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Page 1: A Interioridade Humana - Fr. Almir Ribeiro

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A INTERIORIDADE HUMANANA PERSPECTIVA

DA ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA

Frei Jos� Carlos Corr�a Pedroso OFMCap

“� por isso que eu dobro os joelhos diante do Pai, de quem recebe o nome toda fam�lia, no c�u e na terra. Que ele se digne, segundo a riqueza de sua gl�ria, fortalecer a todos voc�s no seu Esp�rito, para que o homem interior de cada um se fortifique. Que ele fa�a Cristo habitar no cora��o de voc�s pela f�. Enraizados e alicer�ados no amor, voc�s se tornar�o capazes de compreender, com todos os crist�os, qual � a largura e o comprimento, a altura e a profundidade, de conhecer o amor de Cristo, que supera qualquer conhecimento, para que voc�s fiquem repletos de toda plenitude de Deus” (Ef 3,14-19).

1. O que é interioridade?

A palavra interioridade tem sido usada com muita freq��ncia. Pediram-me para falar sobre o mundo que ela esconde. Que ser� que podemos entender por interioridade?

Em primeiro lugar, creio que interioridade � uma realidade que todo mundo sabe que existe, embora quase ningu�m consiga dizer coisas muito concretas sobre ela.

1. Em sentido popular:

Quando algu�m usa a express�o “l� dentro do meu cora��o”, “no fundo do meu cora��o”, est� se referindo a algo certamente muito real, experimentado como “interior” � pr�pria pessoa, mas que n�o d� para transmitir completamente para os outros. Ali�s, sabemos que n�o daria para explicar cabalmente nem para n�s mesmos o que � que temos “l� dentro”, “no cora��o”.

Tamb�m quando usamos a express�o “Ningu�m me compreende” parece que nos referimos a algo interior, que os outros n�o conseguem enxergar, mas que nem n�s mesmos conseguimos deixar claro. Se n�o, seria s� falar. Muitas vezes, � melhor ficar simplesmente com a conclus�o, um tanto enigm�tica: “Quem v� cara n�o v� cora��o”.

Muitas vezes, reconhecemos que os outros � que est�o em alguma interioridade, em algo que n�o d� para perceber por fora: “� um sonhador”, “vive no mundo da lua”, “tem uma fantasia muito f�rtil”.

Lembrando a imagem de “O Pequeno Pr�ncipe”, de Saint-�xupery, algu�m pode se referir ao seu “planeta”, um mundo todo seu, que s� ele conhece bem. Mas tamb�m pode simplesmente comunicar que n�o sabe o que tem l� dentro: “sinto um vazio na minha alma”.

Talvez pud�ssemos resumir: Interioridade � tudo que sentimos como muito real e concreto em nossa vida mas que n�o conseguimos tomar vis�vel com nitidez, nem para os outros, nem para n�s mesmos. Ent�o, est� “l� dentro”. Mas o interessante � que tudo isso que est� l� dentro parece t�o importante, ou at� mais importante do que tudo que vemos “aqui fora”.

A Interioridade � o mist�rio de n�s mesmos, de cada um de n�s mesmos. Um mist�rio que est� t�o perto como uma floresta virgem que come�asse no fundo de nosso quintal, mas que n�s ainda n�oexploramos.

Tanto a psicologia quanto a espiritualidade dedicam-se ao mundo interior. N�s vamos tentar consider�-la na perspectiva da espiritualidade franciscana.

2. Interioridade e Mente

J� em sua primeira ora��o – a que rezou diante do Crucifixo de S�o Dami�o – S�o Francisco nos deixou uma interessante abertura para o mundo interior. Pediu a Deus: “Iluminai as trevas do meu cora��o!”. Com a nossa mentalidade de hoje, provavelmente pedir�amos para iluminar as trevas da mente, n�o do cora��o. Mas poder�amos dizer que, nessa ora��o e em toda sua vida, S�o Francisco pediu a luz de Deus para sua interioridade.

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A Interioridade n�o � a Mente: na mente temos a capacidade de pensar, de lembrar, de reconhecer. A Interioridade � muito mais do que isso. Na interioridade est� a nossa maior riqueza espiritual (mais que na mente): a mente descobre fora; a interioridade descobre dentro.

O que temos na Mente � tudo consciente (ou f�cil de ser trazido ao consciente), e pode ser comparado com um “c�rebro eletr�nico”, como chamavam inicialmente os computadores. Por mais vasta que seja a mente, daria para fazer uma resenha de tudo que ela cont�m. Poder�amos distribu�-la em arquivos. Talvez seja poss�vel localizar a Mente no c�rebro, como j� se tentou. A Mente pode ativar a mem�ria, mais ou menos como um computador.

A Interioridade, em vez, avan�a pelo mundo do Inconsciente. N�o sabemos onde � a “sede” doInconsciente. Se a mente aponta para a exist�ncia de uma alma, de um esp�rito no ser humano, a interioridade parece pressup�-la. Talvez seja por isso que o mundo ocidental moderno tem tanta dificuldade com a Interioridade.

A mente faz s�nteses e “conclui”, isto �, fecha. A Interioridade descobre s�mbolos e lan�a pontes, isto �, abre, abre cada vez mais para o mist�rio.

A Mente � capaz de pensar sobre Deus. A Interioridade se encontra com Ele: sente-o, comunica-se com Ele mesmo sem palavras e sem pensamentos.

Precisamos tomar consci�ncia do que se passa na Inconsciente. Talvez seja o �nico meio de nos comunicarmos com a Interioridade. Todos nos damos conta de que, de dentro de n�s, procedem coisas que foram experimentadas fora.

A Mente parece poder ser mais desenvolvida pelos que estudam e refletem. A Interioridade pode ser bem desenvolvida mesmo em pessoas analfabetas. Entrar pelo mundo do mist�rio n�o �, exatamente, refletir, pensar. No fundo, entrar pelo mundo do mist�rio � contemplar.

Desde os tempos mais antigos, a Interioridade foi comparada com o oceano, ou com as �guas: � um mundo sem fim, do qual podem sair todas as surpresas.

Quando falamos em espiritualidade, trabalhamos no campo da Interioridade. Se as nossas ora��es n�o penetram na Interioridade, ficam no campo da Mente: palavras, c�nticos e reflex�es. Nesse sentido, muita ora��o n�o passa de um condicionamento da mente.

Enquanto a riqueza da mente s�o suas id�ias e a capacidade de relacion�-las e tirar conclus�es, a ri-queza da Interioridade s�o os s�mbolos e sua capacidade de abrir para o mundo do mist�rio.

Para a mente, os mist�rios s�o um desafio que imp�e limites. Para a Interioridade, os mist�rios s�o desafios que ampliam cada vez mais o seu campo, que parece infinito.

Para a Mente, Deus � uma id�ia, uma abstra��o, uma conclus�o, talvez. Para a Interioridade, Deus � a porta mais concreta e vivenciada da Infinitude. Uma coisa � dizer que, em Deus, tudo acaba; outra, bem diferente, � dizer que, em Deus, tudo come�a.

A Mente proporciona a possibilidade de entrar em contato com outros seres inteligentes. A Interioridade nos p�e em comunh�o com todos os seres, mesmo com os animais e as pedras. Al�m disso, entra no mundo do mist�rio coletivo (inconsciente coletivo) e, mesmo mergulhando na interioridade individual, a pessoa afunda e emerge no mundo da fraternidade universal.

Na espiritualidade oriental, o uso lit�rgico dos �cones quer ultrapassar o inconsciente pessoal e entrar no inconsciente coletivo. Os artistas trabalham com o mundo do inconsciente coletivo e, talvez, pseudo-artistas sejam justamente os que nunca ultrapassam as barreiras do inconsciente pessoal. Mas, em geral, o que faz grandes e imortais os artistas, � sua capacidade de se relacionar com a Interioridade coletiva e saber transmitir isso de alguma forma �s outras pessoas. Eu diria que os santos s�o os artistas de Deus.

Talvez possamos falar em interioridade pessoal e interioridade coletiva. No sentido seguinte: eu entro dentro de mim e chego ao mundo do “dentro-de-tudo”. Quando entramos no mundo interior, descobrimos muitas coisas que j� foram experimentadas e vividas por n�s. Mas tamb�m encontramos novidades surpreendentes. E, quando as aprofundamos, percebemos que s�o “novidades” que j� conhecidas por outros, que j� foram abordadas e at� desenvolvidas por gera��es passadas do nosso povo e mesmo de

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povos muito diferentes.

Talvez desse para estudar, a partir desse ponto de vista, como a interioridade humana coletiva est� progredindo: embora algumas pessoas e alguns grupos sempre estejam em um vai-e-vem, as culturas parece que v�o caminhando para um ponto comum, ou, pelo menos, para alguns pontos comuns. � bom notar que isso � uma realidade no mundo exterior, mas tamb�m pode ser observado no mundo interior. Pode ser que algumas aproxima��es e assimila��es se d�em a partir do mundo exterior, porque uma cultura passou a conhecer outras; mas parece que tamb�m d� para observar que o contr�rio tamb�m acontece – porque as coisas caminham no mundo interior, acabam produzindo aproxima��es no mundo exterior.

2. A Interioridade na Bíblia e nas Fontes

A B�blia usa bastante a express�o e o conceito de interioridade. Damos alguns exemplos.

S�o Jo�o (Jo 2,25) diz que Jesus “n�o precisava de informa��es a respeito de ningu�m, porque conhecia o homem por dentro”. O “por dentro” da tradu��o da B�blia pastoral pode n�o estar em outras tradu��es, mas � muito fiel ao texto grego (eghínosken ti em em tô antrôpo).

Ali�s, aos fariseus Jesus disse: “O reino de Deus est� dentro de voc�s” (Lc 17, 20-21). � bom lembrar que s� muito recentemente come�aram a aparecer as tradu��es do tipo “O reino de Deus est� no meio de voc�s”, embora as duas vers�es caibam bem no original grego: Endós hymôn éstin. A B�blia de Jerusal�m, em nota, quer argumentar que o Reino de Deus n�o poderia estar dentro dos fariseus, mas eulembro que Jesus tamb�m disse a esses personagens: “Voc�s n�o entram no reino de Deus nem deixam os outros entrar”. Justamente porque eram mascarados, hip�critas e sepulcros caiados. Os publicanos e as prostitutas entravam mais facilmente do que eles.

Jesus tamb�m disse: “Onde est� o seu tesouro, a� tamb�m est� o seu cora��o”. Juntando isso ao tesouro que o homem encontra no campo e ao tesouro de onde o pai de fam�lia tira coisas novas e velhas, parece bem claro que Jesus est� se referindo � nossa “interioridade”.

Tamb�m � muito claro que Jesus fala em par�bolas porque se refere a uma realidade invis�vel e interior, que exige essa linguagem simb�lica para poder penetrar no mundo do mist�rio. Ele estava pedindo uma ades�o pessoal, que levaria as pessoas a descobrirem a vida interior: “Quem cr� em mim... do seu interior (ek tês koilías autou) correr�o rios de �gua viva” (Jo 7,38).

A Ep�stola aos Hebreus haveria de mostrar que “A palavra de Deus � viva, eficaz, e mais cortante do que uma espada de dois gumes. Penetra at� a divis�o da alma e do esp�rito...” (Hb 4,12).

S�o Paulo sentiu a for�a dessa penetra��o de Deus e disse aos romanos: “No meu �ntimo, eu amo a lei de Deus; mas percebo em meus membros outra lei que luta contra a lei de minha raz�o e que me torna escravo da lei do pecado que est� em meus membros” (Ro 7,22-23).

E haveria de ser ainda mais incisivo ao escrever aos g�latas: “Por isso � que lhes digo: vivam segundo Esp�rito, e assim n�o far�o mais o que os instintos ego�stas desejam. Porque os instintos ego�stas (a carne) t�m desejos que est�o contra o Esp�rito, e o Esp�rito contra os instintos ego�stas; os dois est�o em conflito, de modo que voc�s n�o fazem o que querem. Mas, se forem conduzidos pelo Esp�rito, voc�s n�o estar�o mais submetidos � Lei. Al�m disso, as obras dos instintos ego�stas s�o bem conhecidas: fornica��o, impureza, libertinagem, idolatria, feiti�aria, �dio, disc�rdia, ci�me, ira, rivalidade, divis�o, sectarismo, inveja, bebedeira, orgias e outras coisas semelhantes... Os que pertencem a Cristo crucificaram os instintos ego�stas junto com suas paix�es e desejos. Se vivemos pelo Esp�rito, caminhemos tamb�m sob o impulso do Esp�rito” (Gl 5,16-25).

O “homem espiritual” e o “homem interior” parecem ser exatamente a mesma coisa: os que se entregaram ao Deus invis�vel. Cultivar a interioridade � o mesmo que cultivar a espiritualidade. N�o se trata de uma fuga para um mundo descomprometido com a realidade exterior, mas de uma ilumina��o das realidades pela presen�a de Deus.

São Francisco e Santa Clara

S�o Francisco sempre se preocupou com a interioridade e, baseando-se na oposi��o carne-esp�rito de S�o Paulo, escreveu na Regra n�o bulada: “... pois o esp�rito da carne quer e se esfor�a muito por ter

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palavras, mas pouco pelas obras, e busca n�o a religi�o e a santidade no esp�rito interior, mas quer e deseja ter religi�o e santidade que apare�am fora para os homens” (RNB 17,11-12)

Ele vivia como um contemplativo, mesmo quando percorria o mundo em prega��o, e at� escreveu: “... onde quer que estejamos ou por onde andarmos, levamos conosco a nossa cela, que � o irm�o corpo: aalma � o eremita, que mora l� dentro para orar e contemplar o Senhor” (LP 80, cfr. EP 65).

Como vimos, desde a sua primeira ora��o por n�s conhecida, a que fez diante do Crucifixo de S�o Dami�o, ele j� tinha pedido: “� glorioso Deus Alt�ssimo, iluminai as trevas do meu cora��o...”. A express�o cora��o d� uma vis�o muito mais ampla de toda a interioridade.

Quase no final de sua vida, aconselhou �s clarissas: “...n�o olheis a vida de fora, porque a do esp�rito � melhor... (Audite Poverelle, 3 FC 223).

Mas uma de suas express�es mais caracter�sticas est� no final do Testamento: “E eu, Frei Francisco, o menor de vossos servos, vos confirmo quanto posso, interior e exteriormente, esta sant�ssima b�n��o”(Testamento, 41).

Para entender essa b�n��o intus et foris, por dentro e por fora, interior e exteriormente, � bom lembrar que ele vivia intensamente a palavra de Deus descoberta na liturgia. Podemos recordar pelo menos dois exemplos lit�rgicos que j� eram usados no seu tempo: a ora��o no dia de Nossa Senhora da Candel�ria e a ora��o na oitava da Epifania (hoje na festa do Batismo do Senhor).

Na ora��o da Candel�ria, o pedido �: “... quae extrinsecus annua tribuis devotione venerari, intrinsecus assequi gratiae tuae luce concede”, isto �, que a luz de Cristo, que comemoramos externamente nesta festa anual, seja-nos concedida interiormente pela luz da gra�a.

Na oitava da Epifania, a ora��o pede: “Como conhecemos o Unig�nito em sua carne por fora (foris), mere�amos ser reformados por dentro (intus)”.

Essa b�n��o nos parecer� muito natural se nos lembrarmos que, na Par�frase ao Pai-nosso, Francisco diz que o c�u � dentro de n�s e se tivermos bem presente a sua proposta na ora��o que conclui a carta a toda a Ordem: pede que sejamos “interiormente purificados, interiormente iluminados e abrasados”. Saudando as Virtudes, ele disse que homem algum pode possu�-las se n�o morrer primeiro: interiormente, � claro.

Santa Clara n�o fica atr�s. Lembra que Jesus, como o tesouro descoberto no campo, est� “escondido no campo dos cora��es humanos” (3CtIn 7).

Lembra a In�s de Praga que” Aquele que o universo n�o pode conter tem sua mans�o na alma do fiel”(cf. 3CtIn 22). Ela chega a um ponto alto quando prop�e que In�s de Praga olhe todos os dias no espelho que � Jesus Cristo, “para enfeitar-se toda, interior e exteriormente”... (4CtIn 15-17).

Mas eu estou citando estas poucas passagens s� como introdu��o. Mais adiante, vamos ver as propostas metodol�gicas de Francisco e Clara para cultivar o mundo da interioridade.

E a hist�ria franciscana mostra que nossa imensa fam�lia sempre seguiu os passos de Francisco e Clara e cultivou a interioridade.

3. A linguagem da Inferioridade

Para lidarmos com a interioridade, um requisito fundamental � compreendermos que ela fala outra linguagem. Vamos nos explicar.

N�s estamos habituados, em nossa cultura ocidental pelo menos, a uma linguagem l�gica. Buscamos sempre definir bem todos os nossos conceitos. A interioridade n�o pode nem quer definir: refere-se ao mundo em cont�nua descoberta do mist�rio e usa a linguagem simb�lica.

Definir � marcar os fins, dizendo onde uma coisa come�a e onde acaba. Quanto mais exatos formos em determinar come�o e fim, mais cient�ficos seremos. Mas, quando a realidade que tratamos � Deus, � o amor... e outros mundos sem medida, n�s n�o podemos medir nem definir. S� avan�aremos se estabelecermos pontes por compara��o: � a linguagem simb�lica, a mesma que Jesus usou nas par�bolas, a mesma que Francisco usou em seus escritos e que nos � at� bastante familiar pelo menos. quando nos

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relacionamos com as crian�as e com os artistas.

Para ouvir Deus e at� mesmo para expressar o que sabemos de Deus, n�o basta nossa linguagem l�gica habitual. Essa � a linguagem da ci�ncia e n�s chegamos a pensar que seja a linguagem “popular” e “normal”. Mas n�o �. A linguagem l�gica � muito clara, muito definida, muito certa e, por isso, embora tenha seu valor paras as coisas exatas com que lidamos, n�o serve para falar de Deus, nem com Deus, nem a respeito das coisas mais profundas da vida, como o amor e o medo, por exemplo. Para isso, precisamos da linguagem simb�lica, que usa compara��es - como Jesus nas par�bolas - e que nos leva a ultrapassar a toda hora a barreira de um mundo que � real, mas n�o � o mundo f�sico nem o da reflex�o.

A linguagem l�gica vai na linha da cabe�a: define, mede, calcula, limita, fecha – uma coisa nunca pode ser e n�o ser ao mesmo tempo. A linguagem simb�lica vai na linha do cora��o; insinua, abre, lan�a pontes. Tudo pode ser. A linguagem l�gica focaliza, conclui, vence, diz qual � o g�nero pr�ximo e a diferen�a espec�fica: � solar e masculina. A linguagem simb�lica � difusa: prop�e, entrega-se, une dois pontos quaisquer para comparar: � lunar e feminina. Na linguagem l�gica, cada coisa � tirada do leito confuso da vida, isolada, esclarecida, identificada: o operador trabalha como o mec�nico, com o motor parado. Na linguagem simb�lica, as coisas s�o deixadas na vida, misturadas, vivas, latejantes, implica das umas com as outras quem a usa trabalha como o cirurgi�o; com o organismo vivo e funcionando. A linguagem l�gica colhe e seca a flor para classific�-la: � a linguagem das ci�ncias e da matem�tica, das conquistas planet�rias. A linguagem simb�lica relaciona-se com a flor viva, irm� das abelhas,transformando-se em fruto: � a linguagem do encontro, do envolvimento com a vida, da contempla��o. Na linguagem simb�lica, o exemplo � um caso definido: “O beija-flor � uma ave”. Na linguagem simb�lica, o exemplo � uma simples alus�o � vida: “O reino � como uma semente”.

Na vida de S�o Francisco, encontramos este trecho bem caracter�stico da necessidade de linguagem simb�lica: “... embora n�o pudesse calar por causa da grandeza do amor que lhe fora inspirado, era com cautela que comunicava alguma coisa, falando em par�bolas. Assim como falara ao amigo �ntimo de um tesouro escondido, aos outros procurava falar por analogias” (1Cel 7). Mas ele passou a vida toda mergulhado no mundo dos s�mbolos:

“Depois do Irm�o Fogo, amava de modo particular a �gua, porque simboliza a santa penit�ncia e as tribula��es pelas quais as almas enxovalhadas s�o purificadas e porque a primeira ablu��o da alma se faz com a �gua do batismo.

Quando lavava as m�os procurava um lugar apropriado de modo que a �gua que ca�sse n�o fosse calcada aos p�s. Quando andava por sobre pedras, fazia-o com grande rever�ncia e respeito por amor �quele que disse que era pedra. E quando recitava o Salmo: “Sobre o rochedo me ergueste...” fazia-o com grande respeito e devo��o, e dizia: “Sobre o rochedo debaixo de meus p�s tu me ergueste”.

E recomendava ao irm�o que cortava e preparava a lenha para o fogo que jamais abatesse a �rvore inteira, mas cortasse de maneira que lhe restasse sempre uma parte intata por amor daquele que quis realizar nossa salva��o sobre o lenho da cruz. Costumava dizer ao irm�o que tomava conta da horta que n�o ocupasse todo o terreno com legumes, mas reservasse uma parte para as �rvores que, em seu tempo, produzem nossas irm�s as flores, por amor para com aquele que disse: “a flor dos campos e os l�rios dos vales”.

Recomendava ainda ao jardineiro que reservasse sempre uma parte do jardim para as ervas odor�feras e plantas que produzem belas flores a fim de que, em seu tempo, elas convidassem ao louvor de Deus os homens que vissem tais ervas e flores. Pois toda criatura diz e proclama: “Deus me criou para ti, � homem!”. N�s que vivemos com ele vimo-lo rejubilar-se interior e exteriormente � vista de todas as criaturas. Era tal o seu amor por estas maravilhosas criaturas que, ao toc�-las ou v�-las, seu esp�rito parecia n�o mais pertencer � terra, mas ao c�u” (EP 118).

S�mbolo � uma palavra grega que fala da uni�o surpreendente de duas coisas que se ajustam como duas metades embora perten�am a mundos diferentes. Os romances gregos do per�odo alexandrino tinham hist�rias de medalh�es partidos e reunidos transformando o sentido de uma vida. Michel Foucauld fez um interessante estudo, a partir do mito de �dipo, sobre as m�ltiplas “metades” que podemos ir sempre percebendo nas coisas e nos abrem um universo de descobertas. E todos n�s sabemos que a grande for�a da nossa criatividade, da mais elevada poesia � mais corriqueira anedota, est� toda na descoberta desses dois lados de uma ponte que abre para um mundo inesperado, surpreendente, maravilhoso, ou alegre. S�podemos entender a avers�o de S�o Francisco pelo dinheiro, sua proibi��o de andar a cavalo, seu di�logo com as est�tuas de neve, o ritual com que fez a acolhida de Clara... se percebermos como ele viveumergulhado no mundo dos s�mbolos, contemplando as realidades do esp�rito.

Esse � o mesmo mundo em que vivem as crian�as, os �ndios e grande parte dos povos n�o ocidentais.

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Neles, o exterior e o interior est�o muito pr�ximos e podem confundir-se a qualquer momento.

S� temos que tomar cuidado com o uso recente de uma multid�o de “s�mbolos” que, muitas vezes, n�o passam de sinais de mensagens muito claras do mesmo mundo exterior em que eles s�o usados.

Para termos um verdadeiro s�mbolo, duas coisas me parecem fundamentais. A primeira � queprovoque naturalmente um “Ah! Que surpresa!” A segunda � que toque o inconsciente coletivo, atingindo muitas pessoas. Se um s�mbolo atingir s� uma pessoa, ter� valor apenas para sua interioridade pessoal.

Mais algumas considera��es:

� interessante observarmos a pedagogia de Jesus no trabalho com a Interioridade. Jesus envolve as pessoas no seu tema do Reino com as par�bolas: ele sabe usar s�mbolos que penetram na interioridade do povo. Nas par�bolas, ele fala � interioridade para chegar ao intelecto. Talvez seja por isso que diz que alguns n�o entendem, que n�o lhes � dado entender.

Como � que n�s poder�amos descobrir, identificar e usar os s�mbolos interiores do povo para trabalhar com eles o Evangelho? Experimentar s�mbolos a partir de: ser amado, ser compreendido, vencer na vida, sarar, ser livre... Parece que precisar�amos de uma linguagem do tipo das par�bolas, que parte do simbolismo que a interioridade entende e enriquece o conhecimento do intelecto, aumentando o campo da consci�ncia.

� preciso envolver a exterioridade na interioridade. Fazer com que tudo que vivemos no exterior tenha uma profunda liga��o com o interior, at� mesmo descubra que suas verdadeiras explica��es est�o no interior.

Francisco e Clara faziam isso passando longas temporadas no maior recolhimento, isto �, foram se familiarizando com a sua pr�pria interioridade.

Este campo � vast�ssimo. Poder�amos considerar ainda a linguagem do mito, a linguagem da poesia e a linguagem dos sonhos. Como os limites deste trabalho s�o limitados, tamb�m vou me limitar simplesmente a dar uma pista inicial:

A linguagem do mito � a que idealiza e at� diviniza as for�as de toda a natureza, inclusive da interioridade, como se fossem “pessoas” poderosas agindo onde n�s n�o somos capazes de agir.

A linguagem da poesia tenta expressar coisas que s� os “olhos interiores” j� viram ou podem ver. � a linguagem de todas as artes. Quem n�o tem olhos interiores n�o consegue apreciar as obras de arte, que n�o falam ao intelecto propriamente dito: n�o s�o id�ias e racioc�nios. Por isso, muitas vezes os artistas s�o considerados “loucos” ou, pelo menos “estranhos”, “esquisitos”.

A linguagem dos sonhos. Quando a vig�lia diminui, percebemos que o inconsciente nunca p�ra de trabalhar: est� sempre formando os seus s�mbolos, porque est� sempre cruzando elementos l� de dentro. Nossa dificuldade para entend�-los pode vir pelo menos de duas coisas: a) n�o estamos acostumados � linguagem simb�lica, que eles usam; b) eles n�o ligam os opostos segundo as leis da causalidade mas segundo as leis (ou n�o-leis) da coincid�ncia. Al�m disso h� a nossa dificuldade para nos abrir para o mundo interior.

4. Francisco: a proposta dos “olhos do esp�rito”Destacando-se como um dos santos que mais cultivaram a interioridade na Hist�ria da Igreja, S�o

Francisco deixou-nos em sua vida um ensinamento forte, que podemos iluminar atrav�s de seus escritos. � a proposta de contemplar com os olhos do esp�rito.

A express�o est� na Primeira Admoestação, quando ele fala sobre a Eucaristia. Todo o texto est�permeado de abundantes express�es relativas � nossa capacidade de olhar e de enxergar, mas, quase no final, na �nica vez em todos os seus escritos em que ele usa a palavra contemplar, diz o seguinte: “E como eles (os ap�stolos) com a vis�o de sua carne s� viam a carne dele, mas criam que era Deus contemplando-o com os olhos do espírito, assim tamb�m n�s...

Os estudiosos acreditam que Francisco aprendeu os olhos do esp�rito com o Cristo de S�o Dami�o.

Toda a experi�ncia de Deus em Francisco (e Clara) � expressa atrav�s de imagens visuais. Conclus�o:

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o homem interior enxerga com os olhos o esp�rito. Olha para as mesmas coisas que todos olham, mas v� aspectos diferentes. Para Francisco, viver a interioridade � aprender a ver o mundo com os olhos de Jesus Cristo.

No concreto, parece que “ver o mundo com os olhos de Jesus Cristo” � um dar-se conta de que o amor de Deus est� presente em tudo que existe, � uma progressiva tomada de consci�ncia de, no amor de Deus, estamos mergulhados, existimos, e somos.

Evidentemente, quem percebe o amor de Deus nas coisas e nas pessoas tem uma vis�o muito diferente da que � vivida pela maioria do g�nero humano.

E h� um aspecto importante: Embora fa�a muitas compara��es entre o espiritual e o carnal, Francisco n�o estabelece um dualismo alma/corpo. Ele pensa � no espiritual do “Ruah”, o esp�rito de Deus que foi tomando conta e continua a tomar conta e deve continuar sempre a ir embebendo tudo, at� transformar tudo. Alma e corpo s�o espirituais e atravessados pelo esp�rito de Deus. A “carne” b�blica � o anti-esp�rito, ou o esp�rito do mundo contra Deus, o esp�rito do ego�smo.

Outra observa��o importante. � o “esp�rito da carne” que se apropria das coisas e das pessoas. Por isso, Francisco e Clara n�o querem ter nada de pr�prio. Se o momento presente testemunha uma polaridade entre “esp�rito” e “carne”, essa polaridade deve acabar: o esp�rito de Deus vai soprar em um s� sentido.

Outro ponto: Enxergar com os olhos do esp�rito � enxergar com os olhos de Jesus Cristo. Quanto mais eu enxergo com os olhos do esp�rito, mais estou me transformando em Cristo. Quanto mais me transformo em Cristo, mais uso os olhos do esp�rito. Por isso, tamb�m � fundamental na proposta franciscana, como vamos ver adiante, que vivamos um processo consciente e transforma��o constante em Jesus Cristo.

A cria��o art�stica pode ajudar a entender os “olhos o esp�rito”. Na arte, por exemplo, eu posso dar olhos a uma pedra. Imaginemos que uma pedra, de modo semelhante ao nosso, pudesse enxergar as outras coisas. Ela poderia participar do mundo das plantas e do mundo dos animais e at� do mundo dos homens interagindo com eles como eles interagem entre si.

Nesse caso, a pedra com olhos, que � mera cria��o minha, n�o interage no mundo exterior, mas s� no meu mundo interior. As pedras de todo o mundo continuam a ser o que sempre foram, mas eu nunca mais serei o mesmo depois de ter aprendido a interagir com as pedras... � um olhar com a mente, a alma e o cora��o: com a interioridade. � um olhar que transforma o contemplador

Qualquer artista � contemplador em certo sentido e por isso deixa aberta a interioridade e descobre “metades” com o mundo criativo do mist�rio. Mas o santo descobre “metades” com a luz do esp�rito, diretamente no mundo de Deus.

Quando tiverem tempo, reflitam, com a luz dos “olhos do esp�rito”, sobre estes dois epis�dios narrados a respeito de S�o Francisco: o dia em que fez Frei Masseu girar como um pi�o para descobrir o caminho que deviam seguir, e o dia em teria ensinado um novi�o a plantar couves com a raiz para cima. No primeiro caso, ele mostra que sabia viver no mundo da “n�o-causalidade”. No segundo, ensina que os que seguem o caminho evang�lico dos franciscanos v�o ter que enxergar muitas coisas no avesso da vis�o de “todo mundo”.

� contemplativo quem tem o inconsciente aberto para Deus, percebe “metades” de Deus em todas as coisas. Suas observa��es n�o podem ser provadas, porque n�o s�o “racionais”. Para comunica-las, n�o pode usar formula��es l�gicas: tem que usar os s�mbolos, que atuam sobre o inconsciente coletivo e atingem o inconsciente pessoal dos outros. Para o outro perceber, � preciso que o s�mbolo seja v�lido e que ele tamb�m tenha o inconsciente aberto.

Creio que est�o a� os “olhos do esp�rito”: perceber metades de Deus em todas as coisas, ou em muitas coisas ver que elas s�o “metades de Deus”, relacionadas com Deus. A pessoa enxerga com um inconsciente iluminado pela gra�a. Os que n�o enxergam, como os que n�o aceitaram a luz de Cristo (cfr. Evangelho de S�o Jo�o), seriam os trancados para o mundo interior por causa de seus interesses, principalmente possessivos, no mundo exterior.

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Um contemplativo como Francisco e Clara, enxerga Deus na Cruz. Isto �, nas duas travessas de tudo que parece se chocar sempre � capaz de ver duas “metades”. Uma “metade” � exterior e a outra sempre � “interior”.

Descobrir essas duas metades � descobrir a criatividade. Criar � fazer algo novo: fazemos algo novo quando juntamos duas coisas e tiramos uma terceira. Pode haver uma cria��o mental, que � produto da uni�o de duas id�ias abstratas. E pode haver uma cria��o simb�lica: produto da descoberta de que duas coisas – uma do exterior e outra do interior – podem constituir duas “metades” de algo novo e renovador. Na cria��o mental h� um jogo de causalidade; na cria��o simb�lica h� um jogo de coincid�ncias. A cria��o mental abre os campos da mente e “inventa”. A cria��o simb�lica abre os campos do mist�rio e est� sempre empreendendo uma busca que n�o vai cessar, vai passar para o infinito.

5. Clara: a proposta do “espelho”

Santa Clara tem uma experi�ncia espantosamente pr�xima da de S�o Francisco, mas � absolutamente original. Em vez dos “olhos do esp�rito”, ela tem a proposta do “espelho”.

O mundo crist�o sempre conheceu a figura paulina do espelho. Mais citada era a passagem da 1� Carta aos Cor�ntios: “Agora vemos como em espelho e de maneira confusa; mas depois veremos face a face. Agora o meu conhecimento � limitado, mas depois conhecerei como sou conhecido” (1Cor 13,12). Clara parece basear-se mais no texto da 2� Carta aos Cor�ntios: “E n�s que, com a face descoberta, refletimos como num espelho a gl�ria do Senhor, somos transfigurados nessa mesma imagem, cada vez mais resplandecente pela a��o do Senhor, que � Esp�rito” (2Cor 3,18).

Certamente lembrava tamb�m a passagem da Carta de S�o Tiago que diz: “Quem ouve a palavra e n�o a pratica � como algu�m que observa no espelho o rosto que tem desde o nascimento; observa a si mesmo e depois vai embora, esquecendo a pr�pria apar�ncia...”(Tg 1,23). E n�o podemos duvidar de que conhecesse a maneira medieval de usar a palavra espelho: como uma esp�cie de paradigma ou modelo de comportamento.

Vivendo a contempla��o na mesma perspectiva de Francisco, isto �, com os olhos, Clara prop�e que contemplemos Jesus Cristo como um espelho. Na terceira carta a In�s de Praga, apresenta um texto monumental sobre o que � a contempla��o: p�r tudo que se � em Jesus Cristo e deixar-se transformar por ele. Vejamos o texto:

“Ponha a mente no espelho da eternidade. Coloque a alma no esplendor da gl�ria. Ponha a mente na figura da subst�ncia divina e transforme-se, inteira, pela contempla��o, na imagem da divindade” (3CtIn 12-23).

Espelho da divindade – no espelho, n�s nos vemos projetados. Clara diz que, no espelho que � Jesus Cristo, podemos ver-nos projetados at� no que somos l� dentro. Em Cristo, � poss�vel ver nossa Interioridade. Evidentemente, � preciso conhec�-lo atrav�s dos Evangelhos e de tudo que o Povo de Deus j� adquiriu e os santos j� viveram para poder ver nele o que � que n�s somos por dentro. O espelho � comum: mostra uma interioridade que � coletiva, porque todos somos igualmente humanos. Mas o espelho tamb�m � particular: mostra em que eu sou diferente.

Esplendor da Gl�ria – � o Jesus Cristo que � Luz, como encontramos em S�o Jo�o. S� essa luz pode ir abrindo caminho na riqueza das “trevas” da interioridade, como fez com S�o Francisco desde a Oração diante do Crucifixo at� o Cântico do Irmão Sol.

Figura da Subst�ncia divina – fazer figuras � trabalhar com o dedos, � p�r as m�os. O trabalho com a interioridade n�o � fuga da realidade: exige que se “ponha as m�os” para criar alguma coisa concreta. Em Jesus Cristo, Deus criou alguma coisa concreta que saiu do mundo do esp�rito.

Mas a proposta � completada na quarta carta, quando escreve:“Olhe dentro desse espelho todos os dias, � rainha, esposa de Jesus Cristo, e espelhe nele, sem cessar, o seu rosto, para enfeitar-se toda, interior e exteriormente, vestida e cingida de variedade... pois nesse espelho resplandecem a bem-aventu-rada pobreza, a santa humildade e a inef�vel caridade, como, nele inteiro, voc6e vai poder contemplar com gra�a de Deus” (4CtIn 15-8).

Clara continua a desenvolver o seu m�todo:“Preste aten��o no princ�pio do espelho: a pobreza daquele que, envolto em panos, foi posto no pres�pio! Admir�vel humildade, estupenda pobreza! O rei dos anjos repousa numa manjedoura. No meio do espelho, considere a humildade,

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ou pelo menos a bem-aventurada pobreza, as fadigas sem conta e as penas que suportou pela reden��o do g�nero humano. E, no fim desse mesmo espelho, contemple a caridade inef�vel com que quis padecer no lenho da cruz e nela morrer a marte mais vergonhosa” (4CtIn 19-23).

No cerne da proposta de Clara est� a palavra transformar-se. Para ela, contemplar � contemplar Jesus –a manifesta��o do amor de Deus – e contemplar Jesus � deixar-se transformar totalmente por ele. � fazer-se um outro Cristo.

Nossa cultura contempor�nea tem um bocado de dificuldade para entender essa palavra transformar-se. � mais f�cil n�s falarmos em evolu��o e em progresso. Creio que a diferen�a � esta: Transformar-se � interior, promover o progresso � exterior. Quem se transforma poder� promover um progresso de acordo com o esp�rito de Cristo. Quem s� promove o progresso sem se transformar estar� desumanizando ou, na melhor das hip�teses, fazendo buracos na �gua.

Mas Clara n�o se limita a dizer que � preciso contemplar Jesus. Ele mostra as etapas: Primeiro a gente tem que aprender a ficar pobre como o Jesus do pres�pio – quem possui, n�o pode nem come�ar o processo. Depois a gente tem que aprender a ser humilde como o Jesus que viveu em Nazar� e pregou na Terra Santa – quem n�o se reduz ao ch�o (humus) n�o encontra o Deus do Evangelho. E, finalmente, a gente tem que se expandir em um amor t�o grande como o de Jesus na Cruz – Deus � Amor.

Para Clara, quem fizer todo esse processo ter-se-� deixado transformar por dentro e por fora, interior e exteriormente.

6. Como trabalhar a Interioridade

As propostas para um trabalho na interioridade podem ser muitas. Eu mesmo costumo trabalhar em diversos setores. Aqui, pretendo desenvolver apenas duas considera��es b�sicas: uma sobre a necessidade da Pobreza para qualquer contato mais profundo com o mundo interior; outra sobre uma considera��o de S�o Boaventura a respeito da santifica��o de S�o Francisco.

1. A pobreza é imprescindível

Vou fazer uma abordagem um pouco diferente da pobreza, partindo do que alguns estudiosos chamam de “hist�ria da consci�ncia”.

Todos sabemos que um dos maiores apan�gios dos humanos � gozar de uma consci�ncia, at� bastante ampla: isto �, n�s sabemos quem somos e o que est� acontecendo conosco. Mas tamb�m sabemos que a consci�ncia tem uma hist�ria: cresce com as crian�as e cresce com o desenvolvimento dos povos.

J� se apontaram at� algumas fases da hist�ria da consci�ncia: a m�gica, a m�tica e a mental.

A) Na m�gica, como as crian�as pequenas e como os povos primitivos, n�s nos damos conta de tudo que acontece ao nosso redor, mas nem pensamos em explicar nada: nem indagamos as causas das coisas –tudo acontece como que por m�gica.

B) Na m�tica, as crian�as e os povos que come�am a crescer j� se preocupam com a pergunta: “Quem faz tudo isso que vemos acontecer?” E os mais espertos j� tentar identificar os autores e respons�veis como figuras m�ticas e tratando at� de conseguir as suas boas gra�as. Fazer um mito � tentar explicar que for�as sobre-humanas realizam maravilhas que os mortais comuns n�o podem fazer.

C) Na mental, pessoas e povos adultos j� conhecem, mais ou menos cientificamente, as causas das coi-sas.

Ora, na medida em que essas fases v�o se sucedendo, as pessoas v�o mudando sua maneira de se relacionar com as coisas. Na fase m�gica, como as plantas e os animais, as pessoas se sentem parte da natureza, totalmente dentro dela, na interioridade dela. Na fase m�gica, j� conseguem sentir-se um pouco fora do comum da cria��o, pelo menos na medida em que s�o capazes de dar explica��es. Come�am aficar exteriores. Na fase mental, como j� acham que d�o explica��o para tudo, as pessoas se sentem totalmente fora desse mundo que est� a�. O mundo � exterior.

Como conseq��ncia, todos podemos constatar que a humanidade, em sua fase mental, estabeleceu tr�s princ�pios fundamentais de a��o: 1) Tudo que eu pegar � meu; 2) Quando mais coisas eu possuo, mais eu mando; 3) Quando mais eu mando, mais eu sou importante e os outros t�m que me respeitar. Toda a nossa

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sociedade se fundamenta nesses tr�s princ�pios.

S�o Francisco e Santa Clara tiveram olhos para perceber que Jesus Cristo viveu sem dar nenhuma import�ncia a esses nossos postulados. Que, al�m disso, ensinou no Serm�o da Montanha que eles estavam errados e, sendo tentado no deserto justamente para aceitar os nossos princ�pios, recusou-os terminantemente. Jesus at� resumiu toda a sua atitude quando ensinou: “Eu n�o vim para ser servido, eu vim para servir”. Se aceitamos o Evangelho, n�o podemos aceitar esses tr�s princ�pios do eu tenho, eu mando, eu sou importante.

Quem quer aproveitar o mundo interior, tamb�m n�o pode aceitar esses princ�pios, tem que aceitar a proposta evang�lica de ser servidor. Porque, mesmo que aceitemos s� o primeiro princ�pio (Clara e Francisco rejeitaram-no propondo-se a viver “sem nada de pr�prio”) j� perdemos a entrada no mundo interior, porque, quando possu�mos, obstru�mos toda a livre comunica��o com o mundo sem medidas do mist�rio.

Como Francisco ficou Santo

Acredito que toda a Legenda Maior � uma proposta de trabalho na interioridade, porque S�o Boaventura fez a biografia de Francisco de Assis estudando o processo que ele viveu para ir se transformando em um santo.

Para ser concreto, vou citar e desenvolver um par�grafo especialmente significativo da Legenda Maior:

“A verdadeira piedade... enchera o cora��o de Francisco compenetrando-o t�o intimamente, que parecia dominar totalmente a personalidade do homem de Deus. Nasciam da� a devo��o que o elevava at� Deus, a compaix�o que fazia dele um outro Cristo, a amabilidade que o inclinava para o pr�ximo, e uma amizade com cada uma das criaturas, que lembra nosso estado de inoc�ncia primitiva” (LM VIII, 1).

Essa passagem de S�o Boaventura coincide plenamente com a proposta de Carl G. Jung quando diz que � fundamental para todos n�s trabalhar mos quatro arqu�tipos b�sicos: o Eu-mesmo, Deus, o Pr�ximo e as Criaturas. Por isso, vou aproveitar os ensinamentos modernos de Jung para reler o texto medieval de Boaventura.

1. Autenticidade - o encontro consigo mesmo – Com este arqu�tipo trabalhamos no “Mist�rio do Eu”. Autenticidade � o que faz com que cada um de n�s seja “ele mesmo” (em grego, ó autós). Quando nascemos, ainda n�o sabemos que somos algu�m. Sentimo-nos parte de nossa m�e. Mas, gra�as ao arqu�tipo da autenticidade, devagar vamos descobrindo que h� um sujeito de tudo que fazemos. Chegamos a descobrir o nosso eu consciente, o Ego. Ele � o centro de toda a nossa consci�ncia.

Pouco a pouco, come�amos a descobrir tamb�m que ignoramos muitas coisas sobre o que vai l� por dentro desse eu. Uma das leis de ouro dos antigos foi: “Conhece a ti mesmo”. Porque, de fato, o nosso tesouro est� l� dentro de n�s.

Al�m disso, este arqu�tipo � que propicia uma tens�o entre o consciente e o inconsciente, pela qual vamos podendo estabelecer um relacionamento harmonioso entre o Ego e o Self.

Como o centro da nossa consci�ncia � constitu�do pelo Eu, sup�e-se que o inconsciente seja centralizado por um eu interior, muito mais amplo e abrangente, a que Jung deu o nome de Self (= eumesmo). O Self � um dos arqu�tipos, o arqu�tipo em torno do qual se constelam todos os outros. Por isso, o trabalho com a interioridade, que estamos continuamente chamando de “processo de individua��o”, pressup�e uma comunica��o entre o Eu e o Self, da forma mais aberta que for poss�vel.

� claro que se trata da comunica��o que � uma tens�o entre dois p�los opostos: o Eu da exterioridade e o Eu da interioridade, o do consciente e o do inconsciente. Ser aut�ntico � viver da melhor forma poss�vel essa tens�o em toda a sua din�mica e em toda a sua positividade. � claro que n�o somos aut�nticos quando o nosso eu est� identificado com as m�scaras exteriores, quando est� perdido e � merc� de todos os impulsos do inconsciente que o jogam para todos os lados, sem sentido.

O trabalho da autenticidade consiste em integrar progressiva e positivamente ao nosso Eu tudo que pudermos ir descobrindo no espa�o do nosso inconsciente. Ou em ir harmonizando o nosso mundo exterior cada vez mais com o nosso mundo interior.

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Para descobrir o pr�prio Eu e o Eu Mesmo � preciso n�o confundi-los nem com m�scaras, nem com for�as ou pessoas externas, nem com nenhum deus. A tenta��o de “ser como Deus” � um tem�vel engano porque come�a impedindo a autenticidade.

� bom notar que temos que ser aut�nticos para n�s mesmos. N�o � um problema de relacionamento com os outros. Na vis�o crist�, cada um de n�s � �nico e vai durar para sempre. Por isso, o desenvolvimento da autenticidade � tremendamente importante.

S�o Francisco rezava: “Quem sou eu, Senhor?” com a resposta: “Sou um miser�vel vermezinho, um pecador”. Mas � claro que ele n�o descobriu em si mesmo apenas coisas negativas, pois louva a Deus por todo o bem que lhe fez.

Um dos primeiros requisitos da autenticidade � querermos conhecer e aceitar a verdade sobre n�s mesmos, com tudo que tiver de bom e de mau. Ningu�m vai ter coragem de aceitar o que � mau se n�o tiver tido boas experi�ncias do que possui de bom em sua interioridade. Mas n�o podemos querer esconder nada de n�s mesmos. Para nossa sa�de total, � mais importante querer ser honesto do que querer ser bom. Porque, sem isso, nunca somos livres.

Outro requisito importante � que, na realidade, nunca posso dizer exatamente que “sou”: estou “me tornando”, porque a minha autenticidade � din�mica e ainda n�o foi completada. Certamente n�o ser� completada em nosso per�odo de vida terrena. O reconhecimento desta verdade � importante inclusive para entendermos que nossos erros podem ser aproveitados para irmos construindo os nossos acertos.

Tamb�m � fundamental reconhecer que, por mais insignificante que nos pare�a nosso “papel”, ele � sempre insubstitu�vel: n�o temos que imitar ou pedir emprestado o papel de outros e nunca vamos ser felizes atuando em um papel falso. A felicidade � alcan�ada justamente quando se consegue viver s� e unicamente o nosso papel verdadeiro. Sobre S�o Francisco, lemos na Legenda Maior: “Aos pr�prios olhos, era apenas um pobre pecador. Na realidade, por�m, era o espelho resplendente de toda santidade. Como um arquiteto prudente, que come�a pelas funda��es, ele se empenhou de corpo e alma a construir unicamente sobre a humildade, conforme aprendera de Cristo... Gostava de repetir esta m�xima: “O homem � o que � diante de Deus, nem mais nem menos” (LM VI,I).

Um aspecto s�rio dessa verdade � convencer-nos de que � imposs�vel destruir ou reprimir qualquer coisa que for real em n�s mesmos. E que n�s temos a tenta��o de faz�-lo quando ficamos olhando o papel dos outros o achando melhor que o nosso. No caso, temos que ir trabalhando pacientemente com nossos problemas at� descobrir como podemos encaminh�-los de uma maneira verdadeiramente positiva para n�s.

2. Significância - o encontro com Deus. – � aqui que podemos falar do mist�rio de Deus. Signific�ncia � o que faz com que descubramos, pouco a pouco, o que � que n�s significamos para Deus. E, evidentemente, o que � que Deus significa para n�s. Aqui, j� come�a a ficar claro que n�o somos sozinhos no mundo.

A palavra � mesmo “Signific�ncia” e n�o” significado”. Trata-se do valor de ter significado. � uma palavra que usamos pouco, apesar de conhecermos mais o seu ant�nimo: insignific�ncia.

Na Signific�ncia, temos a oportunidade de manter uma tens�o equilibrada entre Deus e o nosso ego, pela qual descobrimos o nosso verdadeiro destino e Signific�ncia no plano de Deus.

Para sermos plenos, temos que corresponder � imagem particular que Deus imprimiu em nosso cora��o. Temos que ser a express�o verdadeira do plano de Deus para n�s. E isso � uma tarefa de toda a vida, em que � importante saber sempre onde estamos e quais s�o os pr�ximos passos a ser dados.

� importante observar que estamos falando do relacionamento do Eu com o arqu�tipo de Deus, isto �, com Deus como o descobrimos em nossa interioridade. Deus � um ser em si mesmo, que n�o depende de mim nem de ningu�m para existir. Mas eu o encontro na medida limitada de minha capacidade. “Tudo que � recebido, diziam os antigos, � recebido na medida do recipiente”, isto �, de quem recebe. Eu me relaciono com a pessoa de Deus na mesma medida em que acolho e desenvolvo toda essa minha capacidade de acolher e viver Deus, que � o arqu�tipo.

Dai a import�ncia de trabalharmos a nossa interioridade, fazendo crescer a presen�a do Senhor dentro

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de sua criatura, deixando que o nosso Eu seja cada vez mais adorador do Alt�ssimo.

Eu encontro Deus dentro de mim, mas Ele n�o est� s� a�, nem por isso � algo meu: um objeto de que eu posso dispor ou uma for�a que eu tenho. Pelo contr�rio: eu sou uma criatura dele. Isso n�o me diminui: � toda a minha grandeza, porque Ele me criou com amor ao mesmo tempo infinito (pois se deu inteiro) e particular, pois me ama como se u fosse o �nico.

Ser criatura � poder gerar energia com Deus na outra ponta. A gra�a e a natureza s�o os p�los dessa energia. � como se f�ssemos instrumentos musicais: se estivermos afinados com Deus, tudo que ele tocar ressoar� em n�s. E tudo que n�s tocarmos ter� sua resson�ncia em Deus. � assim que vai sendo criada a grande harmonia do louvor universal. Um louvor que nos realiza. De certa maneira, podemos dizer que Deus, depois de nos ter criado, “precisa” de nossa nota.

Em S�o Francisco, encontramos a outra parte da ora��o: “Quem sois v�s, Senhor? O Alt�ssimo, o Sant�ssimo, Todo Poderoso, Todo Bom”. Mas, uma vez, contou aos frades: “Roguei ao Senhor que sedignasse mostrar-me quando sou seu servo e quando n�o o sou, pois n�o desejaria ser outra coisa sen�o seu servidor. Ent�o o Senhor se dignou responder-me: “�s realmente meu servo quando ages e pensas santamente” (EP 74). Santamente quer dizer: completamente de acordo com o �nico Santo, que � Deus.

� a partir daqui que adquire sentido nossa preocupa��o com a Justi�a, porque Deus � o par�metro da nossa justi�a, e n�o n�s mesmos.

O encontro da Signific�ncia n�o serve apenas para dar um passo � frente. Ele tamb�m volta atr�s, constituindo uma das maiores for�as para nos tornarmos aut�nticos. Com ele, a nossa exist�ncia adquire a dimens�o do infinito.

3. Transpar�ncia – encontro com o pr�ximo. – Agora, podemos falar do mist�rio do Outro. Transpar�ncia � o arqu�tipo pelo qual conseguimos abrir-nos para os outros seres humanos. � o encontro do “alter-ego”, do irm�o. N�o sou s� eu que existo, nem somos s� Deus e eu.

Aqui, estamos em tens�o com o outro. A primeira experi�ncia de Transpar�ncia j� come�a diante de nossa pr�pria m�e, cresce com o encontro do pai e vai se tornando real com o encontro dos irm�os e das outras pessoas que temos na mesma casa paterna. � onde se constr�i o amor fraterno.

Essas primeiras experi�ncias s�o as que v�o gerar nossas m�scaras, primeiro obst�culo para a Transpar�ncia. Mas s�o tamb�m os muitos encontros da vida que poder�o ajudar a vencer as m�scaras e a construir uma Transpar�ncia aut�ntica. Porque a Transpar�ncia vai ser a luz para confirmar e purificar tanto a Autenticidade quanto a Signific�ncia. O pr�ximo n�o � eu e n�o � Deus.

Temos que nos convencer de que n�o fomos criados para n�s mesmos mas para Deus, para os outros, para o mundo. Cada um de n�s � a Transpar�ncia de um ponto especial, mesmo que muito pequeno no conjunto, da beleza, da bondade, da verdade de Deus. N�s precisamos ser essa Transpar�ncia, e os outros precisam dessa nossa Transpar�ncia. Somos seres em rela��o.

Fa�o aqui a mesma observa��o do par�grafo anterior: estamos tratando antes de tudo do relacionamento do nosso Eu com os arqu�tipos das outras pessoas como existem dentro de n�s. Porque cada pessoa � tamb�m um mist�rio infinito, ou pelo menos indefinido, e n�s a conhecemos na medida restrita que nos permitimos ter de cada um. Cada pessoa � sempre – mesmo que viva cinq�enta anos ou mais ao nosso lado – uma surpreendente revela��o do Outro. O Outro � sempre algu�m que tem muita semelhan�a conosco mas, fundamentalmente, n�o � quem n�s somos. O Outro se revela e ao mesmo tempo nos revela. Tanto nos revela a n�s mesmos quanto consegue revelar-se. E n�s tamb�m o revelamos a si mesmo quanto conseguimos revelar-nos. Da� a fundamentalidade do arqu�tipo da Transpar�ncia, que torna todos os outros transparentes a n�s na medida em que n�s mesmos somos transparentes, para n�s e para os outros.

Essa � uma das mais importantes bases da contempla��o, porque contemplar � sempre enxergar atrav�s.

Nossa Transpar�ncia nunca � perfeita e l�mpida. Mas, se n�s a trabalharmos, ela vai sendo uma revela��o progressiva, que s� se faz com muito amor – da nossa parte e da parte de outras pessoas – e esse vai ser o melhor tratamento para chegarmos a nossa pr�pria autenticidade. Todos precisamos de

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pessoas que, a qualquer t�tulo, estejam o mais pr�ximo poss�vel de n�s. Que tenham permiss�o para enxergar a verdade l� dentro, com o bem e com o mal. Todos precisamos de alguma forma de“confessor”.

Se nosso desejo de amar for leg�timo, vamos lutar para manter abertas todas as portas do nosso auto-conhecimento. Porque s�o as mesmas portas do amor. N�o podemos escolher sempre a hora e o lugar de ficar conhecendo a verdade sobre n�s mesmos. Temos que confiar que Deus saber� faz�-lo atrav�s de nossos amigos.

Uma imagem interessante para nossa reflex�o: o espelho. � um objeto que reflete e n�o transparece. Nele n�s vemos a n�s mesmos, at� quando temos os outros bem concretos na nossa frente. Por isso, nossa vida tem que ultrapassar os espelhos. Quando deixamos de ser transparentes ficamos isolados, vamos crer que somos deuses e que os outros n�o passam de reflexos dos nossos pensamentos.

� a partir daqui que adquire sentido nossa preocupa��o com a Paz, porque, se n�o h� outros que nos equilibrem, n�o h� entendimento e vamos querer dispor das pessoas como se nos pertencessem. Quando n�o somos transparentes negamos nossa verdadeira imagem n�o s� aos outros mas tamb�m a n�s mesmos, porque � na Transpar�ncia de uns para com os outros que conhecemos a verdade.

Os outros sempre t�m aspectos muito variados, em circunst�ncias sempre surpreendentes, que revelam aspectos nossos que n�s mesmos n�o conhec�amos.

4. Solidariedade - o encontro com as criaturas – � o arqu�tipo pelo qual experimentamos a nossa unicidade dentro do resto da ra�a humana e mesmo dentro de toda a cria��o. Trata-se, aqui, do equil�brio com todos os outros seres. Creio que � onde podemos falar mais verdadeiramente do “Mist�rio da Fraternidade”. � onde descobrimos todas as criaturas.

Vou percebendo que n�o sou s� eu, Deus e os outros perto de mim. Tamb�m a humanidade em geral, os animais e as “coisas” s�o importantes para o que n�s mesmos devemos ser. Quanto mais temos oportunidade de nos compararmos com outros seres, mais nos aprofundamos na constru��o de nossa autenticidade. At� mesmo em nossa individua��o.

Na solidariedade, descobrimos quanto somos relativos, porque nos damos conta de que a orquestra do louvor a Deus � sem fim e n�s s� temos uma nota no conjunto harm�nico de toda a sinfonia da vida. S�o Francisco enriquece-nos, neste ponto, com o Canto do Irm�o Sol, ou C�ntico das Criaturas, onde todas elas s�o chamadas de irm�s. Celano captou bastante bem o porqu� dessa atitude:

“Embora desejasse sair logo deste mundo como se fosse um ex�lio de peregrina��o, este feliz viajante sabia aproveitar o que h� no mundo, e bastante... Louvava o Criador em todas as suas obras e sabia atribuir os atos ao seu Autor. Exultava em todas as obras das m�os do Senhor e enxergava a raz�o e a causa vivificantes atrav�s dos espet�culos que lhe davam prazer. Nas coisas belas reconhecia aquele que � o mais belo, e que todas as coisas boas clamavam: “Quem nos fez � �timo!” Seguia sempre o Amado pelos vest�gios que deixou nas coisas e fazia de tudo uma escada para chegar ao seu trono. Abra�ava todas as coisas no afeto da sua devo��o �mpar e falava com elas sobre o Senhor, convidando-as a louv�-la. Poupava os candeeiros, l�mpadas e velas, porque n�o queria apagar com sua m�o o fulgor que era um sinal da luz eterna...” (2Cel 165).

Francisco foi aprendendo aos poucos o caminho da solidariedade, na medida em que experimentou contatos com os diversos “irm�os”:

“... Da� para frente, passou a exortar com solicitude todos os p�ssaros, animais, r�pteis e mesmo as criaturas insens�veis para louvarem e amarem o Criador, porque, todos os dias, invocando o nome do Salvador, conhecia a sua obedi�ncia por experi�ncia pr�pria” (1Cel 58).

Santa Clara, “quando mandava as irm�s auxiliares fora do mosteiro, exortava-as a que, quando vissem as �rvores bonitas, floridas ou frondosas, louvassem a Deus; e fizessem o mesmo quando vissem os homens e as outras criaturas” (ProcC 14,9). N�o �-toa, escreveu a Santa In�s de Praga: “Voc� e todas as criaturas est�o contidas em Deus” (3Ctln 26).

Para nos darmos conta da import�ncia deste arqu�tipo, basta recordar que. atrav�s da hist�ria, o ser humano j� caiu nos extremos de fazer �dolos e fetiches de diversas criaturas e tamb�m de exterminar animais, florestas, minerais e at� objetos com a mais estranha insensatez. J� se considerou rei indiscriminado das criaturas e se faz seu escravo com a maior facilidade. O homem j� se mediu e se mede pela posse de terras, animais, metais... em que se “coisifica” e reduz seus horizontes.

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� a partir daqui que adquire sentido nossa preocupa��o com a ecologia. O equil�brio de todas as criaturas e de toda a natureza s� pode ser apreciado e eficazmente desejado por quem sabe que papel tem no concerto de todas as obras do Senhor. E com um sentido hist�rico.

� imposs�vel ser possuidor, propriet�rio indiscriminado ou id�latra e ser contemplativo, livre para ver o Senhor em todas as suas criaturas.

7. O processo interior

O psic�logo C.G. Jung propunha o aprofundamento interior como um processo, que ele chamava de “processo de individua��o” ou, em outras palavras, o caminho atrav�s do qual uma pessoa vai descobrindo e realizando a verdadeira autenticidade, o indiv�duo �nico que ela nasceu para ser.

Creio que, na perspectiva da espiritualidade franciscana, podemos muito bem falar em um PROCESSO DE CRISTIFICA��O, isto �: como podemos conduzir nossa tarefa de nos realizarmos como pessoas transformando-nos progressivamente em outros cristos, como fez S�o Francisco.

A nossa tradi��o franciscana tem um modelo excelente dessa proposta no “ltiner�rio da Mente a Deus”, de S�o Boaventura. Outras espiritualidades falam muitas vezes em “m�todo”. Eu insisto na palavra “processo” para sublinhar que n�o se trata de uma simples “proposta de caminho”, por mais bem delineada que seja, mas de um acompanhamento da transforma��o pessoal e do crescimento vital. Eu diria que, se o itiner�rio � mapa para a excurs�o, o processo � a pr�pria viagem. E penso na viagem como em uma vida que se transforma e cresce, mas com um sentido de busca, e at� mesmo com um sentido de resposta ao chamado de Deus, que come�ou um di�logo com cada um de n�s quando nos criou.

Pro-ceder � ir sempre para a frente. No Processo de Individua��o, a pessoa busca primeiro afirmar-se no mundo exterior e depois faz o trabalho de afirma��o no mundo interior. Fazer o processo � descobrir o mist�rio do pr�prio Eu e realiz�-lo.

Para ajudar nossa reflex�o, eu lembraria que os medievais tamb�m falavam em um “processoalqu�mico”: a alquimia, primeira vers�o da atual qu�mica, misturou o material com o espiritual. Quasetodo mundo sabe que os alquimistas queriam descobrir a “pedra filosofal” capaz de transformar alguns materiais em ouro, mas poucos t�m conhecimento de que o que os empolgava de fato era descobrir como transformar o homem interior.

Na �poca, todo mundo conhecia uma hist�ria popular que dava bem o sentido do processo: era o “Mito do Santo Graal”, cujas influ�ncias percebemos no pr�prio S�o Francisco e mesmo em S�o Boaventura. A pessoa estava sempre em uma busca de algo sagrado: ou o c�lice de Jesus ou o gostinho de um certo peixe saboreado na inf�ncia. Na realidade, estava procurando descobrir o sentido profundo da pr�pria vida.

Creio que � fundamental, em nossos dias, termos essa vis�o de um projeto de vida, que deve come�ar desde que o candidato se apresenta para entrar na Ordem e ser diligentemente conduzido at� o dia de nos apresentarmos diante de Deus.

Lembro at� que, na Igreja Oriental, o que n�s nos acostumamos a chamar de “Dire��o Espiritual” ou “Orienta��o espiritual” recebeu o nome de Mistagogia: como nos conduzir atrav�s do caminho m�stico.

O processo de cristificação tem que ser um processo de liberta��o. Para isso, tem que ser um processo de empobrecimento, porque s� o pobre � verdadeiramente livre. Mas essa pobreza s� cresce na medida em que � aumentada a depend�ncia total de Deus, ou, em outras palavras, na medida em que algu�m consegue se desapropriar. Quando “tentamos” ser propriet�rios, violentamoa a natureza das coisas e desumanizamos as pessoas.

Ao mesmo tempo, � um processo de humaniza��o. Francisco e Clara foram verdadeiros “humanistas”. N�o de um humanismo que fica no te�rico ou no cuidado de si mesmo, mas de um humanismo que transforma o mundo para que o homem seja o que Deus sonhou para ele.

Por isso, nesta parte conclusiva, quero fazer uma proposta de Processo de Cristificação, em quepretendo apontar o objetivo, as metas, a pol�tica de a��o e os meios.

1. Objetivo - Todos n�s, desde os primeiros passos da entrada na Ordem, dever�amos ter uma vis�o

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muito clara de que nosso objetivo � realizar a pessoa que n�s somos na comunh�o com Deus. Para isso, temos que descobrir progressivamente o Cristo que vive em nossa interioridade para que ele possa ir saindo e transformando nossa vida. � essa vis�o que d� o sentido do humanismo franciscano, bem expresso j� nos escritos de S�o Francisco e de Santa Clara.

Para refor�ar, recordo que todas as biografias medievais de S�o Francisco tentam mostrar como ele foi um outro Cristo, como realizou a imagem pessoal de Jesus Cristo. � um est�mulo que nenhum franciscano devia perder.

2. Metas - As metas s�o resultados que podemos determinar de antem�o, qualitativa e quan-titativamente. Creio que, � luz de nossa tradi��o franciscana, cada um vai ter que deixar bem claro para si mesmo quanto e como pretende ser: a) um pobre como Jesus Cristo, um menor a servi�o de todos; b) um irm�o entre os seus irm�os, mas tamb�m irm�o de todas as pessoas e de todas as criaturas; c) um ap�stolo que se entende sempre a caminho, sem bolsa nem cajado, para anunciar a boa nova do Evangelho. Isso, para dizer o m�nimo. As metas t�m que ser concretizadas por cada um, e cada dia melhor.

3. Política de Ação - Ainda que metas sejam sempre um alvo perseguido, que se vai alcan�ando aos poucos, nossa maneira de agir tem que ser, desde o come�o, a de um franciscano, isto �: temos que agir sempre como irm�os, sempre como itinerantes, sempre como pobres no sentido mais forte do Evangelho.

4. Meios - Temos que lan�ar m�o dos que a Ordem coloca � nossa disposi��o: a viv�ncia da fraternidade; a ora��o, principalmente contemplativa; o estudo, principalmente o da Palavra de Deus e o do nosso pr�prio conhecimento; todas as iniciativas da fraternidade, seja uma obra apost�lica, seja um dia de retiro.

Concluindo - Talvez seja aqui o momento de perceber que a proposta de S�o Francisco na Primeira Carta aos Fi�is � justamente a de um processo de crescimento em que s� caminham os que “fazem penit�ncia”, porque est�o enxergando com os olhos do esp�rito e sabem o que acontece na interioridade. Os que n�o fazem penit�ncia, como n�o sentem falta de Jesus Cristo, continuam a buscar s� as riquezas exteriores, passageiras e fr�geis, que t�m que deixar quando morrem. Buscam outras coisas porque n�o usam os olhos do Esp�rito e n�o enxergam a presen�a de Deus em todas as suas bondades.

Ora, dessas coisas n�s s� entendemos entende depois de considerar muito a imagem interior (o espelho) de Jesus Cristo e de ter aprendido, com ele, a ver toda a realidade “com os olhos do esp�rito”.

Este texto foi apresentado aos Provinciais OFM do Brasil em uma reuni�o em Petr�polis no ano de 1966.

Seu c�digo localizador no Centro Franciscano de Piracicaba � 1.01.03.06

Pode ser achado no computador de Frei Jos� Carlos Pedroso com o nome deInterioridadeFran, em JC.Artigos, de JC. Escritos, de Arquivo JC.


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