a integração regional na visão da nova direita: uma
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*Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutora em Relações Internacionais pela PUC-Rio.
A integração regional na visão da nova direita: uma análise do discurso a
partir da teoria de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe
Introdução
O artigo pretende investigar os impactos que o discurso da nova direita no
continente poderá provocar sobre o processo de integração e o tipo de
regionalismo que parece se estabelecer na região. De que forma a visão de
mundo da nova direita, em particular a brasileira, afeta o processo de integração
regional? Os discursos do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo,
apontam para uma ruptura na tradição de política externa brasileira construída
nos últimos cem anos e inovam ao introduzir o elemento religioso e místico. No
campo econômico, estaríamos diante de um retorno do regionalismo aberto ou
de um modelo ultraneoliberal nunca antes tentado na história da integração sul-
americana? Quais as diferenças em relação ao regionalismo aberto que já
podem ser percebidas nos discursos sobre a suposta ineficiência do Mercosul e
da Unasul? Para tentar responder a essas indagações, propõe-se uma
abordagem baseada na análise do discurso a partir da teoria do filósofo argentino
Ernesto Laclau e da filósofa belga Chantal Mouffe. O pensamento hegemônico
se constrói, segundo Laclau e Mouffe (1985), a partir do estabelecimento, ainda
que sempre provisório, de significados em uma cadeia de significantes vazios. O
conceito de “significante vazio” permite que a disputa pela fixação do significado
seja perene. A cadeia de significantes hegemônica é constantemente tensionada
pelos grupos que pretendem desestabilizá-la e, assim, fixar outros significados.
Pretende-se analisar neste artigo as cadeias de significantes que sustentam o
discurso da nova direita, em particular os ministérios das relações exteriores e
da economia, e de que forma ele se articula com os discursos sobre a integração
regional. Primeiramente, abordaremos as teorias utilizadas para pensar o
Mercosul desde o seu nascimento, assim como os conceitos de regionalismo
aberto e regionalismo pós-hegemônico. A segunda seção tratará das Teorias de
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Laclau e Mouffe sobre cadeias de equivalência e a reflexão de Mouffe sobre o
que ela denomina de “momento populista”. A partir da mobilização desse arsenal
teórico, faremos uma discussão sobre as limitações das teorias tradicionais de
integração para pensar a concepção da Nova Direita de integração regional e as
possíveis alternativas a ela no século XXI.
2. Os pressupostos ontológicos e epistemológicos do debate
sobre regionalismo
Nesta seção, abordaremos os conceitos presentes no debate acadêmico
sobre a integração regional na América do Sul e, em particular, no Mercosul.
Uma das dicotomias presentes em todas as discussões sobre integração diz
respeito ao caráter supranacional ou intergovernamental dos blocos. Enquanto
a União Europeia é composta por instituições supranacionais (Comissão
Europeia, Corte de Justiça e Parlamento) e intergovernamentais (Conselho de
Ministro e Conselho Europeu), o Mercosul tem, desde seu início, a
intergovernamentalidade como característica principal. Nas palavras de
acadêmicos, chefes de Estado, de governo e diplomatas do bloco, o Mercosul
foi criado com o propósito de ser intergovernamental e nunca almejou mais do
que isso. Segundo Fernando Furlan, o caráter intergovernamental do bloco é
“bem arraigado na cultura política dos membros do Mercosul” (FURLAN, 2010,
p.1).
A integração regional do Mercosul sempre esteve pautada na defesa e
fortalecimento da soberania nacional e não no modelo europeu de
supranacionalidade que começou a ser desenhado ainda na Comunidade
Europeia do Carvão e do Aço (CECA), em 1951, a qual já considerava uma
Autoridade Supranacional. A preocupação com o interesse nacional, a soberania
e o desenvolvimento dos Estados-membros foram colocados como os principais
objetivos da integração regional. O texto do Tratado de Assunção (1991) refere-
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se a uma integração calcada em Estados cujo objetivo é o fortalecimento das
economias nacionais perante o desafio de um mundo globalizado. Apenas em
dezembro de 2006, em discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na
Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA), a supranacionalidade é citada
pela primeira vez em um discurso oficial.
Veremos a seguir o papel da intergovernamentalidade e
supranacionalidade nos diferentes momentos da integração do Mercosul e como
ambas pressupõem uma mesma base ontológica e epistemológica centrada no
Estado.
O período inicial da integração no Mercosul tem recebido, na literatura
sobre integração, a denominação de regionalismo aberto. Para Srinivasan
(1999), o conceito de regionalismo aberto é um oxímoro por combinar opostos:
o termo regionalismo pressupõe fechamento - o traçado de uma fronteira entre
o interno (o espaço regional) e o externo (o sistema internacional) - e o termo
aberto nos remete à ausência de fronteira com o espaço externo ao bloco. O
regionalismo aberto, portanto, lidaria com essa ambigüidade e indecidibilidade
entre abertura e fechamento.
Essa ambigüidade pode ser explicada pela formação do conceito.
Desenvolvido pelos neoestruturalistas da CEPAL (Comissão Econômica para a
América Latina) em 1994, o regionalismo aberto reúne duas teorias de viés
oposto: o estruturalismo cepalino dos anos 50, que pregava complementaridade
produtiva e proteção tarifária em relação a terceiros, e as teorias do Novo
Regionalismo, que defendiam a abertura econômica.
O regionalismo aberto contrariava as teorias tradicionais sobre comércio
internacional, segundo as quais a integração provocava desvios de comércio
superiores aos efeitos benéficos de criação de comércio promovida pela
liberalização tout court. O regionalismo aberto sustentava o contrário: a
integração regional não é obstáculo, mas uma etapa da liberalização.
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Outra característica deste regionalismo da década de 90 é a ausência de
uma política estatal mais intervencionista em prol da integração. Além disso, há
pouco interesse em desenvolver uma política democrática mais robusta. O
Protocolo
de Ushuaia, assinado em 1998, prevê o afastamento de um Estado-membro no
caso de violência da cláusula democrática, mas esta medida ainda deve ser
decidida no âmbito do Estado e não pelos cidadãos. Embora regionalismo aberto
e processos de democratização na América do Sul tenham coincidido, isto não
significa que ambos guardem entre si uma relação necessária. Segundo Evelina
Dagnino, teria ocorrido apenas uma “convergência perversa” (......). Na teoria da
estratégia hegemônica de Laclau e Mouffe, que veremos na próxima seção, a
cadeia de equivalências que une democracia e regionalismo aberto não é fixa e
necessária, podendo ser deslocada por outra cadeia de equivalência em que
democracia aparece ao lado de outro significante.
Como se pode depreender da exposição acima, o regionalismo aberto
depende de um intergovernamentalismo baseado no Estado como entidade
incontestável e não problematizável. O fortalecimento do comércio intra-bloco
visa, sobretudo, reforçar o Estado como o principal agente no processo de
integração. A ontologia do intergovernamentalismo e do regionalismo aberto é
estatal pois concebe a democracia a partir da imaginação política estatal. A
ontologia da concepção de fronteira estatal (VAUGHAN-WILLIAMS) nos leva
também a uma epistemologia positivista em que se estabelece a divisão entre
dentro e fora, sujeito e objeto. A política externa brasileira, inclusive a que
concebeu o Mercosul como um projeto intergovernamental de regionalismo
aberto, é pautada na Teoria Realista das Relações Internacionais, que erige a
soberania estatal como um dado da realidade. Ainda que o regionalismo aberto
proponha uma abertura ao internacional, esta só será possível após a etapa de
fortalecimento do mercado regional.
Nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT), o Mercosul teria
passado a uma outra fase, denominada regionalismo pós-liberal (VEIGA, RIOS,
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2007, LOCKHART, 2013) ou pós-hegemônico (RIGIROZZI, 2012). Para estes
autores, o regionalismo do século XXI vai além do economicismo e
neoliberalismo dos anos 90 e começa a pensar a região política e socialmente.
Em 2006, como já citado, o presidente Lula refere-se, pela primeira vez, a uma
possibilidade de supranacionalidade no Mercosul. Em outras palavras, o
Mercosul nos governos do PT se caracterizaria por ênfase na
supranacionalidade e no regionalismo pós-liberal ou pós-hegemônico.
O termo “regionalismo pós-liberal” foi utilizado por Pedro da Motta Veiga
(2007), Sandra Rios (2007) e Lockhart (2013) para se referir a um processo
endógeno de desenvolvimento econômico liderado pelo Estado. Para Lockhart,
a diferença entre o regionalismo aberto e o pós-liberal poderia ser pensada em
torno de alguns pontos:
O primeiro ponto destaca que o regionalismo pós-liberal valoriza o papel
interventor do Estado como um agente da integração, trazendo novamente a
política para o centro da cena. O Estado é o responsável pela visão estratégica
que definirá o perfil da integração. Para Lockhart, o oposto acontecia no
Regionalismo Aberto, no qual, apesar da existência do Estado-centrismo,
segundo Bernal-Mezza, havia pouco aprofundamento institucional e primazia do
mercado.
A segunda diferença estaria na amplitude dos temas. Se o Regionalismo
Aberto se restringia a questões comerciais, o Regionalismo pós-liberal irá além
do econômico ao adotar um projeto de desenvolvimento político e social, com a
criação de instituições regionais supranacionais (Unasul, Celac, Parlasul) e
cooperação intensa em áreas não comerciais.
O terceiro elemento de distinção entre os regionalismos dos anos 90 e do
século XXI estaria na concepção espacial. O Regionalismo Aberto é marcado
pela economia geográfica, segundo a qual é possível articular um espaço
regional e um espaço internacional no mercado globalizado. Lockhart aponta que
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o Regionalismo pós-liberal não realiza esta articulação. O território nacional é
compreendido como “condição de existência” da soberania.
Dois questionamentos poderiam ser levantados em relação a essa
descrição do regionalismo pós-liberal. Em primeiro lugar, poderíamos perguntar
se, de fato, tratou-se de um pós-liberalismo, uma vez que a política econômica
do PT em muito se assemelhou, segundo alguns autores, à política econômica
dos governos do PSDB. Se esta interpretação for considerada válida, abre-se a
possibilidade de repensar o período PSDB-PT como o de uma pós-política no
sentido dado por Chantal Mouffe. A política de integração dos dois governos se
converteria, assim, numa política de consenso.
O segundo questionamento refere-se ao caráter estado-cêntrico presente
nos dois tipos de regionalismo, o que tornaria essas teorias mais próximas do
que suspeitaríamos inicialmente. Talvez pudéssemos nos referir a um debate
neo-neo (os mesmos pressupostos positivistas) no campo do regionalismo
mercosulino.
Tanto o fortalecimento do Estado num momento anterior à abertura
(regionalismo aberto) quanto a atuação do Estado como indutor do
desenvolvimento (regionalismo pós-liberal) estão dentro de um mesmo quadro
de inteligibilidade em que nossa imaginação política e democrática é
determinada pelo espaço do Estado. Em ambas as fases, a ontologia é estado-
cêntrica e a epistemologia, positivista.
O regionalismo sul-americano dos anos 2000 também recebeu a
denominação de regionalismo pós-hegemônico (RIGIROZZI, 2012), que
enfatizaria mais os aspectos políticos da integração. A concepção de
regionalismo pós-hegemônico adotada por Rigirozzi foi originalmente proposta
por Armitav Acharya (2009), para quem as ordens regionais estavam inscritas
na prática da hegemonia. Com o fim da hegemonia americana, estaríamos
testemunhando a emergência de hegemonias regionais. A partir desta tese de
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Acharya, Rigirozzi afirma que a América Latina estaria construindo um
“regionalismo pós-hegemônico”.
Segundo a teoria de Acharya, o Regionalismo pós-hegemônico, como o
próprio nome sugere, traz em si uma contestação à Hegemonia norte-americana.
Ele se configura como um espaço de resistência ao neoliberalismo e à
hegemonia norte-americana. Em outras palavras, pode-se dizer que se passa de
um regionalismo passivo para um regionalismo ativo no que diz respeito à
relação com os Estados Unidos. Portanto, este tipo de regionalismo se
caracterizaria, sobretudo, por uma postura soberana da América do Sul frente à
política dos Estados Unidos.
O regionalismo pós-hegemônico seria, de acordo com Riggirozzi (2010),
uma forma de “governança” que se assemelharia ao “jardim de caminhos que se
bifurcam” do conto de Jorge Luís Borges. Isto porque o regionalismo pós-
hegemônico oferece vários caminhos para a construção da governança regional,
além do comércio ou do enfrentamento com os Estados Unidos. Ele poderia ser
definido como um processo de múltiplas dimensões: comerciais, de integração
política e políticas sociais.
Se partirmos da teorização de Chantal Mouffe, não seria possível referir-
nos a um período pós-hegemônico, uma vez que o político é sempre marcado
por uma estratégia hegemônica que articula uma cadeia de significantes num
dado momento histórico, e esta estratégia hegemônica só pode ser deslocada
por outra hegemonia. Portanto, o que Rizzigozi chama de regionalismo pós-
hegemônico, na verdade, seria a substituição de um regionalismo subordinado
à hegemonia norte-americana por um regionalismo hegemônico latino-
americano.
3. Populismo como Radicalização da Democracia – a abordagem de
Ernesto Laclau e Chantal Mouffe
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A proposta desta seção é a de discutir o conceito de populismo no
pensamento de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe e sua implicação para o debate
contemporâneo sobre a derrocada da democracia. Entender o populismo como
uma prática discursiva de construção de fronteiras significa mais do que
simplesmente traçar uma separação rígida entre dois domínios: o do povo e o
da oligarquia. Significa repensar também o próprio conceito de fronteira como
parte de uma estratégia hegemônica que depende do deslocamento de
significantes numa cadeia de equivalências. Em outras palavras, considerar a
própria fronteira como uma cadeia de significantes em fluxo constante.
No clássico “Hegemonia e Estratégia Socialista”, os autores destacam
dois conceitos essenciais para conceber o campo do político: “antagonismo” e
“hegemonia”. Ambos nos remetem a uma dimensão de negatividade radical (a
hegemonia se estabelece contra o outro antagônico) que estaria constantemente
presente, o que impossibilitaria a concretização no presente ou no futuro (como
propõem as teorias modernas) de uma totalização\emancipação da sociedade
para além das divisões, ou um social sem mediação. Ao contrário, na perspectiva
de Laclau e Mouffe, a sociedade é resultado de práticas hegemônicas
temporárias, precárias, contingentes e que, por conta desta característica,
também podem ser contestadas e deslocadas por práticas contra-hegemônicas.
A mesma lógica anti-essencialista pode ser observada na teorização do
agente social, o qual é “constituído por um conjunto de ‘posições discursivas’
que nunca podem ser totalmente fixadas num sistema fechado de diferenças”
(MOUFFE, 2018). Portanto, a identidade do agente social é contingente,
temporária e precária. Consequentemente, não podemos nos referir ao sujeito
como se este fosse uma entidade unificada e homogênea. Veremos mais à frente
como esta concepção está na base do que Mouffe entende como povo. O agente
social deve ser pensado como pluralidade, mas esta pluralidade não está
baseada numa coexistência de pluralidades das posições do sujeito, como se
estas fossem partes separadas, contíguas e independentes umas das outras. O
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que se estabelece é uma constante subversão, transformação ou
sobredeterminação de uma pluralidade sobre outra.
Desta forma, temos um duplo movimento: o de descentramento ou
deslocamento, que impede a fixação em torno de um “a priori”, e o de instituição
de pontos nodais, ou seja, fixações parciais (pois o descentramento continua
como possibilidade) que irão restringir o fluxo do significado sob o significante.
Embora não haja um sujeito a priori (um povo), existe um esforço constante para
estabelecer articulações hegemônicas contingentes e históricas entre posições
de sujeito.
Posteriormente a “Hegemonia e Estratégia Socialista”, Mouffe
desenvolverá um modelo alternativo de política democrática baseado na ideia da
inevitabilidade do antagonismo na política (1993, 2000, 2005, 2013) e na
proposta de um modelo agonístico de democracia. Não é possível construir uma
política de consenso pois o político depende da negatividade, ou seja, da
demarcação entre nós e eles. Se esta negatividade é inevitável, como constituir
um regime liberal democrático que reconheça o pluralismo ........A proposta de
Mouffe será o conceito de agonismo (uma luta entre adversários) no lugar do
antagonismo (marcado por uma luta entre inimigos). Este último colocaria a
democracia em risco por gerar uma oposição calcada em identidades fixas de
amigo\inimigo, que resultaria no não reconhecimento do outro como adversário
legítimo, mas como um inimigo a ser destruído. Já o agonismo trabalharia
justamente com os pontos nodais precários que permitem identificações e
sujeitos temporários. Mesmo no agonismo, no entanto, o inimigo permanece: é
aquele que se recusa a fazer parte da luta agonística que sustenta a democracia
pluralista.
Uma das críticas de Mouffe aos teóricos liberais democráticos concentra-
se no que seria uma ilusão da possibilidade do consenso, de um conjunto
harmonioso e não conflituoso, como podemos encontrar nas teorias
contratualistas do Estado, por exemplo. Se o político é, por definição, conflituoso,
será infrutífera a tentativa de reconciliar os pluralismos. Neste sentido, a teoria
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de Mouffe nos permite pensar em um “cosmopolitismo agonístico”, que
reconheceria o conflito entre pluralismos como parte inexorável de uma política
cosmopolita. Esta abordagem difere de um cosmopolitismo kantiano, que
negaria a particularidade em nome da universalidade.
No seu mais recente livro, “Por um populismo de esquerda” (2018), Mouffe
retoma as discussões anteriores e as aplica à conjuntura atual de crise da
formação hegemônica liberal. A reação ao descrédito da hegemonia liberal
desemboca em um momento populista, porém esta fissura na ordem abre a
possibilidade de uma radicalização da ordem democrática conduzida pela
esquerda, o que a autora denomina como “populismo de esquerda”.
Na avaliação da autora, os Partidos socialistas e social-democratas
enfrentam a decadência e falta de credibilidade porque se aferraram a uma
concepção inadequada de política, qual seja, a da política como consenso e
reconciliação de contrários. O resultado disto foi uma acomodação entre
socialistas e neoliberais em torno da ideia de que apenas o neoliberalismo teria
respostas para as questões de um mundo globalizado. A diluição das diferenças
entre os dois campos criou um espaço de negação do antagonismo inerente à
política ou uma pós-política. Esta negação gerou uma reação populista de direita,
que restituiu o antagonismo à política e, por isso, só pode ser combatida por
meio de um populismo de esquerda que também incorpore o caráter conflituoso
da política. No entanto, há uma diferença crucial entre os dois populismos: os de
direita adotam o conflito predominantemente antagônico , no qual o outro é um
inimigo a ser destruído e no qual a ordem democrática corre riscos, enquanto os
de esquerda teriam a tarefa, sugerida por Mouffe, de adotar o agonismo (luta
entre adversários) como uma das estratégias para a radicalização da
democracia.
O projeto da esquerda deve construir uma cadeia de equivalência capaz
de articular as demandas da classe trabalhadora com as dos novos movimentos
(feminista, negro e LGBTI) para construir uma “vontade coletiva” ou um “povo”,
aqui entendidos não como uma totalidade homogênea, mas como entidades em
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constante transformação. A construção de uma fronteira política entre “povo” e
“oligarquia” é realizada por práticas discursivas precárias e temporárias, que são
constantemente construídas e descontruídas. Na obra “Em torno do político”
(2005), Mouffe chegou a defender o traçado de uma fronteira entre esquerda e
direita, mas esta teorização da fronteira, pelo menos num modelo tradicional,
não daria conta da articulação da heterogeneidade das demandas
contemporâneas. “Hoje a fronteira política precisa ser construída num modo
transversal populista” (MOUFFE, 2018, p.3). Teoricamente, isto significa pensar
uma cadeia de equivalências precária, pois é justamente na instabilidade do
ponto nodal que podemos rearticular demandas de modo transversal. Em outras
palavras, a fronteira política é demarcada precariamente em cadeias de
equivalência nas quais os significados deslizam sob os significantes.
A interpretação pós-estruturalista da fronteira que estaria presente no
populismo de esquerda se opõe à visão tradicional de uma fronteira entre nós e
eles presente no populismo de direita. Os movimentos xenófobos que têm
sustentado políticas restritivas aos migrantes e fortalecem partidos populistas de
direita se baseiam em uma concepção estadocêntrica de fronteira e na
separação entre nós (cidadãos de um Estado-nação) e eles (os não cidadãos).
As identidades e os agentes sociais são concebidos aqui como fixos, detentores
de certos atributos que estariam ausentes nos outros excluídos do espaço do
Estado-nação. Nesta cadeia de equivalências, temos a associação entre os
termos cidadão-Estado-nação-Soberania nacional-Direitos. Ao contrário, a
fronteira na concepção pós-estruturalista permite a reconstrução constante das
identidades e dos agentes sociais por meio da rearticulação entre outros termos
na cadeia de significantes: cidadão-migrante-pluralismo-cosmopolitismo
agonístico-modo transversal populista.
Dois outros pontos importantes para entender a proposta de Mouffe sobre
um populismo de esquerda são os espaços nos quais a política pode ser
exercida e o lugar dos afetos na política.
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O populismo de esquerda não pode prescindir, segundo Mouffe, do
Estado e das instituições representativas da democracia liberal, o que nos leva
a questionar até que ponto Mouffe não está restrita, em sua proposta, ao que
John Agnew e Rob Walker chamam de uma imaginação política moderna
centrada no Estado e que concebe este como o espaço exclusivo de nossa ação
política.
Vejamos a argumentação de Mouffe a este respeito. A autora apresenta
a política democrática como um embate entre formações ou ordens
hegemônicas que não entram em confronto com a moldura liberal democrática.
Portanto, a estratégia hegemônica nada tem em comum com uma estratégia
revolucionária de esquerda ou com o reformismo dos sociais liberais. Ela é,
sobretudo, uma espécie de “reformismo revolucionário” (MOUFFE, 2018), que
indicaria o caráter subversivo das reformas e “o fato de que sua busca, embora
por meios democráticos, é uma transformação profunda da estrutura das
relações de poder socioeconômicas” (Idem).
Desta forma, a estratégia hegemônica deve se engajar com o Estado e as
instituições para colocá-los a serviço da radicalização da democracia liberal. A
articulação hegemônica entre capitalismo e democracia liberal é contingencial e
não necessária. Portanto, o significante vazio “democracia liberal” pode ser
associado, numa estratégia hegemônica populista de esquerda, a outros termos,
tais como igualdade e justiça social. Haveria ainda a necessidade, por parte de
uma esquerda populista, de mobilizar os afetos das pessoas, a única forma de
fazê-las participar da política. Um discurso centrado em termos abstratos não é
capaz de articular as demandas heterogêneas e concretas das pessoas.
O mesmo ocorre em relação à representação. Mouffe afirma que não
estamos diante de uma “crise da representação ‘per se’, mas da crise da pós-
política ou da pós-democracia. A política do consenso praticada nos últimos anos
levou a uma descrença generalizada da população nas instituições
representativas porque estas se restringem a uma pós-política consensual. Se o
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populismo de esquerda retomar a dimensão agonística da política, ele pode fazê-
lo dentro do Estado e das instituições partidárias.
4. O discurso da Nova Direita e a integração regional
O governo do presidente Jair Bolsonaro e gestão do ministro das
Relações Exteriores Ernesto Araújo têm apresentado aspectos que apontam
para um novo entendimento sobre a Direita brasileira, a política externa e o
processo de integração regional. Nesta seção, analisaremos as cadeias de
significantes do discurso do chanceler Ernesto Araújo proferido na abertura do
Fórum Brasil de Investimentos, em 10 de outubro de 2019.
Neste discurso, o ministro destacou a transformação do país num “novo
Brasil” (ARAÚJO, 2019, p.1) marcado pela abertura comercial. O objetivo é a
“plena integração do país às cadeias globais de valor”:
Para isso, precisamos de parcerias. Precisamos, por exemplo, da parceria extraordinária que já temos com o BID, que continue gerando novas ideias. No jantar de ontem, conversando com o ministro Paulo Guedes e com o presidente do BID, já surgiram novas ideias, coisas que podemos fazer juntos, parcerias com todos os senhores, com todos os investidores. (ARAÚJO, 2019, p.1).
A preocupação com a inserção internacional aqui tem um componente
distinto daquele presente no regionalismo aberto. Não se trata de fortalecer a
integração regional como uma etapa para a internacionalização, mas de tomar a
abertura comercial e a integração às cadeias globais de valor como fim em si
mesmo. Nesse sentido, a política externa para o Mercosul estaria longe de
significar um retorno ao regionalismo aberto dos anos 90.
Na cadeia de significantes do mesmo discurso, encontramos o paralelo
entre os seguintes termos: liberdade econômica, liberdade política e patriotismo.
A articulação entre esses significantes tenta mostrar que “liberdade econômica
e liberdade política vão necessariamente juntas” (Idem) e o patriotismo,
supostamente associado a essas liberdades, levaria o Brasil “para a frente”
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(Idem). Em seguida, é possível vislumbrar parte da visão de mundo exposta por
essas articulações. O ministro declara que “administrações anteriores (...)
tentaram um liberalismo sem povo. E pela primeira vez nós estamos tentando
fazer um liberalismo com o povo” (Idem). Portanto, o significante liberalismo é
associado ao significante povo e contrastado com um “liberalismo sem povo”.
Poderíamos questionar se o liberalismo sem povo seria um neoliberalismo frio,
sem paixões, um neoliberalismo do consenso, como afirma Chantal Mouffe, e
que teria gerado reações que culminaram na emergência de um populismo de
direita que, agora, defenderia um neoliberalismo incensado pela paixão popular.
O “liberalismo com povo” teria sido a resposta da Nova direita ao “liberalismo
sem povo” do consenso hegemônico? A paixão pela pátria também seria um
elemento essencial para o estabelecimento do liberalismo político e econômico?
O “liberalismo sem povo”, continua Araújo, “não mexia com as estruturas
seculares de poder do Brasil, um liberalismo que não desafiava o sistema de
atraso”. Neste trecho, percebe-se uma sutil referência à tese, cara às ciências
sociais brasileiras, do liberalismo que não cria raízes ou não se desenvolve
completamente por conta de um atavismo cultural herdado do Estado português.
O significante “sistema de atraso” nos remete a um termo ausente na cadeia
articulatória, porém fundamental para a compreensão do discurso: o Estado
como indutor do desenvolvimento e uma Direita que adaptou o liberalismo a seus
interesses. O protagonismo do desenvolvimento deverá ser assumido, a partir
de então, pelos investidores e pelo setor privado.
Desta abordagem de política externa decorre um Mercosul baseado
preponderantemente no comércio, numa dimensão muito mais agressiva do que
a implementada pelo regionalismo aberto. O Mercosul concluiu acordos
extraregionais com a União Europeia e com a EFTA (Associação Europeia de
Livre Comércio) que demandarão uma abertura de mercado inédita para o Brasil.
Além disso, o Brasil tem privilegiado uma aproximação com os Estados Unidos
(o “Trump, I love you” proferido por Bolsonaro na ONU) em negociações
bilaterais e ameaça deixar o Mercosul em caso de derrota de Maurício Macri nas
eleições presidenciais argentinas. Outra pauta econômica da Nova Direita
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brasileira é a entrada do Brasil na Organização para o Comércio e o
Desenvolvimento Econômico (OCDE), o que estaria alinhado ao objetivo de
abertura comercial brasileira e maior participação no comércio internacional.
5 Conclusão
A partir da teoria de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, podemos dizer que
a estratégia hegemônica colocada em pauta pelo governo de Jair Bolsonaro e
pela diplomacia de Ernesto Araújo realiza algumas articulações e fixações de
significado que anteriormente não apareciam nos discursos do PT ou do PSDB
sobre a integração regional. A defesa da soberania, que surgia na cadeia de
significantes do regionalismo aberto e do regionalismo pós-liberal como parte do
processo de fortalecimento do Estado perante o mundo globalizado, reaparece
conectada a significantes como Pátria, Deus (“Brasil acima de tudo, Deus acima
de todos”), Povo, mercado, “Trump I love you”, apontando para um novo tipo de
ordem hegemônica no âmbito da integração regional.