a integração regional na visão da nova direita: uma

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*Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutora em Relações Internacionais pela PUC-Rio. A integração regional na visão da nova direita: uma análise do discurso a partir da teoria de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe Introdução O artigo pretende investigar os impactos que o discurso da nova direita no continente poderá provocar sobre o processo de integração e o tipo de regionalismo que parece se estabelecer na região. De que forma a visão de mundo da nova direita, em particular a brasileira, afeta o processo de integração regional? Os discursos do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, apontam para uma ruptura na tradição de política externa brasileira construída nos últimos cem anos e inovam ao introduzir o elemento religioso e místico. No campo econômico, estaríamos diante de um retorno do regionalismo aberto ou de um modelo ultraneoliberal nunca antes tentado na história da integração sul- americana? Quais as diferenças em relação ao regionalismo aberto que já podem ser percebidas nos discursos sobre a suposta ineficiência do Mercosul e da Unasul? Para tentar responder a essas indagações, propõe-se uma abordagem baseada na análise do discurso a partir da teoria do filósofo argentino Ernesto Laclau e da filósofa belga Chantal Mouffe. O pensamento hegemônico se constrói, segundo Laclau e Mouffe (1985), a partir do estabelecimento, ainda que sempre provisório, de significados em uma cadeia de significantes vazios. O conceito de “significante vazio” permite que a disputa pela fixação do significado seja perene. A cadeia de significantes hegemônica é constantemente tensionada pelos grupos que pretendem desestabilizá-la e, assim, fixar outros significados. Pretende-se analisar neste artigo as cadeias de significantes que sustentam o discurso da nova direita, em particular os ministérios das relações exteriores e da economia, e de que forma ele se articula com os discursos sobre a integração regional. Primeiramente, abordaremos as teorias utilizadas para pensar o Mercosul desde o seu nascimento, assim como os conceitos de regionalismo aberto e regionalismo pós-hegemônico. A segunda seção tratará das Teorias de

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*Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutora em Relações Internacionais pela PUC-Rio.

A integração regional na visão da nova direita: uma análise do discurso a

partir da teoria de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe

Introdução

O artigo pretende investigar os impactos que o discurso da nova direita no

continente poderá provocar sobre o processo de integração e o tipo de

regionalismo que parece se estabelecer na região. De que forma a visão de

mundo da nova direita, em particular a brasileira, afeta o processo de integração

regional? Os discursos do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo,

apontam para uma ruptura na tradição de política externa brasileira construída

nos últimos cem anos e inovam ao introduzir o elemento religioso e místico. No

campo econômico, estaríamos diante de um retorno do regionalismo aberto ou

de um modelo ultraneoliberal nunca antes tentado na história da integração sul-

americana? Quais as diferenças em relação ao regionalismo aberto que já

podem ser percebidas nos discursos sobre a suposta ineficiência do Mercosul e

da Unasul? Para tentar responder a essas indagações, propõe-se uma

abordagem baseada na análise do discurso a partir da teoria do filósofo argentino

Ernesto Laclau e da filósofa belga Chantal Mouffe. O pensamento hegemônico

se constrói, segundo Laclau e Mouffe (1985), a partir do estabelecimento, ainda

que sempre provisório, de significados em uma cadeia de significantes vazios. O

conceito de “significante vazio” permite que a disputa pela fixação do significado

seja perene. A cadeia de significantes hegemônica é constantemente tensionada

pelos grupos que pretendem desestabilizá-la e, assim, fixar outros significados.

Pretende-se analisar neste artigo as cadeias de significantes que sustentam o

discurso da nova direita, em particular os ministérios das relações exteriores e

da economia, e de que forma ele se articula com os discursos sobre a integração

regional. Primeiramente, abordaremos as teorias utilizadas para pensar o

Mercosul desde o seu nascimento, assim como os conceitos de regionalismo

aberto e regionalismo pós-hegemônico. A segunda seção tratará das Teorias de

*Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutora em Relações Internacionais pela PUC-Rio.

Laclau e Mouffe sobre cadeias de equivalência e a reflexão de Mouffe sobre o

que ela denomina de “momento populista”. A partir da mobilização desse arsenal

teórico, faremos uma discussão sobre as limitações das teorias tradicionais de

integração para pensar a concepção da Nova Direita de integração regional e as

possíveis alternativas a ela no século XXI.

2. Os pressupostos ontológicos e epistemológicos do debate

sobre regionalismo

Nesta seção, abordaremos os conceitos presentes no debate acadêmico

sobre a integração regional na América do Sul e, em particular, no Mercosul.

Uma das dicotomias presentes em todas as discussões sobre integração diz

respeito ao caráter supranacional ou intergovernamental dos blocos. Enquanto

a União Europeia é composta por instituições supranacionais (Comissão

Europeia, Corte de Justiça e Parlamento) e intergovernamentais (Conselho de

Ministro e Conselho Europeu), o Mercosul tem, desde seu início, a

intergovernamentalidade como característica principal. Nas palavras de

acadêmicos, chefes de Estado, de governo e diplomatas do bloco, o Mercosul

foi criado com o propósito de ser intergovernamental e nunca almejou mais do

que isso. Segundo Fernando Furlan, o caráter intergovernamental do bloco é

“bem arraigado na cultura política dos membros do Mercosul” (FURLAN, 2010,

p.1).

A integração regional do Mercosul sempre esteve pautada na defesa e

fortalecimento da soberania nacional e não no modelo europeu de

supranacionalidade que começou a ser desenhado ainda na Comunidade

Europeia do Carvão e do Aço (CECA), em 1951, a qual já considerava uma

Autoridade Supranacional. A preocupação com o interesse nacional, a soberania

e o desenvolvimento dos Estados-membros foram colocados como os principais

objetivos da integração regional. O texto do Tratado de Assunção (1991) refere-

*Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutora em Relações Internacionais pela PUC-Rio.

se a uma integração calcada em Estados cujo objetivo é o fortalecimento das

economias nacionais perante o desafio de um mundo globalizado. Apenas em

dezembro de 2006, em discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na

Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA), a supranacionalidade é citada

pela primeira vez em um discurso oficial.

Veremos a seguir o papel da intergovernamentalidade e

supranacionalidade nos diferentes momentos da integração do Mercosul e como

ambas pressupõem uma mesma base ontológica e epistemológica centrada no

Estado.

O período inicial da integração no Mercosul tem recebido, na literatura

sobre integração, a denominação de regionalismo aberto. Para Srinivasan

(1999), o conceito de regionalismo aberto é um oxímoro por combinar opostos:

o termo regionalismo pressupõe fechamento - o traçado de uma fronteira entre

o interno (o espaço regional) e o externo (o sistema internacional) - e o termo

aberto nos remete à ausência de fronteira com o espaço externo ao bloco. O

regionalismo aberto, portanto, lidaria com essa ambigüidade e indecidibilidade

entre abertura e fechamento.

Essa ambigüidade pode ser explicada pela formação do conceito.

Desenvolvido pelos neoestruturalistas da CEPAL (Comissão Econômica para a

América Latina) em 1994, o regionalismo aberto reúne duas teorias de viés

oposto: o estruturalismo cepalino dos anos 50, que pregava complementaridade

produtiva e proteção tarifária em relação a terceiros, e as teorias do Novo

Regionalismo, que defendiam a abertura econômica.

O regionalismo aberto contrariava as teorias tradicionais sobre comércio

internacional, segundo as quais a integração provocava desvios de comércio

superiores aos efeitos benéficos de criação de comércio promovida pela

liberalização tout court. O regionalismo aberto sustentava o contrário: a

integração regional não é obstáculo, mas uma etapa da liberalização.

*Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutora em Relações Internacionais pela PUC-Rio.

Outra característica deste regionalismo da década de 90 é a ausência de

uma política estatal mais intervencionista em prol da integração. Além disso, há

pouco interesse em desenvolver uma política democrática mais robusta. O

Protocolo

de Ushuaia, assinado em 1998, prevê o afastamento de um Estado-membro no

caso de violência da cláusula democrática, mas esta medida ainda deve ser

decidida no âmbito do Estado e não pelos cidadãos. Embora regionalismo aberto

e processos de democratização na América do Sul tenham coincidido, isto não

significa que ambos guardem entre si uma relação necessária. Segundo Evelina

Dagnino, teria ocorrido apenas uma “convergência perversa” (......). Na teoria da

estratégia hegemônica de Laclau e Mouffe, que veremos na próxima seção, a

cadeia de equivalências que une democracia e regionalismo aberto não é fixa e

necessária, podendo ser deslocada por outra cadeia de equivalência em que

democracia aparece ao lado de outro significante.

Como se pode depreender da exposição acima, o regionalismo aberto

depende de um intergovernamentalismo baseado no Estado como entidade

incontestável e não problematizável. O fortalecimento do comércio intra-bloco

visa, sobretudo, reforçar o Estado como o principal agente no processo de

integração. A ontologia do intergovernamentalismo e do regionalismo aberto é

estatal pois concebe a democracia a partir da imaginação política estatal. A

ontologia da concepção de fronteira estatal (VAUGHAN-WILLIAMS) nos leva

também a uma epistemologia positivista em que se estabelece a divisão entre

dentro e fora, sujeito e objeto. A política externa brasileira, inclusive a que

concebeu o Mercosul como um projeto intergovernamental de regionalismo

aberto, é pautada na Teoria Realista das Relações Internacionais, que erige a

soberania estatal como um dado da realidade. Ainda que o regionalismo aberto

proponha uma abertura ao internacional, esta só será possível após a etapa de

fortalecimento do mercado regional.

Nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT), o Mercosul teria

passado a uma outra fase, denominada regionalismo pós-liberal (VEIGA, RIOS,

*Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutora em Relações Internacionais pela PUC-Rio.

2007, LOCKHART, 2013) ou pós-hegemônico (RIGIROZZI, 2012). Para estes

autores, o regionalismo do século XXI vai além do economicismo e

neoliberalismo dos anos 90 e começa a pensar a região política e socialmente.

Em 2006, como já citado, o presidente Lula refere-se, pela primeira vez, a uma

possibilidade de supranacionalidade no Mercosul. Em outras palavras, o

Mercosul nos governos do PT se caracterizaria por ênfase na

supranacionalidade e no regionalismo pós-liberal ou pós-hegemônico.

O termo “regionalismo pós-liberal” foi utilizado por Pedro da Motta Veiga

(2007), Sandra Rios (2007) e Lockhart (2013) para se referir a um processo

endógeno de desenvolvimento econômico liderado pelo Estado. Para Lockhart,

a diferença entre o regionalismo aberto e o pós-liberal poderia ser pensada em

torno de alguns pontos:

O primeiro ponto destaca que o regionalismo pós-liberal valoriza o papel

interventor do Estado como um agente da integração, trazendo novamente a

política para o centro da cena. O Estado é o responsável pela visão estratégica

que definirá o perfil da integração. Para Lockhart, o oposto acontecia no

Regionalismo Aberto, no qual, apesar da existência do Estado-centrismo,

segundo Bernal-Mezza, havia pouco aprofundamento institucional e primazia do

mercado.

A segunda diferença estaria na amplitude dos temas. Se o Regionalismo

Aberto se restringia a questões comerciais, o Regionalismo pós-liberal irá além

do econômico ao adotar um projeto de desenvolvimento político e social, com a

criação de instituições regionais supranacionais (Unasul, Celac, Parlasul) e

cooperação intensa em áreas não comerciais.

O terceiro elemento de distinção entre os regionalismos dos anos 90 e do

século XXI estaria na concepção espacial. O Regionalismo Aberto é marcado

pela economia geográfica, segundo a qual é possível articular um espaço

regional e um espaço internacional no mercado globalizado. Lockhart aponta que

*Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutora em Relações Internacionais pela PUC-Rio.

o Regionalismo pós-liberal não realiza esta articulação. O território nacional é

compreendido como “condição de existência” da soberania.

Dois questionamentos poderiam ser levantados em relação a essa

descrição do regionalismo pós-liberal. Em primeiro lugar, poderíamos perguntar

se, de fato, tratou-se de um pós-liberalismo, uma vez que a política econômica

do PT em muito se assemelhou, segundo alguns autores, à política econômica

dos governos do PSDB. Se esta interpretação for considerada válida, abre-se a

possibilidade de repensar o período PSDB-PT como o de uma pós-política no

sentido dado por Chantal Mouffe. A política de integração dos dois governos se

converteria, assim, numa política de consenso.

O segundo questionamento refere-se ao caráter estado-cêntrico presente

nos dois tipos de regionalismo, o que tornaria essas teorias mais próximas do

que suspeitaríamos inicialmente. Talvez pudéssemos nos referir a um debate

neo-neo (os mesmos pressupostos positivistas) no campo do regionalismo

mercosulino.

Tanto o fortalecimento do Estado num momento anterior à abertura

(regionalismo aberto) quanto a atuação do Estado como indutor do

desenvolvimento (regionalismo pós-liberal) estão dentro de um mesmo quadro

de inteligibilidade em que nossa imaginação política e democrática é

determinada pelo espaço do Estado. Em ambas as fases, a ontologia é estado-

cêntrica e a epistemologia, positivista.

O regionalismo sul-americano dos anos 2000 também recebeu a

denominação de regionalismo pós-hegemônico (RIGIROZZI, 2012), que

enfatizaria mais os aspectos políticos da integração. A concepção de

regionalismo pós-hegemônico adotada por Rigirozzi foi originalmente proposta

por Armitav Acharya (2009), para quem as ordens regionais estavam inscritas

na prática da hegemonia. Com o fim da hegemonia americana, estaríamos

testemunhando a emergência de hegemonias regionais. A partir desta tese de

*Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutora em Relações Internacionais pela PUC-Rio.

Acharya, Rigirozzi afirma que a América Latina estaria construindo um

“regionalismo pós-hegemônico”.

Segundo a teoria de Acharya, o Regionalismo pós-hegemônico, como o

próprio nome sugere, traz em si uma contestação à Hegemonia norte-americana.

Ele se configura como um espaço de resistência ao neoliberalismo e à

hegemonia norte-americana. Em outras palavras, pode-se dizer que se passa de

um regionalismo passivo para um regionalismo ativo no que diz respeito à

relação com os Estados Unidos. Portanto, este tipo de regionalismo se

caracterizaria, sobretudo, por uma postura soberana da América do Sul frente à

política dos Estados Unidos.

O regionalismo pós-hegemônico seria, de acordo com Riggirozzi (2010),

uma forma de “governança” que se assemelharia ao “jardim de caminhos que se

bifurcam” do conto de Jorge Luís Borges. Isto porque o regionalismo pós-

hegemônico oferece vários caminhos para a construção da governança regional,

além do comércio ou do enfrentamento com os Estados Unidos. Ele poderia ser

definido como um processo de múltiplas dimensões: comerciais, de integração

política e políticas sociais.

Se partirmos da teorização de Chantal Mouffe, não seria possível referir-

nos a um período pós-hegemônico, uma vez que o político é sempre marcado

por uma estratégia hegemônica que articula uma cadeia de significantes num

dado momento histórico, e esta estratégia hegemônica só pode ser deslocada

por outra hegemonia. Portanto, o que Rizzigozi chama de regionalismo pós-

hegemônico, na verdade, seria a substituição de um regionalismo subordinado

à hegemonia norte-americana por um regionalismo hegemônico latino-

americano.

3. Populismo como Radicalização da Democracia – a abordagem de

Ernesto Laclau e Chantal Mouffe

*Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutora em Relações Internacionais pela PUC-Rio.

A proposta desta seção é a de discutir o conceito de populismo no

pensamento de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe e sua implicação para o debate

contemporâneo sobre a derrocada da democracia. Entender o populismo como

uma prática discursiva de construção de fronteiras significa mais do que

simplesmente traçar uma separação rígida entre dois domínios: o do povo e o

da oligarquia. Significa repensar também o próprio conceito de fronteira como

parte de uma estratégia hegemônica que depende do deslocamento de

significantes numa cadeia de equivalências. Em outras palavras, considerar a

própria fronteira como uma cadeia de significantes em fluxo constante.

No clássico “Hegemonia e Estratégia Socialista”, os autores destacam

dois conceitos essenciais para conceber o campo do político: “antagonismo” e

“hegemonia”. Ambos nos remetem a uma dimensão de negatividade radical (a

hegemonia se estabelece contra o outro antagônico) que estaria constantemente

presente, o que impossibilitaria a concretização no presente ou no futuro (como

propõem as teorias modernas) de uma totalização\emancipação da sociedade

para além das divisões, ou um social sem mediação. Ao contrário, na perspectiva

de Laclau e Mouffe, a sociedade é resultado de práticas hegemônicas

temporárias, precárias, contingentes e que, por conta desta característica,

também podem ser contestadas e deslocadas por práticas contra-hegemônicas.

A mesma lógica anti-essencialista pode ser observada na teorização do

agente social, o qual é “constituído por um conjunto de ‘posições discursivas’

que nunca podem ser totalmente fixadas num sistema fechado de diferenças”

(MOUFFE, 2018). Portanto, a identidade do agente social é contingente,

temporária e precária. Consequentemente, não podemos nos referir ao sujeito

como se este fosse uma entidade unificada e homogênea. Veremos mais à frente

como esta concepção está na base do que Mouffe entende como povo. O agente

social deve ser pensado como pluralidade, mas esta pluralidade não está

baseada numa coexistência de pluralidades das posições do sujeito, como se

estas fossem partes separadas, contíguas e independentes umas das outras. O

*Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutora em Relações Internacionais pela PUC-Rio.

que se estabelece é uma constante subversão, transformação ou

sobredeterminação de uma pluralidade sobre outra.

Desta forma, temos um duplo movimento: o de descentramento ou

deslocamento, que impede a fixação em torno de um “a priori”, e o de instituição

de pontos nodais, ou seja, fixações parciais (pois o descentramento continua

como possibilidade) que irão restringir o fluxo do significado sob o significante.

Embora não haja um sujeito a priori (um povo), existe um esforço constante para

estabelecer articulações hegemônicas contingentes e históricas entre posições

de sujeito.

Posteriormente a “Hegemonia e Estratégia Socialista”, Mouffe

desenvolverá um modelo alternativo de política democrática baseado na ideia da

inevitabilidade do antagonismo na política (1993, 2000, 2005, 2013) e na

proposta de um modelo agonístico de democracia. Não é possível construir uma

política de consenso pois o político depende da negatividade, ou seja, da

demarcação entre nós e eles. Se esta negatividade é inevitável, como constituir

um regime liberal democrático que reconheça o pluralismo ........A proposta de

Mouffe será o conceito de agonismo (uma luta entre adversários) no lugar do

antagonismo (marcado por uma luta entre inimigos). Este último colocaria a

democracia em risco por gerar uma oposição calcada em identidades fixas de

amigo\inimigo, que resultaria no não reconhecimento do outro como adversário

legítimo, mas como um inimigo a ser destruído. Já o agonismo trabalharia

justamente com os pontos nodais precários que permitem identificações e

sujeitos temporários. Mesmo no agonismo, no entanto, o inimigo permanece: é

aquele que se recusa a fazer parte da luta agonística que sustenta a democracia

pluralista.

Uma das críticas de Mouffe aos teóricos liberais democráticos concentra-

se no que seria uma ilusão da possibilidade do consenso, de um conjunto

harmonioso e não conflituoso, como podemos encontrar nas teorias

contratualistas do Estado, por exemplo. Se o político é, por definição, conflituoso,

será infrutífera a tentativa de reconciliar os pluralismos. Neste sentido, a teoria

*Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutora em Relações Internacionais pela PUC-Rio.

de Mouffe nos permite pensar em um “cosmopolitismo agonístico”, que

reconheceria o conflito entre pluralismos como parte inexorável de uma política

cosmopolita. Esta abordagem difere de um cosmopolitismo kantiano, que

negaria a particularidade em nome da universalidade.

No seu mais recente livro, “Por um populismo de esquerda” (2018), Mouffe

retoma as discussões anteriores e as aplica à conjuntura atual de crise da

formação hegemônica liberal. A reação ao descrédito da hegemonia liberal

desemboca em um momento populista, porém esta fissura na ordem abre a

possibilidade de uma radicalização da ordem democrática conduzida pela

esquerda, o que a autora denomina como “populismo de esquerda”.

Na avaliação da autora, os Partidos socialistas e social-democratas

enfrentam a decadência e falta de credibilidade porque se aferraram a uma

concepção inadequada de política, qual seja, a da política como consenso e

reconciliação de contrários. O resultado disto foi uma acomodação entre

socialistas e neoliberais em torno da ideia de que apenas o neoliberalismo teria

respostas para as questões de um mundo globalizado. A diluição das diferenças

entre os dois campos criou um espaço de negação do antagonismo inerente à

política ou uma pós-política. Esta negação gerou uma reação populista de direita,

que restituiu o antagonismo à política e, por isso, só pode ser combatida por

meio de um populismo de esquerda que também incorpore o caráter conflituoso

da política. No entanto, há uma diferença crucial entre os dois populismos: os de

direita adotam o conflito predominantemente antagônico , no qual o outro é um

inimigo a ser destruído e no qual a ordem democrática corre riscos, enquanto os

de esquerda teriam a tarefa, sugerida por Mouffe, de adotar o agonismo (luta

entre adversários) como uma das estratégias para a radicalização da

democracia.

O projeto da esquerda deve construir uma cadeia de equivalência capaz

de articular as demandas da classe trabalhadora com as dos novos movimentos

(feminista, negro e LGBTI) para construir uma “vontade coletiva” ou um “povo”,

aqui entendidos não como uma totalidade homogênea, mas como entidades em

*Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutora em Relações Internacionais pela PUC-Rio.

constante transformação. A construção de uma fronteira política entre “povo” e

“oligarquia” é realizada por práticas discursivas precárias e temporárias, que são

constantemente construídas e descontruídas. Na obra “Em torno do político”

(2005), Mouffe chegou a defender o traçado de uma fronteira entre esquerda e

direita, mas esta teorização da fronteira, pelo menos num modelo tradicional,

não daria conta da articulação da heterogeneidade das demandas

contemporâneas. “Hoje a fronteira política precisa ser construída num modo

transversal populista” (MOUFFE, 2018, p.3). Teoricamente, isto significa pensar

uma cadeia de equivalências precária, pois é justamente na instabilidade do

ponto nodal que podemos rearticular demandas de modo transversal. Em outras

palavras, a fronteira política é demarcada precariamente em cadeias de

equivalência nas quais os significados deslizam sob os significantes.

A interpretação pós-estruturalista da fronteira que estaria presente no

populismo de esquerda se opõe à visão tradicional de uma fronteira entre nós e

eles presente no populismo de direita. Os movimentos xenófobos que têm

sustentado políticas restritivas aos migrantes e fortalecem partidos populistas de

direita se baseiam em uma concepção estadocêntrica de fronteira e na

separação entre nós (cidadãos de um Estado-nação) e eles (os não cidadãos).

As identidades e os agentes sociais são concebidos aqui como fixos, detentores

de certos atributos que estariam ausentes nos outros excluídos do espaço do

Estado-nação. Nesta cadeia de equivalências, temos a associação entre os

termos cidadão-Estado-nação-Soberania nacional-Direitos. Ao contrário, a

fronteira na concepção pós-estruturalista permite a reconstrução constante das

identidades e dos agentes sociais por meio da rearticulação entre outros termos

na cadeia de significantes: cidadão-migrante-pluralismo-cosmopolitismo

agonístico-modo transversal populista.

Dois outros pontos importantes para entender a proposta de Mouffe sobre

um populismo de esquerda são os espaços nos quais a política pode ser

exercida e o lugar dos afetos na política.

*Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutora em Relações Internacionais pela PUC-Rio.

O populismo de esquerda não pode prescindir, segundo Mouffe, do

Estado e das instituições representativas da democracia liberal, o que nos leva

a questionar até que ponto Mouffe não está restrita, em sua proposta, ao que

John Agnew e Rob Walker chamam de uma imaginação política moderna

centrada no Estado e que concebe este como o espaço exclusivo de nossa ação

política.

Vejamos a argumentação de Mouffe a este respeito. A autora apresenta

a política democrática como um embate entre formações ou ordens

hegemônicas que não entram em confronto com a moldura liberal democrática.

Portanto, a estratégia hegemônica nada tem em comum com uma estratégia

revolucionária de esquerda ou com o reformismo dos sociais liberais. Ela é,

sobretudo, uma espécie de “reformismo revolucionário” (MOUFFE, 2018), que

indicaria o caráter subversivo das reformas e “o fato de que sua busca, embora

por meios democráticos, é uma transformação profunda da estrutura das

relações de poder socioeconômicas” (Idem).

Desta forma, a estratégia hegemônica deve se engajar com o Estado e as

instituições para colocá-los a serviço da radicalização da democracia liberal. A

articulação hegemônica entre capitalismo e democracia liberal é contingencial e

não necessária. Portanto, o significante vazio “democracia liberal” pode ser

associado, numa estratégia hegemônica populista de esquerda, a outros termos,

tais como igualdade e justiça social. Haveria ainda a necessidade, por parte de

uma esquerda populista, de mobilizar os afetos das pessoas, a única forma de

fazê-las participar da política. Um discurso centrado em termos abstratos não é

capaz de articular as demandas heterogêneas e concretas das pessoas.

O mesmo ocorre em relação à representação. Mouffe afirma que não

estamos diante de uma “crise da representação ‘per se’, mas da crise da pós-

política ou da pós-democracia. A política do consenso praticada nos últimos anos

levou a uma descrença generalizada da população nas instituições

representativas porque estas se restringem a uma pós-política consensual. Se o

*Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutora em Relações Internacionais pela PUC-Rio.

populismo de esquerda retomar a dimensão agonística da política, ele pode fazê-

lo dentro do Estado e das instituições partidárias.

4. O discurso da Nova Direita e a integração regional

O governo do presidente Jair Bolsonaro e gestão do ministro das

Relações Exteriores Ernesto Araújo têm apresentado aspectos que apontam

para um novo entendimento sobre a Direita brasileira, a política externa e o

processo de integração regional. Nesta seção, analisaremos as cadeias de

significantes do discurso do chanceler Ernesto Araújo proferido na abertura do

Fórum Brasil de Investimentos, em 10 de outubro de 2019.

Neste discurso, o ministro destacou a transformação do país num “novo

Brasil” (ARAÚJO, 2019, p.1) marcado pela abertura comercial. O objetivo é a

“plena integração do país às cadeias globais de valor”:

Para isso, precisamos de parcerias. Precisamos, por exemplo, da parceria extraordinária que já temos com o BID, que continue gerando novas ideias. No jantar de ontem, conversando com o ministro Paulo Guedes e com o presidente do BID, já surgiram novas ideias, coisas que podemos fazer juntos, parcerias com todos os senhores, com todos os investidores. (ARAÚJO, 2019, p.1).

A preocupação com a inserção internacional aqui tem um componente

distinto daquele presente no regionalismo aberto. Não se trata de fortalecer a

integração regional como uma etapa para a internacionalização, mas de tomar a

abertura comercial e a integração às cadeias globais de valor como fim em si

mesmo. Nesse sentido, a política externa para o Mercosul estaria longe de

significar um retorno ao regionalismo aberto dos anos 90.

Na cadeia de significantes do mesmo discurso, encontramos o paralelo

entre os seguintes termos: liberdade econômica, liberdade política e patriotismo.

A articulação entre esses significantes tenta mostrar que “liberdade econômica

e liberdade política vão necessariamente juntas” (Idem) e o patriotismo,

supostamente associado a essas liberdades, levaria o Brasil “para a frente”

*Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutora em Relações Internacionais pela PUC-Rio.

(Idem). Em seguida, é possível vislumbrar parte da visão de mundo exposta por

essas articulações. O ministro declara que “administrações anteriores (...)

tentaram um liberalismo sem povo. E pela primeira vez nós estamos tentando

fazer um liberalismo com o povo” (Idem). Portanto, o significante liberalismo é

associado ao significante povo e contrastado com um “liberalismo sem povo”.

Poderíamos questionar se o liberalismo sem povo seria um neoliberalismo frio,

sem paixões, um neoliberalismo do consenso, como afirma Chantal Mouffe, e

que teria gerado reações que culminaram na emergência de um populismo de

direita que, agora, defenderia um neoliberalismo incensado pela paixão popular.

O “liberalismo com povo” teria sido a resposta da Nova direita ao “liberalismo

sem povo” do consenso hegemônico? A paixão pela pátria também seria um

elemento essencial para o estabelecimento do liberalismo político e econômico?

O “liberalismo sem povo”, continua Araújo, “não mexia com as estruturas

seculares de poder do Brasil, um liberalismo que não desafiava o sistema de

atraso”. Neste trecho, percebe-se uma sutil referência à tese, cara às ciências

sociais brasileiras, do liberalismo que não cria raízes ou não se desenvolve

completamente por conta de um atavismo cultural herdado do Estado português.

O significante “sistema de atraso” nos remete a um termo ausente na cadeia

articulatória, porém fundamental para a compreensão do discurso: o Estado

como indutor do desenvolvimento e uma Direita que adaptou o liberalismo a seus

interesses. O protagonismo do desenvolvimento deverá ser assumido, a partir

de então, pelos investidores e pelo setor privado.

Desta abordagem de política externa decorre um Mercosul baseado

preponderantemente no comércio, numa dimensão muito mais agressiva do que

a implementada pelo regionalismo aberto. O Mercosul concluiu acordos

extraregionais com a União Europeia e com a EFTA (Associação Europeia de

Livre Comércio) que demandarão uma abertura de mercado inédita para o Brasil.

Além disso, o Brasil tem privilegiado uma aproximação com os Estados Unidos

(o “Trump, I love you” proferido por Bolsonaro na ONU) em negociações

bilaterais e ameaça deixar o Mercosul em caso de derrota de Maurício Macri nas

eleições presidenciais argentinas. Outra pauta econômica da Nova Direita

*Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutora em Relações Internacionais pela PUC-Rio.

brasileira é a entrada do Brasil na Organização para o Comércio e o

Desenvolvimento Econômico (OCDE), o que estaria alinhado ao objetivo de

abertura comercial brasileira e maior participação no comércio internacional.

5 Conclusão

A partir da teoria de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, podemos dizer que

a estratégia hegemônica colocada em pauta pelo governo de Jair Bolsonaro e

pela diplomacia de Ernesto Araújo realiza algumas articulações e fixações de

significado que anteriormente não apareciam nos discursos do PT ou do PSDB

sobre a integração regional. A defesa da soberania, que surgia na cadeia de

significantes do regionalismo aberto e do regionalismo pós-liberal como parte do

processo de fortalecimento do Estado perante o mundo globalizado, reaparece

conectada a significantes como Pátria, Deus (“Brasil acima de tudo, Deus acima

de todos”), Povo, mercado, “Trump I love you”, apontando para um novo tipo de

ordem hegemônica no âmbito da integração regional.

*Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutora em Relações Internacionais pela PUC-Rio.