a inteligência coletiva - por uma antropologia do cyberespaço - pierre lévi

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5/26/2018 AIntelignciaColetiva-PorUmaAntropologiaDoCyberespao-PierreLvi-s... http://slidepdf.com/reader/full/a-inteligencia-coletiva-por-uma-antropologia-do-cyberespac c 1 J y 1 !'l ^ ■■■ 1  ______J [ 1  â Edições Loyola 

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  • c1 J y

    1 !'l ^ 1 ______ J[ 1

    Edies Loyola

  • Ttulo originalL intelligence collective. Poitr une anthropologie du yberspace

    ditions La Dcouvcrtc, Paris, 1994 ISBN 2-7071-2402-8

    E d i o df. t e x t o : Marcos MarcioniloP r e p a r a o : Crislina PeresR e v is o : Maurcio Balthazar Leal

    Renato Rocha Carlos Dagoberto Bordin

    D u g r a m a o : Paula R. R. CassanC o n su lto r ia : Artlmr Hyppolito de Moura

    Edies LoyolaRua 1822 ny 347 - Ipiranga 04216-000 So Paulo, SPCaixa Postal 42.335 - 04218-970 - So Paulo, SP (11) 6914-1922 @ (II) 6163-4275Home page e vendas: www.loyola.com.br Editorial: [email protected] Vendas: [email protected]

    Todos os direitos resenvdos. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e>ou quaisquer meios (eletrnico ou mecnico, incluindo fotocpia e gravao) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de diuios sem permisso escrita da Editora

    ISBN: 978-85-15-01613-6

    5* edio: fevereiro de 2007

    EDIES LOYOLA, So Paulo, Brasil, 1998

  • Sumrio

    Prlogo: o planeta nm ade......................................................................11

    In tro d u o ...................................................................................................19Economia............................................................................................. 19Antropologia........................................................................................ 22Lao social e relao com o saber..................................................... 26O que a inteligncia coletiva?..........................................................28

    I. A ENGENHARIA DO LAO SOCIAL

    1. Os justos. Etica da inteligncia coletiva............ ........................... 35

    2. As qualidades humanas. Economia da inteligncia coletiva....41

    3. Do molar ao molecular. Tecnologia da inteligncia coletiva ...47Vida....................................................................................................... 48Matria ................................................................................................. 49Informao........................................................................................... 51Coletivos humanos......... .....................................................................54Quadro das grandes evolues tecnolgicas..........................................58

    4. Dinmica das cidades inteligentes. Manifesto por umapoltica m olecular.............................................................................. 59Tcnica e poltica.................................................................................59A inadaptao do governo aos problemaspolticos contemporneos................................................................... 61A gora virtual seria reservada elite?............................................... 62

  • A intdiniin colc.iva

    Democracia representativa e democracia d ire ta ...............................64Constituio de sujeitos coletivos de enunciao.............................65Dinmica da cidade inteligente........ ................................................. 69Dinmica da cidade inteligente............................. ............................ 70A democracia em tempo real ............................................................. 73O totalitarismo diante da economia das qualidades humanas.......78Poder e potncia.................................................................................. 81

    5. Coreografia dos corpos anglicos. Ateologia dainteligncia coletiva...........................................................................83A tradio farabiana............................................................................. 84O intelecto agente....................................................... ........................85Dos mundos anglicos aos mundos virtuais.....................................88O enigma e o desejo.......... .................................................................90O problema do m al............................................................................. 92O intelecto, o inteligvel, o inteligente............................................. 93O sensvel e o inteligvel........... ......................................................... 97As trs liberdades............................................................................ 100

    6. A arte e a arquitetura do ciberespao. Esttica dainteligncia coletiva........................... ........................................... 103O canteiro do ciberespao.......................... ..... ..............................103Da obra ao agcnciamcnto...............................................................106Por uma arquitetura da desterritorializao............................. ....109

    II. O ESPAO DO SABER

    7. Os quatro espaos...........................................................................115A T erra ............................................................... ............................. I 15O Territrio....................................................................................... 116O Espao das mercadorias................................................................118O Espao do saber............................................................................120Os quatro espaosTerra, Territrio, Mercadorias, Saber...............................................122

    8. O que um espao antropolgico?......................... .................... 125Multiplicidade dos espaos de significao.....................................125Os espaos antropolgicos so estruturantes, vivos,autnomos, irreversveis....................................... ...........................126Os espaos antropolgicos so planos de existncia,velocidades contingentes e eternas.................................................. 128

    9. Identidades....................................................................................... 131Microcosmo, microples, pequena casa..........................................131

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  • Sumrio

    Em direo a uma identidade sapiencial, ou o policosmo............133Identidades qunticas....................................................................... 135Coexistncia das quatro identidades...............................................138

    10. Semidcas....................................... ..... ........................ ................... 141A semitica da Terra, ou a presena................................................ 141A semitica do Territrio, ou o corte..............................................142A semitica da Mercadoria, ou a iluso.......................................... 143O Espao do saber, ou a produtividade semitica........................ 145

    11. Figuras de espao e de te m p o .............................................. ......149Terra: trilhas, imemoriais................................................................. 149Territrio: a clausura, a inscrio, a histria................................... 150Mercadoria: circuitos, tempo rea l........................................... ......151Saber: tempos subjetivos, espaos interiores.................................. 153O Espao do saber emerge de de vires coletivos.............................155Quadro geral dos quatro espaos (!)Identidades, semiticas, espaos, tempos............................................ 157

    12. Instrum entos de navegao..........................................................159Terra: relatos, portulanos, algoritmos............................................ 159Territrio: sistemas de projeo...................................................... 160Mercadoria: estatsticas, probabilidades.......................................... 162Saber: cinemapas............................................................................... 163

    13. Objetos de conhecimento.............................................................. 167O objeto da Terra: um devir-comeo eterno ................................. 167O objeto do Territrio: a geometria, ou a Terra nmadefixada por um cu.............................................................................. 168O objeto comercial: fluxos, fogos, massas......................................168O objeto do Espao do saber, alm das cincias humanas: significao e liberdade.....................................................................170

    14. Epistem ologias................................................................................ 177Terra: a carne............................. .......................................................177Territrio: o Livro........ .................................................................... 177Espao mercantil: o hipertexto........................................................179Espao do saber: a cosmopdia............................ ...... .................... 181Filosofia da implicao..................................................................... 185Quadro geral dos quatro espaos (2)A relao com o conhecimento........................................................... 188

    15. As relaes entre espaos. Para uma filosofia poltica............ 189Eternidades sucessivas......................................................................189Espaos e estratos.............................................................................. 191

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  • A inteligncia coletiva

    Para uma ecologia humana generalizada........................................ 193Condies e coeres.......................................................................193Como a eficcia semitica de um espao depende dos espaosinferiores ........................................................................................ 194Causalidade sem contato ..................................................................196Expanses e desejos............ .......................... ...................................197Os quatro pontos cardeais............................................................... 200O vazio e o cheio.............................................................................. 201

    Eplogo: viagem a Cnossos..................................................................205A deriva contnua do mundo humano ...................................... .....207

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  • Prlogo: o planeta nmade

    O lanamento do projeto das infovias provocou grande alvoroo nos Estados Unidos. As ondas que acompanham a srie de fuses, aquisies e alianas que hoje acontecem no setor da comunicao e da informtica, os anncios concernentes futura televiso digital de alta definio...1, vrios sinais ultimamente tm chamado a ateno do grande pblico para o que se convencionou chamar de multimdia .

    Os acontecimentos que deram o que falar nesse domnio so algumas das manifestaes especficas de uma grande onda de fundo tecnolgico. Dados, textos, imagens, sons, mensagens de todos os tipos so digitalizados e, cada vez mais, diretamente produzidos sob forma digital. Aplicando-se a essas mensagens, os instrumentos de tratamento automtico da informao se banalizam no conjunto dos setores da atividade humana. O estabelecimento de conexo telefnica entre terminais e memrias informatizadas e a extenso das redes digitais de transmisso ampliam, a cada dia, um ciberespao mundial no qual todo elemento de informao encontra-se em contato virtual com todos e com cada um. Essas tendncias fundamentais, j atuantes h mais de 25 anos, faro sentir cada vez mais seus efeitos nas prximas dcadas. O atual curso dos acontecimentos converge para a constituio de um novo meio de comunicaode pensamento e de trabalho para as sociedades humanas.

    1. Pode-sc acrescentar a essa lista o anncio recente de um computador quntico para fins cientficos (N. do T.).

    vs

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  • A inteligncia coletiva

    Dcsdc os anos 60, pioneiros como D. Engelbart e J. C. R. LickJider haviam percebido todo o potencial social da comunicao por meio de redes de computadores. Mas foi somente no incio dos anos 80 que a comunicao informatizada ou telemtica emergiu como um fenmeno econmico e cultural: redes mundiais de universitrios e pesquisadores, redes empresariais, correios eletrnicos, comunidades virtuais se desenvolvendo sobre uma base local, acesso direto a bases de dados etc.

    No final dos anos 80, os computadores pessoais tornavam-se mais potentes c fceis de utilizar, seu uso diversificava-se e difundia-se cada vez mais. Assistiu-se ento a um processo sem paralelo de interconexo das redes, que haviam de incio crescido isoladamente, e de crescimento exponencial dos usurios da comunicao informatizada. Rede das redes, baseando-se na cooperao anarquista de milhares de centros informatizados no mundo, a Internet2 tornou-se hoje o smbolo do grande meio heterogneo e transfronteirio que aqui designamos como ciberespao. A cada ms, o nmero de pessoas com endereo eletrnico no mundo aumenta cm 5%. Em 1994, mais de 20 milhes de pessoas, essencialmente jovens, estavam conectados . As previses giram em torno de 100 milhes de usurios para o ano 2000. Graas s redes digitais, as pessoas trocam todo tipo de mensagens entre indivduos ou no interior de grupos, participam de conferncias eletrnicas sobre milhares de temas diferentes, tm acesso s informaes pblicas contidas nos computadores que participam da rede, dispem da fora de clculo de mquinas situadas a milhares de quilmetros, constroem juntos mundos virtuais puramente ldicos ou mais srios , constituem uns para os outros uma imensa enciclopdia viva, desenvolvem projetos polticos, amizades, cooperaes..., mas dedicam-se tambm ao dio e enganao3.

    A cultura da rede ainda no est estabelecida, seus meios tcnicos encontram-se na infancia, seu crescimento no terminou. Ainda no tarde demais para refletir coletivamente c tentar modificar o curso das coisas. Ainda h lugar, nesse novo espao, para projetos. As infovias e a multimdia no acabaro sendo apenas uma superteleviso? Esta-

    2. Sobre a Internet, ver Tracy LAQUEY e Jeanne C. RYHR, The Internet Contpanion (Plus)y Conferncia, Mass., Addison-Weslev, 1993.

    3. Ver a excelente obra de Howard RHEINGOLD, Tbe virtual commnnity, Nova York, Addison-Weslcv, 1993, que reconstitui a histria da comunicao por computador, mostra suas diferentes facetas polticas, sociais, culturais c ldicas, c apresenta com clareza as implicaes, para a civilizao, do desenvolvimento das infovias''.

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  • Prlojjo: o planeta nmade

    riam anunciando a vitria definitiva do consumo de mercadoria c do espetculo? Aumentaro o abismo entre ricos c pobres, excludos c bem- -posicionados? E, com efeito, um dos futuros possveis. Mas, se avalissemos a tempo a importncia do que est em jogo, os novos meios de comunicao poderiam renovar profundamente as formas do lao social, no sentido de uma maior fraternidade, e ajudar a resolver os problemas com os quais a humanidade hoje se debate.

    A fuso das telecomunicaes, da informtica, da imprensa, da edio, da televiso, do cinema e dos jogos eletrnicos em uma indstria unificada da multimdia o aspecto da revoluo digital que os jornalistas mais enfatizam. Mas no o nico, nem talvez o mais importante. Alm de certas repercusses comerciais, parece-nos urgente destacar os grandes aspectos civilizatrios ligados ao surgimento da multimdia: novas estruturas de comunicao, de rctrulao e de cooperao, linguagens c tcnicas intelectuais inditas, modificao das relaes de tempo e espao etc. A forma e o contedo do ciberespao ainda so especialmente indeterminados. No existe nenhum determinismo tecnolgico ou econmico simples em relao a esse assunto. Escolhas polticas e culturais fundamentais abrem-se diante dos governos, dos grandes atores econmicos, dos cidados. No se trata apenas de raciocinar em termos de impacto (qual o impacto das infovias na vida poltica, econmica ou cultural?), mas tambm em termos de projeto (com que objetivo queremos desenvolver as redes digitais de comunicao interativa?). Na verdade, as decises tcnicas, a adoo de normas e regulamentos, as polticas tarifrias contribuiro, queiramos ou no, para modelar os equipamentos coletivos da sensibilidade, da inteligncia e da coordenao que formaro no futuro a infra-estrutura de uma civilizao mundializada. Com este livro, queremos contribuir para situar a atual evoluo em uma perspectiva antropolgica e para forjar uma viso positiva que poderia ajudar as polticas, as decises e as prticas a se orientar no labirinto de um futuro ciberespao.

    O desenvolvimento dos novos instrumentos de comunicao inscreve-se em uma mutao de grande alcance, qual ele impulsiona, mas que o ultrapassa. Numa palavra: voltamos a ser nmades.

    O que isso significa? Trata-se de viagens de prazer, de frias exticas, de turismo? No. Do giro dos homens de negcios e das pessoas apressadas cm torno do mundo, de um aeroporto a outro? Tambm no. Os objetos nmades da eletrnica porttil no nos aproximam tampouco do nomadismo atual. Essas imagens de movimento nos remetem a viagens imveis, encerradas no mesmo mundo de significaes. A

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  • A inteligncia coletiva

    corrida sem fim nas redes de mercadorias talvez seja o ltimo obstculo viagem. Mexer-se no mais deslocar-se de um ponto a outro da superfcie terrestre, mas atravessar universos de problemas, mundos vividos, paisagens dos sentidos. Essas derivas nas texturas da humanidade podem recortar as trajetrias balizadas dos circuitos de comunicao e de transporte, mas as navegaes transversais, heterogneas dos novos nmades exploram outro espao. Somos imigrantes da subjetividade.

    O nomadismo desta poca refere-se principalmente transformao contnua e rpida das paisagens cientfica, tcnica, econmica, profissional, mental... Mesmo que no nos movssemos, o mundo mudaria nossa volta. Ora, ns nos movemos. E o conjunto catico de nossas respostas produz a transformao geral. Esse movimento no requer de ns uma adaptao racional ou em grau timo? Mas como saber que uma resposta convm a uma configurao que se apresenta pela primeira vez e que ningum programou? E por que querer se adaptar (e adaptar-se exatamente a qu?) quando se compreendeu que a realidade no estava posta, exterior a ns, preexistente, mas que j era o resultado transitrio do que fazamos juntos?

    Imprevisvel, arriscada, essa situao assemelha-se a uma descida em corredeiras desconhecidas. No s viajamos entre as paisagens exteriores da tcnica, da economia ou da civilizao. Caso se tratasse apenas de passar de uma cultura .1 outra, ainda teramos exemplos, referncias bis- tricas. Mas passamos de uma humanidade a outra; outra humanidade que no apenas permanece obscura, indeterminada, mas que at mesmo nos recusamos a interrogar, que ainda no aceitamos examinar.

    A conquista espacial persegue explicitamente o estabelecimento de colnias humanas em outros planetas, ou seja, uma mudana radical de habitat e de meio para nossa espcie. Os avanos da biologia e da medicina nos incitam a uma reinveno de nossa relao com o corpo, com a reproduo, com a doena e com a morte. Tendemos progressivamente, talvez sem sab lo, e com certeza sem diz-lo, a uma seleo artificial do humano transformado em instrumento pela gentica. O desenvolvimento de nanotecnologias capazes de produzir materiais inteligentes cm massa, simbiticos microscpicos artificiais de nossos corpos e calculadoras vrias ordens de grandeza mais potentes que as de hoje poderia modificar completamente nossa relao com a necessidade nat- ral e com o trabalho, e isso de maneira bem mais brutal do que se fez at hoje nas diversas fases da automao. Os progressos das prteses cognitivas com base digital transformam nossas capacidades intelectuais to nitidamente quanto o fariam mutaes de nosso patrimnio genti-

    *

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  • Prlojjo: o planeta nmade

    co. As novas tcnicas dc comunicao por mundos virtuais pem em novas bases os problemas do lao social. Em suma, a hominizao, o processo de surgimento do gnero humano, no terminou, mas acelera-se de maneira brutal.

    Porm, ao contrrio do que ocorreu no momento do nascimento de nossa espcie, ou por ocasio da primeira grande mutao antropolgica (a do neoltico, que viu surgir a pecuria, a agricultura, a cidade, o Estado e a escrita), temos agora a possibilidade de pensar coletivamente essa aventura c influenci-la.

    As hierarquias burocrticas (fundadas na escrita esttica), as monarquias miditicas (surfando na televiso e no sistema de mdias) e as redes internacionais da economia (utilizando o telefone c as tecnologias do tempo real) s mobilizam e coordenam parcialmente a inteligncia, a experincia, o savoir-fairey a sabedoria e a imaginao dos seres humanos. E por isso que a inveno de novos procedimentos de pensamento e negociao que possam fazer emergir verdadeiras in teligncias coletivas se faz urgente. As tecnologias intelectuais no se limitam a ocupar um setor entre outros da mutao antropolgica contempornea; elas so potencialmente sua zona crtica, seu lugar poltico. E preciso cnfatiz-lo? Os instrumentos da comunicao e do pensamento coletivo no sero reinventados sem que se reinvente a democracia, uma democracia distribuda por toda parte, ativa, molecular. Neste ponto perigoso de virada ou de encerramento, a humanidade poderia reapoderar-se de seu futuro. No entregando seu destino nas mos dc algum mecanismo supostamente inteligente, mas produzindo sistematicamente as ferramentas que lhe permitiro constituir-se cm coletivos inteligentes, capazes de se orientar entre os mares tempestuosos da mutao.

    O espao do novo nomadismo no o territrio geogrfico, nem o das instituies ou o dos Estados, mas um espao invisvel de conhecimentos, saberes, potncias de pensamento em que brotam e se transformam qualidades do ser, maneiras de constituir sociedade. No os organogramas do poder, nem as fronteiras das disciplinas, tampouco as estatsticas dos comerciantes, mas o espao qualitativo, dinmico, vivo da humanidade em vias de se auto-inventar, produzindo seu mundo.

    Onde encontrar os mapas mveis desse espao flutuante? Terra incgnita. Mesmo que consigais por vossa prpria conta alcanar a imobilidade, a paisagem continuar a fluir, girar cm torno dc vs, a vos infiltrar, a transformar-vos a partir dc dentro. No mais o tempo da histria, tendo como referenda a escrita, a cidade, o passado, mas dc um

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  • A inteligncia coletiva

    espao mvel, paradoxal, que nos vem igualmente do futuro. No o apreendemos como uma sucesso, s interrogamos as tradies, a seu respeito, por meio de perigosas iluses de ptica. Tempo errante, transversal, plural, indeterminado, como o que antecede as origens.

    Massas de refugiados em marcha para campos improvveis... Naes sem domiclio fixo... Epidemias de guerras civis... Barulhentas babis, megalpoles mundiais... Travessia dos saberes da sobrevida nos interstcios do imprio... Impossvel fundar uma cidade, impossvel doravante estabelecer-se em qualquer lugar que seja, num segredo, num poder, num solo... Os signos, por sua vez, tornam-se migrantes: esse hmus no pra de tremer, de arder... Deslizamentos vertiginosos entre as religies e as lnguas, zapping entre as vozes c os cantos, e bruscamente, na esquina de um corredor subterrneo, surge a msica do futuro... A Terra como uma bola sob o olho gigante de um satlite...

    Os primeiros nmades seguiam os rebanhos, que buscavam sozinhos seu alimento segundo as estaes e as chuvas. Hoje nomadizamos atrs do flituro humano, um futuro que nos atravessa e que construmos. O ser humano tornou-se para si mesmo o clima, uma estao infinita e sem retorno. Horda c rebanho misturados, cada vez menos discernveis de nossas ferramentas e de um mundo estreitamente atado a nossa marcha, desdobramos a cada dia uma nova estepe.

    Os homens de Neandertal, bem adaptados s maravilhosas caas da tundra glacial, extinguiram-se quando o clima, com excessiva rapidez, umidificou-se e reaqueceu-se4. Sua caa habitual desapareceu. A despeito de sua inteligncia, esses homens que emitiam grunhidos ou eram mudos no tinham linguagem para se comunicar entre si. Desse modo, as solues encontradas aqui e ali para seus novos problemas no puderam difundir-se. Permaneceram dispersos diante da transformao do mundo sua volta. No se transformaram com ele.

    Hoje, o Homo sapiens enfrenta a rpida modificao de seu meio, da qual ele o agente coletivo, involuntrio. No quero de modo algum dar a entender que nossa espcie est ameaada de extino, nem que o fim dos tempos est prximo. No se trata de milcnarismo. Contento-me em apontar uma alternativa. Ou superamos um novo limite, uma nova etapa da hominizao, inventando algum atributo do humano to essencial quanto a linguagem, mas cm escala superior, ou continuamos a nos comunicar por meio da mdia e a pensar em instituies separadas umas das outras, que organizam, alm disso, o sufocamento e

    4. Ver Joseph REICHOI.F, Lrmcrjjence de ihommc% Paris, Flammarion, 1991.

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  • Prlogo: o planeta nmade

    a diviso das inteligncias. No segundo caso, s teramos de enfrentar os problemas da subsistncia e do poder. Mas, se nos engajssemos na viada inteligncia coletiva, progressivamente inventaramos as tcnicas, ossistemas de signos, as formas de organizao social e de regulao que nos permitiriam pensar em conjunto, concentrar nossas foras intelectuais e espirituais, multiplicar nossas imaginaes e experincias, negociar em tempo real e em todas as escalas as solues prticas aos complexos problemas que esto diante de ns. Aprenderamos aos poucos a nos orientar num novo cosmo em mutao, deriva; a nos tornar, na medida do possvel, seus autores; a nos inventar coletivamente como espcie. A inteligncia coletiva visa menos ao domnio de si por intermdio das comunidades humanas que a um abandono essencial que diz respeito idia de identidade, aos mecanismos de dominao e de desenca- deamento dos conflitos, ao desbloqueio de uma comunicao confiscada, a voltar a trocar entre si pensamentos isolados.

    Encontramo-nos, portanto, na situao dc uma espcie em que cada membro teria boa memria, seria observador c astucioso, mas ainda no teria atingido a inteligncia coletiva da cultura por falta de linguagem articulada. Como inventar a linguagem quando jamais se flou, quando nenhum de seus ancestrais jamais proferiu uma frase, quando no se tem exemplo, a mnima idia do que pode ser uma lngua? Por analogia, trata-se de nossa atual situao: no sabemos o que devemos criar, o que talvez j tenhamos obscuramente comeado a esboar Em alguns milnios, porm, o Hotno habilis tornou-se sapiens, rompeu uma barreira, lanou-se no desconhecido, inventou a Terra, os deuses e o mundo infinito da significao.

    Mas as lnguas so feitas para a comunicao no interior de pequenas comunidades de escala humana, c talvez para assegurar as relaes entre tais grupos. Graas escrita, vencemos uma nova etapa, Essa tcnica possibilitou um acrscimo de eficcia da comunicao c da organizao dos grupos humanos bem mais importante que o permitido pela fala. Foi porm ao preo de uma diviso das sociedades entre uma mquina burocrtica dc tratamento da informao, operando por meio da escrita, de um lado, e pessoas administradas, de outro. O problema da inteligncia coletiva descobrir ou inventar um alm da escrita, um alm da linguagem tal que o tratamento da informao seja distribudo e coordenado por toda parte, que no seja mais o apangio de rgos sociais separados, mas se integre naturalmente, pelo contrrio, a todas as atividades humanas, volte s mos de cada um.

    Essa nova dimenso da comunicao deveria, claro, permitir-nos compartilhar nossos conhecimentos e apont-los uns para os outros, o

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  • A intcliffh in coletiva

    que a condio elementar da inteligncia coletiva. Alm disso, ela abriria duas importantes possibilidades, que transformariam radicalmente os dados fundamentais da vida em sociedade. Em primeiro lugar, dispo* ramos de meios simples e prticos para saber o que fazemos juntos. Em segundo lugar, manejaramos, com facilidade ainda maior do que o fazemos com a escrita, os instrumentos que permitem a enunciao coletiva. E tudo isso no mais na escala dos cls do paleoltico, nem na dos Estados e instituies histricas do Territrio, mas segundo a extenso e a rapidez das turbulncias gigantes, dos processos desterritorializados c do nomadismo antropolgico que hoje nos afetam. Se nossas sociedades se contentarem em ser inteligentemente dirigidas, com certeza falha- r cm seus objetivos. Para ter alguma chance de viver melhor, elas devem se tornar inteligentes na massa. AJm da mdia, mquinas areas faro ouvir a voz do mltiplo. Ainda indiscernvel, com o som abafado pelas nvoas do futuro, banhando com seu murmrio outra humanidade, temos um encontro marcado com a superlngua.

  • Introduo

    Economia

    A prosperidade das naes, das regies, das empresas e dos indivduos depende de sua capacidade de navegar no espao do saber. A fora conferida dc agora em diante pela gesto tima dos conhecimentos, sejam eles tcnicos, cientficos, da ordem da comunicao ou derivem da relao tica com o outro. Quanto melhor os grupos humanos conseguem se constituir em coletivos inteligentes, em sujeitos cognitivos, abertos, capazes dc iniciativa, de imaginaao e de reaao rpidas, melhor asseguram seu sucesso no ambiente altamente competitivo que o nosso. Nossa relao material com o mundo se mantm por meio de uma formidvel infra-estrutura epistmica e de software: instituies de educao e formao, circuitos de comunicao, tecnologias intelectuais com apoio digital, atualizao c difuso contnua dos savoir- faire... Tudo repousa, a longo prazo, na flexibilidade e vitalidade dc nossas redes de produo, comrcio c troca de saberes.

    Seria uma simplificao assimilar, sem mais, a transio para a era do conhecimento terceirizao da economia. E a terceirizao, cm si mesma, no se reduz tampouco a mero deslocamento das atividades industriais para os servios. Com efeito, o mundo dos servios cada vez mais invadido por objetos tcnicos. Ele se industrializa : distribuidores automticos, servidores telemticos, softwares de ensino, sistemas especialistas etc. Os industriais, por sua vez, concebem cada vez mais sua atividade como um servio. Para responder s novas condies da vida

    19

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  • A inteligncia coletiva

    econmica, as empresas tendem a organizar-se de tal forma que possam ser percorridas por redes de inovao. Isso significa, por exemplo, que em uma grande empresa um setor pode se conectar a todo momento com qualquer outro, sem procedimento formal, com troca constante de informao e de pessoal. O estabelecimento de relaes e as redes de inovao contemporneas so transversais e especialmente transempresariais. O crescente desenvolvimento das parcerias e alianas um forte testemunho disso. Novas competncias devem ser importadas, produzidas, instiladas permanentemente (em tempo real) em todos os setores. As organizaes devem se abrir a uma circulao contnua e constantemente renovada de especialidades cientficas, tcnicas, sociais ou mesmo estticas. O skiU flow condiciona o eash flow1. Assim que essa renovao diminui seu ritmo, a empresa ou organizao corre o risco de esclerose e, logo, de morte. Como diz Michel Serres, o saber tornou-se a nova infra-estrutura.

    Por que a economia dos chamados regimes comunistas comeou a declinar acentuadamente nos anos 70, tendo finalmente rudo na virada dos anos 90? Sem querer tratar essa questo complexa de maneira exaustiva, pode-se ao menos mencionar uma hiptese2 que iluminar particularmente nossa posio sobre a era do conhecimento. A economia pia- nificada de forma burocrtica, que ainda era capaz de algumas realizaes at os anos 60, foi incapaz de seguir as transformaes impostas pela evoluo contempornea das tcnicas c da organizao do trabalho. O totalitarismo fracassa diante das novas formas de exerccio mvel e cooperativo das competncias. Era incapaz de inteligncia coletiva.

    No se trata apenas do grande deslocamento das economias ocidentais em direo ao setor tercirio, mas de um movimento bem mais profundo, de ordem antropolgica. A partir dos anos 70. tornava-se cada vez mais difcil para o operrio, o empregado, o engenheiro herdar a tradio de um ofcio, assumi-lo e transmiti-lo quase inalterado, instalar-se de modo durvel cm uma identidade profissional. No s as tcnicas se transformavam em ritmo acelerado, como tambm tornava- se necessrio aprender a comparar, regular, comunicar, reorganizar sua atividade. Era preciso exercer em carter permanente todas as suas potencialidades intelectuais. Alm disso, as novas condies da vida econmica conferiam uma vantagem competitiva s organizaes cm que os

    1. O fluxo das habilidades condiciona o fluxo do dinheiro (fluxo de caixa); em ingls no original (N. do T.).

    2. Hiptese que nos foi inspirada pelos trabalhos de Bernard Pcrret. Ver, de Berrurd PERRET e Guy RO U ST AN G, Vconomie contre la socit. Affhmter la crise de rintfjrarion culturellc et socialc, Paris, Scuil, 1993.

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  • IntroduoJ

    membros eram capazes de adotar individualmente iniciativas dc coordenao em lugar dc se submeter a uma planificao vinda de cima. Ora, essa mobilizao constante das capacidades cognitivas c sociais supe necessariamente uma forte implicao subjetiva. Doravante, no basta mais iden- tilicar-sc passivamente com uma categoria, uma profisso, uma comunidade de trabalho; necessrio ainda engajar a singularidade, a prpria identidade pessoal na vida profissional. E precisamente essa dupla mobilizao subjetiva, bastante individual, de um lado, mas tica e cooperativa, de outro, que o universo burocrtico c totalitrio era incapaz de suscitar.

    Sem dvida, a interpenetraao do lazer, da cultura e do trabalho em uma espcie de engajamento subjetivo e social global continua sendo hoje o apangio dos diretores de empresa, dos quadros mais qualificados, de certas profisses liberais, dos pesquisadores e dos artistas. Mais de um ndice leva a crcr que esse modelo ir se difundir, baixar" por capilaridade a todas as camadas da sociedade. Sc a fronteira entre vida profissional e desenvolvimento pessoal se apaga, a morte dc certo economismo. Os imperativos econmicos e a eficcia tcnica no podem mais girar em crculo fechado. Uma vez que um verdadeiro engajamento subjetivo requerido dos atores humanos, as finalidades econmicas devem remeter ao poltico, no sentido amplo, ou seja, tica c vida da cidade. Devem fazer eco, igualmente, a s i g n i f i c a e s culturais. O puro econmico ou a mera eficcia perdem em eficincia. Somente uma composio com finalidades culturais e morais ou experincias estticas lhes permitem dominar a subjetividade dos atores da empresa... como a de seus clientes. A empresa no s consumidora e produtora de bens e de servios, como quer o enfoque econmico clssico. No se contenta em aplicar, elaborar c distribuir savoir-faire e conhecimento, como mostra a nova abordagem cognitiva das organizaes. Deve-se reconhecer, alm disso, que a empresa, com outras instituies, acolhe e constri subje- tividades. J que condiciona todas as outras, a produo continua de subjetividade ser provavelmente considerada, no prximo sculo, a principal atividade econmica (veja o captulo 2 deste livro).

    No regime assalariado, o indivduo vende sua fora ou seu tempo de trabalho de modo quantitativo e facilmente mensurvel. Ora, esse regime poder cm breve ceder lugar valorizao direta de sua atividade isto , de suas competncias qualitativamente diferenciadas por meio dc produtores independentes ou pequenas equipes3. De fato, indi-

    3. Essa abordagem prospcctiva do fim do regime assalariado foi-nos sugerida por Robert REJCH, The work o f nations. Ptrpnrinj) ourselvesfor thc 2T century capitalism, Nova York, Random Housc* 1991.

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  • A inteligncia coletiva

    vduos e microempresas esto mais aptos que as grandes sociedades reorganizao permanente e tima valorizao das especialidades que so hoje as condies do sucesso. A vida econmica no estaria mais essencialmente animada por uma competio entre grandes empresas que arrolam sob sua bandeira um trabalho quantitativo e annimo. Assistiramos, cm vez disso, ao desenvolvimento de formas complexas de interdependncia conflitual entre zonas de competncias vagas, no-localizadas, aproveitando-se de todas as suas singularidades, agitadas por movimentos moleculares permanentes de associao, de troca e de rivalidade. A capacidade de formar e reformar rapidamente coletivos inteligentes ir se tomar a arma decisiva dos ncleos regionais de conhecimentos especficos (savoir- -faire) em competio em um espao econmico mundializado. No ser

    A | m _ * | f * J mais no ambito institucional das empresas, mas por ocasiao de interaes cooperativas no ciberespao internacional, que se dar o surgimento e a redefinio constantes das identidades distribudas.

    Antropologia

    Que o saber se torne o primeiro motor, e eis que se erige sob nossos olhos uma paisagem desconhecida, na qual so redefinidas as regras do jogo social e a identidade dos jogadores. Sugerimos a hiptese de que hoje se abre um novo espao antropolgico", o Espao do saber, que poderia muito bem comandar os espaos anteriores: a Terra, o Territrio c o Espao mercantil. Toda a segunda parte deste livro (captulos 7 a 15) consagrada cartografia detalhada desses espaos e de suas relaes.

    O que um espao antropolgico? E um sistema de proximidade (espao) prprio do mundo humano (antropolgico), e portanto dependente de tcnicas, de significaes, da linguagem, da cultura, das convenes, das representaes e das emoes humanas. Pelo espao antropolgico Territrio, por exemplo, duas pessoas dispostas dc lados opostos da fronteira esto mais distantes entre si do que pessoas pertencentes ao mesmo pas, mesmo que a relao seja a inversa no espao da geografia fsica.

    A Terra foi o primeiro grande espao de significao aberto nossa espcie. Ela repousa sobre as trs caractersticas primordiais que distinguem o homo sapiens-. a linguagem, a tcnica e as formas complexas de organizao social (a religio, considerada cm seu sentido mais amplo). S os seres humanos vivem sobre a Terra; os animais habitam em nichos ecolgicos. A relao com o cosmo constitui o ponto central do

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  • Introduo

    primeiro espao tanto em um plano que hoje qualificaramos de imaginrio (animismo, totemismo) como em uma perspectiva prtica, pois o contato com a natureza bastante estreito. Os modos de conhecimento especficos desse primeiro espao antropolgico so os mitos e os ritos. Na Terra, a identidade se inscreve ao mesmo tempo no vnculo com o cosmo e na relao de filiao ou dc aliana com outros homens. O primeiro item de nosso curriculum vitae , em geral, nosso nome, ou seja, a inscrio simblica numa linhagem.

    Um segundo espao, o Territrio, inventado a partir do neoltico, com a agricultura, a cidade, o Estado e a escrita. Ele no suprime a Terra nmade, mas rccobre-a cm parte, e tenta sedcntariz-la, domestic-la. As riquezas no provem da colheita e da caa, mas da posse e da explorao dos campos. Nesse segundo espao antropolgico os modos de conhecimento dominantes baseiam-se na escrita: comea a histria e o desenvolvimento dos saberes de tipo sistemtico, terico ou hermenutico. Neste caso, o centro da existncia no mais a participao no cosmo, mas o vnculo com uma entidade territorial (pertena, propriedade etc.) definida por suas fronteiras. Ainda hoje possumos, todos ns, aps nosso nome, um endereo, que na verdade nossa identidade no Territrio dos sedentrios e dos contribuintes. As instituies nas quais vivemos so igualmente territrios, ou justaposies de territrios, com suas hierarquias, burocracias, sistemas de regras, fronteiras, lgicas de pertena ou de excluso.

    Desde o sculo XVI se desenvolve um terceiro espao antropolgico, que chamo dc Espao das mercadorias. Ele comea a esboar-se, sem dvida, com a inaugurao dc um mercado mundial por ocasio da conquista da Amrica pelos europeus. O princpio organizador do novo espao o fluxo: fluxo dc energias, dc matrias-primas, mercadorias, capitais, mo-de-obra, informaes. O grande movimento de dester- ritorializaoy que comea a desenvolver-se na aurora dos tempos modernos, no resulta na supresso dos territrios, mas em sua subverso, sua subordinao aos fluxos econmicos. O Espao das mercadorias no suprime os anteriores, mas supera-os em velocidade. E o novo motor da evoluo. A riqueza no provm do domnio das fronteiras, mas do controle dos fluxos. Da por diante reina a indstria, no sentido amplo de tratamento da matria e da informao. A cincia experimental moderna e um modo dc conhecimento tpico do novo espao dos fluxos. Mas essa cincia clssica, por sua vez, est cm vias de dester- ritorializao. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial ela passa a dar lugar a uma tecnocincia, movida por uma dinmica permanente da pesquisa e da inovao econmica. O par teoria/experincia da cincia

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  • A intcliycncin colctiva

    clssica se v em concorrncia com uma ascenso da simulao e da modelizao numricas, que voltam a pr em questo os esquemas habituais da epistemologia c permitem prever os clares de um quarto espao. Ter uma identidade, existir no espao dos fluxos das mercadorias participar da produo e das trocas econmicas, ocupar uma posio nos pontos nodais das redes de fabricao, de negcios c de comunicao. No bom ser desempregado no Espao das mercadorias, uma vez que a identidade social nele definida pelo trabalho; ou seja, no que concerne maior parte da populao, por um posto assalariado. Em nosso curriculutn vitae, depois do nome (posio na Terra) e endereo (posio no Territrio), em geral vem a profisso (posio no Espao das mercadorias).

    f .

    E possvel fazer surgir um novo espao, no qual se possa ter uma identidade social, mesmo que no se tenha profisso? Talvez a crise atual dos pontos de referncia e dos modos sociais de identificao indique o surgimento, ainda malpercebido, incompleto, de um novo espao antropolgico, o da inteligncia e do saber coletivos, cujo advento definitivo no est em absoluto garantido por certas leis da histria . Como os espaos antropolgicos anteriores, o Espao do saber teria vocao para comandar os espaos anteriores, e no para faz-los desaparecer. Com efeito, doravante, das capacidades de aprendizado rpido e da imaginao colctiva dos seres humanos que os habitam que dependem tanto as redes econmicas como as potncias territoriais. E, certamente, o mesmo ocorre no que se refere sobrevivncia da grande Terra nmade.

    A inteligncia e o savoir-faire humanos sempre estiveram no centro do funcionamento social. Nossa espcie foi, com muita razo, chamada de sapiens. Indicamos, alis, que a cada espao antropolgico correspondia um modo de conhecimento especfico. Mas por que ento chamar de Espao do saber o novo horizonte de nossa civilizao? A novidade, nesse domnio, pelo menos tripla: deve-se velocidade de evoluo dos saberes, massa de pessoas convocadas a aprender c produzir novos conhecimentos e, enfim, ao surgimento de novas ferramentas (as do ciberespao) que podem fazer surgir, por trs do nevoeiro informacional, paisagens inditas e distintas, identidades singulares, especficas desse espao, novas figuras scio-histricas.

    A velocidade: jamais a evoluo das cincias e das tcnicas foi to rpida, com tantas conseqncias diretas sobre a vida cotidiana, o trabalho, os modos de comunicao, a relao com o corpo, com o espao etc. Hoje no universo dos saberes e do savoir-faire que a acelerao

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  • Introduo

    mais acentuada e as configuraes mais mveis. Eis uma das razes pelas quais o saber (entendido no sentido mais amplo) lidera as outras evolues da vida social.

    A massa: tornou-se impossvel reservar o conhecimento, at mesmo seu movimento, a classes de especialistas. E o conjunto do coletivo humano que deve, daqui por diante, se adaptar, aprender e inventar para viver melhor no universo complexo c catico cm que passamos a viver.

    As ferramentas-, a quantidade de mensagens cm circulao jamais foi to grande, mas dispomos de um nmero muito reduzido de instrumentos para filtrar a informao pertinente, para efetuar comparaes segundo significaes e necessidades que continuam sendo subjetivas, para nos orientar no fluxo informacional. E nesse ponto que o Espao do saber deixa de ser objeto de uma constatao para tornar-se um projeto. Constituir o Espao do saber seria, em especial, dotar-se dos instrumen-

    t / I * /* ^ / tos institucionais, tcnicos c conceituais para tornar a nrormaao navegvel, para que cada um possa orientar-se e reconheccr os outros em funo dos interesses, competncias, projetos, meios, identidades recprocos no novo espao. A instaurao deliberada dc um sistema de expresso do Espao do saber permitiria pr corretamente, e talvez resolver, inmeros problemas cruciais que j no encontram formulao adequada nos conceitos e ferramentas que os exprimiam nos espaos precedentes.

    Os conhecimentos vivos, os savoir-faire e competncias dos seres humanos esto prestes a ser reconhecidos como a fonte dc todas as outras riquezas. Assim, que finalidade conferir s novas ferramentas comunicacionais? Seu uso mais til, em termos sociais, seria sem dvida fornecer aos grupos humanos instrumentos para reunir suas foras mentais a fim de constituir intelectuais ou imaginantes coletivos. A informtica comunicante se apresentaria ento como a infra-estrutura tcnica do crebro coletivo ou do hipercrtex4 de comunidades vivas. Opapel da informtica e das tcnicas de comunicao com base digital no seria substituir o homem, nem aproximar-se de uma hipottica inteligncia artificial, mas promover a construo de coletivos inteligentes, nos quais as potencialidades sociais c cognitivas de cada um podero desenvolver-se c ampliar-se de maneira recproca. Dessa perspectiva, o

    4. A bela palavra cunhada por Roy Ascott, cm Toulousc, cm 1992, por ocasio da manifestao FAUST, cm sua conferncia intitulada Telenonia. Ver tambm Telenonia", in Interactive nrt, intercommunicntion, n. 7, Tquio, 1994, pp. 114-123; e Telcnonia, on linc, Knnst itn Netz (org. R. Adrian), Graz, Stcirischcn Kulturinitiativc, 1993, pp. 135*146.

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  • A inteligncia colctiva

    principal projeto arquitetnico do sculo XXI ser imaginar, construir e organizar o espao interativo e mvel do ciberespao (veja o captulo 6). Talvez seja possvel, ento, superar a sociedade do espetculo para abordar uma era ps-mdia, na qual as tcnicas de comunicao serviro para filtrar o fluxo de conhecimentos, para navegar no saber e pensar juntos, em vez de carregar consigo massas de informao. Infelizmente, e embora tenham entrevisto o problema, os apstolos das infovias ainda tm dificuldade em falar de algo mais que no seja a capacidade de transmisso. O grande sistema mundial de distribuio de vdeo segundo a demanda, do qual nos falam, no de forma alguma o nec plus ultra da audcia imaginativa e da reflexo sobre a arte e a arquitetura do ciberespao.

    Lao social e relao com o saber

    Alm de uma indispensvel instrumentao tcnica, o projeto do Espao do saber incita a reinventar o lao social em torno do aprendizado recproco, da sinergia das competncias, da imaginao e da inteligncia coletivas. Como deve ter ficado claro, a inteligncia coletiva no um conceito exclusivamente cognitivo. Inteligncia deve ser compreendida aqui como na expresso trabalhar cm comum acordo, ou no sentido de entendimento com o inimigo5. Trata-se de uma abordagem de carter bem geral da vida cm sociedade e de seu possvel futuro. A inteligncia coletiva examinada neste livro um projeto global cujas dimenses ticas e estticas so to importantes quanto os aspectos tecnolgicos ou organizacionais. Essa abordagem tica ser especialmente desenvolvida nos captulos 1 a 5. Em uma poca que carece de perspectivas, assumo o risco de propor um norte, uma direo, algo como uma utopia. Essa viso de futuro organiza-se em torno de dois eixos complementares: o da renovao do lao social por intermdio do conhecimento e o da inteligncia coletiva propriamente dita.

    A questo da construo ou reconstruo do lao social especial mente sensvel ao momento cm que os grupos humanos implodem, cancerizam-se, perdem seus pontos de referncia e vem suas identidades se desagregar. E urgente explorar outras vias alm da insero por

    5. A dificuldade aqui reside nos vrios sentidos da palavra intelliqencc cm francs; alm de inteligncia propriamente dita, pode significar tambm acordo, compreenso, entendimento. As duas expresses citadas so respectivamente: travai Uer en bonnc intcllijjence, significando em comum acordo", e intclligcnce avec Vcnnetni, entendimento, acordo com o inimigo (N. do T.).

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  • I*

    meio de um trabalho assalariado em vias de rarefao. E da mais alta necessidade trilhar outros caminhos quando a produo de comunidade por pertena tnica, nacional ou religiosa conduz aos sangrentos impasses que conhecemos. Basear o lao social na relao com o saber consiste em encorajar a extenso de uma civilidade desterritorializada, que coincide com a fonte contempornea da fora, ao mesmo tempo em que passa pelo mais ntimo das subjetividades.

    Em nossas interaes com as coisas, desenvolvemos competncias. Por meio de nossas relaes com os signos c com a informao adquirimos conhecimentos. Em relao com os outros, mediante iniciao e transmisso, fazemos viver o saber. Competncia, conhecimento e saber (que podem dizer respeito aos mesmos objetos) so trs modos complc- mentares do negcio cognitivo, e se transformam constantemente uns nos outros. Toda atividade, todo ato de comunicao, toda relao humana implica um aprendizado. Pelas competncias e conhecimentos que envolve, um percurso de vida pode alimentar um circuito de troca, alimentar uma sociabilidade de saber.

    Postulemos explcita, aberta e publicamente o aprendizado recproco como mediao das relaes entre os homens6. As identidades tornam-se identidades de saber. As conseqncias ticas dessa nova instituio da subjetividade so imensas: quem o outro? E algum que sabe. E que sabe as coisas que eu no sei. O outro no mais um ser assustador, ameaador: como eu, ele ignora bastante e domina alguns conhecimentos. Mas como nossas zonas de inexperincia no se justapem ele representa uma fonte possvel de enriquecimento de meus prprios sa- beres. Ele pode aumentar meu potencial de ser, e tanto mais quanto mais diferir de mim. Poderei associar minhas competncias s suas, de tal modo que atuemos melhor juntos do que separados. As rvores de competncias, hoje comuns em empresas, escolas e quartis, permitem desde j ver o outro como um leque de conhecimentos no Espao do saber, e no mais como um nome, um endereo, uma profisso ou um status social7.

    Introduo

    6. Nunca ser demais enfatizar o que essa concepo deve ao Mouvcmcnt des rseaux d'changes reciproques de savoir (MRERS), conduzido por Claire e Marc HEBERT-SUFFRIN. Ver desses autores, por exemplo, Echattger Ussavoiny Paris, Desclec de Brouwcr, 1991.

    7. Ver, de Michel AUTHIKR e Pierre I.HVY, Lis arbres dc connnissances (prefcio de Michel Serres), Paris, La Dcouvertc, 1992 (trad. bras. Ed. Escuta). O livro nao seno uma nota marginal s rvores de conhecimentos que florescem hoje nas empresas, escolas, universidades e quartis e que conferem um sentido tcnico c social concreto a nossas afirmaes sobre a inteligncia coletiva.

    27

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  • A inteligncia coletiva

    Mas a transparncia no ser jamais total, e no deve s-lo. O saber do outro no pode se reduzir a uma soma de resultados ou dados. O saber no sentido que tentamos defender aqui tambm um saber-viver (savoir-vivre), indissocivel da construo e da habitao de um mundo, incorpora o longo tempo da vida. por isso que, mesmo que eu deva me informar e dialogar, mesmo que possa aprender do outro, jamais saberei tudo o que ele sabe. A necessria escuta do outro no pode se reduzir construo de um saber a seu respeito, mera e simples captao de sua especialidade ou das informaes que ele detm. O aprendizado, no sentido amplo, tambm um encontro da incompreensibilidade, da irredutibilidade do mundo do outro, que funda o respeito que tenho por ele. Fonte possvel de minha potncia, ao mesmo tempo em que permanece enigmtico, o outro torna-se, sob todos os aspectos, um ser desejvel.

    Se os outros so fonte de conhecimento, a recproca imediata. Tambm eu, qualquer que seja minha provisria posio social, qualquer que seja a sentena que a instituio escolar tenha pronunciado a meu respeito, tambm sou para os outros uma oportunidade de aprendizado. Por meio de minha experincia de vida, de meu percurso profissional, de minhas prticas sociais e culturais, e dado que o saber co-extensivo '"ida, ofereo recursos de conhecimentos .1 uma comunidade. Mesmo que esteja desempregado, que no tenha dinheiro, no possua diploma, mesmo que more num subrbio, mesmo que no saiba ler, nem por isso sou nulo . No sou intercambivel. Tenho imagem, posio, dignidade, valor pessoal e positivo no Espao do saber. Todos os seres humanos tm direito ao reconhecimento de uma identidade de saber.

    O Espao do saber comea a viver desde que se experimentam relaes humanas baseadas nesses princpios ticos de valorizao dos indivduos por suas competncias, de transmutao efetiva das diferenas em riqueza coletiva, de integrao a um processo social dinmico de troca de saberes, no qual cada um reconhecido como uma pessoa inteira, no se vendo bloqueada em seus percursos de aprendizado por programas, pr-requisitos, classificaes a priori ou preconceitos em relao aos saberes nobres ou ignbeis.

    O que a inteligncia coletiva?

    uma inteligncia distribuda por toda parte, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta em uma mobilizao efetiva das competncias. Acrescentemos nossa definio este complemen-

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  • to indispensvel: a base e o objetivo da inteligncia coletiva so o reconhecimento e o enriquecimento mtuos das pessoas, e no o culto de comunidades fctichizadas ou hipostasiadas.

    Uma inteligncia distribuda por toda parte: tal nosso axioma inicial. Ningum sabe tudo, todos sabem alguma coisa, todo o saber est na humanidade. No existe nenhum reservatrio de conhecimento transcendente, e o saber no nada alm do que o que as pessoas sabem. A luz do esprito brilha mesmo onde se tenta fazer crer que nao existe inteligncia: fracasso escolar, execuo simples, subdesenvolvimento etc. O juzo global de ignorncia volta se contra quem o pronuncia. Se voc cometer a fraqueza de pensar que algum ignorante, procure em que contexto o que essa pessoa sabe ouro.

    Uma inteligncia incessantemente valorizada. A inteligncia distribuda por toda parte, um fato. Mas deve-se agora passar desse fato ao projeto. Pois essa inteligncia tantas vezes desprezada, ignorada, inutilizada, humilhada, justamente por isso no valorizada. Numa poca em que as pessoas se preocupam cada vez mais em evitar o desperdcio econmico ou ecolgico, parece que se dissipa alegremente o recurso mais precioso, a inteligncia, recusando-se a lev-la em conta, desenvolv-la e empreg-la. Do boletim escolar s grades de qualificao nas empresas, de modos arcaicos de administrao excluso social pelo desemprego, assiste-se hoje a uma verdadeira organizao da ignorncia sobre a inteligncia das pessoas, um terrvel pastiche de experincia, savoir- faire e riqueza humana.

    A coordenao das inteligncias em tempo real provoca a interveno de agenciamentos de comunicao que, alm de certo limiar quantitativo, s podem basear-se nas tecnologias digitais da informao. Os novos sistemas de comunicao deveriam oferecer aos membros dc uma comunidade os meios de coordenar suas interaes no mesmo universo virtual de conhecimentos. No seria tanto o caso dc modelar o mundofsico com um , mas de permitir aos membros de coletivos m al-situados interagir cm uma paisagem mvel dc significaes. Acontecimentos, decises, aes e pessoas estariam situados nos mapas dinmicos de um contexto comum e transformariam continuamente o universo virtual em que adquirem sentido. Nessa perspectiva, o ciberespao tornar-se-ia o espao mvel das interaes entre conhecimentos e conhecedores de coletivos inteligentes desterritorializados.

    Atingir uma mobilizao efetiva das competncias. Para mobilizar as competncias necessrio identific-las. E para apont-las preciso reconhec-las em toda a sua diversidade. Os saberes oficialmente vlidos

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  • A inteligncia colctiva

    s representam uma nfima minoria dos que hoje esto ativos. Essa questo do reconhecimento capital, pois ela no s tem por finalidade uma melhor administrao das competncias nas empresas e nas coletividades em geral, mas possui igualmente uma dimenso tico-poltica. Na era do conhecimento, deixar de reconhecer o outro em sua inteligncia recusar-lhe sua verdadeira identidade social, alimentar seu ressentimento e sua hostilidade, sua humilhao, a frustrao de onde surge a violncia. Em contrapartida, quando valorizamos o outro de acordo com o leque variado de seus saberes, permitimos que se identifique de um modo novo e positivo, contribumos para mobiliz-lo, para desenvolver nele sentimentos de reconhecimento que facilitaro, conseqentemente, a implicao subjetiva de outras pessoas cm projetos coletivos.

    O ideal da inteligncia coletiva implica a valorizao tcnica, econmica, jurdica e humana de uma inteligncia distribuda por toda parte, a fim de desencadear uma dinmica positiva de reconhecimento e mobilizao das competncias. Uma das condies necessrias ao salto econmico da Europa no final do sculo XVIII foi a instaurao de uma garantia jurdica eficaz da propriedade intelectual (direitos autorais, patentes, licenas de inveno etc.). Desse modo, os inventores podiam dedicar seu tempo, sua energia intelectual e seus recursos financeiros inovao, sem medo de ter seus esforos roubados pelos poderes da poca. Desde que o direito comeou a banir os monoplios e privilgios econmicos, desde que passou a oferecer os meios de inscrever pblica e irreversivelmente a marca de uma pessoa fsica ou moral em um procedimento tcnico, a inovao tornou-se atrativa. Ao se atribuir regras ao jogo da inovao, fazendo dela uma atividade legtima, socialmente encorajada, economicamente compensadora, desencadeou-sc uma dinmica tecnocicntfica c industrial de imenso alcance. Ora, encontramo- nos hoje diante da necessidade de realizar um salto do mesmo tipo na

    ordem das competncias e das inteligncias coletivas, que no dispem ainda de nenhum sistema de avaliao, de contabilidade, representao alguma, nenhuma regulao jurdica digna desse nome, embora estejam na fonte de todas as formas contemporneas da potncia.

    A inteligncia coletiva, lembremos, uma inteligncia distribuda por toda parte, incessantemente valorizada, coordenada c mobilizada cm tempo real. Para evitar qualquer mal entendido, e antes de encerrar esta introduo, iremos especificar o que ela no . No se deve, sobretudo, confundi-la com projetos totalitrios de subordinao dos indivduos a comunidades transcendentes c fctichizadas. Em um formigueiro, os indivduos so bestas, no possuem nenhuma viso de conjunto e no sabem como o que eles fazem se compe com os atos dos outros indi

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  • vduos. Mas, ainda que as formigas isoladamente sejam estpidas', sua interao produz um comportamento globalmente inteligente*. Acrescentemos que o formigueiro possui uma estrutura absolutamente fixa, as formigas dividem-se rigidamente em castas e so intercambiveis dentro de cada casta. O formigueiro fornece o exemplo do contrrio da inteligncia coletiva, no sentido em que a entendemos neste livro. Longe de apontar para o Espao do saber, o formigueiro anterior Terra, simplesmente pr-humano. Sero consideradas odiosas e brbaras todas as tentativas de aproximar, em maior ou menor medida, o funcionamento da sociedade ao dc um formigueiro.

    A inteligncia coletiva s tem incio com a cultura e cresce com ela. Pensamos, claro, com idias, lnguas, tecnologias cognitivas recebidas de uma comunidade. Mas a inteligncia culturalmente constituda no mais fixa ou programada como a do cupinzeiro ou a da colmia. Por

    * 1 4 w -w * A meio de transmissao, inveno e esquecimento, o patnmomo comum passa pela responsabilidade de cada um. A inteligncia do todo no resulta mais mecanicamente de atos cegos e automticos, pois o pensamento das pessoas que pereniza, inventa e pe em movimento o pensamento da sociedade. No entanto, o coletivo inteligente visado neste livro no se identifica simplesmente com o estado de cultura usual. Em um coletivo inteligente, a comunidade assume como objetivo a negociao permanente da ordem estabelecida, dc sua linguagem, do papel de cada um, o discernimento e a definio de seus objetos, a reinterpretao de sua memria. Nada fixo, o que no significa que se trate de desordem ou dc absoluto relativismo, pois os atos so coordenados e avaliados em tempo real, segundo um grande nmero de critrios constantemente reavaliados e contcxtualizados". No lugar das mos invisveis dos cupinzeiros sur gem as mos visveis e as dinmicas imaginrias dc universos virtuais em expanso. Interagindo com diversas comunidades, os indivduos que animam o Espao do saber, longe de ser os membros intercambiveis de castas imutveis, so ao mesmo tempo singulares, mltiplos, nmades c em vias de metamorfose (ou de aprendizado) permanente.

    Esse projeto convoca um novo humanismo que inclui c amplia o conhecc-te a ti mesmo para um aprendamos a nos conhecer para pensar juntos, e que generaliza o penso, logo existo em um forma-

    8. H um jogo dc palavras entre bete (animal, besta) c stupide (estpido). Nesse contexto, deve-se entender a palavra besta* no duplo sentido de animal e estpido (N. do T.).

    9. As rvores de conhecimentos so, mais uma vez, uma ilustrao da factibilidade tccnossocial de tal projeto.

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  • A inteligncia coletiva

    mos uma inteligncia coletiva, logo existimos eminentemente como comunidade . Passamos do cogito cartesiano ao cogitamus. Longe de fundir as inteligncias individuais em uma espcie de magma indistinto, a inteligncia coletiva um processo de crescimento, de diferenciao e de retomada recproca das singularidades. A imagem mvel que emerge de suas competncias, de seus projetos e das relaes que seus membros mantm no Espao do saber constitui para um coletivo um novo modo de identificao, aberto, vivo e positivo. Novas formas de democracia, mais bem adaptadas complexidade dos problemas contemporneos do que as formas representativas clssicas, poderiam ento ver a luz do dia (veja o captulo 4).

    A primeira parte deste livro destinada engenharia do lao social, que a arte de suscitar coletivos inteligentes e valorizar ao mximo a diversidade das qualidades humanas. O projeto da inteligncia coletiva declinado em todos os seus aspectos: tico (captulos 1 e 5), econmico (captulo 2), tecnolgico (captulo 3), poltico (captulo 4) e esttico (captulos 5 e 6). O ncleo da engenharia do lao social a economia das qualidades humanas. Que as foras das mensagens, das mquinas e das variedades naturais sejam por sua vez avaliadas, explora* das e contabilizadas segundo essa economia subjetiva, que o valor das coisas sc exprima segundo os mesmos signos que as identidades das pessoas (e no o contrrio!), que todo o nosso ambiente volte a ser humano, tal a utopia na utopia que esboa nas entrelinhas a engenharia do lao social.

    A segunda parte do livro, O Espao do saber, desenvolve a teoria dos quatro espaos antropolgicos anunciada nesta introduo. Aps uma apresentao da Terra, do Territrio, do Espao das mercadorias e do Espao do saber (captulo 7), define-se a noo de espao antropolgico (captulo 8), depois se examinam os problemas da identidade (captulo 9), da significao (captulo 10), do espao e do tempo (captulo 11), antes de tratar mais demoradamente da questo do conhecimento (captulos 12, 13 e 14). Essa parte encerrada com o esboo de uma filosofia poltica concebida como teoria das relaes entre os espaos antropolgicos (captulo 15). Mesmo que a linearidade do texto nos tenha obrigado, s vezes, a ta/.cr uma apresentado atada ordem temporal, o Espao do saber pretende ser uma cartografia, uma caixa de ferramentas conceituai, um guia porttil da mutao antropolgica, mais do que uma histria. Utilizo o texto para fornecer o modo de uso das mudanas em curso, para apontar os obstculos, indicar algumas direes de explorao. No tenho pretenses exatido histrica e cientfica, mas fecundidade filosfica e prtica.

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  • C a p t u l o 1

    Os justos. tica da inteligncia coletiva

    Gnesis, captulos 18 e 19. Um grande clamor se ergue contra Sodoma e Gomorra devido a seus pecados. Tendo Deus resolvido destruir essas cidades, nas quais se cometiam muitas injustias, decide falar primeiro a Abrao. Embora, diante de Deus, no passe dc poeira e cinzas, o patriarca enceta com o Eterno uma extraordinria sesso de negociao: Talvez haja cinqenta justos na cidade! Vais dc verdade suprimir esta cidade, ou perdo-la por causa dos cinqenta justos que ali se encontram? Sucederia ao justo o mesmo que ao culpado? Deus concede a Abrao a salvao da cidade, caso ali se encontrassem cinqenta justos. Mas o patriarca insiste e continua a negociar a salvao da cidade por quarenta e cinco, depois trinta, vinte c, finalmente, por dez justos apenas.

    Ao cair da noite, dois anjos chegam s portas dc Sodoma. Nada, cmsua aparncia, indica que sejam enviados de Deus. Para todos, so pessoas de passagem, viajantes desconhecidos. Lot, que estava sentado entrada da cidade, convida esses estrangeiros sua casa, d-lhes de comer e trata-os com perfeio, segundo as regras da hospitalidade. Eles ainda no haviam se deitado quando a populao de Sodoma se rene em torno da casa dc Lot e pede para ver os estrangeiros, para deles abusar. Lot se recusa a entregar seus hspedes; chega a oferecer em troca suas filhas ao populacho cncolerizado. Mas eles no querem saber. A demonstrao permitiu contar o nmero de justos em Sodoma: ape

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  • A iniduiciiita loltiiva

    nas um. Os anjos organizam a fuga de Lot e sua famlia. Assim que eles partem, a cidade destruda. Apesar da proibio dos anjos, a mulher de Lot olha para trs, para a chuva de enxofre e de fogo que queima Sodoma e Gomorra. Ela se transforma imediatamente em uma esttua de sal.

    Agora tentaremos uma interpretao laica do relato bblico da destruio de Sodoma e Gomorra. O prprio texto nos convida a isso. O que ele mostra, com efeito, no tanto um princpio transcendente do bem e do mal quanto a fora de pessoas vivas e ativas, os justos, capazes de trabalhar para a existncia do mundo humano.

    Se considerarmos a mulher de Lot sua metade, seu destino ilustra a tentao do justo de demorar-se no julgamento, mais do que de acolher o outro humano. Em sua mulher, Lot se identifica ao juiz, ou mesmo ao princpio abstrato da justia, em vez de continuar a ser um justo vivo. A mulher de Lot volta-se para contemplar a fornalha em que agonizam os habitantes das cidades e, ao faz-lo, reifica uma prtica de valor transcendente. Os justos fazem viver, os juizes se petrificam. A todo momento o justo pode se esquecer de si prprio e transformar-se em uma esttua de sal, rgida como a justia.

    H de supor que a barganha entre Deus e Abrao ocorre o tem potodo c para todas as cidades; Se o mundo humano subsistiu ate hoje, porque sempre houve um nmero suficiente de justos. Porque as prticas de acolhida, ajuda, abertura, cuidado, reconhecimento e construo, afinal, so mais numerosas ou mais fortes que as prticas de excluso, indiferena, negligncia, ressentimento, destruio... Se os pais no amassem seus filhos, se as pessoas passassem seu tempo exclusivamente tendo inveja umas das outras, abusando umas das outras, se matando, a espcie humana no teria sobrevivido. A chuva de enxofre e de fogo que queima Sodoma c Gomorra no cai do cu, mas sobe das prprias cidades: so as labaredas da discrdia, da guerra, das violncias a que se entregam os seus habitantes. Mas nem todas as cidades foram destrudas, e nossa presena na Terra prova que, at o momento, e globalmente, a quantidade de bem foi superior quantidade de mal . Essa avaliao no visa de modo algum justificar os sofrimentos e reveses da humanidade pelo bem eventualmente obtido. Destina-se apenas a equilibrar a publicidade que se d ao mal pela considerao de um fato, de um resultado bruto: continuamos presentes. A megalpole humana ainda no foi destruda.

    *

    De fato, o mal est em toda parte, est sempre visvel, ao passo que o bem (a atividade dos justos) s descoberto depois de uma cuidadosa pesquisa de campo (os anjos vo visitar Sodoma) ou por seus efeitos

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  • .'1 iutrfincticia coletiva

    ro. O que mais inclui pode tornar-se o mais excludo. Integrando o estrangeiro, expulso por sua vez, fazendo os outros passarem e transgredindo ele prprio as fronteiras, o justo o guia por excelncia.

    Por que Abrao no prossegue em sua barganha (nove, sete, trs justos...)? Por que preciso ao menos dez justos para que a cidade seja poupada? Por que Lot no consegue salvar Sodoma? Porque preciso uma fora coletiva para manter um coletivo. Trs seriam trs pessoas conhecidas, em breve clebres, das quais uma acabaria mais cedo ou mais tarde se destacando. Mas, distante da representao e do espetculo, o texto quer mostrar que uma cidade no se funda nem na relao de todos com um, nem na deste com todos. O justo no tem vocao nem para reinar, nem para servir de vtima expiatria. A cidade s se mantm em virtude da relao de um coletivo com outro coletivo. Idealmente, vive de sua relao consigo mesma, com o trabalho de incluso dc todos por todos. Ora, dez comeam a formar um verdadeiro coletivo. Dez o incio do anonimato. So necessrios pelo menos dez, pois os justos devem ter passado pela prova da sociedade dos justos. Devem ser capazes de viver em conjunto, dc suportar-se reciprocamente, deajudar-se uns aos outros, de reforar, retomar e valorizar reciprocamenteseus atos. Os justos s so eficazes, s conseguem manter a existncia de uma comunidade constituindo uma inteligncia coletiva.

    At agora, vimos por que e como os justos conseguiam criar e fazer durar os coletivos humanos. Ao mostrar que a eficcia do justo consiste em manter as comunidades existindo, ou em adiar sua destruio, o texto bblico nos fornece uma indicao capital sobre a natureza do bem em geral. O bem invoca a existncia das qualidades humanas e valoriza- as. So boas as foras de criao e de conservao da vida social, em toda a variedade de suas manifestaes. Se o justo impede a destruio, que o bem se encontra do lado do ser, e mais ainda do lado da capacidade dc ser: a potncia; e talvez muito mais do lado do aumento da potncia, seja ela fsica, moral, intelectual, sensual ou de outra natureza. Seria considerado bom, por conseguinte, tudo o que engrandece os seres humanos c, em primeiro lugar, sua moral: orgulho, reconhecimento, comunicao, inteligncia coletiva. Os justos favorecem a potncia. De modo simtrico, seriam julgadas ms as foras que diminuem os seres humanos e, no limite, destroem-nos: a humilhao, a depreciao, a separao, o isolamento. Se a potncia boa, o poder ruim, pois medido por sua capacidade dc limitar a potncia, por seu potencial de destruio. O poder d medo. O poder excessivamente ruidoso c impede o coletivo numeroso de se comunicar com clc. S sc instaura c

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  • As qualidades humanas. Economia da inteligncia coletiva

    presso de uma verdadeira urgncia social, o setor da produo de laos (uma das principais atividades da economia das qualidades humanas) chamado a se desenvolver. E as condies que favorecem a nova econo* mia ainda duraro por muito tempo.

    H ainda uma terceira razo que torna necessrios uma ascenso da economia das qualidades humanas c o desenvolvimento da engenharia do lao social que lhe corresponde. Em nossa poca, as tcnicas disponveis permitem fornecer a todos mais do que o necessrio. Somos forados a concluir que a escassez doravante socialmente produzida, que a misria e a excluso so organizadas, mesmo que no sejam deliberadamente visadas. Sc o desemprego aparece como uma fatalidade mais ou menos compreensvel segundo a economia clssica, no que concerne a uma economia do humano ele surge como destruio sistemtica de riquezas. Uma sociedade que admitisse explicitamente os princpios da economia das qualidades humanas reconheceria, encorajaria e retribuiria todas as atividades sociais que produzem e sustentam essas qualidades, mesmo as que no fazem parte diretamente da economia mercantil. Ao faz-lo, ela permitiria aos que no dispem de emprego assalariado construir

    assim mesmo uma identidade na interao com o coletivo. Alm disso, enriqueceria de modo indireto as reservas de savoir-faire e de potncias humanas que alimentam o dinamismo do setor mercantil.

    Mas nem a economia do conhecimento, nem a economia ampliada das qualidades humanas devem se desenvolver como economias dirigidas, pois isso seria empregar meios radicalmente opostos aos objetivos visados. No-mercantil no significa forosamente estatal, burocrtico, monopolista, hostil iniciativa privada ou alrgico a toda forma de avaliao. O problema da engenharia do lao social inventar e manter os modos de regulao de um liberalismo generalizado. Segundo esse liberalismo ampliado, cada um seria produtor (e solicitador) individual de qualidades humanas em uma grande variedade de mercados ou contextos, sem que ningum jamais pudesse se apropriar dos meios de produo dos quais os outros seriam privados. Na economia do fiituro, o capital ser o homem total.

    Escasseiam os que fabricam coisas, e seu trabalho, instrumentalizado, ampliado, mecaniza-se cada vez mais. As profisses de tratamento da informao encontram-se em sursts, pois as redes de comunicao com inteligncia incorporada realizaro sozinhas a maior parte das tarefas. Como ltima fronteira, descobrimos o humano, o no-automatizvel: a abertura de mundos sensveis, a inveno, a relao, a recriao continuam sendo coletivas.

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  • C a p t u l o 3

    Do molar ao molecular. Tecnologia da inteligncia coletiva

    N ada mais precioso que o humano. Ele a fonte das outras riquezas, critrio e portador vivo de todo valor. Que bem seria esse que no fosse saboreado, apreciado ou imaginado por nenhum membro de nossa espcie? Os seres humanos so, ao mesmo tempo, a condio necessria do universo e o suprfluo que lhe confere seu preo, compem o solo da existncia e o extremo de seu luxo: inteligncias, emoes, envoltrios frgeis e protetores do mundo, sem os quais tudo voltaria ao nada. E por isso que defendemos que preciso ser economista do humano, que bom cultiv-lo, valoriz-lo, vari-lo e multiplic-lo, e no esbanj-lo, destru-lo, esquec-lo, deix-lo morrer por falta de cuidados e de reconhecimento. Mas no podemos permanecer no plano da enunciao de seus princpios. E necessrio igualmente forjar instrumentos conceitos, mtodos, tcnicas que tornem sensvel, mensurvel, organizvel, em suma, praticvel o progresso em direo a uma economia do humano.

    Essa economia, sem dvida, inovadora. Aponta para o futuro, liga-se estreitamente transformao em curso. Mas tambm, desde as origens, a base imemorial das outras economias, cujos balanos invisveis decidem a runa ou o florescimento dos povos. A engenharia do lao social no se estabelece em absoluto em uma tbula rasa. Todos os artifcios da religio, drogas, perfumes, msicas, imagens, sonhos pro-

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  • Do molar ao mohciilar. Tecnologia da inteligncia coletiva

    tomo por tomo das macromolculas talvez eliminem, cm algumas dcadas, a velha qumica industrial dos aquecimentos e das misturas. Melhor ainda, certas especulaes de pesquisadores contemporneos" permitem vislumbrar a perspectiva de nanocaptores, nanocomputadores e nanor- robs em cscala molecular, que rechearo de inteligncia partilhada os materiais do futuro, conferindo-lhes capacidade de produo c reproduo autnoma, de reao programada s modificaes de seu ambiente. Somos capazes de imaginar em que consistir a utilizao de materiais inteligentes na massa? A transformao da civilizao material anunciada pelas nanotecnologias poder acarretar imensos questionamentos econmicos, sociais c culturais, ao lado dos quais aqueles provocados pela informatizao talvez paream desprezveis.

    Informao

    As tcnicas de controle das mensagens podem ser classificadas cm trs grupos principais: somticas, miditicas e digitais. As tcnicas somticas implicam a presena efetiva, o engajamento, a energia e a sensibilidade do corpo para a produo de signos. So, por exemplo, as performances ao vivo de fala, dana, canto ou msica instrumental. Difcil de distinguir em uma situao global, uma mensagem somtica cm essncia plurimodal. A fala acompanhada de gestos e expresses faciais, a dana s de fato visvel com seu fundo sonoro... Uma mensagem somtica no jamais reproduzida exatamente por meio de tcnicas somticas. Embora derive em geral de tradies ou linhagens, sempre nica, porque indissocivel de um contexto mvel. Segundo a circunstncia e o ajuste de suas intenes, o produtor da mensagem somtica modula, adapta, faz variar continuamente o fluxo de signos do qual ele a fonte.

    As tecnologias miditicas (molares) fixam e reproduzem as mensagens a fim dc assegurar-lhes maior alcance, melhor difuso no tem po eno espao. A medida que produzem semforos durveis ou transportveis, o estaturio, a bijuteria, a pintura ou a tapearia j constituem atividades protomiditicas. As mensagens continuam a ser emitidas na ausncia do corpo vivo dos destinatrios. A passagem mdia propriamente dita (isto , aos meios de comunicao de massa) se d com as tcnicas de reproduo dos signos e marcas: selos, carimbos, moldagcm,

    2. Ver K. Eric DREXLER c Chris PETF.RSF.N, Unbouning the future, tbe nano- tccbnology rcrolution, Nova York, William Morrow & Company, 1991.

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  • Do mt>lnr ao moleeular. eaioiiuiia tia inteligncia coletiva

    dominar o mercado do multimdia? Como? Espervamos tal sutileza, tal exatido, tal economia no tratamento dos signos e das coisas... c no nos preocuparamos em sistematizar e estender os modos de interao e de relao justos, quando h seres humanos em jogo! Que novas regras do jogo social incitaro a no desperdiar nenhuma competncia, nenhuma qualidade humana em geral? Como deixar de tratar mulheres e homens de maneira entrpica, por alto, massificamentc, como se fossem intercambiveis em sua categoria, considerando cada um, pelo contrrio, como um indivduo singular? Como tornar evidente para todos que o outro um portador nico dc savoir-faire c dc criatividade? Quando as organizaes dirigidas dc forma inteligente no conseguem mais enfrentar a complexidade das situaes, como prescindir de organizaes inteligentes na massa! Tais so alguns dos problemas postos a essa engenharia do lao social, a essa tcnica molecular do poltico ainda por inventar.

    Podemos distinguir trs grandes tipos ideais em meio variedade de tecnologias polticas. As famlias, os cls e as tribos so grupos orgnicos. Os Estados, as instituies, as igrejas, as grandes empresas, assim como as massas revolucionrias so grupos organizados, molares, que passam por uma transcendncia ou exterioridade para se constituir e se manter. Enfim, os grupos auto-organizados, ou grupos moleculares, realizam o ideal da democracia direta nas enormes comunidades em situao de mutao e desterritorializao.

    S pode existir grupo orgnico se cada um dos membros sabe o nome dos outros. Nesse tipo de coletivo, as pessoas podem obedecer a regras, seguir tradies, respeitar cdigos. No entanto, os princpios organizadores no esto fixados, reificados ou situados fora do grupo, pois so carregados pela comunidade constituda cm corpo. Quando um membro de um grupo orgnico realiza uma ao, os outros avaliam imediatamente como esse ato repercute em sua situao. Nesse caso, as pessoas sabem mais ou menos o que fozem juntas. Cada um pode interagir com todos, sem ter necessidade de passar por especialistas da mediaoou da organizao. A maioria dos exemplos durveis de democraciadireta resulta de frutos orgnicos.

    Apela-se s tecnologias polticas da transcendncia medida que o grupo se torna demasiado numeroso para que os indivduos se conheam por seu nome e possam compreender cm tempo real o que fazem juntos. Ento, os diversos lderes, chefes, reis e representantes unificam e polarizam o espao do coletivo. As instituies lhes conferem um tempo contnuo. A burocracia torna-se seu rgo separado de gesto e de tratamento da informao. Supe-se que uma diviso estrita do trabalho e, particularmente, a ruptura entre execuo e concepo assegu-

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  • C a p t u l o 4

    Dinmica das cidades inteligentes. Manifesto por uma poltica molecular

    omo governar cm situao de desterritorializao acelerada? A inveno de novos modos de regulao poltica surge como uma das

    tarefas que se impem com urgncia humanidade. Moralmente desejvel quando caminha no sentido de um aprofundamento da democracia, essa inveno envolve a sade pblica ao condicionar a resoluo dos problemas graves e complexos de nosso tempo. Desenvolvemos aqui a hiptese utpica de uma democracia direta acompanhada por computador ou dc uma gora virtual -, mais capaz de nos fazer atravessar as guas turbulentas da mutao antropolgica do que os sistemas representativos atuais.

    Tcnica e poltica

    As infra-estruturas de comunicao e as tecnologias intelectuais sempre mantiveram estreitas relaes com as formas de organizao econmicas c polticas. Lembremos a esse respeito alguns exemplos bem conhecidos. O nascimento da escrita est ligado aos primeiros Estados burocrticos dc hierarquia piramidal e s primeiras formas de administrao econmica centralizadas (imposto, gesto dc grandes domnios agrcolas etc.). O surgimento do alfabeto na Grcia antiga contemporneo ao aparecimento da moeda, da cidade antiga c, sobretudo, da

    59

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  • Dinmica cias cidadcs inteligentes. Manifesto por uma poltica molecular

    ricas e educadas. Esse argumento no nos parece vlido. Quanto ao custo, tal sistema poderia basear-se em infra-estruturas materiais existentes, sem nem sequer apelar s famosas fibras pticas das infovias . Os desenvolvimentos necessrios para a melhoria dos sistemas de compactao e descompactao dos dados, para a concepo dos softwares de comunicao, navegao, simulao e visualizao seriam mnimos em relao s somas absorvidas em certas despesas militares ou na construo dc escritrios ociosos. Nenhum investimento especial seria necessrio para o desenvolvimento dos terminais. Seriam empregados os microcomputadores multimdia disponveis no mercado. Quanto s barreiras do uso, os instrumentos digitais contemporneos so cada vez mais fceis dc manejar. Uma parcela cada vez maior da populao utiliza computadores em seu trabalho c sabe manejar um ou dois softwares. As dificuldades de aprendizado parecem quase inexistentes para as jovens geraes. (De maneira geral, o que hoje parece fico cientfica aos que tm mais dc quarenta anos pode muito bem ser trivial daqui a trinta anos.) Lembremos que s se trata dc aprender a utilizar os instrumentos digitais de comunicao, c no de constru-los ou program-los. A ttulo de comparao, recordemos que o sufrgio universal supe a alfabetizao dos cidados. Ora, a prtica da leitura se adquire com grande esforo, em trs ou quatro anos (ou mais) dc trabalho assduo, em instituies especializadas e bem caras para a coletividade (as escolas), s quais certas pessoas infelizmente no tm accsso cm alguns pases. Ser esta uma razo para recusar o sufrgio universal, sob pretexto de que seria reservado a uma elite prspera c alfabetizada? Pelo contrrio, o sufrgio universal e o acesso educao so geralmente considerados direitos. A capacidade mnima para navegar no ciberespao se adquirir provavelmente em tempo muito menor que o necessrio para aprender a ler e, como a alfabetizao, ser associada a muitos outros benefcios sociais, econmicos c culturais alm do accsso cidadania.

    O telefone e a televiso fazem parte, hoje, do equipam ento normaldos lares nos pases industrializados, mesmo entre as pessoas mais modestas. A televiso o terminal de um dispositivo de comunicao que funciona segundo o esquema em estrela um /todos. A mensagem parte de um centro nico para atingir uma periferia numerosa de receptores separados entre si. J o telefone o terminal de um dispositivo de comunicao estruturado pelo esquema cm rede um /um . Os contatos so interativos, mas somente dois usurios (ou um pequeno nmero de pessoas) podem se comunicar ao mesmo tempo. No absurdo conceber que, daqui a alguns anos, todos os lares possam igualmente estar

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  • indeterminada. uma harmonia preestabelecida por um ponto de origem no passado, fixada por um ponto de parada durante o desenvolvi* mento, ou dirigida de cima por um ponto de transcendncia que orienta o processo. Ora, para ser completamente livre, a fala do coletivo deveria estar ligada sua respirao, deveria brotar incessantemente e inventar-se em tempo real.

    O ciberespao poderia abrigar agenciamcntos dc enunciao produtores de sintomas polticos vivos que permitiriam aos coletivos humanos inventar e exprimir de modo contnuo enunciados complexos, abrir o leque das singularidades e das divergncias, sem por isso inscrever-se em formas fixadas de antemo. A democracia cm tempo real visa a constituio do ns mais rico, cujo modelo musical poderia ser o coral polifonico improvisado. Para os indivduos, o exerccio c especialmente delicado, pois cada um chamado ao mesmo tempo a: 1) escutar os outros coralistas; 2) cantar de modo diferenciado; 3) encontrar uma coexistncia harmnica entre sua prpria voz e a dos outros, ou seja,

    /melhorar o efeito de conjunto. E necessrio, portanto, resistir aos trs maus atrativos que incitam os