a interioridade humana - fr. almir ribeiro

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1 A INTERIORIDADE HUMANA NA PERSPECTIVA DA ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA Frei Jos Carlos Corra Pedroso OFMCap “ por isso que eu dobro os joelhos diante do Pai, de quem recebe o nome toda famlia, no cu e na terra. Que ele se digne, segundo a riqueza de sua glria, fortalecer a todos vocs no seu Esprito, para que o homem interior de cada um se fortifique. Que ele faa Cristo habitar no corao de vocs pela f. Enraizados e alicerados no amor, vocs se tornaro capazes de compreender, com todos os cristos, qual a largura e o comprimento, a altura e a profundidade, de conhecer o amor de Cristo, que supera qualquer conhecimento, para que vocs fiquem repletos de toda plenitude de Deus” (Ef 3,14-19). 1. O que é interioridade? A palavra interioridade tem sido usada com muita freqncia. Pediram-me para falar sobre o mundo que ela esconde. Que ser que podemos entender por interioridade? Em primeiro lugar, creio que interioridade uma realidade que todo mundo sabe que existe, embora quase ningum consiga dizer coisas muito concretas sobre ela. 1. Em sentido popular: Quando algum usa a expresso “l dentro do meu corao”, “no fundo do meu corao”, est se referindo a algo certamente muito real, experimentado como “interior” prpria pessoa, mas que no d para transmitir completamente para os outros. Alis, sabemos que no daria para explicar cabalmente nem para ns mesmos o que que temos “l dentro”, “no corao”. Tambm quando usamos a expresso “Ningum me compreende” parece que nos referimos a algo interior, que os outros no conseguem enxergar, mas que nem ns mesmos conseguimos deixar claro. Se no, seria s falar. Muitas vezes, melhor ficar simplesmente com a concluso, um tanto enigmtica: “Quem v cara no v corao”. Muitas vezes, reconhecemos que os outros que esto em alguma interioridade, em algo que no d para perceber por fora: “ um sonhador”, “vive no mundo da lua”, “tem uma fantasia muito frtil”. Lembrando a imagem de “O Pequeno Prncipe”, de Saint-xupery, algum pode se referir ao seu “planeta”, um mundo todo seu, que s ele conhece bem. Mas tambm pode simplesmente comunicar que no sabe o que tem l dentro: “sinto um vazio na minha alma”. Talvez pudssemos resumir: Interioridade tudo que sentimos como muito real e concreto em nossa vida mas que no conseguimos tomar visvel com nitidez, nem para os outros, nem para ns mesmos. Ento, est “l dentro”. Mas o interessante que tudo isso que est l dentro parece to importante, ou at mais importante do que tudo que vemos “aqui fora”. A Interioridade o mistrio de ns mesmos, de cada um de ns mesmos. Um mistrio que est to perto como uma floresta virgem que comeasse no fundo de nosso quintal, mas que ns ainda no exploramos. Tanto a psicologia quanto a espiritualidade dedicam-se ao mundo interior. Ns vamos tentar consider-la na perspectiva da espiritualidade franciscana. 2. Interioridade e Mente J em sua primeira orao – a que rezou diante do Crucifixo de So Damio – So Francisco nos deixou uma interessante abertura para o mundo interior. Pediu a Deus: “Iluminai as trevas do meu corao!”. Com a nossa mentalidade de hoje, provavelmente pediramos para iluminar as trevas da mente, no do corao. Mas poderamos dizer que, nessa orao e em toda sua vida, So Francisco pediu a luz de Deus para sua interioridade.

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A INTERIORIDADE HUMANANA PERSPECTIVA

DA ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA

Frei Jos� Carlos Corr�a Pedroso OFMCap

“� por isso que eu dobro os joelhos diante do Pai, de quem recebe o nome toda fam�lia, no c�u e na terra. Que ele se digne, segundo a riqueza de sua gl�ria, fortalecer a todos voc�s no seu Esp�rito, para que o homem interior de cada um se fortifique. Que ele fa�a Cristo habitar no cora��o de voc�s pela f�. Enraizados e alicer�ados no amor, voc�s se tornar�o capazes de compreender, com todos os crist�os, qual � a largura e o comprimento, a altura e a profundidade, de conhecer o amor de Cristo, que supera qualquer conhecimento, para que voc�s fiquem repletos de toda plenitude de Deus” (Ef 3,14-19).

1. O que é interioridade?

A palavra interioridade tem sido usada com muita freq��ncia. Pediram-me para falar sobre o mundo que ela esconde. Que ser� que podemos entender por interioridade?

Em primeiro lugar, creio que interioridade � uma realidade que todo mundo sabe que existe, embora quase ningu�m consiga dizer coisas muito concretas sobre ela.

1. Em sentido popular:

Quando algu�m usa a express�o “l� dentro do meu cora��o”, “no fundo do meu cora��o”, est� se referindo a algo certamente muito real, experimentado como “interior” � pr�pria pessoa, mas que n�o d� para transmitir completamente para os outros. Ali�s, sabemos que n�o daria para explicar cabalmente nem para n�s mesmos o que � que temos “l� dentro”, “no cora��o”.

Tamb�m quando usamos a express�o “Ningu�m me compreende” parece que nos referimos a algo interior, que os outros n�o conseguem enxergar, mas que nem n�s mesmos conseguimos deixar claro. Se n�o, seria s� falar. Muitas vezes, � melhor ficar simplesmente com a conclus�o, um tanto enigm�tica: “Quem v� cara n�o v� cora��o”.

Muitas vezes, reconhecemos que os outros � que est�o em alguma interioridade, em algo que n�o d� para perceber por fora: “� um sonhador”, “vive no mundo da lua”, “tem uma fantasia muito f�rtil”.

Lembrando a imagem de “O Pequeno Pr�ncipe”, de Saint-�xupery, algu�m pode se referir ao seu “planeta”, um mundo todo seu, que s� ele conhece bem. Mas tamb�m pode simplesmente comunicar que n�o sabe o que tem l� dentro: “sinto um vazio na minha alma”.

Talvez pud�ssemos resumir: Interioridade � tudo que sentimos como muito real e concreto em nossa vida mas que n�o conseguimos tomar vis�vel com nitidez, nem para os outros, nem para n�s mesmos. Ent�o, est� “l� dentro”. Mas o interessante � que tudo isso que est� l� dentro parece t�o importante, ou at� mais importante do que tudo que vemos “aqui fora”.

A Interioridade � o mist�rio de n�s mesmos, de cada um de n�s mesmos. Um mist�rio que est� t�o perto como uma floresta virgem que come�asse no fundo de nosso quintal, mas que n�s ainda n�oexploramos.

Tanto a psicologia quanto a espiritualidade dedicam-se ao mundo interior. N�s vamos tentar consider�-la na perspectiva da espiritualidade franciscana.

2. Interioridade e Mente

J� em sua primeira ora��o – a que rezou diante do Crucifixo de S�o Dami�o – S�o Francisco nos deixou uma interessante abertura para o mundo interior. Pediu a Deus: “Iluminai as trevas do meu cora��o!”. Com a nossa mentalidade de hoje, provavelmente pedir�amos para iluminar as trevas da mente, n�o do cora��o. Mas poder�amos dizer que, nessa ora��o e em toda sua vida, S�o Francisco pediu a luz de Deus para sua interioridade.

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A Interioridade n�o � a Mente: na mente temos a capacidade de pensar, de lembrar, de reconhecer. A Interioridade � muito mais do que isso. Na interioridade est� a nossa maior riqueza espiritual (mais que na mente): a mente descobre fora; a interioridade descobre dentro.

O que temos na Mente � tudo consciente (ou f�cil de ser trazido ao consciente), e pode ser comparado com um “c�rebro eletr�nico”, como chamavam inicialmente os computadores. Por mais vasta que seja a mente, daria para fazer uma resenha de tudo que ela cont�m. Poder�amos distribu�-la em arquivos. Talvez seja poss�vel localizar a Mente no c�rebro, como j� se tentou. A Mente pode ativar a mem�ria, mais ou menos como um computador.

A Interioridade, em vez, avan�a pelo mundo do Inconsciente. N�o sabemos onde � a “sede” doInconsciente. Se a mente aponta para a exist�ncia de uma alma, de um esp�rito no ser humano, a interioridade parece pressup�-la. Talvez seja por isso que o mundo ocidental moderno tem tanta dificuldade com a Interioridade.

A mente faz s�nteses e “conclui”, isto �, fecha. A Interioridade descobre s�mbolos e lan�a pontes, isto �, abre, abre cada vez mais para o mist�rio.

A Mente � capaz de pensar sobre Deus. A Interioridade se encontra com Ele: sente-o, comunica-se com Ele mesmo sem palavras e sem pensamentos.

Precisamos tomar consci�ncia do que se passa na Inconsciente. Talvez seja o �nico meio de nos comunicarmos com a Interioridade. Todos nos damos conta de que, de dentro de n�s, procedem coisas que foram experimentadas fora.

A Mente parece poder ser mais desenvolvida pelos que estudam e refletem. A Interioridade pode ser bem desenvolvida mesmo em pessoas analfabetas. Entrar pelo mundo do mist�rio n�o �, exatamente, refletir, pensar. No fundo, entrar pelo mundo do mist�rio � contemplar.

Desde os tempos mais antigos, a Interioridade foi comparada com o oceano, ou com as �guas: � um mundo sem fim, do qual podem sair todas as surpresas.

Quando falamos em espiritualidade, trabalhamos no campo da Interioridade. Se as nossas ora��es n�o penetram na Interioridade, ficam no campo da Mente: palavras, c�nticos e reflex�es. Nesse sentido, muita ora��o n�o passa de um condicionamento da mente.

Enquanto a riqueza da mente s�o suas id�ias e a capacidade de relacion�-las e tirar conclus�es, a ri-queza da Interioridade s�o os s�mbolos e sua capacidade de abrir para o mundo do mist�rio.

Para a mente, os mist�rios s�o um desafio que imp�e limites. Para a Interioridade, os mist�rios s�o desafios que ampliam cada vez mais o seu campo, que parece infinito.

Para a Mente, Deus � uma id�ia, uma abstra��o, uma conclus�o, talvez. Para a Interioridade, Deus � a porta mais concreta e vivenciada da Infinitude. Uma coisa � dizer que, em Deus, tudo acaba; outra, bem diferente, � dizer que, em Deus, tudo come�a.

A Mente proporciona a possibilidade de entrar em contato com outros seres inteligentes. A Interioridade nos p�e em comunh�o com todos os seres, mesmo com os animais e as pedras. Al�m disso, entra no mundo do mist�rio coletivo (inconsciente coletivo) e, mesmo mergulhando na interioridade individual, a pessoa afunda e emerge no mundo da fraternidade universal.

Na espiritualidade oriental, o uso lit�rgico dos �cones quer ultrapassar o inconsciente pessoal e entrar no inconsciente coletivo. Os artistas trabalham com o mundo do inconsciente coletivo e, talvez, pseudo-artistas sejam justamente os que nunca ultrapassam as barreiras do inconsciente pessoal. Mas, em geral, o que faz grandes e imortais os artistas, � sua capacidade de se relacionar com a Interioridade coletiva e saber transmitir isso de alguma forma �s outras pessoas. Eu diria que os santos s�o os artistas de Deus.

Talvez possamos falar em interioridade pessoal e interioridade coletiva. No sentido seguinte: eu entro dentro de mim e chego ao mundo do “dentro-de-tudo”. Quando entramos no mundo interior, descobrimos muitas coisas que j� foram experimentadas e vividas por n�s. Mas tamb�m encontramos novidades surpreendentes. E, quando as aprofundamos, percebemos que s�o “novidades” que j� conhecidas por outros, que j� foram abordadas e at� desenvolvidas por gera��es passadas do nosso povo e mesmo de

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povos muito diferentes.

Talvez desse para estudar, a partir desse ponto de vista, como a interioridade humana coletiva est� progredindo: embora algumas pessoas e alguns grupos sempre estejam em um vai-e-vem, as culturas parece que v�o caminhando para um ponto comum, ou, pelo menos, para alguns pontos comuns. � bom notar que isso � uma realidade no mundo exterior, mas tamb�m pode ser observado no mundo interior. Pode ser que algumas aproxima��es e assimila��es se d�em a partir do mundo exterior, porque uma cultura passou a conhecer outras; mas parece que tamb�m d� para observar que o contr�rio tamb�m acontece – porque as coisas caminham no mundo interior, acabam produzindo aproxima��es no mundo exterior.

2. A Interioridade na Bíblia e nas Fontes

A B�blia usa bastante a express�o e o conceito de interioridade. Damos alguns exemplos.

S�o Jo�o (Jo 2,25) diz que Jesus “n�o precisava de informa��es a respeito de ningu�m, porque conhecia o homem por dentro”. O “por dentro” da tradu��o da B�blia pastoral pode n�o estar em outras tradu��es, mas � muito fiel ao texto grego (eghínosken ti em em tô antrôpo).

Ali�s, aos fariseus Jesus disse: “O reino de Deus est� dentro de voc�s” (Lc 17, 20-21). � bom lembrar que s� muito recentemente come�aram a aparecer as tradu��es do tipo “O reino de Deus est� no meio de voc�s”, embora as duas vers�es caibam bem no original grego: Endós hymôn éstin. A B�blia de Jerusal�m, em nota, quer argumentar que o Reino de Deus n�o poderia estar dentro dos fariseus, mas eulembro que Jesus tamb�m disse a esses personagens: “Voc�s n�o entram no reino de Deus nem deixam os outros entrar”. Justamente porque eram mascarados, hip�critas e sepulcros caiados. Os publicanos e as prostitutas entravam mais facilmente do que eles.

Jesus tamb�m disse: “Onde est� o seu tesouro, a� tamb�m est� o seu cora��o”. Juntando isso ao tesouro que o homem encontra no campo e ao tesouro de onde o pai de fam�lia tira coisas novas e velhas, parece bem claro que Jesus est� se referindo � nossa “interioridade”.

Tamb�m � muito claro que Jesus fala em par�bolas porque se refere a uma realidade invis�vel e interior, que exige essa linguagem simb�lica para poder penetrar no mundo do mist�rio. Ele estava pedindo uma ades�o pessoal, que levaria as pessoas a descobrirem a vida interior: “Quem cr� em mim... do seu interior (ek tês koilías autou) correr�o rios de �gua viva” (Jo 7,38).

A Ep�stola aos Hebreus haveria de mostrar que “A palavra de Deus � viva, eficaz, e mais cortante do que uma espada de dois gumes. Penetra at� a divis�o da alma e do esp�rito...” (Hb 4,12).

S�o Paulo sentiu a for�a dessa penetra��o de Deus e disse aos romanos: “No meu �ntimo, eu amo a lei de Deus; mas percebo em meus membros outra lei que luta contra a lei de minha raz�o e que me torna escravo da lei do pecado que est� em meus membros” (Ro 7,22-23).

E haveria de ser ainda mais incisivo ao escrever aos g�latas: “Por isso � que lhes digo: vivam segundo Esp�rito, e assim n�o far�o mais o que os instintos ego�stas desejam. Porque os instintos ego�stas (a carne) t�m desejos que est�o contra o Esp�rito, e o Esp�rito contra os instintos ego�stas; os dois est�o em conflito, de modo que voc�s n�o fazem o que querem. Mas, se forem conduzidos pelo Esp�rito, voc�s n�o estar�o mais submetidos � Lei. Al�m disso, as obras dos instintos ego�stas s�o bem conhecidas: fornica��o, impureza, libertinagem, idolatria, feiti�aria, �dio, disc�rdia, ci�me, ira, rivalidade, divis�o, sectarismo, inveja, bebedeira, orgias e outras coisas semelhantes... Os que pertencem a Cristo crucificaram os instintos ego�stas junto com suas paix�es e desejos. Se vivemos pelo Esp�rito, caminhemos tamb�m sob o impulso do Esp�rito” (Gl 5,16-25).

O “homem espiritual” e o “homem interior” parecem ser exatamente a mesma coisa: os que se entregaram ao Deus invis�vel. Cultivar a interioridade � o mesmo que cultivar a espiritualidade. N�o se trata de uma fuga para um mundo descomprometido com a realidade exterior, mas de uma ilumina��o das realidades pela presen�a de Deus.

São Francisco e Santa Clara

S�o Francisco sempre se preocupou com a interioridade e, baseando-se na oposi��o carne-esp�rito de S�o Paulo, escreveu na Regra n�o bulada: “... pois o esp�rito da carne quer e se esfor�a muito por ter

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palavras, mas pouco pelas obras, e busca n�o a religi�o e a santidade no esp�rito interior, mas quer e deseja ter religi�o e santidade que apare�am fora para os homens” (RNB 17,11-12)

Ele vivia como um contemplativo, mesmo quando percorria o mundo em prega��o, e at� escreveu: “... onde quer que estejamos ou por onde andarmos, levamos conosco a nossa cela, que � o irm�o corpo: aalma � o eremita, que mora l� dentro para orar e contemplar o Senhor” (LP 80, cfr. EP 65).

Como vimos, desde a sua primeira ora��o por n�s conhecida, a que fez diante do Crucifixo de S�o Dami�o, ele j� tinha pedido: “� glorioso Deus Alt�ssimo, iluminai as trevas do meu cora��o...”. A express�o cora��o d� uma vis�o muito mais ampla de toda a interioridade.

Quase no final de sua vida, aconselhou �s clarissas: “...n�o olheis a vida de fora, porque a do esp�rito � melhor... (Audite Poverelle, 3 FC 223).

Mas uma de suas express�es mais caracter�sticas est� no final do Testamento: “E eu, Frei Francisco, o menor de vossos servos, vos confirmo quanto posso, interior e exteriormente, esta sant�ssima b�n��o”(Testamento, 41).

Para entender essa b�n��o intus et foris, por dentro e por fora, interior e exteriormente, � bom lembrar que ele vivia intensamente a palavra de Deus descoberta na liturgia. Podemos recordar pelo menos dois exemplos lit�rgicos que j� eram usados no seu tempo: a ora��o no dia de Nossa Senhora da Candel�ria e a ora��o na oitava da Epifania (hoje na festa do Batismo do Senhor).

Na ora��o da Candel�ria, o pedido �: “... quae extrinsecus annua tribuis devotione venerari, intrinsecus assequi gratiae tuae luce concede”, isto �, que a luz de Cristo, que comemoramos externamente nesta festa anual, seja-nos concedida interiormente pela luz da gra�a.

Na oitava da Epifania, a ora��o pede: “Como conhecemos o Unig�nito em sua carne por fora (foris), mere�amos ser reformados por dentro (intus)”.

Essa b�n��o nos parecer� muito natural se nos lembrarmos que, na Par�frase ao Pai-nosso, Francisco diz que o c�u � dentro de n�s e se tivermos bem presente a sua proposta na ora��o que conclui a carta a toda a Ordem: pede que sejamos “interiormente purificados, interiormente iluminados e abrasados”. Saudando as Virtudes, ele disse que homem algum pode possu�-las se n�o morrer primeiro: interiormente, � claro.

Santa Clara n�o fica atr�s. Lembra que Jesus, como o tesouro descoberto no campo, est� “escondido no campo dos cora��es humanos” (3CtIn 7).

Lembra a In�s de Praga que” Aquele que o universo n�o pode conter tem sua mans�o na alma do fiel”(cf. 3CtIn 22). Ela chega a um ponto alto quando prop�e que In�s de Praga olhe todos os dias no espelho que � Jesus Cristo, “para enfeitar-se toda, interior e exteriormente”... (4CtIn 15-17).

Mas eu estou citando estas poucas passagens s� como introdu��o. Mais adiante, vamos ver as propostas metodol�gicas de Francisco e Clara para cultivar o mundo da interioridade.

E a hist�ria franciscana mostra que nossa imensa fam�lia sempre seguiu os passos de Francisco e Clara e cultivou a interioridade.

3. A linguagem da Inferioridade

Para lidarmos com a interioridade, um requisito fundamental � compreendermos que ela fala outra linguagem. Vamos nos explicar.

N�s estamos habituados, em nossa cultura ocidental pelo menos, a uma linguagem l�gica. Buscamos sempre definir bem todos os nossos conceitos. A interioridade n�o pode nem quer definir: refere-se ao mundo em cont�nua descoberta do mist�rio e usa a linguagem simb�lica.

Definir � marcar os fins, dizendo onde uma coisa come�a e onde acaba. Quanto mais exatos formos em determinar come�o e fim, mais cient�ficos seremos. Mas, quando a realidade que tratamos � Deus, � o amor... e outros mundos sem medida, n�s n�o podemos medir nem definir. S� avan�aremos se estabelecermos pontes por compara��o: � a linguagem simb�lica, a mesma que Jesus usou nas par�bolas, a mesma que Francisco usou em seus escritos e que nos � at� bastante familiar pelo menos. quando nos

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relacionamos com as crian�as e com os artistas.

Para ouvir Deus e at� mesmo para expressar o que sabemos de Deus, n�o basta nossa linguagem l�gica habitual. Essa � a linguagem da ci�ncia e n�s chegamos a pensar que seja a linguagem “popular” e “normal”. Mas n�o �. A linguagem l�gica � muito clara, muito definida, muito certa e, por isso, embora tenha seu valor paras as coisas exatas com que lidamos, n�o serve para falar de Deus, nem com Deus, nem a respeito das coisas mais profundas da vida, como o amor e o medo, por exemplo. Para isso, precisamos da linguagem simb�lica, que usa compara��es - como Jesus nas par�bolas - e que nos leva a ultrapassar a toda hora a barreira de um mundo que � real, mas n�o � o mundo f�sico nem o da reflex�o.

A linguagem l�gica vai na linha da cabe�a: define, mede, calcula, limita, fecha – uma coisa nunca pode ser e n�o ser ao mesmo tempo. A linguagem simb�lica vai na linha do cora��o; insinua, abre, lan�a pontes. Tudo pode ser. A linguagem l�gica focaliza, conclui, vence, diz qual � o g�nero pr�ximo e a diferen�a espec�fica: � solar e masculina. A linguagem simb�lica � difusa: prop�e, entrega-se, une dois pontos quaisquer para comparar: � lunar e feminina. Na linguagem l�gica, cada coisa � tirada do leito confuso da vida, isolada, esclarecida, identificada: o operador trabalha como o mec�nico, com o motor parado. Na linguagem simb�lica, as coisas s�o deixadas na vida, misturadas, vivas, latejantes, implica das umas com as outras quem a usa trabalha como o cirurgi�o; com o organismo vivo e funcionando. A linguagem l�gica colhe e seca a flor para classific�-la: � a linguagem das ci�ncias e da matem�tica, das conquistas planet�rias. A linguagem simb�lica relaciona-se com a flor viva, irm� das abelhas,transformando-se em fruto: � a linguagem do encontro, do envolvimento com a vida, da contempla��o. Na linguagem simb�lica, o exemplo � um caso definido: “O beija-flor � uma ave”. Na linguagem simb�lica, o exemplo � uma simples alus�o � vida: “O reino � como uma semente”.

Na vida de S�o Francisco, encontramos este trecho bem caracter�stico da necessidade de linguagem simb�lica: “... embora n�o pudesse calar por causa da grandeza do amor que lhe fora inspirado, era com cautela que comunicava alguma coisa, falando em par�bolas. Assim como falara ao amigo �ntimo de um tesouro escondido, aos outros procurava falar por analogias” (1Cel 7). Mas ele passou a vida toda mergulhado no mundo dos s�mbolos:

“Depois do Irm�o Fogo, amava de modo particular a �gua, porque simboliza a santa penit�ncia e as tribula��es pelas quais as almas enxovalhadas s�o purificadas e porque a primeira ablu��o da alma se faz com a �gua do batismo.

Quando lavava as m�os procurava um lugar apropriado de modo que a �gua que ca�sse n�o fosse calcada aos p�s. Quando andava por sobre pedras, fazia-o com grande rever�ncia e respeito por amor �quele que disse que era pedra. E quando recitava o Salmo: “Sobre o rochedo me ergueste...” fazia-o com grande respeito e devo��o, e dizia: “Sobre o rochedo debaixo de meus p�s tu me ergueste”.

E recomendava ao irm�o que cortava e preparava a lenha para o fogo que jamais abatesse a �rvore inteira, mas cortasse de maneira que lhe restasse sempre uma parte intata por amor daquele que quis realizar nossa salva��o sobre o lenho da cruz. Costumava dizer ao irm�o que tomava conta da horta que n�o ocupasse todo o terreno com legumes, mas reservasse uma parte para as �rvores que, em seu tempo, produzem nossas irm�s as flores, por amor para com aquele que disse: “a flor dos campos e os l�rios dos vales”.

Recomendava ainda ao jardineiro que reservasse sempre uma parte do jardim para as ervas odor�feras e plantas que produzem belas flores a fim de que, em seu tempo, elas convidassem ao louvor de Deus os homens que vissem tais ervas e flores. Pois toda criatura diz e proclama: “Deus me criou para ti, � homem!”. N�s que vivemos com ele vimo-lo rejubilar-se interior e exteriormente � vista de todas as criaturas. Era tal o seu amor por estas maravilhosas criaturas que, ao toc�-las ou v�-las, seu esp�rito parecia n�o mais pertencer � terra, mas ao c�u” (EP 118).

S�mbolo � uma palavra grega que fala da uni�o surpreendente de duas coisas que se ajustam como duas metades embora perten�am a mundos diferentes. Os romances gregos do per�odo alexandrino tinham hist�rias de medalh�es partidos e reunidos transformando o sentido de uma vida. Michel Foucauld fez um interessante estudo, a partir do mito de �dipo, sobre as m�ltiplas “metades” que podemos ir sempre percebendo nas coisas e nos abrem um universo de descobertas. E todos n�s sabemos que a grande for�a da nossa criatividade, da mais elevada poesia � mais corriqueira anedota, est� toda na descoberta desses dois lados de uma ponte que abre para um mundo inesperado, surpreendente, maravilhoso, ou alegre. S�podemos entender a avers�o de S�o Francisco pelo dinheiro, sua proibi��o de andar a cavalo, seu di�logo com as est�tuas de neve, o ritual com que fez a acolhida de Clara... se percebermos como ele viveumergulhado no mundo dos s�mbolos, contemplando as realidades do esp�rito.

Esse � o mesmo mundo em que vivem as crian�as, os �ndios e grande parte dos povos n�o ocidentais.

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Neles, o exterior e o interior est�o muito pr�ximos e podem confundir-se a qualquer momento.

S� temos que tomar cuidado com o uso recente de uma multid�o de “s�mbolos” que, muitas vezes, n�o passam de sinais de mensagens muito claras do mesmo mundo exterior em que eles s�o usados.

Para termos um verdadeiro s�mbolo, duas coisas me parecem fundamentais. A primeira � queprovoque naturalmente um “Ah! Que surpresa!” A segunda � que toque o inconsciente coletivo, atingindo muitas pessoas. Se um s�mbolo atingir s� uma pessoa, ter� valor apenas para sua interioridade pessoal.

Mais algumas considera��es:

� interessante observarmos a pedagogia de Jesus no trabalho com a Interioridade. Jesus envolve as pessoas no seu tema do Reino com as par�bolas: ele sabe usar s�mbolos que penetram na interioridade do povo. Nas par�bolas, ele fala � interioridade para chegar ao intelecto. Talvez seja por isso que diz que alguns n�o entendem, que n�o lhes � dado entender.

Como � que n�s poder�amos descobrir, identificar e usar os s�mbolos interiores do povo para trabalhar com eles o Evangelho? Experimentar s�mbolos a partir de: ser amado, ser compreendido, vencer na vida, sarar, ser livre... Parece que precisar�amos de uma linguagem do tipo das par�bolas, que parte do simbolismo que a interioridade entende e enriquece o conhecimento do intelecto, aumentando o campo da consci�ncia.

� preciso envolver a exterioridade na interioridade. Fazer com que tudo que vivemos no exterior tenha uma profunda liga��o com o interior, at� mesmo descubra que suas verdadeiras explica��es est�o no interior.

Francisco e Clara faziam isso passando longas temporadas no maior recolhimento, isto �, foram se familiarizando com a sua pr�pria interioridade.

Este campo � vast�ssimo. Poder�amos considerar ainda a linguagem do mito, a linguagem da poesia e a linguagem dos sonhos. Como os limites deste trabalho s�o limitados, tamb�m vou me limitar simplesmente a dar uma pista inicial:

A linguagem do mito � a que idealiza e at� diviniza as for�as de toda a natureza, inclusive da interioridade, como se fossem “pessoas” poderosas agindo onde n�s n�o somos capazes de agir.

A linguagem da poesia tenta expressar coisas que s� os “olhos interiores” j� viram ou podem ver. � a linguagem de todas as artes. Quem n�o tem olhos interiores n�o consegue apreciar as obras de arte, que n�o falam ao intelecto propriamente dito: n�o s�o id�ias e racioc�nios. Por isso, muitas vezes os artistas s�o considerados “loucos” ou, pelo menos “estranhos”, “esquisitos”.

A linguagem dos sonhos. Quando a vig�lia diminui, percebemos que o inconsciente nunca p�ra de trabalhar: est� sempre formando os seus s�mbolos, porque est� sempre cruzando elementos l� de dentro. Nossa dificuldade para entend�-los pode vir pelo menos de duas coisas: a) n�o estamos acostumados � linguagem simb�lica, que eles usam; b) eles n�o ligam os opostos segundo as leis da causalidade mas segundo as leis (ou n�o-leis) da coincid�ncia. Al�m disso h� a nossa dificuldade para nos abrir para o mundo interior.

4. Francisco: a proposta dos “olhos do esp�rito”Destacando-se como um dos santos que mais cultivaram a interioridade na Hist�ria da Igreja, S�o

Francisco deixou-nos em sua vida um ensinamento forte, que podemos iluminar atrav�s de seus escritos. � a proposta de contemplar com os olhos do esp�rito.

A express�o est� na Primeira Admoestação, quando ele fala sobre a Eucaristia. Todo o texto est�permeado de abundantes express�es relativas � nossa capacidade de olhar e de enxergar, mas, quase no final, na �nica vez em todos os seus escritos em que ele usa a palavra contemplar, diz o seguinte: “E como eles (os ap�stolos) com a vis�o de sua carne s� viam a carne dele, mas criam que era Deus contemplando-o com os olhos do espírito, assim tamb�m n�s...

Os estudiosos acreditam que Francisco aprendeu os olhos do esp�rito com o Cristo de S�o Dami�o.

Toda a experi�ncia de Deus em Francisco (e Clara) � expressa atrav�s de imagens visuais. Conclus�o:

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o homem interior enxerga com os olhos o esp�rito. Olha para as mesmas coisas que todos olham, mas v� aspectos diferentes. Para Francisco, viver a interioridade � aprender a ver o mundo com os olhos de Jesus Cristo.

No concreto, parece que “ver o mundo com os olhos de Jesus Cristo” � um dar-se conta de que o amor de Deus est� presente em tudo que existe, � uma progressiva tomada de consci�ncia de, no amor de Deus, estamos mergulhados, existimos, e somos.

Evidentemente, quem percebe o amor de Deus nas coisas e nas pessoas tem uma vis�o muito diferente da que � vivida pela maioria do g�nero humano.

E h� um aspecto importante: Embora fa�a muitas compara��es entre o espiritual e o carnal, Francisco n�o estabelece um dualismo alma/corpo. Ele pensa � no espiritual do “Ruah”, o esp�rito de Deus que foi tomando conta e continua a tomar conta e deve continuar sempre a ir embebendo tudo, at� transformar tudo. Alma e corpo s�o espirituais e atravessados pelo esp�rito de Deus. A “carne” b�blica � o anti-esp�rito, ou o esp�rito do mundo contra Deus, o esp�rito do ego�smo.

Outra observa��o importante. � o “esp�rito da carne” que se apropria das coisas e das pessoas. Por isso, Francisco e Clara n�o querem ter nada de pr�prio. Se o momento presente testemunha uma polaridade entre “esp�rito” e “carne”, essa polaridade deve acabar: o esp�rito de Deus vai soprar em um s� sentido.

Outro ponto: Enxergar com os olhos do esp�rito � enxergar com os olhos de Jesus Cristo. Quanto mais eu enxergo com os olhos do esp�rito, mais estou me transformando em Cristo. Quanto mais me transformo em Cristo, mais uso os olhos do esp�rito. Por isso, tamb�m � fundamental na proposta franciscana, como vamos ver adiante, que vivamos um processo consciente e transforma��o constante em Jesus Cristo.

A cria��o art�stica pode ajudar a entender os “olhos o esp�rito”. Na arte, por exemplo, eu posso dar olhos a uma pedra. Imaginemos que uma pedra, de modo semelhante ao nosso, pudesse enxergar as outras coisas. Ela poderia participar do mundo das plantas e do mundo dos animais e at� do mundo dos homens interagindo com eles como eles interagem entre si.

Nesse caso, a pedra com olhos, que � mera cria��o minha, n�o interage no mundo exterior, mas s� no meu mundo interior. As pedras de todo o mundo continuam a ser o que sempre foram, mas eu nunca mais serei o mesmo depois de ter aprendido a interagir com as pedras... � um olhar com a mente, a alma e o cora��o: com a interioridade. � um olhar que transforma o contemplador

Qualquer artista � contemplador em certo sentido e por isso deixa aberta a interioridade e descobre “metades” com o mundo criativo do mist�rio. Mas o santo descobre “metades” com a luz do esp�rito, diretamente no mundo de Deus.

Quando tiverem tempo, reflitam, com a luz dos “olhos do esp�rito”, sobre estes dois epis�dios narrados a respeito de S�o Francisco: o dia em que fez Frei Masseu girar como um pi�o para descobrir o caminho que deviam seguir, e o dia em teria ensinado um novi�o a plantar couves com a raiz para cima. No primeiro caso, ele mostra que sabia viver no mundo da “n�o-causalidade”. No segundo, ensina que os que seguem o caminho evang�lico dos franciscanos v�o ter que enxergar muitas coisas no avesso da vis�o de “todo mundo”.

� contemplativo quem tem o inconsciente aberto para Deus, percebe “metades” de Deus em todas as coisas. Suas observa��es n�o podem ser provadas, porque n�o s�o “racionais”. Para comunica-las, n�o pode usar formula��es l�gicas: tem que usar os s�mbolos, que atuam sobre o inconsciente coletivo e atingem o inconsciente pessoal dos outros. Para o outro perceber, � preciso que o s�mbolo seja v�lido e que ele tamb�m tenha o inconsciente aberto.

Creio que est�o a� os “olhos do esp�rito”: perceber metades de Deus em todas as coisas, ou em muitas coisas ver que elas s�o “metades de Deus”, relacionadas com Deus. A pessoa enxerga com um inconsciente iluminado pela gra�a. Os que n�o enxergam, como os que n�o aceitaram a luz de Cristo (cfr. Evangelho de S�o Jo�o), seriam os trancados para o mundo interior por causa de seus interesses, principalmente possessivos, no mundo exterior.

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Um contemplativo como Francisco e Clara, enxerga Deus na Cruz. Isto �, nas duas travessas de tudo que parece se chocar sempre � capaz de ver duas “metades”. Uma “metade” � exterior e a outra sempre � “interior”.

Descobrir essas duas metades � descobrir a criatividade. Criar � fazer algo novo: fazemos algo novo quando juntamos duas coisas e tiramos uma terceira. Pode haver uma cria��o mental, que � produto da uni�o de duas id�ias abstratas. E pode haver uma cria��o simb�lica: produto da descoberta de que duas coisas – uma do exterior e outra do interior – podem constituir duas “metades” de algo novo e renovador. Na cria��o mental h� um jogo de causalidade; na cria��o simb�lica h� um jogo de coincid�ncias. A cria��o mental abre os campos da mente e “inventa”. A cria��o simb�lica abre os campos do mist�rio e est� sempre empreendendo uma busca que n�o vai cessar, vai passar para o infinito.

5. Clara: a proposta do “espelho”

Santa Clara tem uma experi�ncia espantosamente pr�xima da de S�o Francisco, mas � absolutamente original. Em vez dos “olhos do esp�rito”, ela tem a proposta do “espelho”.

O mundo crist�o sempre conheceu a figura paulina do espelho. Mais citada era a passagem da 1� Carta aos Cor�ntios: “Agora vemos como em espelho e de maneira confusa; mas depois veremos face a face. Agora o meu conhecimento � limitado, mas depois conhecerei como sou conhecido” (1Cor 13,12). Clara parece basear-se mais no texto da 2� Carta aos Cor�ntios: “E n�s que, com a face descoberta, refletimos como num espelho a gl�ria do Senhor, somos transfigurados nessa mesma imagem, cada vez mais resplandecente pela a��o do Senhor, que � Esp�rito” (2Cor 3,18).

Certamente lembrava tamb�m a passagem da Carta de S�o Tiago que diz: “Quem ouve a palavra e n�o a pratica � como algu�m que observa no espelho o rosto que tem desde o nascimento; observa a si mesmo e depois vai embora, esquecendo a pr�pria apar�ncia...”(Tg 1,23). E n�o podemos duvidar de que conhecesse a maneira medieval de usar a palavra espelho: como uma esp�cie de paradigma ou modelo de comportamento.

Vivendo a contempla��o na mesma perspectiva de Francisco, isto �, com os olhos, Clara prop�e que contemplemos Jesus Cristo como um espelho. Na terceira carta a In�s de Praga, apresenta um texto monumental sobre o que � a contempla��o: p�r tudo que se � em Jesus Cristo e deixar-se transformar por ele. Vejamos o texto:

“Ponha a mente no espelho da eternidade. Coloque a alma no esplendor da gl�ria. Ponha a mente na figura da subst�ncia divina e transforme-se, inteira, pela contempla��o, na imagem da divindade” (3CtIn 12-23).

Espelho da divindade – no espelho, n�s nos vemos projetados. Clara diz que, no espelho que � Jesus Cristo, podemos ver-nos projetados at� no que somos l� dentro. Em Cristo, � poss�vel ver nossa Interioridade. Evidentemente, � preciso conhec�-lo atrav�s dos Evangelhos e de tudo que o Povo de Deus j� adquiriu e os santos j� viveram para poder ver nele o que � que n�s somos por dentro. O espelho � comum: mostra uma interioridade que � coletiva, porque todos somos igualmente humanos. Mas o espelho tamb�m � particular: mostra em que eu sou diferente.

Esplendor da Gl�ria – � o Jesus Cristo que � Luz, como encontramos em S�o Jo�o. S� essa luz pode ir abrindo caminho na riqueza das “trevas” da interioridade, como fez com S�o Francisco desde a Oração diante do Crucifixo at� o Cântico do Irmão Sol.

Figura da Subst�ncia divina – fazer figuras � trabalhar com o dedos, � p�r as m�os. O trabalho com a interioridade n�o � fuga da realidade: exige que se “ponha as m�os” para criar alguma coisa concreta. Em Jesus Cristo, Deus criou alguma coisa concreta que saiu do mundo do esp�rito.

Mas a proposta � completada na quarta carta, quando escreve:“Olhe dentro desse espelho todos os dias, � rainha, esposa de Jesus Cristo, e espelhe nele, sem cessar, o seu rosto, para enfeitar-se toda, interior e exteriormente, vestida e cingida de variedade... pois nesse espelho resplandecem a bem-aventu-rada pobreza, a santa humildade e a inef�vel caridade, como, nele inteiro, voc6e vai poder contemplar com gra�a de Deus” (4CtIn 15-8).

Clara continua a desenvolver o seu m�todo:“Preste aten��o no princ�pio do espelho: a pobreza daquele que, envolto em panos, foi posto no pres�pio! Admir�vel humildade, estupenda pobreza! O rei dos anjos repousa numa manjedoura. No meio do espelho, considere a humildade,

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ou pelo menos a bem-aventurada pobreza, as fadigas sem conta e as penas que suportou pela reden��o do g�nero humano. E, no fim desse mesmo espelho, contemple a caridade inef�vel com que quis padecer no lenho da cruz e nela morrer a marte mais vergonhosa” (4CtIn 19-23).

No cerne da proposta de Clara est� a palavra transformar-se. Para ela, contemplar � contemplar Jesus –a manifesta��o do amor de Deus – e contemplar Jesus � deixar-se transformar totalmente por ele. � fazer-se um outro Cristo.

Nossa cultura contempor�nea tem um bocado de dificuldade para entender essa palavra transformar-se. � mais f�cil n�s falarmos em evolu��o e em progresso. Creio que a diferen�a � esta: Transformar-se � interior, promover o progresso � exterior. Quem se transforma poder� promover um progresso de acordo com o esp�rito de Cristo. Quem s� promove o progresso sem se transformar estar� desumanizando ou, na melhor das hip�teses, fazendo buracos na �gua.

Mas Clara n�o se limita a dizer que � preciso contemplar Jesus. Ele mostra as etapas: Primeiro a gente tem que aprender a ficar pobre como o Jesus do pres�pio – quem possui, n�o pode nem come�ar o processo. Depois a gente tem que aprender a ser humilde como o Jesus que viveu em Nazar� e pregou na Terra Santa – quem n�o se reduz ao ch�o (humus) n�o encontra o Deus do Evangelho. E, finalmente, a gente tem que se expandir em um amor t�o grande como o de Jesus na Cruz – Deus � Amor.

Para Clara, quem fizer todo esse processo ter-se-� deixado transformar por dentro e por fora, interior e exteriormente.

6. Como trabalhar a Interioridade

As propostas para um trabalho na interioridade podem ser muitas. Eu mesmo costumo trabalhar em diversos setores. Aqui, pretendo desenvolver apenas duas considera��es b�sicas: uma sobre a necessidade da Pobreza para qualquer contato mais profundo com o mundo interior; outra sobre uma considera��o de S�o Boaventura a respeito da santifica��o de S�o Francisco.

1. A pobreza é imprescindível

Vou fazer uma abordagem um pouco diferente da pobreza, partindo do que alguns estudiosos chamam de “hist�ria da consci�ncia”.

Todos sabemos que um dos maiores apan�gios dos humanos � gozar de uma consci�ncia, at� bastante ampla: isto �, n�s sabemos quem somos e o que est� acontecendo conosco. Mas tamb�m sabemos que a consci�ncia tem uma hist�ria: cresce com as crian�as e cresce com o desenvolvimento dos povos.

J� se apontaram at� algumas fases da hist�ria da consci�ncia: a m�gica, a m�tica e a mental.

A) Na m�gica, como as crian�as pequenas e como os povos primitivos, n�s nos damos conta de tudo que acontece ao nosso redor, mas nem pensamos em explicar nada: nem indagamos as causas das coisas –tudo acontece como que por m�gica.

B) Na m�tica, as crian�as e os povos que come�am a crescer j� se preocupam com a pergunta: “Quem faz tudo isso que vemos acontecer?” E os mais espertos j� tentar identificar os autores e respons�veis como figuras m�ticas e tratando at� de conseguir as suas boas gra�as. Fazer um mito � tentar explicar que for�as sobre-humanas realizam maravilhas que os mortais comuns n�o podem fazer.

C) Na mental, pessoas e povos adultos j� conhecem, mais ou menos cientificamente, as causas das coi-sas.

Ora, na medida em que essas fases v�o se sucedendo, as pessoas v�o mudando sua maneira de se relacionar com as coisas. Na fase m�gica, como as plantas e os animais, as pessoas se sentem parte da natureza, totalmente dentro dela, na interioridade dela. Na fase m�gica, j� conseguem sentir-se um pouco fora do comum da cria��o, pelo menos na medida em que s�o capazes de dar explica��es. Come�am aficar exteriores. Na fase mental, como j� acham que d�o explica��o para tudo, as pessoas se sentem totalmente fora desse mundo que est� a�. O mundo � exterior.

Como conseq��ncia, todos podemos constatar que a humanidade, em sua fase mental, estabeleceu tr�s princ�pios fundamentais de a��o: 1) Tudo que eu pegar � meu; 2) Quando mais coisas eu possuo, mais eu mando; 3) Quando mais eu mando, mais eu sou importante e os outros t�m que me respeitar. Toda a nossa

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sociedade se fundamenta nesses tr�s princ�pios.

S�o Francisco e Santa Clara tiveram olhos para perceber que Jesus Cristo viveu sem dar nenhuma import�ncia a esses nossos postulados. Que, al�m disso, ensinou no Serm�o da Montanha que eles estavam errados e, sendo tentado no deserto justamente para aceitar os nossos princ�pios, recusou-os terminantemente. Jesus at� resumiu toda a sua atitude quando ensinou: “Eu n�o vim para ser servido, eu vim para servir”. Se aceitamos o Evangelho, n�o podemos aceitar esses tr�s princ�pios do eu tenho, eu mando, eu sou importante.

Quem quer aproveitar o mundo interior, tamb�m n�o pode aceitar esses princ�pios, tem que aceitar a proposta evang�lica de ser servidor. Porque, mesmo que aceitemos s� o primeiro princ�pio (Clara e Francisco rejeitaram-no propondo-se a viver “sem nada de pr�prio”) j� perdemos a entrada no mundo interior, porque, quando possu�mos, obstru�mos toda a livre comunica��o com o mundo sem medidas do mist�rio.

Como Francisco ficou Santo

Acredito que toda a Legenda Maior � uma proposta de trabalho na interioridade, porque S�o Boaventura fez a biografia de Francisco de Assis estudando o processo que ele viveu para ir se transformando em um santo.

Para ser concreto, vou citar e desenvolver um par�grafo especialmente significativo da Legenda Maior:

“A verdadeira piedade... enchera o cora��o de Francisco compenetrando-o t�o intimamente, que parecia dominar totalmente a personalidade do homem de Deus. Nasciam da� a devo��o que o elevava at� Deus, a compaix�o que fazia dele um outro Cristo, a amabilidade que o inclinava para o pr�ximo, e uma amizade com cada uma das criaturas, que lembra nosso estado de inoc�ncia primitiva” (LM VIII, 1).

Essa passagem de S�o Boaventura coincide plenamente com a proposta de Carl G. Jung quando diz que � fundamental para todos n�s trabalhar mos quatro arqu�tipos b�sicos: o Eu-mesmo, Deus, o Pr�ximo e as Criaturas. Por isso, vou aproveitar os ensinamentos modernos de Jung para reler o texto medieval de Boaventura.

1. Autenticidade - o encontro consigo mesmo – Com este arqu�tipo trabalhamos no “Mist�rio do Eu”. Autenticidade � o que faz com que cada um de n�s seja “ele mesmo” (em grego, ó autós). Quando nascemos, ainda n�o sabemos que somos algu�m. Sentimo-nos parte de nossa m�e. Mas, gra�as ao arqu�tipo da autenticidade, devagar vamos descobrindo que h� um sujeito de tudo que fazemos. Chegamos a descobrir o nosso eu consciente, o Ego. Ele � o centro de toda a nossa consci�ncia.

Pouco a pouco, come�amos a descobrir tamb�m que ignoramos muitas coisas sobre o que vai l� por dentro desse eu. Uma das leis de ouro dos antigos foi: “Conhece a ti mesmo”. Porque, de fato, o nosso tesouro est� l� dentro de n�s.

Al�m disso, este arqu�tipo � que propicia uma tens�o entre o consciente e o inconsciente, pela qual vamos podendo estabelecer um relacionamento harmonioso entre o Ego e o Self.

Como o centro da nossa consci�ncia � constitu�do pelo Eu, sup�e-se que o inconsciente seja centralizado por um eu interior, muito mais amplo e abrangente, a que Jung deu o nome de Self (= eumesmo). O Self � um dos arqu�tipos, o arqu�tipo em torno do qual se constelam todos os outros. Por isso, o trabalho com a interioridade, que estamos continuamente chamando de “processo de individua��o”, pressup�e uma comunica��o entre o Eu e o Self, da forma mais aberta que for poss�vel.

� claro que se trata da comunica��o que � uma tens�o entre dois p�los opostos: o Eu da exterioridade e o Eu da interioridade, o do consciente e o do inconsciente. Ser aut�ntico � viver da melhor forma poss�vel essa tens�o em toda a sua din�mica e em toda a sua positividade. � claro que n�o somos aut�nticos quando o nosso eu est� identificado com as m�scaras exteriores, quando est� perdido e � merc� de todos os impulsos do inconsciente que o jogam para todos os lados, sem sentido.

O trabalho da autenticidade consiste em integrar progressiva e positivamente ao nosso Eu tudo que pudermos ir descobrindo no espa�o do nosso inconsciente. Ou em ir harmonizando o nosso mundo exterior cada vez mais com o nosso mundo interior.

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Para descobrir o pr�prio Eu e o Eu Mesmo � preciso n�o confundi-los nem com m�scaras, nem com for�as ou pessoas externas, nem com nenhum deus. A tenta��o de “ser como Deus” � um tem�vel engano porque come�a impedindo a autenticidade.

� bom notar que temos que ser aut�nticos para n�s mesmos. N�o � um problema de relacionamento com os outros. Na vis�o crist�, cada um de n�s � �nico e vai durar para sempre. Por isso, o desenvolvimento da autenticidade � tremendamente importante.

S�o Francisco rezava: “Quem sou eu, Senhor?” com a resposta: “Sou um miser�vel vermezinho, um pecador”. Mas � claro que ele n�o descobriu em si mesmo apenas coisas negativas, pois louva a Deus por todo o bem que lhe fez.

Um dos primeiros requisitos da autenticidade � querermos conhecer e aceitar a verdade sobre n�s mesmos, com tudo que tiver de bom e de mau. Ningu�m vai ter coragem de aceitar o que � mau se n�o tiver tido boas experi�ncias do que possui de bom em sua interioridade. Mas n�o podemos querer esconder nada de n�s mesmos. Para nossa sa�de total, � mais importante querer ser honesto do que querer ser bom. Porque, sem isso, nunca somos livres.

Outro requisito importante � que, na realidade, nunca posso dizer exatamente que “sou”: estou “me tornando”, porque a minha autenticidade � din�mica e ainda n�o foi completada. Certamente n�o ser� completada em nosso per�odo de vida terrena. O reconhecimento desta verdade � importante inclusive para entendermos que nossos erros podem ser aproveitados para irmos construindo os nossos acertos.

Tamb�m � fundamental reconhecer que, por mais insignificante que nos pare�a nosso “papel”, ele � sempre insubstitu�vel: n�o temos que imitar ou pedir emprestado o papel de outros e nunca vamos ser felizes atuando em um papel falso. A felicidade � alcan�ada justamente quando se consegue viver s� e unicamente o nosso papel verdadeiro. Sobre S�o Francisco, lemos na Legenda Maior: “Aos pr�prios olhos, era apenas um pobre pecador. Na realidade, por�m, era o espelho resplendente de toda santidade. Como um arquiteto prudente, que come�a pelas funda��es, ele se empenhou de corpo e alma a construir unicamente sobre a humildade, conforme aprendera de Cristo... Gostava de repetir esta m�xima: “O homem � o que � diante de Deus, nem mais nem menos” (LM VI,I).

Um aspecto s�rio dessa verdade � convencer-nos de que � imposs�vel destruir ou reprimir qualquer coisa que for real em n�s mesmos. E que n�s temos a tenta��o de faz�-lo quando ficamos olhando o papel dos outros o achando melhor que o nosso. No caso, temos que ir trabalhando pacientemente com nossos problemas at� descobrir como podemos encaminh�-los de uma maneira verdadeiramente positiva para n�s.

2. Significância - o encontro com Deus. – � aqui que podemos falar do mist�rio de Deus. Signific�ncia � o que faz com que descubramos, pouco a pouco, o que � que n�s significamos para Deus. E, evidentemente, o que � que Deus significa para n�s. Aqui, j� come�a a ficar claro que n�o somos sozinhos no mundo.

A palavra � mesmo “Signific�ncia” e n�o” significado”. Trata-se do valor de ter significado. � uma palavra que usamos pouco, apesar de conhecermos mais o seu ant�nimo: insignific�ncia.

Na Signific�ncia, temos a oportunidade de manter uma tens�o equilibrada entre Deus e o nosso ego, pela qual descobrimos o nosso verdadeiro destino e Signific�ncia no plano de Deus.

Para sermos plenos, temos que corresponder � imagem particular que Deus imprimiu em nosso cora��o. Temos que ser a express�o verdadeira do plano de Deus para n�s. E isso � uma tarefa de toda a vida, em que � importante saber sempre onde estamos e quais s�o os pr�ximos passos a ser dados.

� importante observar que estamos falando do relacionamento do Eu com o arqu�tipo de Deus, isto �, com Deus como o descobrimos em nossa interioridade. Deus � um ser em si mesmo, que n�o depende de mim nem de ningu�m para existir. Mas eu o encontro na medida limitada de minha capacidade. “Tudo que � recebido, diziam os antigos, � recebido na medida do recipiente”, isto �, de quem recebe. Eu me relaciono com a pessoa de Deus na mesma medida em que acolho e desenvolvo toda essa minha capacidade de acolher e viver Deus, que � o arqu�tipo.

Dai a import�ncia de trabalharmos a nossa interioridade, fazendo crescer a presen�a do Senhor dentro

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de sua criatura, deixando que o nosso Eu seja cada vez mais adorador do Alt�ssimo.

Eu encontro Deus dentro de mim, mas Ele n�o est� s� a�, nem por isso � algo meu: um objeto de que eu posso dispor ou uma for�a que eu tenho. Pelo contr�rio: eu sou uma criatura dele. Isso n�o me diminui: � toda a minha grandeza, porque Ele me criou com amor ao mesmo tempo infinito (pois se deu inteiro) e particular, pois me ama como se u fosse o �nico.

Ser criatura � poder gerar energia com Deus na outra ponta. A gra�a e a natureza s�o os p�los dessa energia. � como se f�ssemos instrumentos musicais: se estivermos afinados com Deus, tudo que ele tocar ressoar� em n�s. E tudo que n�s tocarmos ter� sua resson�ncia em Deus. � assim que vai sendo criada a grande harmonia do louvor universal. Um louvor que nos realiza. De certa maneira, podemos dizer que Deus, depois de nos ter criado, “precisa” de nossa nota.

Em S�o Francisco, encontramos a outra parte da ora��o: “Quem sois v�s, Senhor? O Alt�ssimo, o Sant�ssimo, Todo Poderoso, Todo Bom”. Mas, uma vez, contou aos frades: “Roguei ao Senhor que sedignasse mostrar-me quando sou seu servo e quando n�o o sou, pois n�o desejaria ser outra coisa sen�o seu servidor. Ent�o o Senhor se dignou responder-me: “�s realmente meu servo quando ages e pensas santamente” (EP 74). Santamente quer dizer: completamente de acordo com o �nico Santo, que � Deus.

� a partir daqui que adquire sentido nossa preocupa��o com a Justi�a, porque Deus � o par�metro da nossa justi�a, e n�o n�s mesmos.

O encontro da Signific�ncia n�o serve apenas para dar um passo � frente. Ele tamb�m volta atr�s, constituindo uma das maiores for�as para nos tornarmos aut�nticos. Com ele, a nossa exist�ncia adquire a dimens�o do infinito.

3. Transpar�ncia – encontro com o pr�ximo. – Agora, podemos falar do mist�rio do Outro. Transpar�ncia � o arqu�tipo pelo qual conseguimos abrir-nos para os outros seres humanos. � o encontro do “alter-ego”, do irm�o. N�o sou s� eu que existo, nem somos s� Deus e eu.

Aqui, estamos em tens�o com o outro. A primeira experi�ncia de Transpar�ncia j� come�a diante de nossa pr�pria m�e, cresce com o encontro do pai e vai se tornando real com o encontro dos irm�os e das outras pessoas que temos na mesma casa paterna. � onde se constr�i o amor fraterno.

Essas primeiras experi�ncias s�o as que v�o gerar nossas m�scaras, primeiro obst�culo para a Transpar�ncia. Mas s�o tamb�m os muitos encontros da vida que poder�o ajudar a vencer as m�scaras e a construir uma Transpar�ncia aut�ntica. Porque a Transpar�ncia vai ser a luz para confirmar e purificar tanto a Autenticidade quanto a Signific�ncia. O pr�ximo n�o � eu e n�o � Deus.

Temos que nos convencer de que n�o fomos criados para n�s mesmos mas para Deus, para os outros, para o mundo. Cada um de n�s � a Transpar�ncia de um ponto especial, mesmo que muito pequeno no conjunto, da beleza, da bondade, da verdade de Deus. N�s precisamos ser essa Transpar�ncia, e os outros precisam dessa nossa Transpar�ncia. Somos seres em rela��o.

Fa�o aqui a mesma observa��o do par�grafo anterior: estamos tratando antes de tudo do relacionamento do nosso Eu com os arqu�tipos das outras pessoas como existem dentro de n�s. Porque cada pessoa � tamb�m um mist�rio infinito, ou pelo menos indefinido, e n�s a conhecemos na medida restrita que nos permitimos ter de cada um. Cada pessoa � sempre – mesmo que viva cinq�enta anos ou mais ao nosso lado – uma surpreendente revela��o do Outro. O Outro � sempre algu�m que tem muita semelhan�a conosco mas, fundamentalmente, n�o � quem n�s somos. O Outro se revela e ao mesmo tempo nos revela. Tanto nos revela a n�s mesmos quanto consegue revelar-se. E n�s tamb�m o revelamos a si mesmo quanto conseguimos revelar-nos. Da� a fundamentalidade do arqu�tipo da Transpar�ncia, que torna todos os outros transparentes a n�s na medida em que n�s mesmos somos transparentes, para n�s e para os outros.

Essa � uma das mais importantes bases da contempla��o, porque contemplar � sempre enxergar atrav�s.

Nossa Transpar�ncia nunca � perfeita e l�mpida. Mas, se n�s a trabalharmos, ela vai sendo uma revela��o progressiva, que s� se faz com muito amor – da nossa parte e da parte de outras pessoas – e esse vai ser o melhor tratamento para chegarmos a nossa pr�pria autenticidade. Todos precisamos de

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pessoas que, a qualquer t�tulo, estejam o mais pr�ximo poss�vel de n�s. Que tenham permiss�o para enxergar a verdade l� dentro, com o bem e com o mal. Todos precisamos de alguma forma de“confessor”.

Se nosso desejo de amar for leg�timo, vamos lutar para manter abertas todas as portas do nosso auto-conhecimento. Porque s�o as mesmas portas do amor. N�o podemos escolher sempre a hora e o lugar de ficar conhecendo a verdade sobre n�s mesmos. Temos que confiar que Deus saber� faz�-lo atrav�s de nossos amigos.

Uma imagem interessante para nossa reflex�o: o espelho. � um objeto que reflete e n�o transparece. Nele n�s vemos a n�s mesmos, at� quando temos os outros bem concretos na nossa frente. Por isso, nossa vida tem que ultrapassar os espelhos. Quando deixamos de ser transparentes ficamos isolados, vamos crer que somos deuses e que os outros n�o passam de reflexos dos nossos pensamentos.

� a partir daqui que adquire sentido nossa preocupa��o com a Paz, porque, se n�o h� outros que nos equilibrem, n�o h� entendimento e vamos querer dispor das pessoas como se nos pertencessem. Quando n�o somos transparentes negamos nossa verdadeira imagem n�o s� aos outros mas tamb�m a n�s mesmos, porque � na Transpar�ncia de uns para com os outros que conhecemos a verdade.

Os outros sempre t�m aspectos muito variados, em circunst�ncias sempre surpreendentes, que revelam aspectos nossos que n�s mesmos n�o conhec�amos.

4. Solidariedade - o encontro com as criaturas – � o arqu�tipo pelo qual experimentamos a nossa unicidade dentro do resto da ra�a humana e mesmo dentro de toda a cria��o. Trata-se, aqui, do equil�brio com todos os outros seres. Creio que � onde podemos falar mais verdadeiramente do “Mist�rio da Fraternidade”. � onde descobrimos todas as criaturas.

Vou percebendo que n�o sou s� eu, Deus e os outros perto de mim. Tamb�m a humanidade em geral, os animais e as “coisas” s�o importantes para o que n�s mesmos devemos ser. Quanto mais temos oportunidade de nos compararmos com outros seres, mais nos aprofundamos na constru��o de nossa autenticidade. At� mesmo em nossa individua��o.

Na solidariedade, descobrimos quanto somos relativos, porque nos damos conta de que a orquestra do louvor a Deus � sem fim e n�s s� temos uma nota no conjunto harm�nico de toda a sinfonia da vida. S�o Francisco enriquece-nos, neste ponto, com o Canto do Irm�o Sol, ou C�ntico das Criaturas, onde todas elas s�o chamadas de irm�s. Celano captou bastante bem o porqu� dessa atitude:

“Embora desejasse sair logo deste mundo como se fosse um ex�lio de peregrina��o, este feliz viajante sabia aproveitar o que h� no mundo, e bastante... Louvava o Criador em todas as suas obras e sabia atribuir os atos ao seu Autor. Exultava em todas as obras das m�os do Senhor e enxergava a raz�o e a causa vivificantes atrav�s dos espet�culos que lhe davam prazer. Nas coisas belas reconhecia aquele que � o mais belo, e que todas as coisas boas clamavam: “Quem nos fez � �timo!” Seguia sempre o Amado pelos vest�gios que deixou nas coisas e fazia de tudo uma escada para chegar ao seu trono. Abra�ava todas as coisas no afeto da sua devo��o �mpar e falava com elas sobre o Senhor, convidando-as a louv�-la. Poupava os candeeiros, l�mpadas e velas, porque n�o queria apagar com sua m�o o fulgor que era um sinal da luz eterna...” (2Cel 165).

Francisco foi aprendendo aos poucos o caminho da solidariedade, na medida em que experimentou contatos com os diversos “irm�os”:

“... Da� para frente, passou a exortar com solicitude todos os p�ssaros, animais, r�pteis e mesmo as criaturas insens�veis para louvarem e amarem o Criador, porque, todos os dias, invocando o nome do Salvador, conhecia a sua obedi�ncia por experi�ncia pr�pria” (1Cel 58).

Santa Clara, “quando mandava as irm�s auxiliares fora do mosteiro, exortava-as a que, quando vissem as �rvores bonitas, floridas ou frondosas, louvassem a Deus; e fizessem o mesmo quando vissem os homens e as outras criaturas” (ProcC 14,9). N�o �-toa, escreveu a Santa In�s de Praga: “Voc� e todas as criaturas est�o contidas em Deus” (3Ctln 26).

Para nos darmos conta da import�ncia deste arqu�tipo, basta recordar que. atrav�s da hist�ria, o ser humano j� caiu nos extremos de fazer �dolos e fetiches de diversas criaturas e tamb�m de exterminar animais, florestas, minerais e at� objetos com a mais estranha insensatez. J� se considerou rei indiscriminado das criaturas e se faz seu escravo com a maior facilidade. O homem j� se mediu e se mede pela posse de terras, animais, metais... em que se “coisifica” e reduz seus horizontes.

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� a partir daqui que adquire sentido nossa preocupa��o com a ecologia. O equil�brio de todas as criaturas e de toda a natureza s� pode ser apreciado e eficazmente desejado por quem sabe que papel tem no concerto de todas as obras do Senhor. E com um sentido hist�rico.

� imposs�vel ser possuidor, propriet�rio indiscriminado ou id�latra e ser contemplativo, livre para ver o Senhor em todas as suas criaturas.

7. O processo interior

O psic�logo C.G. Jung propunha o aprofundamento interior como um processo, que ele chamava de “processo de individua��o” ou, em outras palavras, o caminho atrav�s do qual uma pessoa vai descobrindo e realizando a verdadeira autenticidade, o indiv�duo �nico que ela nasceu para ser.

Creio que, na perspectiva da espiritualidade franciscana, podemos muito bem falar em um PROCESSO DE CRISTIFICA��O, isto �: como podemos conduzir nossa tarefa de nos realizarmos como pessoas transformando-nos progressivamente em outros cristos, como fez S�o Francisco.

A nossa tradi��o franciscana tem um modelo excelente dessa proposta no “ltiner�rio da Mente a Deus”, de S�o Boaventura. Outras espiritualidades falam muitas vezes em “m�todo”. Eu insisto na palavra “processo” para sublinhar que n�o se trata de uma simples “proposta de caminho”, por mais bem delineada que seja, mas de um acompanhamento da transforma��o pessoal e do crescimento vital. Eu diria que, se o itiner�rio � mapa para a excurs�o, o processo � a pr�pria viagem. E penso na viagem como em uma vida que se transforma e cresce, mas com um sentido de busca, e at� mesmo com um sentido de resposta ao chamado de Deus, que come�ou um di�logo com cada um de n�s quando nos criou.

Pro-ceder � ir sempre para a frente. No Processo de Individua��o, a pessoa busca primeiro afirmar-se no mundo exterior e depois faz o trabalho de afirma��o no mundo interior. Fazer o processo � descobrir o mist�rio do pr�prio Eu e realiz�-lo.

Para ajudar nossa reflex�o, eu lembraria que os medievais tamb�m falavam em um “processoalqu�mico”: a alquimia, primeira vers�o da atual qu�mica, misturou o material com o espiritual. Quasetodo mundo sabe que os alquimistas queriam descobrir a “pedra filosofal” capaz de transformar alguns materiais em ouro, mas poucos t�m conhecimento de que o que os empolgava de fato era descobrir como transformar o homem interior.

Na �poca, todo mundo conhecia uma hist�ria popular que dava bem o sentido do processo: era o “Mito do Santo Graal”, cujas influ�ncias percebemos no pr�prio S�o Francisco e mesmo em S�o Boaventura. A pessoa estava sempre em uma busca de algo sagrado: ou o c�lice de Jesus ou o gostinho de um certo peixe saboreado na inf�ncia. Na realidade, estava procurando descobrir o sentido profundo da pr�pria vida.

Creio que � fundamental, em nossos dias, termos essa vis�o de um projeto de vida, que deve come�ar desde que o candidato se apresenta para entrar na Ordem e ser diligentemente conduzido at� o dia de nos apresentarmos diante de Deus.

Lembro at� que, na Igreja Oriental, o que n�s nos acostumamos a chamar de “Dire��o Espiritual” ou “Orienta��o espiritual” recebeu o nome de Mistagogia: como nos conduzir atrav�s do caminho m�stico.

O processo de cristificação tem que ser um processo de liberta��o. Para isso, tem que ser um processo de empobrecimento, porque s� o pobre � verdadeiramente livre. Mas essa pobreza s� cresce na medida em que � aumentada a depend�ncia total de Deus, ou, em outras palavras, na medida em que algu�m consegue se desapropriar. Quando “tentamos” ser propriet�rios, violentamoa a natureza das coisas e desumanizamos as pessoas.

Ao mesmo tempo, � um processo de humaniza��o. Francisco e Clara foram verdadeiros “humanistas”. N�o de um humanismo que fica no te�rico ou no cuidado de si mesmo, mas de um humanismo que transforma o mundo para que o homem seja o que Deus sonhou para ele.

Por isso, nesta parte conclusiva, quero fazer uma proposta de Processo de Cristificação, em quepretendo apontar o objetivo, as metas, a pol�tica de a��o e os meios.

1. Objetivo - Todos n�s, desde os primeiros passos da entrada na Ordem, dever�amos ter uma vis�o

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muito clara de que nosso objetivo � realizar a pessoa que n�s somos na comunh�o com Deus. Para isso, temos que descobrir progressivamente o Cristo que vive em nossa interioridade para que ele possa ir saindo e transformando nossa vida. � essa vis�o que d� o sentido do humanismo franciscano, bem expresso j� nos escritos de S�o Francisco e de Santa Clara.

Para refor�ar, recordo que todas as biografias medievais de S�o Francisco tentam mostrar como ele foi um outro Cristo, como realizou a imagem pessoal de Jesus Cristo. � um est�mulo que nenhum franciscano devia perder.

2. Metas - As metas s�o resultados que podemos determinar de antem�o, qualitativa e quan-titativamente. Creio que, � luz de nossa tradi��o franciscana, cada um vai ter que deixar bem claro para si mesmo quanto e como pretende ser: a) um pobre como Jesus Cristo, um menor a servi�o de todos; b) um irm�o entre os seus irm�os, mas tamb�m irm�o de todas as pessoas e de todas as criaturas; c) um ap�stolo que se entende sempre a caminho, sem bolsa nem cajado, para anunciar a boa nova do Evangelho. Isso, para dizer o m�nimo. As metas t�m que ser concretizadas por cada um, e cada dia melhor.

3. Política de Ação - Ainda que metas sejam sempre um alvo perseguido, que se vai alcan�ando aos poucos, nossa maneira de agir tem que ser, desde o come�o, a de um franciscano, isto �: temos que agir sempre como irm�os, sempre como itinerantes, sempre como pobres no sentido mais forte do Evangelho.

4. Meios - Temos que lan�ar m�o dos que a Ordem coloca � nossa disposi��o: a viv�ncia da fraternidade; a ora��o, principalmente contemplativa; o estudo, principalmente o da Palavra de Deus e o do nosso pr�prio conhecimento; todas as iniciativas da fraternidade, seja uma obra apost�lica, seja um dia de retiro.

Concluindo - Talvez seja aqui o momento de perceber que a proposta de S�o Francisco na Primeira Carta aos Fi�is � justamente a de um processo de crescimento em que s� caminham os que “fazem penit�ncia”, porque est�o enxergando com os olhos do esp�rito e sabem o que acontece na interioridade. Os que n�o fazem penit�ncia, como n�o sentem falta de Jesus Cristo, continuam a buscar s� as riquezas exteriores, passageiras e fr�geis, que t�m que deixar quando morrem. Buscam outras coisas porque n�o usam os olhos do Esp�rito e n�o enxergam a presen�a de Deus em todas as suas bondades.

Ora, dessas coisas n�s s� entendemos entende depois de considerar muito a imagem interior (o espelho) de Jesus Cristo e de ter aprendido, com ele, a ver toda a realidade “com os olhos do esp�rito”.

Este texto foi apresentado aos Provinciais OFM do Brasil em uma reuni�o em Petr�polis no ano de 1966.

Seu c�digo localizador no Centro Franciscano de Piracicaba � 1.01.03.06

Pode ser achado no computador de Frei Jos� Carlos Pedroso com o nome deInterioridadeFran, em JC.Artigos, de JC. Escritos, de Arquivo JC.