estrutura físicado Caps, um equipamento que tem por objetivoa reinserção social deve caracterizar-se como umaparte habitual da sociedade, de forma que nãoseria recomendada a retirada dos objetos de vi-dro e sim sua substituição por vidros tempera-dos, por exemplo.

Merece destaque a necessidade de que auxili-ares e técnicos recebam melhores salários, alémde que seja criado algum tipo de auxílio instituci-onal no sentido de se amenizarem as dificulda-des subjetivas próprias do trabalho em SaúdeMental. Assim, chama a atenção eles não se refe-rirem à supervisão clínico-institucional existenteno Caps no momento do estudo.

Enfim – porém não menos importante –, tor-na-se urgente refletir sobre a forma como o avan-ço da Reforma Psiquiátrica tem sido avaliado, asaber, medindo sua efetividade por meio da quan-tificação do número de internações ou de enca-minhamentos para serviços de saúde externos.Cumpre lembrar que reduzir esses números àcusta de se abdicar de um tratamento eficaz ape-nas disfarçaria limites clínicos, embaçando os re-ais méritos da reforma. Parece essencial que seestabeleçam novos parâmetros e/ou indicadoresque reflitam a evolução da Reforma sem que oprocesso avaliativo se converta em empecilhopara seu progresso23-25. Apontar as dificuldadesdo grupo de trabalhadores de nível médio impli-ca apostar que seu conhecimento facilitará suaresolução.

Retoma-se aqui o fato de o campo ter sidorealizado em apenas um Caps, de forma que éinegável que haja limites. No entanto, prefere-sedenominar “limite” em vez de “viés” à constata-ção de que talvez haja fatores diferentes – e atéimportantes – nas “histórias não (ainda) narra-das”17 dos profissionais de outros Caps. A dife-rença de terminologia justifica-se pelo fato de que

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se é verdade que muito ainda poderia ser dito, étambém incontestável que as questões valoriza-das neste trabalho – por apontarem problemassuperáveis pelo planejamento – servem comonorte para se aprimorarem os equipamentos deforma geral e que nossa abordagem qualitativamostrou-se potente para aprimorar a nossacompreensão do processo subjetivo dos técnicosde enfermagem.

À guisa de conclusão

Os Caps do tipo III constituem-se equipamen-tos de saúde ímpares e requerem um planeja-mento estrutural condizente com sua complexi-dade. Devem ser tomados como pré-requisitosquando de sua abertura:

– Organização institucional que favoreça ho-rizontalidade de poder;

– Distribuição de tarefas que propicie inte-gração da equipe;

– Discernimento da pertença do equipamen-to Caps à rede – cuja acepção da palavra já deve-ria pressupor-lhe um caráter interligado;

– Composição da equipe profissional de for-ma que efetivamente se realize assistência inte-gral em todos os turnos;

– Estrutura física apropriada para que seminimizem riscos;

– Suporte clínico para seus profissionais, naforma de supervisões clínico-institucionais ououtras;

– Salários adequados.Os dois primeiros critérios e, em parte, o ter-

ceiro resvalam ainda na concepção do pessoalespecializado acerca do núcleo de suas funções edependem, portanto, do quão disposto cada umestará para aceitar/desejar mudanças em nome

do desenvolvimento conjunto. Concernem, por-tanto, ao perfil do trabalhador a ser contratadoe ao modelo de sua formação profissional. Reco-menda-se que se priorizem funcionários com aclareza da extensão de suas responsabilidadestécnicas. Torna-se importante também, então,propiciar instâncias em que um processo forma-tivo contínuo se apoie nas experiências cotidia-nas e nas quais se crie a confiança necessária paraque sugestões pertinentes sejam consideradas. Osdispositivos de gestão participativa e de supervi-são clínico-institucional poderiam ser conside-rados.

Conclui-se acertada a escolha pelos sujeitosda pesquisa, já que as questões foram aborda-das de forma original e diferenciada pela catego-ria de profissionais. As cerca de quatro horas dediscussões gravadas, 51 páginas transcritas eposteriormente compiladas em nove páginas denarrativas evidenciaram, de forma inequívoca,que a grande maioria do que foi dito não o seriase estivessem presentes outros atores durante assessões. Além disso, a liberdade da forma comoforam abordados os problemas estaria compro-metida de forma integral.

Os relatos trazem à tona aspectos individuaisdo relacionamento humano, cuja singularidadenão exclui questões universais do fenômeno so-cial envolvido na relação subjacente da assistên-cia nos Caps, como já constataram outras inves-tigações22. Assim também, entraves emblemáti-cos do SUS e da Reforma Psiquiátrica podem serreconhecidos – a sensação de exclusão, a marca-da desigualdade salarial etc. As narrativas consti-tuíram a vinda à linguagem de uma porção demundo composta por práticas “não (ainda) nar-radas”, no dizer de Ricoeur, e a pesquisa tornou-se dispositivo para destacar vozes que nem sem-pre são ouvidas.

Colaboradores

RO Campos e IP Baccari participaram igualmen-te de todas as etapas da elaboração do artigo.

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Artigo apresentado em 15/10/2008Aprovado em 24/06/2009Versão final apresentada em 25/07/2009

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