a institucionalização do descontrole sobre o espaço no brasil

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Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo Pós-Graduação em Estruturas Ambientais Urbanas – Tese de doutoramento Professor orientador Dr. Csaba Deák CADASTROS E REGISTROS FUNDIÁRIOS A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO DESCONTROLE SOBRE O ESPAÇO NO BRASIL LUISA BATTAGLIA São Paulo, abril 1995 Esta versão em PDF é provisória, faltando ainda as ilustraçõòes. KKM, CD. 09.07.31

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Page 1: A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo

Pós-Graduação em Estruturas Ambientais Urbanas – Tese de doutoramento

Professor orientador Dr. Csaba Deák

CADASTROS E REGISTROS FUNDIÁRIOS

A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO DESCONTROLE SOBRE O ESPAÇO NO

BRASIL

LUISA BATTAGLIA

São Paulo, abril 1995 Esta versão em PDF é provisória,faltando ainda as ilustraçõòes.KKM, CD. 09.07.31

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 2

B335c Battaglia, Luisa

Cadastros e registros fundiários: A instituicionalização do descontrole sobre o espaço

no Brasil / Luisa Battaglia, São Paulo: s.n., 1995

300 p.:il.

Tese (doutorado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São

Paulo

1. sistemas cadastrais. 2.registro de imóveis: Brasil. 3. cadastro: São Paulo. 4.

planejamento territorial. 5. legislação sobre terras: Brasil. 6. propriedade da terra. I.

Título

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 3

Duas pessoas tiveram especial participação nesta tese:

Dr. Csaba Deák, Professor do Departamento de Projeto da FAU USP, que

me orientou. A ele devo apoio e acompanhamento constantes e as

indicações precisas que, em momentos decisivos, me permitiram retomar

o rumo perdido na confusão das novas idéias e possibilidades que se

apresentam a cada instante de uma pesquisa. A ele devo também o

trabalho teórico que serviu de base e de estímulo para o meu trabalho.

Klara Kaiser Mori, também Professora do Departamento de Projeto da

FAU USP, que dividiu comigo bibliografia, dúvidas, frustrações e

entusiasmos, ao longo do processo de dar corpo a conceitos e

experiências esparsas.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 4

Apresentação

Este trabalho é resultado de vários anos de pesquisa e indagações ligadas ao

desempenho de atividades profissionais voltadas para o planejamento em setores do

Estado. Versa sobre os instrumentos de reconhecimento, controle e tributação da

propriedade da terra no Brasil, examinados no contexto da formação do Estado e das

características peculiares do desenvolvimento capitalista brasileiro. Dois assuntos,

portanto, constituíram o cerne da pesquisa:

1) as formas de controle e reconhecimento da propriedade fundiária, historicamente

ligadas ao próprio processo de ocupação e de apropriação do território e hoje

institucionalizadas nos Cartórios de Registro de Imóveis;

2) a evolução dos tributos sobre a propriedade da terra e os cadastros mantidos para o

lançamento do Imposto Predial e Territorial Urbano e do Imposto Territorial Rural.

Todo o programa de pós-graduação foi seguido sem que me afastasse das atividades

profissionais. A tese está marcada por essas atividades, enquanto preocupações,

dados e informações coletadas. Seu ritmo de desenvolvimento, lento e descontínuo,

também reflete as conseqüências da vontade de conciliar trabalho profissional com

pesquisa acadêmica.

Foram utilizadas como exemplos informações obtidas de relatórios técnicos e bancos

de dados da Prefeitura do Município de São Paulo, aos quais tive acesso facilitado na

qualidade de funcionária, mas que são públicos. Tomei cuidado de não incluir fontes

de uso restrito. Vale observar que, a menos de detalhes operacionais e dos problemas

decorrentes do tamanho, todas as considerações referentes à estrutura jurídica e

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 5

institucional apresentadas como referentes a São Paulo podem ser generalizadas para

os demais municípios do país.

A autoria e a fonte usada, sempre que possível, são indicadas junto de cada citação

enquanto que as referências bibliográficas são remetidas ao final do trabalho. Salvo

indicações em contrário as traduções são minhas; transcrevi o original apenas nos

casos em que sua força foi realizada ou em que o texto traduzido pode deixar

dúvidas.

São Paulo, abril de 1995

Page 6: A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil

Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 6

Abstract

The ownership of land in Brazil materializes through a property title, registered by

State regulated private offices. This title is not linked either either to a map or to a

necessarily precise description, leaving a clear field to every kind of violence and

conflicts related to rights on land.

The property title register is not used as the base for property tax either by the Local

Administrations which deal with urban property or by the Federal Government which

is in charge of the rural land taxation. The Federal Government and the almost 5000

Municipalities of the country maintain, for the purposes of taxation, independent data

systems about real state.

Because of this overlap and multiplication of independent data bases related to land

and real estate property it becomes difficult to keep track of the actual rights of

ownership over the private land and, as a consequence, it is also difficult to identify

the so-called public lands and preserve them as such.

Based on both history of the appropriation of land in Brazil and the description of the

different institutional services and legal acts related to such appropriation, this work

presents as a thesis the idea that the overlap of services and data bases, as well as the

lack of reliable property maps are neither an unwanted nor an unavoidable

consequence of some “technical” or “external” problem like a lack of resources. On

the contrary, they are part of the institutional structure built up in accordance with the

specific accumulation process in Brazil, i.e. a process of hindered accumulation,

where the productive forces are not allowed to be fully developed and, as a

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 7

consequence, the “elite” (lasting from the colonial times) was not replaced by a fully

capitalist bourgeoisie as the national ruling class.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 8

Introdução:

Origem das minhas preocupações com o tema

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 9

Introdução: origem das minhas preocupações com o tema

Desde 1968 trabalho com planejamento urbano ligado, direta ou indiretamente, à

administração pública. Meu primeiro cargo de responsabilidade foi como assessora

de planejamento da Prefeitura de São Carlos1 o que, para uma quase recém formada,

era um grande desafio. A Assessoria de Planejamento não era propriamente uma

assessoria mas sim um órgão de linha que, além de acompanhar a elaboração do

Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado, na época áurea do Serfhau,

centralizava a elaboração do orçamento e a programação de obras, respondia pelos

processos de aprovação de parcelamento do solo e desenvolvia projetos ou propostas

que não se enquadravam nas rotinas tradicionais das Divisões e Departamentos.

Livrava a Divisão de Obras e Viação das atividades impopulares ligadas ao controle

urbano e livrava a Divisão de Finanças e Contabilidade de pirotecnia burocrática

associada à elaboração do orçamento. Este era mais uma peça formal,

constantemente alterada ao longo de sua execução e, portanto, nunca levava muito a

sério pelos dirigentes da Administração Municipal.

Os seis anos na Prefeitura de São Carlos me deram grande parte da experiência

básica da minha vida profissional. Nos anos seguintes pude desenvolver, repensar e

criticar o que havia feito. Com mais experiência e mais estudos pude perceber mais

claramente, não só o significado das ações do chamado poder público, como também

os obstáculos estruturais a essas ações e os interesses e forças em jogo. Aprendi a

construir um arcabouço teórico para analisar as ações do quotidiano. Trabalhei (ainda

trabalho) com problemas muito maiores que os de São Carlos, numa cidade muito

maior que é São Paulo. No entanto, a base de meus conhecimentos factuais sobre a

organização, o funcionamento e a estrutura de poder de uma Prefeitura foi adquirida

em São Carlos.

1 São Carlos, cidade na região central do Estado de São Paulo, tinha na época em torno de 100.000 habitantes. É um centro industrial e sede de um campus da Universidade de São Paulo e da Universidade Federal de São Carlos

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 10

Encarava o cargo com a ingenuidade e o entusiasmo de quem, com menos de trinta

anos, se dispõe a reorganizar o mundo e comecei a pôr ordem nos fluxos de papéis e

informações necessários para permitir o controle do parcelamento e da propriedade

do solo, com a intenção de fazer funcionar os serviços ligados à aprovação de

loteamentos e de montar um cadastro confiável das propriedades. Esbarrei logo com

problemas circunstanciais, cuja solução dependia só de algum conhecimento, de um

pouco de boa vontade e da mobilização dos recursos disponíveis. Demorei anos para

perceber que, frente às mais diversas circunstâncias, a situação do controle fundiário

é sempre a mesma: falta de cartografia básica, falta de um sistema viável de controle

do parcelamento do solo, legislação confusa e de aplicação inviável, cadastro

imobiliário mantido exclusivamente pelo setor de Finanças, animosidade e

desconfiança mútua entre Finanças e Planejamento. A constatação de que os

problemas aparentes são sempre os mesmos trouxe ao mesmo tempo a curiosidade de

saber porque é tão difícil resolvê-los e a crescente certeza de que eles não são

resolvidos porque são parte de uma estrutura jurídica e institucional organizada

exatamente para mantê-los.

Em 1979, já com a base de trabalho em São Paulo, passei três meses na França num

estágio sobre sistemas de informações para gestão urbana. Foi aí que me dei conta

não só da precariedade dos nossos mapas mas, principalmente, das dificuldades de se

gerenciar um território quanto os critérios de desagregação, de coleta, de

representação gráfica, de confiabilidade etc. etc. dos dados são díspares e dependem

da finalidade. No Brasil temos um registro de imóveis para legitimação da

propriedade e outros para tributação; temos mapas fiscais diferentes de mapas de

obras e dados de população que variam de 20% conforme sirvam para estimar a

demanda de água ou para distribuir recursos públicos entre os municípios.

Um ano a serviço do CNDU (Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano), um

ano nos Estados Unidos, em estágio no Hunter College (City University of New

York) e, mais tarde, um trabalho conjunto da Sempla (Secretaria Municipal do

Planejamento) com a Administração de Toronto (Canadá) me deram mais elementos

para poder comparar as formas de controle e de tributação sobre a propriedade no

Brasil e em países capitalistas centrais.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 11

Minha dissertação de mestrado, apresentada em 1987, versou sobre a evolução do

processo de ocupação urbana no Brasil e as instituições formais de controle de

ocupação do solo através da aprovação de loteamentos.

A partir de 1989 me dediquei à organização do Departamento de Informações da

Secretaria Municipal do Planejamento em São Paulo. Esse Departamento trabalha

com análise, compatibilização e agregação dos dados usados para planejamento no

âmbito das ações da Administração Municipal. A fonte mais importante de dados

sobre uso e ocupação do solo é o cadastro fiscal do qual se extraem informações

sobre impostos e áreas. Mas a Prefeitura mantém outros cadastros, alguns com a

mesma estrutura porém ligados ao cadastro fiscal de tal maneira que é impossível

comparar dados de origens diferentes ou ter noções sobre o significado preciso e a

confiabilidade dos mesmos. Quatro anos de esforços no sentido de interligar esses

cadastros2 resultaram em algumas melhorias significativas que imediatamente

provocaram reações no sentido de impedir qualquer outro avanço. O projeto foi

desativado pela simples exigência de medidas burocrático-formais que acabaram

consolidando a estrutura vigente de serviços isolados que utilizam e produzem

conjuntos de dados de maneira autônoma.

Esse trabalho de interligação dos cadastros se ressentiu desde o início das

deficiências das bases cartográficas, o que levou a equipe envolvida a iniciar um

projeto de montagem e manutenção de um sistema cartográfico digitalizado, base

para o mapeamento das propriedades. Logo após os primeiros produtos este projeto

se viu paulatinamente engessado em procedimentos formais de definições de

competências a longo prazo e em uma multiplicação de estudos detalhados para

definir recursos que, de qualquer maneira, estariam sempre muito aquém tanto das

necessidades do projeto quanto da capacidade de gerenciamento dos técnicos

envolvidos.

Essas experiências profissionais definem o quadro de preocupações da pesquisa

relacionada com este programa de doutoramento.

Foi evidente nestes períodos o que significa “máquina administrativa emperrada”,

“inércia das estruturas”, “impedimentos institucionais” etc. Aparentemente, há

2 Projeto SUC – Sistema Unificado de Cadastros

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 12

vontade política de melhorar o serviço prestado pela administração pública e de

controlar melhor a ocupação territorial, os problemas técnicos não são impeditivos,

os recursos necessários são ínfimos perante o volume total movimentado por uma

Prefeitura mas, mesmo estando razoavelmente próximo das decisões administrativas,

percebe-se que as “coisas não andam”. Ou melhor, andam com um dispêndio de

energia incrivelmente desproporcionado com o resultado aparente. Ao mesmo tempo

em que fui avançando, devagar, num trabalho de análise, compatibilização e

divulgação de informações necessárias para o planejamento, fui sendo obrigada a

identificar pontos vitais desta estrutura aparentemente burra e ineficiente para os

objetivos declarados. Vitais para a manutenção do status quo, inclusive a aparente

burrice e ineficiência.

A convicção de que o conhecimento abrangente da propriedade do solo não se

constitui em objetivo para o Estado brasileiro foi sendo acompanhada pela

constatação da importância atribuída a esse mesmo conhecimento pelos Estados

“centrais”. Donde foi surgindo a indagação do por que dessa diferença e da

importância a ser-lhe atribuída, além da hipótese, ainda embrionária no início deste

trabalho de pesquisa, de que a forma de reconhecimento da propriedade no Brasil é

parte essencial da formação de um Estado deliberadamente incapaz de agir no

controle do espaço nacional.

Em torno dessa hipótese se articula a tese desenvolvida. Procurei mostrar que, no

Brasil, a sobreposição de sistemas de registros fundiários e a precariedade das bases

cartográficas correspondentes não são detalhes acidentais e muito menos falhas mas

sim parte importante da estrutura jurídico institucional de manutenção do status quo

em têrmos da específica organização social, da qual um dos aspectos importantes é a

inviabilidade do planejamento territorial por parte do Estado. Em outras palavras, a

“desinformação” aparentemente acidental sobre a propriedade é parte das

características essenciais que diferenciam o Estado brasileiro de um Estado burguês.

O trabalho está estruturado em doze capítulos, agrupado em quatro partes:

A primeira parte constitui um quadro de referência teórico com a explicação de

alguns conceitos utilizados, notadamente os de propriedade e de Estado, além de um

esboço de interpretação sobre a organização do Estado no Brasil.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 13

A segunda parte apresenta a evolução histórica das instituições ligadas ao

reconhecimento e à tributação de propriedade da terra.

Na terceira parte são descritos o sistema de registro de imóveis no Brasil e os

cadastros fiscais (tomando o exemplo de São Paulo), precedidos por um breve

apanhado da evolução desses sistemas em países centrais, em especial na França.

A quarta parte, como conclusão, propõe a discussão de algumas diretrizes, sempre

no âmbito dos sistemas cadastrais, no sentido de incorporar às ações explícitas do

Estado brasileiro as relacionadas com o controle do seu território.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 14

I Quadro de referência

O assunto central deste trabalho é o registro fundiário no Brasil no seu duplo aspecto

de reconhecimento da propriedade e de instrumento para tributação. O entendimento

do enfoque com que este assunto foi tratado exige algumas considerações prévias

relativas ao conceito de propriedade, ao significado social tanto do reconhecimento

da propriedade quanto da tributação sobre ela e à forma como o Estado trata estas

questões.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 15

Os três capítulos iniciais compõem esse quadro de referência para o assunto

central específico. Eles se apóiam inteiramente em autores que já desenvolveram

esses temas ou que trazem informações históricas relevantes.

Trata-se, no primeiro capítulo: A propriedade, de precisar o significado da

propriedade enquanto condição básica do modo de produção capitalista e o

significado da expressão jurídica da propriedade enquanto base institucional para

a reprodução desse modo de produção. A conceituação é completada por um

esboço da transformação histórica do domínio feudal sobre a terra em

propriedade, por alguns exemplos da construção da ideologia burguesa sobre a

propriedade e, por fim, por uma breve menção à influência da propriedade na

organização social das colônias americanas.

Em seguida (Capítulo 2) são abordadas questões que dizem respeito ao Estado

como instrumento da classe dominante, garantia da reprodução das relações

sociais, e particularmente à especificidade do Estado capitalista que, sem abdicar

de suas funções proclama a primazia do mercado. Também são citados alguns dos

autores das “teorias” produzidas para justificativa da organização do Estado

burguês. Acrescentam-se alguns exemplos das idéias dominantes sobre o papel do

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 16

Estado, como parte da ideologia cuja construção permite manter as discussões em

torno de questões irrelevantes para a reprodução da estrutura de dominação e da

hegemonia burguesa.

No Capítulo 3: O Estado no Brasil retoma-se uma interpretação das

características específicas do Estado no Brasil onde o desenvolvimento capitalista

não redundou na supremacia de uma classe burguesa mas sim de uma elite cujos

interesses estiveram até o presente adquiridos no período colonial1. Essa elite de

origem colonial sempre entravou o desenvolvimento capitalista que traria

implicado em sua transformação do Estado brasileiro que concorrem para a

manutenção desses entraves e que o caracterizam como um Estado de elite.

1 A idéia foi desenvolvida por Deáki, inicialmente apresentada no III Encontro Nacional da ANPUR (Associação Nacional de Pesquisa e Ensino em Planejamento Urbano e Regional), em maio de 1989, e reelaborada para o Seminário: o Brasil pós ’80, 1990. (cf.Deáki, 1991).

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Capítulo 1: A PROPRIEDADE

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 18

1 A PROPRIEDADE

O professor: Dize-me pois de onde veio a fortuna de teu pai.

A criança: Do avô.

O professor: E deste?

A criança: Do bisavô.

O professor: E deste último?

A criança: Ele a pegou.1

1.1. O conceito de propriedade

A propriedade, entendida como propriedade dos meios de produção, é condição

necessária para o estabelecimento da relação salarial, base do modo de produção

capitalista. É com este sentido, de condicionante de modo de produção, que o

conceito de propriedade permite entender o significado das transformações

ocorridas tanto nas formas de apropriação das terras do Brasil quanto nas formas

de reconhecimento dessa apropriação.

Desde os primórdios da civilização uma parte da sociedade domina a outra através

do condicionamento do acesso aos meios de produção e, portanto, de

subsistência.2 A forma pela qual esse acesso é condicionado (variável ao longo da

história) faz parte do modo de (re)produção pela qual no modo de produção

capitalista se impede o livre acesso aos meios de subsistência, que o conceito de

propriedade passa a ter significado.

“Em cada época histórica propriedade tem se desenvolvido de maneiras

diferentes e sob conjuntos inteiramente diferentes de relações sociais;

portanto definir a propriedade burguesa nada mais é do que expor todas as

1 Diálogo citado por Marx que o atribui a Goethe (Marx 1867, 1° Livro, pg. 691, nota 2 do capítulo XXVI). 2 Engels (1884).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 19

relações sociais da produção burguesa. Tentar definir a propriedade como

uma relação independente, uma categoria em si, uma idéia abstrata e eterna,

não pode ser mais do que uma ilusão de metafísica ou de jurisprudência.”

(Marx, A ideologia alemã)3

Historicamente (Inglaterra a partir do século XVI) o modo de produção capitalista

se origina pela transformação do domínio feudal sobre a terra em propriedade,

equivalendo à separação dos trabalhadores dos meios de produção e, portanto, de

subsistência. Em outras palavras, os camponeses/lavradores, produtores imediatos,

deixaram de ser parte integrante dos domínios do senhor, obrigados a lavrar a terra

e produzir, e foram transformados em homens “livres”, sem vínculo com a terra

isto é, sem acesso aos meios de produção, e sem a garantia de sobrevivência

decorrente da relação senhor/servo qual seja, da obrigação de produzir excedente

além do necessário para a própria sobrevivência. Os homens livres dos vínculos e

garantias feudais passaram a ser obrigados a vender sua força de trabalho para

comprar, com seu salário, seus meios de subsistência, transformando-se em

trabalhadores assalariados.

Mas, se na origem dessa transformação está a transformação do domínio feudal

em propriedade, essa deve ser entendida com tudo o que implica em têrmos de

relações sociais; notadamente a substituição da organização social baseada na

extração de excedente sob a forma de renda pela organização baseada na

acumulação capitalista e a substituição do senhor feudal pelo capitalista como

comandantes das relações de produção.

Ao se tornar proprietário dos meios de produção social o capitalista, e só ele, se

assegura da disponibilidade de força de trabalho, reunindo portanto as condições

não só para produzir o total da produção social como sua propriedade como

também para decidir quanto ao que deve ser produzido (e, portanto, consumido),

alterar a organização do trabalho e utilizar a capacidade do trabalhador segundo

seus critérios.

Somente se transformados em propriedade nas mãos do capitalista os meios de

produção passam a ser capital, base da relação salarial.

3 Em Althusser & Balibar (1968), citado à pg. 228.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 20

“Meios de produção e de subsistência pertencentes ao produtor imediato, ao

trabalhador, não são capital. Eles só se tornam capital ao servir como meio

para explorar e dominar o trabalhador.” (Marx, 1867, pg.560)

Não é o fato de ser propriedade que torna os meios de produção capital e sim a

compulsão da relação salarial, o fato de que, separado dos meios de produção, um

membro da classe trabalhadora não é um trabalhador e não tem condições de

subsistência.

A relação capital/salário é uma relação entre duas classes: a dos proprietários e a

dos não proprietários dos meios de produção. É a propriedade dos meios de

produção (e só esta) que no capitalismo, ao estabelecer a relação salarial, distingue

a classe dominante da classe dominada.

Vale lembrar o caso de Mr. Peel, relatado por Wakefield4 e citado por Marx5: Sir

Robert Peel (1750-1830), industrial inglês, foi montar uma empresa na colônia de

Swan River, na Nova Holanda6 levando víveres, meios de produção e 3000

indivíduos da classe operária. Lá chegando ficou sem um empregado pois com a

abundância de terra livre que encontraram na colônia, os trabalhadores foram

todos se apossar de um pedaço de chão e trabalhar para si mesmos. As 50.000

Libras em bens levados da Inglaterra, uma vultosa soma equivalente a cnetenas de

milhhões de dólares de hoje, de nada serviram para montar uma empresa

capitalista,visto que a parte essencial dos meios de produção, a terra, não tinha

sido transformada em propriedade.

“Podre Mr. Peel que tinha previsto tudo! Só tinha esquecido de exportar para

Swan River as relações de produção inglesas.” (Marx, 1867, 1° Livro,

pg.560)

Essas relações de produção inglesas se baseavam sobre a instituição da

propriedade, entendida como impedimento do acesso do trabalhador aos meios de

subsistência no caso, a terra. Não havendo essa condição a relação salarial

4 Wakefield (1833, pg.33). 5 Marx (1867, 1° Livro, pg.560). 6 A tradução inglesa (Penguin, pg.932-3) situa o distrito de Swan River na Austrália Ocidental.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 21

(estabelecida na Inglaterra) se desfez e as 50.000 Libras e os meios de produção

deixaram de ser capital.

O entendimento da propriedade enquanto condição de modo de produção passa

pela distinção entre o seu significado econômico e a sua expressão jurídica.

Enquanto relação juridicamente definida entre pessoa e coisa a propriedade

sempre existiu, com ligeiras variações na sua definição7: faculdade de dispor da

coisa segundo sua vontade, de impedir o uso por outra pessoa, de transformar um

valor de uso em valor de troca etc. Mas a relação jurídica só adquire significado

econômico na medida em que permite que a propriedade assim definida se torne

garantia da relação salarial. Ao se falar em propriedade em épocas dominadas por

modos de produção pré-capitalistas está-se dando apenas uma definição jurídica

sem articulação com a estrutura econômica, visto que propriedade como tal não

tinha significado no processo de (re)produção social.

A distinção entre propriedade e sua expressão jurídica, assim como a necessária

articulação entre elas, foram tratadas por Althusser e Balibar em Ler o Capital. O

texto a seguir é uma tradução livre e resumida de trechos das páginas 226 e

seguintes da tradução inglesa - Reading Capital8.

Segundo Balibar:

Marx atribui uma função ambivalente às formas legais: elas expressam e

codificam a realidade ‘econômica’, escondendo-a, porém, simultaneamente.

Com relação à propriedade alguns pontos podem ser esboçados como

referência:

(1) A estrutura econômica do modo de produção capitalista pressupõe a

existência de um sistema jurídico cujos elementos básicos são o direito de

propriedade e o contrato.

(2) A peculiaridade desse sistema jurídico é o seu caráter de abstração e

universalidade. Todos os seres por ele abrangidos são distribuidos em duas

categorias, dentro de cada uma das quais não há distinção do ponto de vista

legal: a categoria das pessoas e a categoria das coisas. A relação de 7 Ver as diferentes “formas” de propriedade ao longo da história apresentadas por Marx e Engels em A Ideologia alemã (Marx e Engels, 1845). 8 Althusser e Balibar (1968).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 22

propriedade é estabelecida exclusivamente entre pessoas e coisas (ou melhor,

aquilo que é considerado pessoas e aquilo que é considerado coisas); a

relação de contrato é estabelecida exclusivamente entre pessoas. Assim

como, pela lei, não há diferença entre pessoas (todas são ou podem ser

proprietárias e contratantes) também não há distinção entre coisas, as quais

todos podem ser propriedade sejam elas meios de produção ou meios de

consumo e qualquer que seja o uso ao qual essa propriedade se presta.

(3) Essa universalidade do sistema legal reflete outra universalidade que é

parte da estrutura econômica: a universalidade da troca de mercadorias que

só ocorre no modo de produção capitalista (apesar da existência da troca de

mercadorias ser muito mais velha). Somente no modo de produção capitalista

o conjunto de elementos da estrutura econômica está inteiramente distribuído

entre mercadorias (inclusive a força de trabalho) e agentes de troca (inclusive

o produtor direto). Essas duas categorias, portanto, correspondem

adequadamente às definidas pelo sistema legal (coisas e pessoas).

(4) As relações sociais de produção que fazem parte da estrutura do modo de

produção capitalista podem ser caracterizadas por comparação com sua

expressão legal, desvendando-se alguns “deslocamentos” entre elas.

- Em primeiro lugar, enquanto o direito à propriedade é caracterizado como

universal, não diferenciando entre as coisas possuidas e seu uso, a única

propriedade que tem significado do ponto de vista da estrutura do processo de

produção é a propriedade dos meios de produção. Enquanto a propriedade

‘legal’ é um direito a qualquer forma de consumo, a propriedade ‘econômica’

dos meios de produção não é tanto um direito legal sobre eles quanto o

direito de consumi-los produtivamente e um meio de se apropriar do produto

excedente. Este poder não decorre da lei mas da distribuição dos meios de

produção. A relação econômica não se baseia na indiferenciação das coisas

mas na diferenciação em elementos de consumo individual e elementos de

consumo produtivo. Portanto a discrepância entre as relações sociais de

produção e o direito de propriedade pode ser caracterizada como um

movimento de extensão, ou de prolongamento: de proprietário dos ‘meios de

produção’ para proprietário ‘em geral’, abolindo as divisões requeridas pela

estrutura de produção.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 23

- Em segundo lugar, a relação estabelecida entre o proprietário dos meios de

produção (o capitalista) e o assalariado é, legalmente, uma forma especial de

contrato: um contrato de trabalho. Este é estabelecido com base na condição

de que o trabalho é legalmente considerado uma troca isto é, o potencial de

trabalho é legalmente considerado como sendo uma ‘mercadoria’ ou uma

coisa. Essa transformação do potencial de trabalho em mercadoria e o

contrato de trabalho são, conceitualmente, totalmente independentes da

natureza da operação na qual o trabalho é consumido. É por isto que a forma

jurídica do assalariado e uma forma universal, aplicada tanto ao trabalho

produtivo (a transformação que produz mais valia) quanto a todas as outras

formas de trabalho, geralmente designadas pelo termo ‘serviços’. Mas

somente trabalho ‘produtivo’ determina uma relação de produção e trabalho

produtivo não pode ser genericamente definido pela relação entre o

empregador e o assalariado, uma relação entre ‘pessoas’. [Novamente

observamos uma ‘extensão’ da relação de produção capital/salário para

qualquer contrato de trabalho – LB]9

A expressão jurídica da propriedade é formalizada em ‘direitos” reconhecidos e

garantidos pelo Estado (através da legislação, da jurisprudência, do aparato

policial) e aceitos pela sociedade (através da ideologia) como regras de

organização social, parte de sua própria sobrevivência. Mas na origem a

propriedade só pode se constituir pela força. Em todos os períodos históricos a

uma fase de conquista ou de revolução sucede uma de estabilização da situação,

que inclui o reconhecimento das novas relações de poder e a instituição de normas

que as perpetuem.

A apropriação das terras comunais na Inglaterra se fez pela força (sob diversas

formas), seja ao amparo de interpretações jurídicas, seja pela simples razão da

força. Durante séculos as questões relacionadas com direitos de uso da terra

haviam sido resolvidas por um complicado sistema de jurisprudência abrangido

pela Lei Comum (“Common Law”), desenvolvida depois da conquista normanda

9 Tenho dúvidas quanto à importância dada por Balibar a essa distinção entre trabalho produtivo e não produtivo (de mais valia), considerando que a mais valia só pode ser definida socialmente. “A massa de mais valia é apropriada pela classe capitalista em seu conjunto. É a base da solidariedade desta classe, que se impõe como uma restrição às suas divisões enquanto possuidores de mercadoria” (Anglietta, 1976, pg.35-6).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 24

mas ainda com base nas práticas tribais Anglo-Saxônicas10. Apesar de sua força,

demonstrada pelo fato do Código Romano nunca ter sido adotado como base

jurídica na Inglaterra, ao se processar a dissolução do feudalismo a “Common

Law” não impediu as apropriações de terras e a desconsideração dos direitos

feudais dos camponeses de acessar aos campos de cultivo.

Uma vez estabelecida, a nova estrutura de propriedade passou a ser consolidada

através da instituição de formas de reconhecimento e de transmissão, direitos,

restrições etc. As leis e normas que haviam regido o feudalismo não se prestavam

para as novas relações de dominação que estabeleciam e, mesmo na Inglaterra, a

classe burguesa em ascensão teve de buscar no Código Romano alguns princípios

para o posterior desenvolvimento do direito privado. Essa nova estrutura do

direito é parte das condições criadas no capitalismo para sua própria reprodução

como modo de produção dominante.

O capitalismo constantemente recria e altera essas condições de sua reprodução,

em função do estágio de desenvolvimento. Se, para estabelecer a relação salarial,

é necessário transformar a terra em propriedade como meio de condicionar a

subsistência do trabalhador ao seu assalariamento, no estágio onde o regime de

acumulação é predominantemente intensivo11 as condições de assalariamento

podem não depender mais, diretamente, da propriedade da terra.

Essa alteração da importância relativa da propriedade em função do estágio de

desenvolvimento é uma questão que ainda foi pouco tratada. Donde o perigo de

generalizar para o capitalismo condições que são próprias de algum estágio

específico de desenvolvimento.

10 Morton (1938, pg.75). 11 Os conceitos de regime de acumulação extensiva e intensiva foram usados por Aglietta (1976). Uma caracterização resumida encontra-se em Deák (1985), particularmente às páginas 140ss. E 156-7: “Num regime de acumulação predominantemente extensivo o principal estímulo para o crescimento da produção (de mercadorias) é a expansão do trabalho assalariado em novas áreas. Não porque o trabalho se torna mais produtivo mas sim porque anteriormente o trabalho não era absolutamente produtivo (de mais valia). Por contraste, num regime de acumulação predominantemente intensiva o crescimento da produtividade do trabalho é o principal meio de crescimento da produção e portanto, é a velocidade da mudança nas técnicas de produção que se torna crucial.”

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 25

A própria identificação do que vem a ser meio de produção e o significado de sua

apropriação são variáveis conforme o estágio de desenvolvimento.

O capitalismo não só aumentou (de ordem de grandeza) a produtividade e

aprofundou sobremania a divisão do trabalho como também, em decorrência,

alterou a relação entre a quantidade de trabalhadores necessários para trabalhar a

terra e os ocupados em atividades não diretamente vinculadas à terra. A terra

deixou de ser o quase único meio de produção, como o foi em todas as sociedades

pré-capitalistas, cuja produção dependia em maior medida das condições naturais.

Essas observações tem aqui como objetivo o de relativizar a atual importância da

propriedade da terra enquanto meio de produção (matéria para produção de

alimentos e matérias primas) alertando para o perigo, bastante frequente, de se

generalizar para o capitalismo condições que são próprias de algum estágio

específico de desenvolvimento.

Mas ao mesmo tempo é necessário ressaltar a importância da terra enquanto

suporte espacial do total da produção e das atividades necessárias à reprodução

social. Com a completa disseminação do capitalismo como modo de produção

dominante e a superação do estágio de acumulação predominantemente extensivo,

a terra deixa de ser meio de produção “natural” e passa a ser espaço urbano,

produzido pelo homem, cuja principal propriedade é sua localização. A terra

enquanto suporte espacial, enquanto localização, é condição de produção.12

1.2 A transformação dos direitos feudais sobre a terra em propriedade

dos meios de produção

A base histórica do capitalismo é, como foi visto, a separação do trabalhador dos

seus meios de subsistência ou, em outros termos, a criação de uma classe

proprietária dos meios de produção e de uma classe de produtos sem acesso a eles

12 Para o conceito de localização, assim como para uma discussão sobre o preço da terra (preço da localização) e a organização espacial, ver Deák (1985).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 26

a não ser através da “livre negociação” com os seus proprietários isto é, da venda

da própria força de trabalho.

O processo de separação do trabalhador de seus meios de subsitência deve ser

visto com especial atenção na Inglaterra por corresponder à própria formação e

origem do modo de produção capitalista. Esse mesmo processo de separação

ocorrido mais tarde em outros países já não corresponde à transformação de uma

sociedade feudal em sociedade capitalista “tout court” mas à transformação dentro

de um contexto internacional de forças já dominadas por uma economia

capitalista.13

A dissolução do feudalismo na Inglaterra e a preparação das condições de

surgimento do capitalismo foi um processo lento. Desde o século XIV o

cercamento e apropriação de terras comunais (“enclosures”) vinham sendo

praticados com maior ou menor intensidade14, com a consequente transformação

de servos em trabalhadores livres. No século XV a servidão havia praticamente

desaparecido na Inglaterra e com ela os senhores feudais.

O movimento histórico de conversão dos servos em assalariados passa pela

libertação das relações de servidão e das tutelas das guildas como passo necessário

para o despojamento dos trabalhadores dos seus meios de produção e das garantias

de sobrevivência. Na Inglaterra esta etapa correspondeu à formação de uma classe

de pequenos proprietários cultivando sua própria terra (“yeomen”).

“O campesinato tinha de ser atomizado, pulverizado em unidades solitárias e

indefesas, antes de que seus componentes pudessem ser reintegrados numa

massa de trabalhadores assalariados, participando da produção capitalista.”15

A partir dessa pulverização do campesinato em pequenas unidades isoladas o

processo de enclosures no período Tudor (século XVI), coincidindo com um

sensível crescimento de população e acompanhado de aumento dos preços,

13 A formação dos diversos Estados absolutistas corresponde precisamente a um período de transformação, em que a organização social não era mais feudal mas o Estado ainda não se estruturava plenamente em torno dos interesses da burguesia. 14 Morton (1938, pg.166): “Os fechamentos dos campos não eram novidade [no século XVI]. Eles vinham acontecendo regularmente desde a Grande Peste e é duvidoso se a proporção de fechamentos na primeira metade do século XVI seria maior que nos meados do século XIV.” 15 Morton (1938).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 27

assumiu características de espoliação em massa. Por outro lado, o aumento dos

preços, especialmente da lã, tornando a criação de ovelhas mais rentável e a terra

mais valiosa, acelerou o processo de cercamento, transformando áreas de cultivo

em pastagens. Mesmo assim o processo não foi homogêneo em todo o país e nem

todos os campos foram fechados.

Já no fim do século XVII e início do XVIII a rápida introdução de novas técnicas

agrícolas (Revolução Agrícola) possibilitou e exigiu novas alterações na estrutura

de produção. As novas técnicas demandavam grandes capitais e só podiam ser

aplicadas por capitalistas, sendo portanto totalmente incompatíveis com o sistema

de campos comunais ainda remanescentes em boa parte do país. Resultou uma

nova onda de enclouses, desta vez não para transformar áreas de cultivo em

pastagens para ovelhas mas para anexar campos comunais e reservas de caça e

madeira, formando grandes extensões em que os novos metidos de rodísio de uso

podiam ser aplicados em larga escala. Os pequenos produtores independentes sem

condições de introduzir as novas técnicas, foram forçados a vender ou ceder suas

terras para pagamento de dívidas e a vagar em busca de trabalho assalariado.16

A criação de um campesinato livre havia acompanhado o desenvolvimento de

uma produção agrícola para o mercado e implicou no aparecimento de outro tipo

de senhores da terra: senhores cujo poder não dependia mais do número de

homens nos seus domínios mas sim da quantidade de dinheiro que deles podiam

extrair. A transformações da forma da renda, desde a primitiva renda em trabalho

até a renda em dinheiro, permitiu boa parte das interpretações jurídicas necessárias

à implantação do capitalismo sem alterações formais, uma vez que,

aparentemente, o aluguel pago por um empresário capitalista a um proprietário de

terra equivale à renda (em dinheiro) paga pelo servo ao senhor feudal.17

1.3 A construção da ideologia burguesa sobre a propriedade

16 Morton (1938, pg.326 ss.) 17 Sobre o desaparecimento histórico da renda e seu não significado enquanto categoria de análise do modo de produção capitalista ver Deák (1985).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 28

A substituição da nobreza feudal pela burguesia como classe dominante foi

acompanhada pela correspondente substituição das idéias dominantes acerca da

organização da sociedade (e do universo em geral).

Em todas as revoluções as novas idéias já fazem parte do próprio movimento

revolucionário que, no início, não se apresenta como movimento de classe mas

sim como aspiração de toda a sociedade em oposição à única classe, dominante.

No período de superação do modo de produção feudal e de transição para o

capitalismo esse último envolvia as forças progressivas, no sentido do aumento da

produção social e do afastamento do poder de uma classe que já não detinha mais

as condições de controle dessa produção. As idéias de liberdade e direitos

individuais entre o povo, o que permitiu a articulação de algumas revoltas

populares (logo abafadas) e o engajamento das mesmas massas populares nas

(vitoriosas) revoluções burguesas.

Tanto a Revolução Inglesa de 1640-60 como a Francesa no século seguinte se

desenrolaram com o apoio das massas, que no entanto eram logo alijadas das

decisões, uma vez alcançando o objetivo de quebrar o poder da classe até então

dominante. À medida em que a burguesia se constituía como nova classe

dominante, com interesses de classe e não mais de movimento revolucionário,

passou a ser necessário escolher, dentre as idéias em voga, aquelas que mais

convinham para apresentar os interesses da burguesia como interesses da

sociedade. Essas idéias, sistematizadas e erigidas em “teorias”, constituem a base

ideológica necessária para o estabelecimento e manutenção da hegemonia

(burguesia).

“Uma vez que as idéias dominantes tenham sido separadas dos indivíduos

dominantes e, principalmente, das relações que nascem de uma dada fase do

modo de produção, e que com isso chegue-se ao resultado de que na história

as idéias sempre dominam, é muito fácil abstrair dessas idéias ‘a idéia’ etc.

como o dominante na história e nesta medida conceber todos estes conceitos

e idéias particulares como ‘autodeterminação’ do conceito que se desenvolve

na história.” (Marx e Engels, 1845: A ideologia alemã, pg.75)

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 29

Na construção da ideologia a propriedade deixou de corresponder a interesses de

classe bem definidos e passou a ser um “direito natural”, mediante a confusão (já

apontada acima – pg.28) que identifica a apropriação dos meios de produção com

o direito de cada indivíduo à sua própria reprodução. Com a construção desta

identidade é sempre fácil apresentar qualquer alternativa de controle dos meios de

produção como um atentado ao direito de dispor de objetos de consumo.

As idéias difundidas na baixa Idade Média na Inglaterra, tanto entre o povo quanto

entre os senhores feudais e o clero, consideravam como modelo ideal uma

sociedade sem classes e sem proprietários. A imposição da propriedade e da

dominação teria sido conseqüência do pecado original. Já a partir do século XIII

as versões oficiais apontam a propriedade e a divisão em classes como algo

natural numa sociedade humana.18

As teorias do século XVII, especialmente na Inglaterra, na Holanda e na França,

impregnadas do espírito da Reforma, da obediência a Deus antes que aos homens,

defendiam o livre arbítrio, a liberdade individual e o governo como resultado de

contrato entre governantes e governados. Em franca oposição ao dogma do direito

divino dos reis.

A primeira manifestação pelo estabelecimento formal de direitos individuais, parte

do processo da Revolução Inglesa, foi apresentada ao Parlamento em setembro de

1967, no documento conhecido como Agreement of the People. Nele fazia-se a

distinção entre os direitos à propriedade e os direitos naturais, entendidos esses

como os diretamente ligados à condição humana e à própria sobrevivência. Essa

separação representava a posição dos trabalhadores independentes e tinha por

finalidade estender os direitos políticos e a liberdade a todos os indivíduos,

independente da condição de proprietário ou não proprietário.

Mas, como em todas as revoluções burgueses, uma vez alcançado um primeiro

estágio a luta passou a ser interna, entre os que queriam limitar as mudanças ao

fim dos privilégios feudais e os que queriam abolir ou limitar o poder dos

humanos de posse. Normalmente são os primeiros, os proprietários, que procuram

logo consolidar as posições conquistadas em constituições escritas, funcionando

18 Morton (1952).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 30

como barreiras contra novos avanços dos direitos das massas. No caso do

Agreement, ao contrário, forma os Levellers, os da facção mais radical, que

tentaram consolidar posições ganhas mas que já lhes pareciam difíceis de

conservar.19 Com efeito, após disputas parlamentares, movimentos de rua e

batalhas entre exércitos, os Levellers foram derrotados e Cromwell consolidou seu

poder como “protetor da propriedade e amigo da ordem”20.

Contra a distinção entre direitos naturais e direitos à propriedade argumentava

Ireton (genro de Cromwell e com ele defensor de posições conservadoras) que

“qualquer sistema que permite a todos os homens, tenham ou não

propriedade, votar, só pode ser anarquia. É aquele que possui propriedade,

entendido como propriedade em terras, que tem um compromisso definido

com a sociedade e um interesse claro na preservação do governo.” (Wiltse,

1935, pg.16)

ou então:

“Vocês podem chegar à escolha de homens que, pelo menos grande parte

deles, não tem interesse local ou permanente. Por que esses homens não

votariam contra a propriedade?” (em Morton, 1952, pg.94).

Uma tentativa de salvar, dentro da Revolução burguesa, os interesses dos

pequenos proprietários e trabalhadores independentes foi apresentada por James

Harrington na forma de uma proposta utópica de organização de sociedade em sua

obra Oceana. Segundo Harrington as características de uma sociedade e a forma

de governo dependem da distribuição da propriedade da terra entre as classes

sociais:

- Monarquia absoluta se houver um único senhor do território.

- Monarquia mista se poucos (nobreza e clero) forem senhores de terra.

- República (“Commonwealth”) se o povo todo possui a terra.

19 Morton (1952). 20 Morton (1938, pg. 256).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 31

A proposta básica da organização de Oceana era uma lei agrária dividindo as

terras em pequenas propriedades21.

Em geral os “teóricos” da época centraram suas preocupações sobre a questão da

propriedade, reconhecendo-a como essencial para a consolidação da nova

organização da sociedade.

Talvez quem melhor e mais completamente organizou as idéias sobre propriedade

ao gosto da burguesia ascendente foi Locke, que lhe dedicou um ítem de seu

ensaio sobre Governo e Estado.22

John Locke (1632 - 1704) era de família puritana e associou boa parte da

dificuldade em explicar o conceito de propriedade à necessidade de conciliar a

posse privada com a crença na doação “em comum” dos bens da Natureza aos

homens.

“Deus deu o mundo à humanidade em comum. Mas, isto posto, parece ser

uma grande dificuldade (entender) como que alguém pode em algum

momento ter propriedade de alguma coisa” (Locke, 1690, pg.30)

Duas idéias estariam na base da justificativa da transformação dos

“bens comuns” em propriedade:

(1) Para poder se beneficiar desse bem comum é necessário repartí-lo

para que cada indivíduo possa usufruir de sua parte.

“Deus, que dera o mundo aos homens em comum, também lhes dera a razão

para fazer uso dele para melhor vida e mais comodidade.” (Locke, 1690,

pg.30)23

(2) Cada um é proprietário de si mesmo, de sua própria pessoa, assim

como do trabalho por ele executado. Em decorrência, também será

21 A obra foi bastante difundida na época e a mesma idéia sobre a lei agrária foi retida um século e meio mais tarde pela Revolução Francesa que promoveu uma larga distribuição de terras entre os camponeses, constribuindo para que resultasse uma sociedade inteiramente diversa da sociedade na Inglaterra e retardando de mais de um século a passagem para um estágio de acumulação predominantemente intensiva. 22 Locke (1690). 23 “God, who hath given the world to men in common, hath also given them reason to make use of it to the best advantage of life and convinience.”

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 32

proprietário de tudo aquilo ao qual puder incorporar seu trabalho, isto

é, tudo o que puder retirar da Natureza e transformar em coisa útil por

meio de seu trabalho. O trabalho separa a propriedade do bem comum

(dádiva da Natureza).

Vale notar que todos os exemplos e argumentos usados por Locke giram em torno

do direito de consumir para o próprio sustento (a maçã colhida na árvore ou o

peixe pescado no rio).

Uma vez estabelecido que é o trabalho que permite a cada indivíduo

apropriar-se de uma parte do bem comum restava o problema de

limitar essa “retirada”. Quanto um indivíduo pode amealhar? Quem

estabelece os limites? Segundo Locke essa questão já foi resolvida pelo

próprio Deus ao estabelecer como princípio da Natureza o de não

estragar ou desperdiçar.

“O quanto cada um puder usar com algum proveito para a vida, sem

desperdício, tanto poderá conseguir como propriedade, mediante trabalho.”

(Locke, 1690, pg.31)

Esse é o perfeito limite para o capitalista. Tudo pode ser apropriado desde que o

seja para incorporação num processo produtivo. E considerando os recursos

naturais disponíveis e quão pouco desses recursos haviam sido consumidos pelos

homens (século XVII) havia, segundo Locke, recursos para todos e portanto a

questão não seria motivo de discussão ou de briga24.

Os mesmo argumentos são válidos não apenas para os frutos da terra

mas também para a própria terra.

“Quanta terra um homem ara, planta, melhora, cultiva e dela pode usar

os produtos, tanto é a sua propriedade. Ele com seu trabalho a retira da

área comum, como de fato o tem feito.” (Locke, 1690, pg.31)25

24 A existência desses “recursos naturais disponíveis”, possibilitando a contínua incorporação de matéria prima e mão de obra ao processo produtivo dirigido pelo capitalista, corresponde ao estágio de acumulação extensiva. 25 “As much land as a man tills, plants, improves, cultives, and can use the product of, so much is his property. He by his labour does, as it were, enclose it from the common.”

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 33

E assim como não seria possível, nem necessário, pedir o

consentimento de toda a humanidade para comer uma maça colhida da

árvore (isto é, apropriar-se de algo que era comum) também não seria

possível, nem necessário, pedir o consentimento para se apropriar de

um pedaço de terra e fechar para uso individual um campo que era

comum.

A partir dessa idéia da apropriação de parte do bem comum (dádiva da Natureza)

através do trabalho a formação da propriedade é uma simples questão de

recorrência: cada indivíduo recebe a herança dos pais e avós (sucessivamente até

Noé, ou Adão e Eva) e a essa propriedade acrescenta o fruto de seu próprio

trabalho (ou a desperdiça, se fôr relapso ou vagabundo).

Enquanto para a Inglaterra, onde a burguesia se havia afirmado como classe

dominante ainda no século XVII, as “teorias” sobre propriedade e liberdade

individual correspondente à justificativa posterior de uma organização social já

consolidada, para as demais nações-Estado, que se reorganizaram sob a

dominação burguesa um século mais tarde, as mesmas “teorias” constituiram parte

integrante do processo dessa reorganização. Enquanto para a burguesia inglesa as

“teorias” foram necessárias para consolidar a própria hegemonia, nas outras

sociedades funcionaram como arma de persuasão da classe burguesa para

justificar, seja a aniquilação da nobreza (caso da França), seja a criação de um

novo Estado pela cisão na própria classe burguesa (independência dos E.U.A.),

seja a criação de um novo Estado pela unificação de pequenos mercados regionais

sob o impulso da transformação dos senhores feudais em capitalistas, proprietários

de terras (Alemanha).

A partir da Independência Americana e da Revolução Francesa o direito à

propriedade passou a ser citado em todas as Constituições26 e “Declarações de

26 “A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do império, pela maneira seguinte: XXII – É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude.”

(Da Constituição Política do Império, 1824, art.179). “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 34

Direitos”, sempre associado ao direito à “liberdade” ou à “busca da felicidade”. A

estrutura ideológica construida com base nas “teorias” sobre tais direitos permite à

sociedade burguesa não apenas reimpor continuamente as condições de

reprodução do modo de produção capitalista sob as aparências de um acordo

social, escamoteando o uso da força, como também justificar a força nos casos

extremos em que não é possível escamoteá-la.27

Três séculos depois de sua consolidação a propriedade, apresentada ora como

“direito natural”, ora como “acordo social”, continua embasando as “teorias”

justificativas da sociedade burguesa.28

É sobre a idéia de “acordos” que também se apóiam todas as justificativas de

alteração das leis, especificamente da interpretação do “direito de propriedade”,

alteração necessária uma vez que as regras pelas quais a sociedade reconhece a

cada indivíduo o direito de dispor de algo devem ser variáveis conforme as

necessidades da acumulação. No caso da propriedade fundiária essas regras

formam um dos pontos centrais da discussão entre estatizantes e liberais, entre os

defensores do Estado como organizador do espaço da produção e os que

defendem uma auto-organização pelo funcionamento “livre” do mercado. O

campo é fértil para frase do tipo:

“A estatização da propriedade é antagônica às metas liberais inerentes ao

sistema democrático”.29

XXII – é garantido o direito de propriedade; XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;”

(Da Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, art.5°). 27 O recurso ao emprego da força como eventualmente necessário para a reprodução do modo de produção capitalista é geralmente omitido em todos os compêndios de história ou de direito moderno. De acordo com a construção ideológica, a força é apresentada como um meio utilizado “antigamente”, antes do advento da “civilização”. Quanto mais evoluída esta civilização tanto mais as relações sociais estariam baseadas em acordos e contratos livremente estabelecidos pelas partes. 28 É ilustrativo o conceito de propriedade constante num compêndio sobre avaliação de imóveis e administração da base tributável, publicado nos E.U.A. pela Associação Internacional dos Avaliadores: “Propriedade é um conceito cultural [sic] da relação entre pessoas e coisas. Em nossa cultura as pessoas podem receber o direito de possuir, gozar e dispor de coisas. Os Governos autorizam e protegem esses direitos. Portanto a propriedade tem uma dimensão legal.” (Eckert, 1990, pg.75).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 35

O último item deste capítulo tem como objetivo o de assinalar a importância

histórica da propriedade da terra na organização social das colônias inglesas da

América do Norte e a diferença com as condições no Brasil onde a propriedade só

foi formalizada no século XIX e até hoje não foi plenamente institucionalizada.

1.4 A apropriação da terra na América

Enquanto a estrutura e os conceitos de propriedade fundiária nos diversos países

da Europa resultaram de um longo processo de sucessivas conquistas e de

transformação do feudalismo30 em capitalismo, na América o processo de

apropriação se constituiu em três séculos de conquista por parte de sociedades que

já baseavam a produção social dos povos indígenas. Mesmo assim, as diversas

forças que moveram estas conquistas e as diversas formas de ocupação e posse

criaram diversas estruturas fundiárias, correspondentes a outras tantas formas de

produção.

A comparação, mesmo esquemática, das primeiras formas de ocupação na

América do Norte e no Brasil pode ser importante, não só pelo papel hegemônico

desempenhado pelos E.U.A. e a consequente influência exercida sobre os demais

países, em particular sobre o Brasil, mas principalmente vistos os diversos rumos

de desenvolvimento tomados pelos dois países, condicionados pelas respectivas

organizações da produção.

Portugal teve dificuldades desde o início para ocupar todos os territórios

descobertos, devido à sua escassa população, enquanto que, a partir do século

XVII, as colônias inglesas passaram a receber sucessivas levas de colonos,

emigrantes das regiões em que os fechamentos dos campos, a Revolução Agrícola

29 De publicitário do Secovi-SP, sob o título Projeto afronta filosofia liberal, contra o Projeto de política Urbana – projeto de lei 5788, em tramitação no Congresso. (O Estado de São Paulo, 29.4.92). 30 Por sua vez resultado da fusão de organizações tribais com os escombros do Império Romano.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 36

e as guerras e perseguições religiosas (não só na Inglaterra mas em vários países

da Europa) haviam criado massas de trabalhadores sem terra e, portanto, sem

meios de sobrevivência. Gente sem alternativas, aventureiros, perseguidos ou

descontentes, todos tinham uma coisa em comum: o ímpeto de reconstruir a vida

na nova terra sem as amarras das relações e compromissos de seus locais de

origem.

As primeiras tentativas de povoamento da América do Norte por parte da

Inglaterra tinham por objetivo estabelecer bases estratégicas contra as pretensões

da Espanha. A perspectiva de pilhagem de ouro e prata atraiu aventureiros em

busca de enriquecimento rápido, incapazes de sobreviver do cultivo da terra. As

colônias implantadas na Virgínia em 1585 e 1587 foram um completo fracasso31 e

apenas no século XVII começaram a surgir as primeiras povoações estáveis.

Para o norte (Nova Inglaterra) dirigiam-se grupos de Puritanos, lavradores e

artesãos acostumados ao trabalho independente. O tipo de solo encontrado, o

clima e a relativa estreiteza da faixa agricultável, espremida entre a costa

recortada e os Apalaches, desincentivaram qualquer ocupação por cultura

extensiva, forma dominante de produção colonial. Ao invés, desenvolveram-se

atividades relacionadas com a pesca, a construção de barcos e o comércio. Além

disso, não houve no início restrições que impedissem aos colonos, mesmo os

trazidos como mão de obra por empresas capitalistas, a apropriação de terras e o

cultivo para seu sustento, contribuindo para uma organização social com base no

trabalho independente e na pequena propriedade, como observaria Wakefield32,

um século e meio mais tarde:

“Nos Estados do norte da União Americana é duvidoso que um décimo da

população possa ser considerada como de trabalhadores assalariados. Na

Inglaterra esses compõem a massa do povo.” [Wakefield, 1833, pg.42-44]33

31 Morton (1938, pg.204). 32 Eduard Gibbon Wakefield (1796 – 1862), economista e político inglês, autor de England and América. A comparison of the social and political state of both nations, Londres, 1833, em que expõe os fundamentos de suas propostas sobre “colonização sistemática”. 33 Citado por Marx (1867, 1° Livro, pg.561).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 37

Com o aumento da população e a consolidação de uma economia dependente dos

investimentos ingleses a disponibilidade de terras na costa Nordeste foi

diminuindo, grandes áreas foram reservadas especulativamente e, já no século

XVIII, as levas de migrantes que continuavam chegando da Europa não

encontravam mais as facilidades iniciais para obter a própria terra. Mas junto com

os grandes proprietários e empresários havia-se formado uma classe com certa

independência, cujos interesses eram associados aos dos capitalistas e cujos

princípios éticos e políticos se baseavam no trabalho e na defesa da propriedade.

Na Virgínia e mais ao sul, ao contrário, o solo, o clima e a extensão da faixa

litorânea de topografia favorável atraíram desde o início colonos com recursos e

influência na Metrópole, com o objetivo de explorar a terra com o sistema de

“plantation”: monocultura (fumo e, mais tarde, algodão) em grandes extensões,

usando como mão de obra primeiro os “ajustados”34 (conscritos e desempregados

trazidos principalmente da Irlanda) e, a partir de 1660, escravos trazidos da

África.

Coerentemente, o movimento de Independência se originou e ganhou força nas

colônias do Norte, onde os interesses da burguesia local entraram em conflito com

os da Metrópole. Nas “plantations” do Sul a classe dominante poderia ter se

acomodado por mais tempo às condições de exploração impostas pela Inglaterra.

Como dito acima, as “teorias” sobre propriedade e liberdade tiveram papel

importante na luta pela Independência, em particular a argumentação de Locke

que sustentava idéias revolucionárias em matéria de organização política:

“os homens entram numa sociedade para a proteção da propriedade e tem,

portanto, o direito de mudar seu governo, pela força se necessário, quando

esse não atende mais aos objetivos.” (Wiltse, 1935, pg.22)

Esse argumento, no entanto, acabou sendo de difícil aplicação na fase de

consolidação de um governo entre os treze Estados Unidos. As justificativas

teóricas das tensões e disputas pelo poder que se seguiram à Declaração de

Independência podem ser resumidas às posições de defesa de um governo central

34 Têrmo usado na tradução do livro de Huberman (1978). Morton (1938, pg.204) usa o têrmo “indentured labour”.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 38

forte como garantia dos interesses da burguesia nacional (que acabou

prevalecendo) versus o direito de cada pequeno grupo de indivíduos escolher seu

próprio governo, de acordo com as idéias de Locke. Essas divergências se

manifestaram principalmente entre os Estados do Norte, onde a burguesia

precisava de um governo forte para defesa contra a concorrência inglesa, e do Sul,

onde a elite dos grandes proprietários de escravos e terras desejava manter sua

autonomia e seus privilégios.

Vale notar que os moldes da ocupação do Sul do E.U.A. foram muito semelhantes

aos do Nordeste brasileiro. Mas à diferença do Brasil os senhores de escravos não

conseguiram impor seus interesses como interesses da nação por estarem em

posição de inferioridade perante os capitalistas do norte. A tentativa de secessão

foi dominada por quatro anos de guerra civil (1861-1865). Morton resume bem o

significado dessa guerra:

“No fundo foi uma guerra para determinar se o futuro desenvolvimento dos

Estados Unidos seria como país industrial ou como país de economia de

“plantation”, uma economia voltada para a produção de alimentos e matérias

primas para exportação, baseada no trabalho escravo e dirigida por uma

aristocracia escravagista. Além de um certo ponto essas duas economias não

poderiam continuar a existir lado a lado e a guerra foi portanto uma luta de

classes entre a aristocracia fundiária e a democracia burguesa.” (Morton,

1938, pg.412/322)

Convém ressaltar a importância para a formação da economia da Nova Inglaterra

do fato de que, desde o início, a sociedade se organizou em torno da produção

independente e da pequena propriedade. A população livre dessas colônias do

Norte da América formou a base do mercado interno, condicionando o processo

de acumulação nos E.U.A.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 39

Capítulo 2: O ESTADO

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 40

2 O ESTADO

“Criar as condições favoráveis à mais rápida acumulação de

capital e remover os obstáculos que impedem o processo (de

acumulação são as tarefas centrais do Estado capitalista às quais,

em última análise, se subordinam todas as suas outras funções.”

Sweezy (1971)

A idéia de Estado está longe de ter um significado único e se presta a diversas

interpretações em diferentes níveis de abstração. Torna-se portanto necessário

colocar alguns pontos de entendimento como parte do quadro de referência para o

desenvolvimento do tema proposto qual seja, a atuação do Estado no Brasil com

relação ao reconhecimento da propriedade fundiária e à tributação sobre a mesma.

Na colocação deste entendimento o maior esforço está no sentido de se

desvencilhar do contexto ideológico no qual se misturam os conceitos de Estado e

sociedade, de público e privado, de governo e contribuintes (“tax-payers”). Essas

próprias dicotomias pressupõem divisões ou antagonismos que não explicam nem

a natureza da entidade Estado, o qual permanece como conceito abstrato, nem as

suas transformações e muito menos as ações que lhe são atribuídas.

Engels1 associa o surgimento do Estado com a passagem da barbárie para a

civilização, isto é, de uma organização social ainda baseada na gens e tribo como

usuárias em comum do território, para uma organização onde a divisão de trabalho

e a possibilidade de acumulação de riquezas conduzem a relações de dominação e

à divisão em classes. O Estado surge como instituição para reproduzir a divisão da

sociedade em classes através do controle dos meios de produção (basicamente a

terra), assegurando o direito da classe detentora desse controle de explorar a

1 Engels (1884).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 41

destituida. O entendimento do Estado portanto, deve ser feito a partir da

compreensão de seu papel não, como reza o Credo liberal, na distribuição e

consumo mas sim na produção.

O Estado evolui e se transforma de acordo com a evolução da sociedade, por força

das mudanças nas relações de produção dominantes ou, em outros termos, na

relação de forças que se estabelece em cada época entre os diversos interesses

conflitantes. Neste embate de interesses o papel do Estado é sempre o da

manutenção do status quo, da reprodução da organização social. Isto significa que

não pode haver alterações nas relações de poder “decididas” ou “planejadas” pelo

Estado mas, ao contrário, alterações de poder no aparato estatal pressupõem

alterações de poder na sociedade que mantém. O “poder político”, correspondente

à capacidade de estabelecer as leis, de organizar as instituições, de controlar as

forças armadas etc. decorre, com maior ou menor defasagem no tempo, do “poder

econômico” isto é, das condições como são estabelecidas as relações de produção.

Em todos os períodos de transição as lutas pelo controle do Estado se apóiam nas

estruturas de produção ainda não adequadamente representadas pelas

superestruturas institucionais e tem exatamente o intúito de realizar essa

adequação.

O Estado não é uma invenção do capitalismo; apenas adquire formas específicas,

algumas circunstanciais, de acordo com as forças do momento, outras ligadas à

própria essência da organização social a ser preservada. Trata-se portanto, neste

capítulo, de explicitar o que é o Estado burguês, salientando as ações necessárias à

reprodução do modo de produção capitalista ou, em outros termos, a relação entre

o Estado e o mercado para garantia dessa reprodução.

2.1 O Estado e a produção capitalista

Foi visto no capítulo anterior que a propriedade dos meios de produção é condição

essencial para o estabelecimento e manutenção da relação salarial, por sua vez

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 42

base do modo de produção capitalista. Neste ítem é assinalada a presença do

Estado burguês como necessária à produção capitalista.

O fato de que sema presença do estado o mercado não tem condição de existência

foi apresentado e discutido por vários autores2. A análise abrangente da necessária

participação do Estado na produção capitalista, com especial ênfase na

organização espacial dessa produção, foi recentemente apresentada por Deák em

seu trabalho sobre a teoria da renda e o preço da terra: Rent theory and the price of

urban land/Spatial organization in a capitalist economy3. É principalmente sobre

esse trabalho que se baseia a construção deste ítem, no sentido de caracterizar o

Estado em sua forma de atuação e em sua relação com o mercado.

A generalização da relação salarial equivale à generalização da forma mercadoria,

isto é, da produção dos valores de uso sob a forma de mercadoria: o trabalhador

(assalariado) vende sua força de trabalho para poder comprar (sob a forma de

mercadorias) os bens e serviços necessários à sua subsistência. A generalização da

relação salarial (e da forma mercadoria) tem limites, decorrem das próprias

contradições inerentes ao modo de produção.

“Mas a forma de mercadoria, mesmo sendo dominante no capitalismo,

encontra seus limites, não devido a alguma força externa, ao contrário: os

limites à ‘mercadorização’4 da produção e portanto de valores de uso não-

‘mercadorizáveis’ são parte da dialética da produção capitalista.” (Deák,

1985, pg.112)

A superação das restrições impostas por esses limites é precisamente o cerne das

atribuições do Estado burguês. Em outras palavras, o processo de acumulação

precisa, para seu funcionamento, de insumos (bens e serviços) que o mercado não

regula e cuja produção deve ser planejada não como mercadorias mas diretamente

como valores de uso. São necessárias medidas “não econômicas”, fora das regras

2 Ver por exemplo Aglietta (1976). Deák (1989) cita os trabalhos de Uno (1964) e Sekine (1977) que levaram às últimas conseqüências a idéia da redução do capitalismo a uma “economia de mercado”. 3 Deák (1985). Ver também Deák (1986) em que o autor desenvolveu o assunto específico da relação Estado / mercado. 4 Uso o têrmo “mercadorizar” (e seus derivados) como sendo “tornar mercadoria”, de acordo com o uso dado por Deák. Prefiro evitar o têrmo dicionarizado “mercantil” (e seus derivados) pelas suas conotações, inadequadas no caso.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 43

de livre troca, para garantir tanto a acumulação do capital quanto a própria

permanência do capitalismo.

“A primeira da forma-mercadoria e o processo da reificação das relações

sociais impõem que a regulação da produção capitalista seja efetuada em

primeira instância pelo mercado e em segunda instância pela intervenção do

Estado, a combinação específica de ambos sendo determinada pelas

condições de mercadorização da produção de acordo com o estágio de

desenvolvimento das forças e relações de produção.” (Deák, 1986, pg.25 –

grifo meu)

Marx trata do assunto sob o termo genérico de “condições gerais da produção”

mas não chegou a ressaltar o caráter de necessidade essencial da ação do Estado

na produção dessas condições gerais.

Déak mostrou a necessidade de explicitar o custo social da produção de valores de

uso como tais:

“Nem o trabalho para produzir a estrutura espacial, nem o trabalho para

produzir as super-estruturas jurídico-político-administrativas estão

explicitamente tratadas na clássica fórmula da valorização

VE = V + VS

onde a relação salarial divide o trabalho abstrato total, ou valor do trabalho

total da sociedade, VE, em valor da força de trabalho, V e mais valia VS

apenas na produção de mercadorias. A fim de incorporar explicitamente

aquelas parcelas de trabalho social, poderíamos então escrever

VS = VA + VL + VT

onde VL e VT são, respectivamente, o tempo de trabalho gasto na produção

do espaço e aquele gasto em todas as outras atividades do Estado, e VA é o

valor disponível para acumulação. A primeira fórmula portanto se transforma

em

VE = V + (VA + VL + VT)

com VA = VS – (VL + VT) ... .”5

5 Déak (1985, pg.113).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 44

Isto é, o valor disponível para acumulação (VA) não é o total da mais valia (VS)

produzida junto com a produção dos meios de subsistência da força de trabalho

(V): desse total deve-se deduzir o valor do trabalho social, realizado através do

Estado (VL + VT). A separação desse trabalho do Estado em VL (produção do

espaço) e VT (outras atividades) ressalta a parcela das atividades diretamente

ligadas aos aspectos espaciais da organização da produção.

Portanto, estudar o Estado no sistema capitalista é estudar as formas pelas quais,

em cada estágio de desenvolvimento e tipo de organização da sociedade, é

garantida a produção do trabalho social necessário para que o mercado tenha

condições de funcionar. A primeira dessas condições é a manutenção da relação

salarial, base do próprio modo de produção, e a ação do Estado para tanto se

concentra em manter, usando o aparato jurídico, institucional, ideológico e militar,

se necessário, a condição essencial da relação salarial, a saber, a propriedade dos

meios de produção. A segunda condição é a regulação do processo de acumulação

ou seja, a produção material em função da reprodução ampliada da sociedade,

implicando na defesa dos interesses de classe mesmo contra os interesses de

indivíduos da classe dominante.

Aglietta6 chama a atenção para os limites à generalização da forma mercadoria e

trata da superação desses limites nos termos da dialética crise/regulação. Para isto

define o Estado como o agente dessa regulação, ressaltando que o Estado não é

um agente externo ao sistema econômico mas sim parte do mesmo sistema

incorporando, portanto, todas as suas contradições.

A manutenção da relação salarial e a regulação do processo de acumulação são

objetivos exclusivos do Estado e condicionam as suas atribuições e atividades. A

forma concreta de intervenção varia constantemente, em função das condições

concretas da acumulação e, portanto, depende do estágio de desenvolvimento de

cada sociedade7. Mas, qualquer que seja a forma de intervenção, algumas áreas

estão sempre cobertas:

6 Aglietta (1976). 7 Cito RANGEL (1988): “...feita a opção pela privatização dos serviços públicos ora concedidos a empresas públicas, outras questões serão suscitadas. Afinal, no futuro, como no passado, e como agora, ao lado de um setor privado teremos um setor público, como dois e dois

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 45

Sustentação das garantias institucionais: legislação, judiciário, polícia,

informações.

Regulação do fluxo dos recursos financeiros: regulamentação dos

preços e salários, da moeda e das taxas de juros; subsídios e impostos.

Reprodução da força de trabalho: educação, saúde, ideologia8

Organização do espaço para a acumulação: legislação urbanística,

infraestrutura, estrutura fundiária.

A adequada organização do espaço é uma das condições necessárias para a

acumulação. Apesar dessa organização se materializar em ações localizadas isto é,

sobre específicas porções do espaço,

“...nenhuma porção do espaço encerra um conteúdo específico de trabalho

abstrato: todo trabalho desempenhado sobre qualquer porção particular do

espaço redefine (transforma) o espaço urbano como um todo.” (Deák, 1986,

pg.23)

Ao mesmo tempo o espaço como tal não é um valor de uso, uma vez que não pode

ser consumido individualmente:

“O valor de uso no espaço é representado pelas localizações nele contidas –

mas localização sendo uma posição no espaço, não pode ser produzida como

tal. ...O que é produzido é o espaço, enquanto que as localizações – valores

de uso – resultam coletivamente.” (Deák, 1985, pg.110-1)

Não podendo ser validado socialmente como valor de uso, o espaço não pode ser

produzido como mercadoria, mas sim coletivamente, com trabalho social através

do Estado. A intervenção do Estado no espaço se dá, diretamente, através das

restrições de zoneamento e da implantação e manutenção dos sistemas de

transportes e das demais redes de infraestrutura e, indiretamente, através dos são quatro. O Estado será aliviado de parte de suas presentes incumbências mas, como tem acontecido regularmente, sobre seus ombros pesarão novos encargos, inclusive por exigência das mudanças ordenadas em torno da privatização. Encargos necessários, mas que já não interessam, ou ainda não interessam à iniciativa privada. A economia é, afinal, um organismo que vive através de todos os seus órgãos.” 8 O capitalismo se diferencia de todos os outros modos de produção que o procederam pela necessidade da ideologia como parte integrante do sistema de dominação. As relações de produção devem ser escamoteadas pois o sistema se reproduz com base na aceitação da igualdade, da livre troca e da divisão “racional” de atividades.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 46

subsídios ou restrições a determinados setores de produção e pela forma de

distribuir, reconhecer e garantir a propriedade fundiária. O lançamento e a

arrecadação de impostos sobre essa propriedade, além de fornecerem ao Estado os

recursos para custear suas ações, o fazem diferenciando setores da economia e,

portanto, podem se constituir em instrumentos de regulação. A propriedade

fundiária, principalmente nas aglomerações urbanas, faz parte da regulação do uso

do espaço por parte de indivíduos e deve ser vista como parte do processo de

(re)produção da força de trabalho.

2.2 A construção da idéia do Estado liberal

A substituição da justificativa dos poderes senhoriais e do rei como direito divino

pelo escamoteamento das estruturas de dominação por um conjunto de idéias

burguesas sobre igualdade das pessoas, liberdade individual e direito à

propriedade foi parte essencial do processo de transição entre o feudalismo e o

capitalismo:

Historicamente, permitiu a explicitação de interesses antagônicos aos

da sociedade feudal e o surgimento de conflitos armados para quebrar a

ordem institucional existente e adaptar a organização político-

institucional à nova organização econômica.

Em termos da organização social justificou (e continua justificando) as

medidas legais e minimiza as medidas policiais necessárias para

consolidar e manter as próprias condições de reprodução do modo de

produção.

O desenvolvimento e disseminação dessas idéias estão vinculados, por um lado ao

crescimento das cidades (burgos) com certa autonomia e, por outro às formas

tomadas pelos conflitos entre os Estados nacionais, que se consolidaram no fim da

Idade Média, e o Papado.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 47

“A Reforma Protestante foi na essência um movimento político sob disfarce

religioso, parte da longa luta das classes endinheiradas da Europa pelo

poder.” (Morton, 1938, pg.182)

Enquanto as maiores potências, como França e Espanha, preferiram não entrar em

conflito aberto com o Papa mas sim disputar entre si o controle da Igreja, os

Estados mais atrazados ou menores, como a Escócia ou os ducados e principados

do Norte germânico, não tiveram outra escolha que não o conflito declarado para

se livrar da influência do Papado e de seu monopólio das graças de Deus9.

Principalmente nas regiões mais urbanizadas, onde a burguesia era mais influente,

a Reforma teve grande apoio popular e assumiu um caráter de luta por direitos

individuais.

Assim, novas idéias sobre governo e relações sociais foram inicialmente

difundidas como conceitos religiosos, no bojo do movimento de Reforma da

Igreja, em todas as suas seitas e divisões. Especialmente o Calvinismo reuniu as

melhores condições para a defesa do capitalismo e a moldagem de um Estado à

sua imagem e semelhança: Deus tem o poder absoluto e a salvação é um ato

exclusivo de sua vontade inescrutável10; portanto aos homens não compete o

entendimento dos desígnios do Senhor mas apenas cultivar o trabalho, a

abnegação, a iniciativa individual para resolver os problemas do quotidiano. O

sucesso material não é uma finalidade em si mas é a melhor evidência da

aprovação divina. O individualismo e a crença na seleção de poucos eleitos para o

“reino dos santos” justificaram a organização da igreja em pequenas comunidades

fechadas, reunidas em assembléias maiores por sistemas representativos. Essa

organização na época mostrou-se adequada a movimentos de resistência e de

subversão.

Parte importante do apoio dado à Reforma deveu-se à justificativa do direito de

resistência às ordens do rei quando estas contrariavam a vontade de Deus. Vários

textos, na forma de reivindicações de alterações do Estado, surgiram das guerras

9 Morton, 1938, pg.182 ss. 10 Essa idéia de Deus como um ser abstrato e inquestionável é muito próxima da idéia de um mercado, entidade abstrata, independente da vontade dos homens, que no entanto tem forças, regras, leis, crises etc.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 48

religiosas do século XVI e se espalharam rapidamente, sobretudo na Inglaterra.

Colocavam o governo como resultado de um contrato visando determinados

objetivos comuns, a preservação dos direitos constitucionais “inerentes” a cada

povo e a unificação em torno de uma idéia de nação e não mais de igreja. As

crenças e práticas religiosas passavam a ser parte das liberdades individuais.

A inabilidade política de Jaime I da Inglaterra (1603 – 1625) o levou a produzir

uma defesa teórica11 da Monarquia Absolutista,

“exigindo explicitamente como um direito divino aquilo que os Tudor tinham

se acontententado em tomar sem alarde na ausência de oposição declarada.”12

Esse “direito divino” contudo não impressionava mais o Parlamento inglês que

continuou afirmando seu direito de debater livremente as questões de seu interesse

e, principalmente, de controlar o lançamento de impostos. Nestas alturas a

discussão real girava em torno das limitações do poder da Coroa e da burguesia,

representada pelo Parlamento, e da importância relativa entre a tradição das leis

comuns (“Common Law”) e uma constituição escrita ou lei fundamental.

Era preciso introduzir novas leis, que representassem melhor as necessidades de

proteção institucional da burguesia em ascensão e que permitissem superar a

complexidade das relações feudais mantidas pela “Common Law”. A nova

organização social exigia o reconhecimento do direito de propriedade, da

igualdade e da liberdade individual em substituição ao poder da Igreja e das

guildas. Na Inglaterra, ao contrário de outros países da Europa, o Código Romano

nunca chegou a ser adotado como tal, devido principalmente à força da tradição da

“Common Law”. Mesmo assim alguns de seus princípios foram usados para

validar (por apóiá-las em regras antigas, já consagradas) medidas adequadas para

sustentar as novas relações de produção.

11 Na sua obra, Trew Law of Free Monarchies, Jaime I baseia sua defesa do poder real como direito divino em três argumentos:

1 – Os reis são reconhecidos por Deus na Bíblia.

2 – O rei (inglês) tem o direito de conquista por seu antepassado (Guilherme I) que se apropriou de todas as terras do reino.

3 – O rei funcionava como a cabeça em relação ao corpo, sendo portanto essencial para a permanência do conjunto. (Wiltse, 1935, pg.10) 12 Morton (1938, pg.212).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 49

“A lei romana era a lei já consolidada correspondente à simples (isto é, pré-

capitalista) produção de mercadorias, que no entanto incluía a maior parte das

relações jurídicas do período capitalista. Precisamente, pois, o de que nossos

burgueses necessitavam na época de sua ascensão e que não encontraram na

legislação baseada nos costumes locais.”

[Carta de Engels para Kautsky, de 26 de junho de 1884]13

Quando, já no fim do século XVIII, a Revolução Francesa serviu de estopim para

a reorganização dos Estados europeus, pela consolidação do poder público da

burguesia, o Código Romano passou a ser largamente adotado como base para a

estrutura do direito que foi sendo desenvolvida pelos diversos Estados nacionais, à

exceção da Inglaterra que já havia efetuado sua adaptação institucional.

2.3 A ideologia burguesa e a utopia socialista

Passa da fase revolucionária, a nova organização social devia ser reconhecida e

consolidada por princípios inquestionáveis.14 A formalização teórica desses

princípios foi objeto de inúmeros trabalhos ao longo dos séculos XVII e XVIII.

Dentre as obras que procuravam dar forma à nova organização social algumas se

destacam mais como visões ou propostas utópicas do que como “teorias políticas”.

É o caso do Paraiso Perdido (1667), o poema de Milton. John Milton foi seguidor

e ajudante de Cromwell e, especialmente em panfletos, deu forma às idéias que

circulavam na época sobre os direitos individuais e que deram a base do apoio

popular à revolução: todos os homens nascem livres, o governo representa o povo

e exerce o poder em seu nome, o Estado não pode interferir na relação do 13 Em Althusser & Balibar (1968), citado à pg.229). 14 Charles M. Wiltse, autor de um aprofundado trabalho sobre Thomas Jefferson e sua influência nas idéias políticas americanas, assim se manifesta sobre a adequação das “teorias” às instituições: “Teorias políticas surgem quando velhas instituições se desfazem ou quando novas forças passam a fazer parte da vida de um povo. Elas não são motivadas por mera curiosidade especulativa mas são criadas conscientemente para justificar a destruição de uma ordem existente ou para defender o status quo contra os ataques dos radicais e dos descontentes.” (Wiltse, 1935, pg.3)

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 50

indivíduo com Deus (liberdade de religião) nem na forma de expressão individual

(liberdade de imprensa, liberdade de costumes). No primeiro entusiasmo da

revolução, Milton havia esperado ver a construção do paraiso na terra, esperança

frustrada pelo abandono das reivindicações populares e pela transformação da

revolução em movimento de imposição dos grandes proprietários como classe

dominante.

“Para Milton a tragédia da Queda [expulsão do Paraiso devido ao pecado de

Adão e Eva – LB] não era o erro do homem por desejar o conhecimento do

bem e do mal mas o fato das promessas da serpente serem falsas promessas

(como as promessas da própria revolução burguesa) ... O paraiso que Milton

perdeu, pois, foi a promessa inicial da revolução.”

Também na forma de utopia é a obra de James Harrington, The Commonwealth of

Ocean (1656). Nela é detalhada de maneira bastante concreta uma organização de

Estado, a partir da idéia de que esse tem uma base econômica e que a forma por

ele assumida está diretamente relacionada com a distribuição da propriedade da

terra. O governo “deveria” (e é este aspecto moral que transforma Oceana em

utopia) seguir dos princípios:

- que todos os cidadãos fossem proprietários de terra;

- que todos os cidadãos tivessem oportunidade, em rodízio, de exercer

cargos públicos e funções de governo.

Considerando que em qualquer debate alguns indivíduos se manifestam e

propõem, enquanto que a maioria apenas acompanha, Harrington imaginou o

governo composto por um corpo restrito (senado) encarregado das propostas de

leis e por outro maior, que escolheria entre as propostas.

De outra natureza foram os trabalhos destinados a produzir justificativas para os

acertos institucionais requeridos. Essas “teorias” giravam em torno da definição

de uma Lei Fundamental ou Constituição, decorrente de “leis naturais”, portanto

fora da compreensão ou do poder de ação das pessoas. Constituem as bases sobre

as quais, ainda hoje, se discutem as atribuições do Estado ou a organização do seu

aparato.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 51

Thomas Hobbes em sua obra Leviathan (1651) foi o que mais claramente

explicitou o conceito de Estado como acordo social, considerando como parte

desse acordo todas as formas de relações sociais, incluindo a propriedade15.

Segundo Hobbes, as ciências políticas partem das leis naturais como axiomas, leis

essas que não são morais ou imorais mas apenas existem, mais como explicações

do que como regras. De acordo com essas leis os homens são motivados por auto-

preservação e interesses individuais e portanto todos os valores sociais devem ser

reduzidos ao interesse individual e a sociedade nada mais é do que uma

associação livre de indivíduos que se organizam para defesa de interesses

próprios. Donde a necessidade de uma legislação escrita, como forma de contrato.

Ao mesmo tempo Hobbes defendia a existência de um poder absoluto, acima das

leis, com autoridade para propô-las e fazê-las cumprir.

Outro filósofo inglês, John Locke16 também desenvolveu sua doutrina sobre

direitos naturais e apresentou o governo como um órgão constituido por contrato

entre os membros da sociedade, com a única finalidade de interpretar e

administrar as leis da natureza. Cada indivíduo mantém o direito à vida, à

liberdade e à propriedade e, sendo voluntária a participação numa sociedade, tem

o direito de mudar de governo, pela força se necessário, quando este não satisfaz

seus interesses.

Se, para Hobbes, o Estado significa força e poder para manter a ordem, para

Locke os homens se associam apenas para garantir a propriedade e portanto essa é

a função do Estado.

As idéias gerais sobre liberdade individual e propriedade, formalizadas em

“teorias” na Inglaterra no século XVII, foram, na França no século seguinte,

difundidas como literatura ou transformadas em descrições de organização social

por diversos autores dos quais se sobressaem Voltaire, Rousseau e Montesquieu.

15 Wiltse (1935). 16 Locke (1690). A colocação de Locke sobre o direito de propriedade como um direito natural foi apresentada no Capítulo 1, pg.37-9.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 52

O Espírito das Leis17 é um quadro completo sobre os princípios, leis e relações

entre grupos definidos de pessoas, correspondentes a cada um dos três tipos de

governo identificados por Montesquieu: o Republicano, o Monárquico e o

Despótico. O conjunto forma um todo coerente e inatacável do ponto de vista

lógico, uma vez aceitas as premissas das leis “naturais”. Vale como exemplo a

explicação do que é liberdade e Estado:

“Enfim, como nas democracias o povo parece mais ou menos fazer o que

quer, situou-se a liberdade nestes tipos de governo e confundiu-se o poder do

povo com a liberdade do povo.

É verdade que nas democracias o povo parece fazer o que quer; mas a

liberdade política não consiste em se fazer o que se quer. Em um Estado, isto

é, numa sociedade onde existem leis, a liberdade só pode consistir em poder

fazer o que se deve querer e em não ser forçado a fazer o que não se tem o

direito de querer.

Deve-se ter em mente o que é a independência e o que é a liberdade. A

liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; e se um cidadão

pudesse fazer o que elas proíbem ele já não teria liberdade, porque os outros

também teriam este poder.” (Montesquieu, 1748, pg.170)

Montesquieu teve enorme influência na organização do Estado criado a partir da

Independência das colônias inglesas da América do Norte, assim como na

elaboração das Declarações de Direitos e das Constituições que se seguiram à

Independência Americana e à Revolução Francesa. A divisão do governo em três

poderes e a necessária separação entre eles, num governo Republicano, formaram

o modelo para a constituição de todas as Repúblicas criadas a partir de ex

colônias.

Na formação dos E.U.A. também tiveram influência direta os “teóricos” ingleses,

em especial Hobbes e Locke. Esses, como visto acima, defendiam posições

conflitantes a respeito do poder do Estado. Essas posições, transformadas em

justificativas de ações políticas, embasaram as lutas pelo poder em torno da

Constituição Americana: de um lado o Estado forte, centralizado e comprometido

17 Mostesquieu (1748).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 53

com os interesses dos capitalistas americanos, defendido por Alexandre Hamilton:

de outro a visão de Thomas Jefferson, de governo descentralizado, apoiado na

pequena propriedade e no absoluto respeito à liberdade e aos direitos individuais.

O resultado de compromisso foi a Constituição de um Estado centralizado e

claramente defensor dos interesses dos capitalistas e uma Emenda elencando os

direitos individuais (Bill of Rights).

Os poderes e direitos assim distribuidos criaram uma estrutura suficientemente

flexível para, segundo Thomas Jefferson, não haver uma rígida definição de

regras, que devem se adaptar ao estágio de desenvolvimento:

“Quando a população é pequena em relação ao espaço nacional e vastos

recursos naturais começam apenas a ser explorados há recursos suficientes

para todos e a iniciativa individual tem prioridade. Mas lá onde a proporção

de desemprego é grande e a distribuição dos bens é cada vez mais desigual, a

opinião pública deverá se voltar para o lado dos despossuidos, e as funções

sociais do Estado serão enfatizadas. Em geral, quanto mais velho e mais

densamente habitado for o país, mais socialista [sic] ele se tornará. A força

peculiar à filosofia democrática repousa justamente na generalidade de seus

princípios que tornam possíveis os ajustes a mudanças da ordem social dentro

do mesmo quadro tradicional da estrutura de governo.” (Wiltse, 1935,

pg.217)

As idéias de Jefferson foram especialmente importantes porque representam bem

a concepção do Estado como garantia do direito à “busca da felicidade” e do

equilíbrio entre a liberdade individual e o “bem social”.

Na transição do feudalismo para o capitalismo as idéias socialistas de igualdade e

liberdade individual foram utilizadas para angariar apoio popular na luta contra a

aristocracia feudal. A utopia, que surge como possibilidade em cada movimento

revolucionário, serviu como motivação para que o povo participasse enquanto

interessados na construção de um mundo à semelhança do modelo utópico. Uma

vez alcançados os objetivos de consolidação do poder da classe burguesa, os

movimentos revolucionários tinham de ser interrompidos, justamente porque seu

objetivo real não era a utopia mas a organização burguesa, justamente porque seu

objetivo real não era a utopia mas a organização burguesa, e as idéias socialistas

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 54

foram abandonadas e substituidas pela ideologia, que lhes conserva no entanto os

aspectos formais.

Consolidaram-se assim as sociedades dos diversos Estados nacionais, sob a

hegemonia da classe burguesa, hegemonia essa garantia pela ideologia que

apresenta a organização social como correspondendo à utopia construída sobre as

idéias socialistas (formalmente conservadas).

2.4 A ideologia e o Estado hoje

Trabalhos recentes como o de Norberto Bobbio18 substituem o conceito de Estado

por descrições e sistematizações das formas pelas quais ele se manifesta. Bobbio

identifica diversas relações de poder e formas de governo, mas o faz de um ponto

de vista formal/jurídico que acaba dando um caráter universal e atemporal a

organizações sociais.

No fim do século XVIII estava praticamente terminada a construção do arcabouço

ideológico. Conjuntos de “teorias” (da margem de lucro, da renda, do Estado, do

crescimento populacional etc.) forma um mundo perfeito, “racional” apoiado nos

princípios “naturais” da igualdade entre os homens e da tendência ao equilíbrio de

todas as forças e movimentos contrários. Só não correspondem ao mundo real.

Mas, pelas mesmas “teorias”, esta não correspondência se deve a distorções

passageiras desse mundo real, superáveis à medida em que, através do

desenvolvimento capitalista, aqueles princípios forem divulgados e aceitos pelas

sociedades, permitindo a difusão da “democracia” e a inserção de todas as pessoas

na economia de mercado.

As “teorias”, “cientificamente” apoiadas na economia vulgar (na expressão de

Marx), atribuem ao Estado o duplo papel de policial, para que sejam respeitadas

as regras de comportamento social supostamente estabelecidas de comum acordo

18 Bobbio (1985).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 55

por todos, e de provedor de condições de bem estar para os que ainda estão fora da

ou não conseguem competir na economia de mercado19. Neste papel o Estado é

apenas um mal necessário, devido ao funcionamento imperfeito do mercado. Seria

portanto um corretivo, cada vez mais dispensável à medida em que a economia

tende para sua perfeição isto é, para a superação de todas as formas pré-

capitalistas de produção.

Como diz Gramsci sobre o Estado e a concepção do direito, o Estado agiria no

sentido da própria superação, uma vez alcançada por todos as condições de bem

estar e de inserção na economia:

“A revolução levada pela classe burguesa na concepção do direito e portanto

na função do Estado consiste especialmente na vontade de conformismo

(portanto em considerar éticos o direito e o Estado). As classes dominantes

que a precederam eram essencialmente conservadoras no sentido de que não

se dispunham a elaborar uma passagem orgânica das outras classes a si

mesmas, isto é a alargar a própria esfera de classe “tecnicamente” e

ideologicamente: conceito de casta fechada. A classe burguesa se coloca a si

mesma como um organismo em contínuo movimento, capaz de absorver toda

a sociedade, equiparando-o ao seu nível cultural e econômico. A função do

Estado se transforma e o Estado se torna “educador” ... Uma classe que se

coloca como passível de assimilar toda a sociedade, e ao mesmo tempo seja

realmente capaz de expressar esse processo, leva à perfeição essa concepção

do Estado e do direito concebendo o fim do Estado e do direito tornados

inúteis por terem exaurido sua tarefa e terem sido absorvidos pela sociedade

civil.”20

19 Não estar “adequadamente inserido” na economia de mercado passa a ser visto como uma questão cultural. 20 Gramsci (1991, pg.163). No original: “La rivoluzione portata dalla classe borghese nella concezione del diritto e quindi nella funzione dello Stato consiste specialmente nella volontà di conformismo (quindi eticità del diritto e dello Stato). Le classi dominanti precedenti erano essenzialmente conservatrici nel sendo che non tendevano ad elaborare un passaggio organico dalle altre classi alla loro, ad allargare cioè la loro sfera di classe “tecnicamente” e ideologicamente: la concezione di casta chiusa. La classe borghese pone se stessa come un organismo in continuo movimento, capace di assorbire tutta la società, assimilandola al suo livello culturale ed economico: tutta la funzione dello Stato à trasformata: lo Stato diventa “educatore”, ecc. ... Una classe che ponga se stessa come passibile di assimilare tutta la società, e sia nello stesso tempo realmente capace di esprimere questo processo, porta alla perfezione questa concezione dello Stato e del diritto come diventati inutili per aver asaurito il loro compito ed essere stati assorbiti dalla società civile.”

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 56

Seria uma volta à situação tribal em que, havendo acordo e interesse de todos no

respeito às regras de reprodução social, não há espaço para

“um poder público especial, distinto do conjunto dos cidadãos que o

compõem”. (Engels, 1884, pg.105)

O conceito de Estado como provedor de bem estar e guardião de um acordo social

domina as ações políticas dos cidadãos “bem intencionados”, que se perdem em

discussões de caráter ético ou moral em torno de supostas atribuições no sentido

da redistribuição da riqueza produzida (isto é, intervenções nas relações de

consumo) e da manutenção do “equilíbrio” de poder entre as classes.

O aparelho estatal, regulador das condições definidas de reprodução da classe

trabalhadora (apresentadas como “bem estar social”), desempenha esse papel

através de sua organização formal e dos critérios com que são recrutados os

funcionários do Governo: a grande massa desses funcionários tem do Estado um

conceito ético ou moral.

Mas, se este conceito é parte da ideologia construida pela sociedade burguesa, no

caso do Brasil ele deve ser revisto face às características peculiares da organização

social brasileira, objeto do Capítulo 3, a seguir. Desde já pode-se adiantar a

importância do aspecto formal das atividades do Estado que “resolve” problemas

através da legislação ou transforma em problemas questões irrelevantes. Ao

trabalhar como funcionário “público” no Brasil, percebe-se que muito do esforço

intelectual dos técnicos envolvidos com as atividades do Estado acaba sendo

canalizado para a fixação de regras (leis, decretos, portarias, editais) que

supostamente garantam avanços da classe trabalhadora na participação política e

nas condições de trabalho e de consumo mas que, de fato, são apenas instrumentos

(sempre precários) para justificar facções com mais poder num determinado

momento21.

Esse trabalho analisa os sistemas de cadastros e registros fundiários dando

especial ênfase ao aspecto das formalidades com que são “resolvidos” os

21 Vale a observação de Morton, no mesmo sentido, sobre as tentativas de influir nos rumos de uma revolução através de regras formais: “...como sempre, a lógica intrínseca da revolução burguesa era poderosa demais para ser brecada por qualquer expediente constitucional, por mais cuidadosamente elaborado que fosse.” (Morton, 1952, pg.103)

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 57

problemas colocados. Apesar de se justificarem por programas “bem

intencionados”, tais formalidades de fato escondem a ausência de soluções e

escamoteiam as questões relevantes relacionadas com a atuação do Estado nas

áreas do planejamento e do controle urbano.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 58

CAPÍTULO 3: O ESTADO NO BRASIL

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 59

3 O ESTADO NO BRASIL

“Desde a independência, temos tido duas constituições políticas em vigor:

uma oficial, fundada na soberania do povo, e outra real, em que o poder supremo é

propriedade de uns poucos.”

Fábio Konder Comparato (Oligarquia versus democracia)1

3.1 O processo de acumulação no Brasil

O capitalismo no Brasil assume características próprias, originadas na estrutura de

produção colonial e na manutenção, depois da Independência, das condições de

reprodução de uma sociedade de elite em contraposição à burguesa.

Uma análise das características específicas do processo de reprodução social no

Brasil foi proposta por Deák em 19892 e é sobre essa caracterização que se apoia o

trabalho aqui apresentado.

Numa sociedade colonial

“O processo de produção/reprodução local é antagônico à extração de excedente

por parte da metrópole, pois que somente poderia se desenvolver plenamente se

pudesse utilizar o excedente por ele produzido na ampliação de sua própria

reprodução. No desenvolver da produção colonial e da relação colônia /

metrópole, portanto, o princípio da extração de excedente precisa ser

continuamente re-imposto contra a tendência para a ampliação da reprodução

local, que no entanto é a própria fonte da ampliação do excedente retirável. A

história das colônias no capitalismo é precisamente a história do

desenvolvimento do antagonismo entre a reprodução local e a sua exploração

pela respectiva metrópole. A re-imposição da exploração colonial se deu

1 Artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, 29 de setembro de 1994. 2 Deák (1991).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 60

mediante diversos meios, como repressão local mesmo que ao preço de uma

correspondente redução da escala da exploração”. (Deák, 1991, pg.4)

No Brasil colônia, onde a economia se estruturou em torno do latifúndio, da

monocultura e da produção escrava, os interesses da classe dominante local,

associados à exportação de produtos primários, impediram o desenvolvimento de uma

classe de assalariados e, portanto, de uma classe burguesa.

Segundo Deák, ao transformar-se o Brasil num país independente de Portugal a

sociedade colonial se reestruturou de maneira a manter as mesmas características e a

se reproduzir sob a hegemonia da mesma classe. A independência do Brasil não

resultou, como no caso dos E.U.A., da preponderância dos interesses da burguesia,

dominados no período colonial pelos interesses da acumulação externa (na

metrópole), mas sim da necessidade de criação de um arcabouço institucional capaz

de se substituir às forças externas na reprodução da estrutura de produção, uma vez

que, pela debilidade de Portugal, essas forças externas já não podiam assegurar a re-

imposição da exploração colonial, nem pelas armas, nem pela redução da escala da

reprodução social. Em outras palavras, a Independência do Brasil não resultou da luta

da burguesia local para eliminar as restrições à acumulação na colônia mas, ao

contrário, resultou da necessidade da elite colonial de impedir que a burguesia local

se afirmasse como classe dominante.

A Independência do Brasil não correspondeu a uma cisão entre a burguesia local e a

da metrópole nem, muito menos, a uma revolução social, como bem observa Roberto

Schwartz:

“Entre nós, o rompimento com a Metrópole e a abertura para o mundo

contemporâneo não foram acompanhados de revolução social, como é sabido,

consistindo antes num arranjo de cúpula. Ficava intacto o imenso complexo

formado por trabalho escravo, sujeição pessoal e relações de clientela,

desenvolvido ao longo dos séculos anteriores, ao passo que administração e

proprietários locais, sobre a base mesma desta persistência, se transformavam em

classe dominante nacional, e mais, em membros da burguesia mundial em

constituição, bem como em protagonistas da atualidade no sentido forte da

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 61

palavra. A concomitância regular dos traços moderno e colonial não representa

atrazo nem disparate, como fazem crer a análise e o sentimento liberais, mas o

resultado lógico e emblemático da feição que tomou o progresso no país.”

(Schwartz, 1991, pg.120)

Ao manter a estrutura de produção baseada na mão de obra escrava e na exportação, a

nova nação não se estruturou sobre um processo de acumulação capitalista mas sim

sobre o que Deák denomina de acumulação entravada.

“O processo de produção e reprodução social no Brasil ficou subordinado na

Independência aos requisitos da reprodução das condições de dominação por

uma elite, anteriormente colonial. Ao nível das relações sociais a sociedade

brasileira se diferencia no capitalismo por ser uma sociedade de elite, como

oposta à burguesa, onde a reificação das relações sociais não é completa, como

nem pode ser, uma vez que não domina o princípio da generalização da forma-

mercadoria. No que toca à organização da produção, os mesmos requisitos se

traduzem na primazia da expartição de excedente sobre a acumulação no

mercado interno e assim, sobre a própria dialética da forma-mercadoria (que

demandaria a generalização da forma-mercadoria na mais larga escala possível,

sendo limitada tão somente pela ação antagônica, se necessária, do Estado). Uma

dialética da acumulação entravada toma o lugar da dialética da forma-

mercadoria, e cuja história é a recomposição da primazia da expartição de

excedente sobre a acumulação através de crises sucessivas”. (Deák, 1991, pg.12-

13. Grifo meu)

A maneira de garantir o entrave continuou sendo a manutenção do princípio de

organização da produção colonial: a expatriação de excedente. Enquanto na sociedade

colonial essa expatriação é, “por natureza”, uma imposição externa (da metrópole),

através das taxas, dízimos, restrições, condições comerciais etc., com a Independência

essa imposição teve de ser criada internamente, em conflito com a própria noção de

acumulação capitalista. Tratava-se, ao assumir a condição de Estado independente,

“da inserção do Brasil nas relações econômico-financeiras internacionais, de uma

maneira que assegurasse a continuidade da padrão produtivo da vida econômica

do país.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 62

A dívida externa foi a solução encontrada. ... Ou seja: ao nascer, o Estado

brasileiro assumiu uma dívida externa que seria um dos principais meios para

transformar –aqui, no sentido estrito de dar nova forma a-- a remessa de uma

parcela do seu excedente produzido para fora do país. ...

O que era exploração colonial torna-se expatriação de excedente. O que era

determinado de fora passa a ser determinado de dentro. O que era colônia passa

a ser nação-Estado, ainda que ‘do Terceiro Mundo’ ou ‘dependente’.” (Deák,

1991, pg.7-8)

À sociedade, formalmente burguesa, organizada em torno da manutenção de

privilégios e da reificação apenas parcial das relações de produção, corresponde um

Estado voltado para a manutenção da “funcionalidade da barbárie colonial para o

progresso das elites brasileiras”, no dizer de Schwartz (1991, pg.120). O que obriga

à construção de uma dupla ideologia: 1) para escamotear as relações de dominação e

2) para manter a organização social em torno de privilégios de classe, sob as

aparências de uma organização burguesa.

3.2 A ação do Estado

Adotando a expressão acima --acumulação entravada--, pode-se dizer que o Estado

no Brasil é chamado a assumir o controle das condições de acumulação mantendo os

“entraves” necessários para que os interesses de plena acumulação capitalista não se

sobreponham aos interesses da manutenção de uma sociedade de elite3. Cabe-lhe o

3 Ao nível cultural um dos traços marcantes da sociedade brasileira é o desprezo pelo trabalho concreto, pelo “fazer” em contraposição ao “gerenciar” ou “dirigir”, reflexo da colossal dispersão no renque dos salários e da ainda maior concentração da renda. Roberto Schwartz assim relaciona esse traço com a tradição escravagista: “A referência européia e moderna leva a gente de bem a torcer o nariz ante a indolência popular, ao passo que o embasamento servil da economia permite, sempre que oportuno, desconsiderar o serviço prestado pelas pessoas pobres. ... Não tendo propriedade, e estando o

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 63

papel de garantir certo nível de acumulação, necessário à reprodução, inclusive

ampliada, dessa mesma sociedade mas, ao mesmo tempo, impedir o pleno

desenvolvimento das forças produtivas, o que poria em risco a permanência da elite

enquanto classe. O Estado intervem não para garantir a acumulação, como o faz o

Estado burguês, mas sim para garantir a acumulação entravada.

Isto coloca uma das características marcantes da atuação do Estado no Brasil qual

seja, a descontinuidade e insuficiência da ação. Via de regra, os investimentos

públicos são feitos fora do momento oportuno, quando já ou ainda não correspondem

a um impulso para mudança de patamar tecnológico. Os serviços complementares

não são implantados ou o são parcialmente, de modo que nunca o investimento feito

tem um retorno na mesma escala. Exemplos são inúmeros e vão desde os hospitais

com equipamentos sofisticados sem uso por falta de operadores, até o serviço de

cartografia da Região Metropolitana de São Paulo para o qual se contratam vôo,

restituição e desenho sem implantar as rotinas de atualização e manutenção.

A descontinuidade e a insuficiência são garantidas pela própria organização e regras

de funcionamento do Estado, em que prevalecem sobreposições de competências (e

portanto impossibilidade de definição de responsabilidade), atribuições atendidas por

formalidade e não por ações efetivas, insuficiência de recursos, pulverizados em

inúmeros projetos parciais e desarticulados. O orçamento, em qualquer nível de

governo, não corresponde a um projeto discutido e aprovado e portanto a um

compromisso com determinado programa de implantação. Corresponde apenas a um

repasse de recursos para determinado setor da economia, quando não a um grupo de

pressão, sem garantia de continuidade. Assim a construção de uma estrada de ferro ou

a implantação de um programa de merenda escolar, por exemplos, podem ser

decididos sem nenhuma relação de prioridade e, com a mesma aleatoriedade com que

a decisão é tomada, também pode ser tomada a decisão de interromper ou de

modificar a obra ou o programa.

principal da produção econômica a cargo do escravo, os homens pobres pisam terreno escorregadio: se não trabalham são uns desclassificados, e se trabalham só por muito favor serão pagos ou reconhecidos. (Schwartz, 1991, pg.99).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 64

A inflação crônica e as sucessivas mudanças de moeda que tem marcado o quotidiano

das últimas gerações de brasileiros apenas facilitam esse processo: é virtualmente

impossível qualquer previsão ou controle orçamentário com uma inflação que pode

oscilar entre 2% ao mês ou ao dia, dependendo de fatores políticos conjunturais.

Note-se que o problema para a confecção e obediência a um orçamento está no

caráter errático da inflação, muito mais do que no seu nível.

Não raro a legislação introduz simplificações no sentido de permitir ações efetivas e

não formais. No entanto a mesma legislação ou melhor a estrutura jurídica que a

interpreta, baseada na defesa dos interesses individuais (sempre apresentada como

resguardo contra possíveis arbitrariedades por parte do poder público), se encarrega

de anular qualquer possível simplificação. O funcionário público, sujeito a

arbitrariedades político/administrativas, não toma decisões que possam implicar em

responsabilidade técnica pessoal e, portanto, qualquer decisão requer uma prévia

diluição de responsabilidades através de regras genéricas, discutidas em termos de

modelos abstratos. Tais modelos exigem definições rígidas que por sua vez se

constituem em obstáculo formal para qualquer mudança: para poder alterar uma regra

social, independente das posições e forças dos interesses diretamente envolvidos, é

necessário antes de mais nada reconstruir todo o arcabouço das definições, o que

confere de antemão uma posição privilegiada aos interesses conservadores.

Caio Prado Júnior em seu Formação do Brasil Contemporâneo, nos dá uma descrição

das origens da administração pública brasileira, diretamente calcada na de Portugal

que

“estendeu ao Brasil sua organização e seu sistema, e não criou nada de original

para a colônia.” (Prado Junior, 1957b, pg.299)

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 65

Também mostra o peso da herança portuguesa em termos de administração,

ressaltando a rigidez das suas regras e estruturas e o apego às formalidades4. É

ilustrativo o exemplo da divisão territorial administrativa:

“É nas vilas, sedes dos têrmos e das comarcas, que se concentram as autoridades:

ouvidores, juízes, câmaras e as demais. Era este o modelo do Reino, e ninguém

pensou em modificá-lo. Ou se tratava de uma vila, então todas aquelas

autoridades deviam estar presentes, ou não era vila, e não tinha nada.” (Prado

Junior, 1957b, pg.301)

Esse mesmo modo hoje faz com que São Paulo e Vargem Grande Paulista5 (para

pegar dois exemplos na mesma Região Metropolitana) sejam formalmente iguais,

com o mesmo (do ponto de vista formal) relacionamento com os governos estadual e

federal, com as mesmas incumbências e prerrogativas, decorrentes do fato de serem

ambos municípios.

Outra característica do Estado brasileiro é o fato de que o espaço6 nunca esteve

presente entre as questões envolvidas nas grandes decisões. Mesmo ao se configurar

um projeto político nacional com o II PND, e apesar do fato de que, pela primeira

vez, as condições urbanas enquanto tais foram mencionadas e objetivadas, os

aspectos territoriais desse plano foram simplesmente relegados à decorrência dos

acertos de interesses, negociados caso a caso, para o desenvolvimento dos diversos

setores da produção. Não só o planejamento territorial não existiu integrado a uma

política econômica, como os técnicos chamados a participar não tiveram condição de

captar o significado das medidas que estavam sendo implementadas e de prever suas

4 Em que pese a propriedade das descrições da estrutura administrativa portuguesa, Caio Prado Júnior lhes dá com frequência um enfoque cultural. Um exemplo, sobre a questão da diluição de responsabilidades: “A confiança com outorga de autonomia, contrabalançadas embora por uma responsabilidade efetiva, é coisa que não penetrou nunca nos processos de administração portuguesa.” (Prado Junior, 1957b, pg.307) 5 Município da Região Metropolitana de São Paulo, com 15.480 habitantes de acordo com o censo de 1991. Pelo mesmo censo, o município de São Paulo contava com 9.528.210 habitantes. (IBGE) 6 Os conceitos de espaço e território, assim como um histórico da formação do espaço brasileiro, são tratados por Mori (1988), especialmente na Introdução (pg.22) e no capítulo A delimitação do território (pg.42).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 66

consequências em termos de propostas de organização espacial. Estas continuaram

tendo características de acertos cosméticos ou de homologação de decisões já

tomadas.

Note-se que, pelas “teorias” liberais (e não apenas no Brasil) planejamento territorial

não é visto como parte integrante de uma política econômica mas, ao contrário, como

um instrumento de correção das distorções e problemas por ela criados.

Na mesma toada, no Brasil desenvolvimento econômico é visto como “naturalmente”

causador de problemas7, a serem corrigidos pelo planejamento. Essa função como

que servil do planejamento, ao mesmo tempo em que desqualifica perante a “opinião

pública” os técnicos que a ele se dedicam, também os exime de qualquer

compromisso com a organização social e os interesses em jogo. É significativa a

frequente dissociação entre o planejamento como instituição de um órgão sem poder,

enquanto que os meios efetivos de implantação de algum plano ou programa estão

dispersos em dois ou três ministérios ou secretarias. Até agora as poucas tentativas de

juntar planejamento, proposta orçamentária e controle de recursos, em qualquer nível

de governo, foram abandonadas como mostra o exemplo recente do início de reforma

ministerial do Governo Collor, que rapidamente teve de ser desfeita, por pressões do

Congresso e dos próprios dirigentes dos órgãos re-estruturados.

O Brasil é organizado em três níveis de governo, dos quais dois são típicos de

qualquer Estado capitalista:

- O central, que estabelece a política econômica e as condições da

acumulação.

- O local, cuja principal função é a administrar as formas concretas pelas

quais o território é usado como espaço para a acumulação.

A esses se interpõe um terceiro nível, o dos estados. A organização federativa do

Estado brasileiro atribui aos estados-membros as tarefas de adaptar a política

7 De onde expressões do tipo “crescimento desenfreado” ou, sua imagem especular, “desenvolvimento sustentado”.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 67

econômica às condições regionais, complementar a infraestrutura espacial e absorver

parte dos custos diretos de reprodução (educação, saúde, distribuição de água e

energia elétrica).

Essa organização propicia tanto a sobreposição quanto a ausência de

responsabilidades definidas e acaba favorecendo a dispersão dos recursos. Dada a

forma como se estabelecem as relações entre a União e os estados-membros esse

nível de governo intermediário pode-se constituir num entrave para a implantação de

qualquer programa nacional que deve passar pelo crivo dos interesses das elites

regionais.

3.3 Investimentos e infraestrutura

Foi visto, no Capítulo 2: O Estado, que a produção capitalista é regulada

simultaneamente pelo mercado (em primeira instância) e pela ação do Estado ou seja,

o Estado regula a produção através e em função da própria regulação do mercado,

superando assim os limites à mercadorização da produção. Em particular o Estado

intervém na produção do espaço, seja indiretamente através da legislação, seja

diretamente através de investimentos na infraestrutura espacial8. Tais investimentos

são feitos em função das necessidades da acumulação, definidos portanto pelo próprio

mercado. Em outros têrmos, a capacidade de investimento de um Estado (equivalendo

aos impostos a serem arrecadados) é definida pelas necessidades em infraestrutura

para sustentar determinado regime de acumulação.

8 A infraestrutura espacial constitui um capital fixo, coletivo, apropriado pelos capitalistas no processo de produção. Para uma discussão do papel do progresso técnico e do capital fixo na acumulação ver Deák (1985), especialmente o capítulo 5.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 68

No Brasil a estrutura institucional e a produção ideológica garantem a manutenção de

um aparente círculo vicioso: o Estado não pode arrecadar o suficiente para investir

em infraestrutura devido à baixa produtividade; a produtividade é baixa porque a

infraestrutura é deficiente, e o Estado é incapaz de provê-la. O que não aparece é que

a produtividade é baixa porque se quer mantê-la e com isto restringir o

desenvolvimento do mercado. A falta (ou a “escassez”) da infraestrutura é assim um

instrumento eficiente para o controle do desenvolvimento do mercado e da plena

utilização (capitalista) das forças produtivas. Os baixos recursos alocados,

responsáveis pelo baixo nível de infraestrutura, não constituem uma contingência

externa que a sociedade, através do Estado, deve administrar e superar mas, ao

contrário, são uma auto-imposição para evitar a ampliação do espaço urbano (ou do

campo de ação do Capital), a melhoria das condições de produção e a eliminação da

(sempre cultivada) escassez.

Chega a ser espantosa a facilidade com que a “grande imprensa” veicula e faz passar

como verdade opiniões que não passam de defesa de interesses individuais. É

ilustrativa a campanha contra o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) de São

Paulo em 1992: a proposta aprovada pela Câmara e transformada em lei municipal,

previa alíquotas diferenciadas conforme valor e uso do imóvel, com considerável

aumento apenas para as pequenas parcelas de residências de luxo ou de grandes

espaços comerciais em áreas privilegiadas. A lei foi arbitrariamente anulada pelo

Judiciário após uma violenta campanha baseada no repúdio ao “aumento escorchante

e intolerável para os trabalhadores”. Um exemplo claro do poder --e do tipo—da

orquestração ideológica foi dado em um dos episódios da campanha: a entrevista de

uma mulher supostamente atingida por esse aumento escorchante, que “ganha pouco,

tem tantos filhos para criar, mora na periferia etc. e tal”. Perguntada, ao fim do coro

de comentários indignados, de quanto havia sido o aumento do imposto, a cândida

resposta foi: “Não sei, porque ainda não recebi a conta. Mas certamente não vou

poder pagar”.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 69

A nível mais geral, basta comparar a evolução do imposto com o crescimento das

áreas construídas (ou da população) para perceber que houve em São Paulo9, no

período de 1978 a 1989, uma política deliberada de redução tributária com a

consequente diminuição da capacidade de investimentos no município. A Figura 3.3

a seguir mostra a evolução do valor médio do imposto (IPTU) por metro quadrado de

área construída.

Figura 3.3

MUNICÍPIO DE SÃO PAULO: 1960 – 1992

Evolução do IPTU

(Valores em Cr$ 1.000,00 de junho 1991)

fontes: IPTU – PMSP / Secretaria de Finanças

AREA – Cadastro da PMSP / Secretaria de Finanças e estimativas Sempla

A “impressão, amplamente divulgada pelos meios de comunicação, é a de que o

Estado no Brasil é fraco, impossibilitando de conduzir o processo de constante

transformação econômica. Aparentemente ele seria organizado para não funcionar.

De fato ele atende bem a sua finalidade, definida pela elite dominante: o controle do

desenvolvimento da capacidade produtiva isto é, a manutenção do “entrave”. A esse

Estado corresponde um capitalismo sem risco, “cartorial”, única forma de garantir o

funcionamento daquilo, e somente daquilo, que deve funcionar.

No entanto, e isto também é apontado por Deák,

“acumulação com expatriação de excedente só é possível a taxas muito elevadas

de excedente, como aquelas permitidas por um estágio de acumulação extensiva,

em que a taxa de expansão é igual à taxa de excedente propriamente dita (dentro

9 A mesma tendência pode ser percebida na maneira das cidades do país.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 70

da produção de mercadorias) mais a taxa de extensão da produção de mais-valia

(isto é, da própria produção de mercadorias à custa de outras formas de

produção), onde a segunda é a parcela mais substancial. Uma parte do excedente

é expatriada e ainda assim sobre algum para acumulação -- ainda que

acumulação entravada.” (Deák, 1991, pg.15)

Com a virtual urbanização de todo o país, a expansão da produção de mercadorias à

custa de outras formas de produção está atingindo seus limites. A crise atual, que vem

se prolongando há quase duas décadas, assume caráter diferente de todas as que a

precederam: enquanto aquelas deviam ser resolvidas com ajustes para garantir a

continuidade da acumulação entravada, esta crise é gerada pela própria

impossibilidade da permanência deste processo e, portanto, deverá ser resolvida por

sua superação, implicando em transformações da estrutura social e não apenas em

mudanças de regras.

Em que pesem as incertezas decorrentes da crise (também estrutural) do próprio

capitalismo, a acumulação no Brasil passa para o estágio predominantemente

intensivo, exigindo a eliminação dos entraves: ampliação, em escala considerável, da

infraestrutura (comunicações, transporte, energia elétrica, saneamento), alteração do

nível de reprodução da força de trabalho e, em conseqüência, canalização do

excedente para a ampliação do mercado interno. É nesta perspectiva que ganha

importância o planejamento por parte do Estado, em especial, a organização do

espaço.

Contra esse quadro de fundo serão examinados os sistemas de registro e cadastros

fundiários no seu duplo aspecto de fonte de recursos e de fonte de informações para o

planejamento territorial.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 71

II A base institucional da apropriação do território

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 72

II A base institucional da apropriação do território

O primeiro reconhecimento formal do domínio português no Brasil não resultou de

um movimento de conquista mas sim de um tratado, assinado em Tordesilhas

(Espanha) em 1494, pelo qual Portugal e Espanha dividiram entre si o mundo

descoberto e a descobrir.10 Essa divisão, feita sob a bênção papal, tinha o objetivo

expresso da propagação da fé e nesse sentido as terras do Brasil foram postas sob a

jurisdição da Ordem de Cristo, sujeitas ao pagamento de dízimo, recolhido pelo Rei

na qualidade de Mestre da Ordem.

A divisa estabelecida em Tordesilhas teve pouco significado no resultado final do

processo de ocupação do território, a não ser na medida em que definiu os pontos de

partida desse processo: o litoral brasileiro para Portugal, o Caribe e a foz do Prata

para a Espanha.

As populações que ocupavam o território atribuído ao domínio português ainda

mantinham a organização tribal e tinham baixíssimo nível de desenvolvimento

tecnológico, comparado com o dos invasores. Produziam para subsistência,

praticando a troca (escambo) apenas de maneira esporádica e ritualística. Essa falta de

espírito mercantil entre os indígenas e o pouco interesse do que poderia

eventualmente ser objeto de troca condicionaram as primeiras atitudes de indefinição

por parte de Portugal com relação aos novos domínios. Os interesses dos mercadores

e armadores de expedições estavam no estabelecimento de relações privilegiadas de

comércio, enquanto que o Brasil oferecia apenas terras para serem cultivadas, sem

nenhuma produção organizada de excedente que justificasse a manutenção de

entrepostos como nas Índias ou na China.

10 O tratado de Tordesilhas resultou dos protestos de Portugal contra a primeira divisão feita pelo papa Alexandre VI (o espanhol Rodrigo Borja) por meio da bula Inter Coetera, em 1493. Segundo essa bula o meridiano de divisa passava a 100 léguas a oeste do arquipélago de Cabo Verde, o que deixava o Brasil inteiramente fora do domínio português.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 73

Demorou alguns anos para se estabelecer uma forma de ocupação e aproveitamento

da nova terra que fosse mais proveitosa do que a simples coleta de pau-brasil e penas

de araras.

Em meados do século XVI a economia colonial, baseada na monocultura para o

mercado externo, se estruturou em torno da produção escrava em grandes áreas

distribuídas através do sistema de sesmarias. Apesar da apropriação do território ter-

se dado sem grandes resistências ele não correspondeu a um processo de dominação

da população, dadas as diferenças de organização social entre os portugueses e os

indígenas, era a escravidão à qual esses últimos se sujeitavam mal, deixando pouco

ou nenhum excedente para os senhores. Tirando os casos de miscigenação a

população indígena foi praticamente exterminada e a mão de obra escrava passou a

ser importada da África.

No Capítulo 4: Três séculos de apropriação são descritas as diversas formas de

concessão/ocupação das terras no período colonial que, de permeio com o sistema

sesmarial, foram moldando não só a estrutura fundiária mas com ela também o

aproveitamento do solo agrícola, o traçado dos núcleos urbanos, e a própria

organização social. No último ítem desse capítulo são citadas as primeiras medidas no

sentido da definição de impostos fundiários.

O Capítulo 5: A Lei das Terras e o fim da produção escrava abrange o período do

Império, com ênfase na Lei das Terras, de 1850. A Lei das Terras Devolutas

introduziu as alterações no controle do acesso à terra, necessárias face à passagem da

produção baseada na mão de obra escreva para a produção por trabalhadores livres. É

a partir dessa data que começam a tomar forma os registros de terras e que se

estabelece juridicamente o conceito de propriedade.

O Capítulo 6: O arcabouço institucional republicano trata da evolução da legislação

republicana com relação ao registro da propriedade e à tributação sobre a mesma. São

examinados o Código Civil, as Constituições e alguns dos atos legais mais

significativos. Procura-se esboçar um quadro institucional de base dos procedimentos

e normas atuais para os impostos e registros imobiliários, salientando os aspectos

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 74

administrativos que conduzem à multiplicidade desses registros, ao fato de não

corresponderem a um cadastro mapeado e ao fato de não terem como objetivo o

conhecimento abrangente da propriedade e do território nacional mas sim,

exclusivamente, a defesa dos direitos individuais estabelecidos sobre cada parcela

desse território.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 75

CAPÍTULO 4:

TRÊS SÉCULOS DE APROPRIAÇÃO

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 76

4 TRÊS SÉCULOS DE APROPRIAÇÃO

“...O Capitão da dita Capitania e seus Successores darão, e

repartirão todas as terras della Sesmaria a quaesquer pessoas de

qualquer qualidade, e condição, que sejam, com tanto que sema

Christãos livremente sem foro nem direito algúm sómente o

Dizimo, que serão obrigados a pagar a Ordem do Mestrado de

Nosso Senhor Jesus Christo de todo o que nas ditas terras

houverem, ...”

do Foral da Capitania de Duarte Coelho1

4.1 Instituições jurídicas portuguesas. Capitanias:

Durante os primeiros três séculos da história brasileira toda a legislação deve ser

procurada nas Ordenações do Reino e nas Cartas Régias, espécies de decretos reais

com que também eram administradas as coisas do Brasil. É interessante notar que a

Espanha instituiu um conjunto específico de leis para as colônias (Código das Indias

ou Recopilacion de Leyes de los Reynos de India), estabelecendo logo no início as

áreas de atribuições dos poderes temporal e espiritual, normas “de convivência entre

clérigos e colonos”2 e a forma de concessão das terras, com reflexos diretos na

organização espacial, principalmente dos núcleos urbanos.

“Dentro dos mesmos conceitos jurídicos, [os espanhóis] estipulavam bem mais

precisamente que os portugueses a concessão de terras e o convívio entre os

vários colonos e o coletivo.” (Murillo Marx, 1987, pg.57)

1 Trecho do Foral da Capitania de Duarte Coelho, Pernambuco, concedido por D.João III em 23 de setembro de 1534. (Documentos históricos, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 1929, v.13, p.84). De cópia fornecida pelo Prof. Murillo Marx no curso de pós-graduação Apropriação da terra e trama urbana no Brasil. FAUUSP, 1994. 2 Marx, Murillo (1987).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 77

Portugal, em vez, manteve para todo o território por ele controlado a mesma

legislação geral da Metrópole, consolidada nas Ordenações do Reino3. São essas

Ordenações que regulam as formas jurídicas feudais4 de relações enfitêuticas

(aforamentos) e de concessão de sesmarias, através das Cartas Régias, Alvarás, Carta

de Sesmarias, Cartas de Datas etc. Vários desses restos jurídicos do sistema feudal

são legalmente reconhecidos até hoje e correspondem a práticas que, apesar de

estarem em processo de extinção, ainda podem ser encontradas5.

Nunca houve regras claras e coerentes com relação às diversas circunscrições e

competências para distribuir terras e as divisões territoriais administrativas,

tributárias, eclesiásticas e de domínio privado se sobrepunham sem qualquer relação

umas com as outras.

3 As Ordenações do Reino eram as antigas leis portuguesas compiladas em códigos. Houve três desses códigos:

As Ordenações Afonsinas, de 1446 ou 47, promulgada por D.Afonso. Citadas pelo Prof. João Afonso Borges (1960) como “o primeiro monumento legislativo da Europa”.

As Ordenações Manuelinas por D.Manuel em 1512, 1514 e 1521.

As Ordenações Filipinas, promulgadas em 11 de janeiro de 1603, encomendadas por Felipe II da Espanha e publicadas sob Felipe III. D.João IV ao proclamar a Restauração revalidou as Ordenações Filipinas pela lei de 29 de janeiro de 1643. Pelo decreto de 20 de outubro de 1823 D.Pedro I do Brasil ordenou que continuassem vigor as ordenações e leis de Portugal, com o que as Ordenações Filipinas no Brasil até sua substituição pelo Código Civil em 1916. (Ver Borges, 1960) 4 Não confundir formas jurídicas feudais com relações feudais de produção. Nunca houve sistema para a produção mercantil em larga escala, para exportação. Isto não impediu a manutenção de relações de domínio sobre a terra que ainda guardavam formas medievais mas que, de fato, já se estruturavam em torno da propriedade individual dos meios de produção. 5 Em algumas áreas as relações de domínio fundiário baseadas na enfiteuse ou aforamento eram comuns até há pouco tempo. Em salvador na Bahia, por exemplo, predominaram até fins da década de 1960, “com o domínio direto, pela Prefeitura, da maior parte da área municipal” (Brandão, 1978, pg.129). Não só a Prefeitura mas também as irmandades religiosas detinham o domínio das terras, que iam sendo ocupadas em regime de aforamento ou simples invasão à medida em que aumentava a população e a necessidade de habitações. “Até a década de 1960, as terras da cidade pertenceram basicamente a algumas ordens religiosas, a poucos proprietários particulares e à Prefeitura.” (Brandão, 1978, pg.138). Segundo Brandão, na década de 1960 se intensificaram tanto os processos de “fechamento” das áreas de enfiteuse quanto os de legitimação de posse e de formalização dos títulos de propriedade, consolidando assim um mercado de terrenos urbanos. Para esse processo foi decisiva a remoção da inalienabilidade do patrimônio fundiário do município em 1968 (Lei Municipal 2181/68), o que permitiu a alienação de mais de 2.400 ha de terras até 1978.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 78

Segundo Simonsen6, a primeira manifestação de Portugal com relação à

Institucionalização do domínio fundiário no Brasil foi um ato do rei D. Manuel que,

já em 1501, arrendou as terras descobertas a um rico mercador de Lisboa para que

explorasse a extração de pau Brasil. Essa medida se mostrou inútil para assegurar a

posse do território e algum rendimento para a Coroa e em 1532 D.João III ordenou a

demarcação de faixas de 50 léguas de costa, entre Pernambuco e o rio Prata, a serem

instituídas como capitanias.

Capitania designava cada uma das divisões territoriais das regiões de além-mar,

concedidas pelo Rei de Portugal a fidalgos (donatários) para administrá-las conforme

as regras estabelecidas nas Ordenações. Apesar de não haver prazo fixo estipulado

para essas concessões, no Brasil elas foram permanentes e hereditárias.

As capitanias eram unidades administrativas das quais cerca de 20% das terras

constituíam doação efetiva ao donatário. No dizer de Sérgio Buarque de Holanda,

“dava El-Rei a terra para o donatário administrá-la como província ao invés de

propriedade privada.” (Holanda, 1960, pg.99)

No entanto, resto da estrutura jurídica feudal, confundiam-se os rendimentos da

capitania com os do seu donatário. Esse, além da terra recebida em doação, tinha

participação em vários “direitos” da Coroa além de “direitos” próprios como os de

conceder licenças para a instalação de engenhos, vilas e povoados e, em decorrência,

o de receber foros e contribuições7.

O mapa da Figura 4.1 mostra as capitanias, provavelmente no fim do século XVII,m

já moldadas pela conformação geográfica e pelos processos de ocupação.

Apesar dos parcos resultados obtidos pela Coroa com esse sistema e da consenquente

instituição do Governo Geral em 15498 as capitanias não foram extintas

juridicamente e encontram-se atos de D.João VI referentes a capitanias. Na prática 6 Simonsen (1937). 7 Simonsen (1937, pg.83). 8 O primeiro Governador Geral, Tomé de Sousa, foi nomeado por Carta Régia de 7 de janeiro de 1549.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 79

não passavam de divisões administrativas que acabaram se transformando nas

províncias.

Figura 4.1

BRASIL (século XVII?)

Nova et Accurata Brasiliac totius Tabula. Joanne Blaeu I.F.

Mapa das Capitanias

4.2 Sesmarias, foros e posses

Os donatários tinham poderes expressos para, em nome do soberano, conceber

extensões de terras, sesmarias, a pessoas com poder econômico suficiente para

explorá-las e obter rendimento para si e para a Metrópole.

Garcia9 cita diversas origens da palavra sesmaria:

sesma “medida de divisão das terras de alfoz”10

sesmo a sexta parte de alguma coisa

caesina incisão, corte.

O Vocabulário Jurídico11 lhe dá a seguinte definição, que corresponde em parte às

origens histórias:

“Derivado de sêsma, oriundo do latim sex, é a expressão usada no Direito para

designar as datas de terras que, se davam para que fossem roteadas, isto é,

libertas da ervas daninhas e plantas infrutíferas e depois cultivadas. E se dizia 9 Garcia (1958, pg.10). 10 Terras ao redor das povoações. 11 Silva, de P. (1963,pg.1448).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 80

sesmaria, de sêsma, a sexta parte de alguma coisa, porque o concessionário

ficava na obrigação de lavrar essas terras incultas, mediante a sexta parte dos

frutos.

Originalmente, as sesmarias recaíam sobre terras cujos senhorios não as

cultivavam, deixando-as ao abandono, desaproveitadas e em ruinas. Avisados

para as aproveitar e valer, não o fazendo, sofriam então a distribuição das terras,

sob o foro ou pensão de sexto ou de seis um.

No Brasil, entanto, embora em se tratando de terras sem senhoria, as cartas

dadas, ou as datas de terra, distribuídas para cultura ou lavoura, passaram a ter

igual denominação: sesmaria. Mas, em realidade, importava em começo, na

doação de terras devolutas e públicas, com a finalidade exclusiva de serem

cultivadas, e cuja venda foi posteriormente autorizada, pela lei de 18 de setembro

de 1850.”

De acôrdo com Ruy Cirne Lima12 a origem da instituição remonta a antiquíssimo

costume na península Ibérica segundo o qual as terras de cultivo eram dividas por

sorteio entre os homens aptos a cultivá-las. Cada uma dessas divisões seria chamada

sexmo13. Com o crescente poder da nobreza e a consolidação de relações de

dominação esse costume de divisão periódica (que além do mais se tornava difícil

pelo aumento da população) foi sendo abandonado, ao mesmo tempo em que a Coroa

passou a zelar pelo volume de produção, intervindo diretamente no sentido do cultivo

das terras aptas. O têrmo sesmaria passou a ser aplicado às terras não aproveitadas

pelo seu possuidor14 e que, por lei régia, eram cedidas a outros para que as

cultivassem.

“...a atitude comunal cedeu lugar rapidamente à instituição régia, cuja evolução, à

sua vez conduziu às concessões de domínio.” (Lima, 1954, pg.12)

12 Lima (1954). 13 Joaquim Costa, citado por Lima (1954, pg.11). 14 Inclusive as incorporadas aos domínios dos nobres e da Igreja.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 81

As terras do Brasil que, pela bula papal mais tarde alterada pelo tratado de

Tordesilhas, haviam sido atribuídas a Portugal para a “propagação da fé” foram

postas sob a jurisdição da Ordem de Cristo, da qual o Rei era o administrador

perpétuo. Sendo terras aptas ao cultivo porém não aproveitadas, para elas foi

transplantada a instituição das sesmarias como forma de promover o cultivo e o

povoamento.

Cabia aos donatários distribuí-las sendo proibida a concessão a si próprio, à mulher

ou ao filho herdeiro,

“nem po-las em outro para depois virem a elles, por modo algum que seja:

somente as poderão haver titulo de compra verdadeira de pessoas que lhes

quizerem vender, passados oito annos depois das taes terras serem aproveitadas;

e em outra maneira não.”15

A instituição das sesmarias tinha por finalidade o cultivo da terra e, dado o modo de

produção implantado no Brasil, sua concessão estava vinculada à capacidade do

beneficiário de providenciar mão de obra para a exploração em larga escala.

“Os requerentes das sesmarias têm por isso o cuidado de alegar que são homens

de posses.” (Oliveira Vianna, 1933, pg.56; citado por Lima, 1954, pg.36)

Mesmo entre os homens de posses havia diferenças: as terras do Nordeste, onde as

condições de exploração eram melhores, eram distribuidas em larguíssimas extensões

entre a alta nobreza, os funcionários de primeira categoria, enquanto que no Sul,

menos atraente, as sesmarias eram menores e os beneficiários mais modestos.

Dentro do espírito de distribuição de terra para produção, as leis estabeleciam a

obrigatoriedade do cultivo, sob pena de devolução16, e punham restrições ao tamanho

15 Extraído da carta de doação da Martim Affonso de Souza. Citado em nota de rodapé por Lima (1954, pg.34). 16 Terras devolutas designava justamente as terras que, pelo não-uso, seriam devolvidas à Coroa. O têrmo passou a ser usado para as terras públicas em geral. As definições do Vocabulário Jurídico são ilustrativas da base ideológica da estrutura jurídico-institucional:

“Terras devolutas – São as terras que, embora [sic] não destinadas nem aplicadas a algum uso público, ...ainda se encontram sob o domínio público, como bens integrantes do Domínio da União, dos Estados, ou dos Municípios.”

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 82

das áreas concedidas. Segundo instruções das Ordenações Manuelinas, mantidas

pelas Ordenações Filipinas,

“... serão avisados os sesmeiros17” que não deêm maiores terras a uma pessoa,

que as que rosoalmente parecer que no dito tempo poderão aproveitar. (Sodero,

1977, pg.166)

Essas instruções foram reforçadas por Regimento:

“... e não darei a cada pessoa mais terra que aquela que boamente e segundo sua

possibilidade vos parecer que poderá aproveitar.” (Sodero, 1977, pg.169)

No entanto os critérios de distribuição levavam em conta muito mais os interesses

pessoais e as relações de poder do que a intenção e a capacidade de exploração

produtiva e, apesar do registro de casos de reversão de terras não aproveitadas, na

maioria das vezes havia transigência e fechar de olhos. Mas a

Pg.94

Exigências nunca foi dispensada nos têrmos de concessão. Assim, junto com os

engenhos e as plantações de cana de açúcar, foi sendo formado um patrimônio de

terras improdutivas, origem do nosso atual sistema fundiário18.

“Devoluto – Na linguagem do Direito Administrativo, qualifica-se de devolução tudo o que se encontrava vago ou desocupado. Assim, dizem-se terras devolutas as que, incultas ou não aproveitas, embora pertencentes ao domínio fiscal do Estado, se destinam à venda aos particulares.” (Silva, de P. 1963). 17 Termo usado aqui para designar o distribuidor de sesmarias. O mesmo termo passou a ser empregado para designar o beneficiário, recebedor de sesmaria. “As glebas desaproveitadas correspondem, na América, às terras virgens, trocado o sentido de sesmeiro, originalmente o funcionário que dá a terra, para o titular da doação, o colono.” (Faoro, 1925, pg.124). 18 “quem conhece a aristocracia agrária do Brasil, quer nas cochilas do pastoreio, quer nos altiplanos de cultura, percebe o amor com que o proprietário fita a linha do horizonte longínquo, até onde chegam as suas terras. Pouco lhe importa que esta vastidão de terras continue desaproveitada; o espírito de latifúndio ainda que hoje perdura desde o tempo colonial, em que se preferia dar sesmarias a quem fosse ‘sujeito de muitos teres’.

E o resultado foi o seguinte: quer no ciclo do açúcar, quer no ciclo das esmeraldas e quer no ciclo do café, somente obtinham sesmarias os influentes, os chefes de prol, os amigos da Coroa, dos governadores, dos capitães-mores ou dos capitães-generais. Debalde se lhes impunha a condição sine qua, de cultura, como dizia o Alvará de 5 de janeiro de 1785; em vão se lhes falaram nas cláusulas de medição e confirmação, como está em todas ad Cartas-Régias e provisões que tratam do assunto. Os agrimensores eram raros; as terras longínquas; difíceis as vias de penetração. Não se fazia a medição;

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 83

A sesmaria no Brasil deixou de ser uma distribuição compulsória de terras como

garantia de produção para tornar-se apenas uma

“doação de domínios régios, a que só a generosidade dos doadores serve de

regra.” (Lima, 1954, pg.37)

Em 1695 uma Ordem Régia determinou que as sesmarias fossem sujeitas ao

pagamento de foros. Somente a partir de 1780 essa lei passou a ser cumprida19 e as

cartas de concessão passaram a ter uma cláusula de pagamento. No entanto a própria

Ordem Régia, mesmo não cumprida, provou uma série mudança na instituição,

caracterizando a passagem das terras do Brasil da Ordem de Cristo (onde só o dízimo

podia ser cobrado) para o domínio régio. O texto das Ordenações já não se adaptava à

nova condição e aos poucos foi se formando uma legislação específica para o sistema

sesmarial no Brasil, culminando com a suspensão das concessões em julho de 1822.

os seguintes atos são citados por Simonsem (1937) e/ou Coe [1983?]20:

2 de novembro de 1700 – Ordem Régia que ampliou para o dobro as sesmarias

doadas às fábricas de igrejas” ou a eclesiásticos.

13 de março de 1772 – Alvará Régio que legislava sobre as terras devolutas.

22 de junho de 1808 – Alvará Régio, estabelecendo as normas para confirmação

de sesmarias.

25 de novembro de 1808 – Decreto sobre concessão de sesmarias a estrangeiros.

25 de janeiro de 1809 – Alvará determinando que à concessão das sesmarias

precedessem as respectivas medições judiciárias e, sob estas condições e formas,

sem ela, está claro, não se processava a confirmação. Preferia-se, inveteradamente, a demarcação natural do espigão, divórcio de todas as águas que vertiam para este ou para aquele rio. Estaria assim contornada a dificuldade da agrimensura; ficaria assim poupada a burocracia da confirmação; e permaneceria plenamente satisfeito o espírito de latifúndio no sistema indeciso e ideal das águas vertentes.” (de Messias Junqueiro: o Direito, Vol.IX, pg.160/61, conforme citado por Garcia, 1958, pg.18) 19 Prado Júnior (1957a, pg.14). 20 Paulo Coe: São Paulo: Paraíso dos “grileiros”, livro sem data [1983?], provavelmente editado pelo autor, bastante confuso como texto mas citando boa documentação sobre disputas por terras em São Paulo, em torno de títulos conflitantes e sobrepostos.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 84

fossem passadas cartas aos sesmeiros, a fim de evitarem-se questões entre os

mesmos.21

6 de junho de 1821 – Aviso Régio ordenado que os possuidores de terras

requeressem cartas de sesmaria.

17 de julho de 1822 – Resolução Real proibindo a concessão de novas sesmarias.

As relações de produção que caracterizaram a exploração colonial do Brasil não se

basearam diretamente na propriedade da terra mas sim na propriedade da mão de obra

escrava. Em outras palavras, a dominação não se estabeleceu diretamente através do

domínio sobre o território, visto não haver nesse uma prévia organização de produção

excedente.

A terra era abundante, com baixíssima densidade de ocupação e o seu uso na época

dos descobrimentos não representava nenhum impedimento à exploração22. Os

constantes ataques indígenas nos primeiros anos da colônia eram de defesa e reação à

expansão dos caçadores de escravos e não de conquista de terras. Mesmo as invasões

holandesas tiveram muito mais a característica de controle dos entrepostos comerciais

do que de domínio sobre a terra como meio de produção.

A produção latifundiária e escrava, em regime de monocultura para o mercado

externo, se baseou nessa disponibilidade de terras, ilimitada para as forças produtivas

da época, donde o caráter predatório da exploração: queimadas, terra usada sem

descanso ou adubação, derrubada indiscriminada das florestas. O elemento caro, que

devia ser utilizado intensivamente e cuja propriedade possibilitava a produção

mercantil, era o braço escravo. As considerações feitas pelo Pe.Vieira em 1662,

embora relativas à ocupação da Amazônia e, portanto, aos escravos índios, podem ser

extendidas a todo o território e aos escravos africanos:

“Na vida dos índios consiste toda a riqueza e remédio dos moradores ... porque a

fazenda não consiste nas terras, que são comuns, senão nos frutos ou indústrias

21 Transcrito de Simonsen (1937, pg.458). 22 Para a história e as condições do início do povoamento do território, ver Prado Júnior (19957b).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 85

com que cada um os fabrica e de que são os únicos instrumentos os braços dos

índios.” (Citado por Simonsen, 1937, pg.309)

Ser senhor de terras, com tudo o que isto significava de prestígio e poder, implicava

em ser previamente senhor de escravos.

Se o sistema sesmarial foi a base da organização da produção colonial, não foi a única

forma de ocupação do território. Os colonos diretos, trabalhadores livres que por aqui

aportavam, não sendo homens de posse ou fidalgos, preferiam simplesmente ocupar

um pedaço de chão a enfrentar a burocracia para obter uma (incerta) concessão de

sesmarias. Estas

“na maioria dos casos, restringiam-se, portanto, aos candidatos a latifundiários

que, afeitos ao poder ou ávidos de domínios territoriais, jamais, no entanto,

poderiam apoderar-se materialmente das terras que desejavam para si.” (Lima,

1954, pg.37)

Terras foram sendo ocupadas sem título ou contrato formal; seja pela simples posse

de uma área sem domínio conhecido (em geral em regiões isoladas e de difícil

acesso), seja em acerto com o senhor da área. Esse acerto consistia na tolerância

(sempre precária) da moradia e do cultivo de subsistência mediante pagamento em

espécie (meeiros, parceiros etc.) ou em serviços, especialmente de defesa ou

conquista de terras. A imprecisão das descrições das sesmarias tornava a demarcação

física dos limites uma questão de força, favorecendo a formação de grupos armados

cujos interesses eram vinculados aos do senhor pela autorização a ocupar terras

dominiais.

A criação de gado, retaguarda econômica dos grandes engenhos de açúcar, também se

expandiu apoiada tanto na concessão de sesmarias (em geral decorrentes da

ocupação) quanto na simples ocupação. Enquanto a indústria açucareira funcionava

com grandes investimentos em maquinário, instalações e escravos, dependendo em

boa parte da metrópole, a pecuária podia começar com poucos recursos e era tocada

por trabalhadores livres. Os vaqueiros após alguns anos de trabalho nas grandes

fazendas passavam a ser pagos com cabeças de gado, constituindo assim seu próprio

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 86

rebanho. E em imensas regiões pouco habitadas, com propriedades mal descritas e

sem cercas a ocupação de terras pelo gado precedia, e podia dispensar, a concessão de

títulos de domínio.

De todos os grandes senhores de terra no Nordeste sobressaíram-se os Guedes de

Brito e os d’Avila, cujo mando e influência se estendiam por áreas do tamanho de

estados. A Casa da Torre, fundada por Garcia d’Avila em sua primeira sesmaria de 15

léguas no Tatuapara (nove léguas da cidade do Salvador), foi o centro de irradiação

de gado e no fim do século XVII, três gerações mais tarde, senhoreava, no dizer de

Luís da Câmara Cascudo23, sobre terras “quase duas vezes o território da Itália”.

Assim, nos interstícios das grandes plantações, ao lado dos senhores e dos escravos,

foi crescendo uma população livre, dependente dos mesmos senhores para o próprio

assentamento e para o plantio das roças e a criação de animais. Uma população

escrava mas sem condições de competir no mercado por não ser proprietária de

escravos. Estima-se que em 1690 a população total do Brasil (excetuados os

indígenas não aculturados) era de cerca de 300.000 habitantes dos quais mais de

100.000, ou seja perto de um terço, eram livres.24

Nesta mesma época a população total das treze colônias inglesas do norte devia estar

em torno dos 400.000 (não muito maior que a do Brasil) sendo que apenas uns 20.000

eram escravos africanos. Mas por volta de 1760 já havia mais de um milhão e meio

de habitantes, dos quais uma significativa parte de escravos.25

De acordo com Celso Furtado26, o setor de subsistência se desenvolveu como

complemento necessário da monocultura açucareira, garantindo uma reserva de mão

de obra recrutável em curto prazo em casos de expansão doe mercado exportador.

Essa população foi importante na fase de substituição do escravo pelo assalariado.

23 Cascudo (1956, pg.112). 24 Simonsen (1937, pg.228 e 271). 25 Huberman (1978, pg. 16 e 19). 26 Furtado (1959).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 87

“Se a expansão da economia cafeeira houvesse dependido exclusivamente da

mão-de-obra européia imigrante, os salários ter-se-iam estabelecido a níveis mais

altos, à semelhança do que ocorreu na Austrália e mesmo na Argentina. A mão-

de-obra de recrutamento interno exerceu uma pressão permanente sobre o nível

médio dos salários.” (Furtado, 1959, pg.181)

A dimensão e importância desse contingente de população livre, suas formas de

sobrevivência e quanto dele continuou crescendo fora do mercado, em economia de

subsistência mesmo depois da substituição do escravo pelo assalariado, são questões

importantes para entender as lutas pela posse/propriedade da terra que, já no século

XX, passaram a fazer parte do processo de unificação de todo o território como um

espaço econômico. Foi apenas neste século que a “fronteira agrícola” avançou até os

limites administrativos do país e que os diversos mercados “regionais”, até então

isolados, foram unificados.27 Parte essencial deste processo de avanço de “fronteira

agrícola” foi a distribuição de títulos de propriedade sobre as terras devolutas para

empresas agrícolas e industriais e a consequente expulsão dos posseiros que, sem

condições de obter títulos, haviam antes ocupado essas terras.

4.3 Aglomerações urbanas

O sistema de distribuição de sesmarias como meio de produção era complementado

pela distribuição de terras necessárias ao assentamento da população não diretamente

empregada nos engenhos e na monocultura. Uma rede de núcleos urbanos foi sendo

construída, num processo lento e aparentemente desarticulado28.

A fundação de um povoado se fazia, na grande maioria das vezes, pela doação de

uma área (patrimônio) à capela ou igreja em torno da qual se assentariam os 27 Para um quadro abrangente do processo de formação do espaço brasileiro, no sentido da integração do território num mercado unificado, ver Mori (1988). 28 Para o processo de formação da rede urbana no Brasil, ver Reis Filho (1968).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 88

habitantes ou, não raro, diretamente ao santo padroeiro. Essas doações eram em geral

recortadas dentro de uma ou mais sesmarias, mediante prévio acordo com os

respectivos senhores que assim consolidavam seu poder político estendendo sua

influência sobre os núcleos urbanos. A área doada constituia o patrimônio da igreja,

para a construção dessa e sua futura ampliação, mas também o patrimônio da

comunidade reservando-se o espaço em torno da igreja para as reuniões públicas e

para o assentamento dos moradores. Esse último se fazia em terrenos cedidos

mediante prestação de serviços ou pagamento de foros. Da mesma forma eram

cedidos terrenos para pequenas plantações ou atividades comerciais.

Vale como exemplo a doação de terras dentro da sesmaria de Joaquem Morato do

Canto para a povoação de Ararapira, no sul do estado de São Paulo:

“Attendendo ás ordens de S.Exa. assentarão a Camara e maior parte dos

moradores que havião de povoar a dita povoação, qual fosse em Ararapira, no

sitio que possue Joaquim Morato do Canto, e achando-se elle prezente, disse que

de muito boa vontade offerecia para a nova povoação duzentas braças de terra

que se conta da barranceira da barra do Rio Indaiahi, correndo para a parte do sul

até uma arvore chamada ‘figueira’ que está no norte do sitio do dito Joaquim

Morato do Canto, e a quadro do mar, correndo pela dita arvore – Figueira, -- até

o Rio Indaiahi, cujas terras dá para a dita povoação sem alguma pensão, ou fôro,

livre conforme as possuia, sem por ellas querer preço algum por ser para o

serviço de S.Mage. Fidelissima que Deus Guarde em quem espera premio que o

mesmo Senhor for Servido.”29

Essa doação foi confirmada pela carta de Sesmaria, passada a 13 de maio de 1768,

registrada no Livro de Sesmaria, Patentes e Provisões:

“D.Luiz Antonio de Sousa, etc. Faço saber aos que esta minha carta de Sesmaria

virem q. attendendo a me representarem por sua petição os moradores de

Ararapira, ... q. elles Suplicantes querião dar principio a Sua Igreja e como não

29 Trecho do têrmo de doação de terras para a fundação do povoado de Ararapira, registrado no livro de Atas da Câmara de Cananéia de 1767. Transcrito num artigo de A.Paulino de Almeida, Sabaúna, Vila Nova da Lage e Ararapira, publicado na Revista do Arquivo Municipal, n.CXLVII, São Paulo, 1952.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 89

tinhão possibilidade pa.fazerem patrimonio a Igra.e sem isso se lhes não concedia

licença do Juizo Eclesiastico pa. se benzer a da. Igra.; me pedião lhes concedesse

em nome de Sua Mage. duzentas e dez braças de terra q. Joaqm. Morato e Sua mer.

Doarão a Sua Mage. pa. A nova Povoação, e hua casa q. se achava feita na mesma

Povoação q. os novos moradores fizerão pa. Recolher as ferramentas e mais

pertences de Sua Mage.; cuja terra e casa ficarião por patrimonio da Igreja

daquella nova Povoação, .... Hei por bem dar de Sesmaria

em nome de Sua Mage. como por esta o faço em virtude do poder q. Sua Mage.

me há concedido ..., aos moradores da Nova Povoação de Ararapira, duzentas e

dez braças de terra declaradas na escriptura de doação q. dellas fez a Sua Mage.

Joaquim Morato, as quaes se não poderão vender em tempo algum, por qualquer

razão que haja nem transpassar a outro sem expressa ordem do mesmo senhor e

só servirão para patrimonio da dita Igreja na forma acima declarada, e logo q. de

todo estiver formada a referida igra., e congregados os moradores de modo quqe

já tenhão de cincoenta vizinhos pa. cima, mandarão confirmar esta ma Carta por

Sua Mage. e antes de tomar das ditas terras posse, as farão medir e demarcar

judicialmte., ... , pa. q. assim se evitem duvidas pa. o futuro e não serão obrigados

os moradores desta Nova Povoação a pagar tributo algum ou pensão a Joaqm.

Morato, como dono que foi das referidas terras porqto. Sua Mage. quando as

concede de Sesmaria sempre lhe põe a clausula de q. havendo de se formar ali

algua Va. Se poderão fazer livremente, sem ser precizo intervir o dono a quem se

concedeu. Pelo que ordeno ...30

Já a fundação de vilas ou a passagem de um povoado a vila obedecia à organização

municipal portuguesa, de origem romana31, segundo o qual aos núcleos urbanos eram

atribuídas certas funções político-administrativas e judiciárias.

Ao donatário ou capitão-mor competia, sempre em nome do Rei, conceder terras para

as fundações desses núcleos e junto a eles nomear seus representantes.

30 Transcrito no mesmo artigo citado na nota anterior. 31 Os municípios romanos haviam sido uma das formas de administração das províncias conquistadas, correspondendo a cidades cuja autonomia de organização era reconhecida pelo Império, que se limitava a cobrar os impostos.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 90

“O poder municipal compunha-se da Alcaidaria e do Conselho. Em virtude do

que dispunham os forais, as alcaidarias esuas rendas foram atribuídas como

privilégio aos donatários. Surgiram, dêsse modo, os capitães das vilas, os quais,

subordinados ao capitão-mor, constituíram no seu conjunto o esquema de

contrôle e direção dos donatários.

Papel de muito maior importância foi desempenhado pelos Conselhos no Brasil.

Estes eram compostos por vereadores, cujo número variava conforme a

importância da povoação. Sua eleição se fazia de forma indireta, por meio de um

colégio eleitoral, de seis membros escolhidos entre os “homens-bons”, categoria

da qual estariam excluídos os oficiais mecânicos, judeus, degredados e

estrangeiros.” (Reis Filho, 1968)32

Ao se estabelecer uma vila (raramente uma cidade) delimitava-se o seu termo, a área

abrangida pelo novo município.

“A delimitação da área do novo município, de seu termo, constituía uma das

providências a serem tomadas e quiçá, tendo em vista os interesses diretos dos

habitantes e dos concessionários de terra em toda a região, a mais delicada.”

(Marx, Murillo, 1991, pg.67)

Além do termo, delimitava-se o rossio, na origem a área comum, servindo como

pasto de animais e área de coleta de lenha e que, em princípio, não poderia ser cedida.

No entanto o rossio passou a ser considerado também como área de expansão e essa

dupla função de área de uso comum e, ao mesmo tempo, área suscetível de ser

aforada para novos moradores foi origem de indefinições quanto a sua administração

e às competências para decidir sobre seu uso. O rossio era administrado pelo

Conselho33 e, com o tempo, passou-se a confundir bem comum com bem do Conselho

e este passou a dispor das áreas de rossio para cessão a vários títulos.

32 Obviamente os escravos também não estavam na categoria dos homens-bons. Mas também estavam fora dessa categoria de assalariados. 33 “...e de mais ... se dará ao Conselho hua sismaria de coatro legoas em quadro que fazem dezeseis legoas coadradas juntas ou divididas a qual Sismaria rendapara as despezas publicas e seja administrada pellos officiaes da Câmara que poderão aforala por partes aos moradores pondolhes o competente foro...”. Trecho da Carta Régia de D.João V, elevando à categoria de Vila o Lugar do Iço.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 91

“... rocio, logradouro público por excelência do qual advêm em princípio vias e

praças públicas e os terrenos concedidos ou hoje vistos como particulares,

também ele conhecendo contínuas dúvidas quanto a sua extensão, demarcação e,

especialmente, sua efetiva posse e utilização.” (Marx, Murillo, 1987, pg.158)

A Carta do Rossio de São Paulo foi outorgada em 28 de maio de 1598, pelo

Governador Martins Garcia sendo “de seis tiros de besta em quadra, que

posteriormente transformou-se em seis tiros de canhão, a começar do Pateo do

Colégio” (Coe [1983?], pg. 209). O rossio de São Paulo só foi demarcado no século

XVIII, por insistência dos moradores.

O sistema sesmarial de distribuição das terras para a produção colonial foi assim

complementado por práticas de assentamento nas aglomerações urbanas marcadas

pela delimitação bastante frouxa dos direitos, individuais e comuns, relativos à

ocupação do solo. Na origem dessas práticas encontrava-se a sobreposição de duas

estruturas administrativas: a nomeada pelo reio e em nome dele, formada pelos

capitães-mor, capitães das vilas e conselhos, e a eclesiástica que se manifestava na

fundação dos povoados, na gestão do patrimônio da igreja, na subdivisão em

freguezias e paróquias. Esta sobreposição, ao mesmo tempo em que permitiu o

assentamento de pessoas sem títulos de propriedade mesmo depois da instituição

formal destes, também impediu que as novas regras sobre ocupação do solo,

decorrentes da formalização da propriedade, fossem claramente definidas, persistindo

durante muito tempo (alguns remanescentes até hoje) “diretos” e relações que

conflitam com o próprio conceito de propriedade.

4.4 Impostos

(De cópia fornecida pelo Prof. Murillo Marx no curso de pós-graduação Apropriação da terra e trama urbana no Brasil, FAUUSP, 1994).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 92

Quanto à tributação, os impostos e taxas tinham, explicitamente, a finalidade de

retirar do Brasil o máximo de excedente para proveito da Metrópole, e a forma mais

eficiente para isto variava, conforme a época e o produto, entre sistemas de dízimos e

quintos sobre a produção34 e impostos ligados à comercialização e armazenamento.

Não havendo nenhuma preocupação com uma administração pública voltada para a

organização do espaço e da produção para consumo interno, também não havia

impostos significativos sobre a propriedade imobiliária ou sobre o uso da terra

produtiva.

No início do século XIX, já com o Brasil como sede do reino, começa a ser esboçada

uma estrutura tributária e são instituídos diversos impostos. São dízimos de produção,

direitos aduaneiros de importação e exportação, direitos sobre diversos artigos

produzidos e outros impostos e taxas, entre os quais aparecem alguns relativos a

imóveis:

- taxa sobre engenho de açúcar

- taxa sobre o rendimento anual de imóveis urbanos

- sisa, imposto sobre a venda de imóveis urbanos35.

Vários atos de D.João VI tratam de tributos que se relacionam com direitos de

propriedade36:

34 Mesmo esses eram variados, conforme as dificuldades de controle sobre a produção e as possibilidades de sonegação. Simonsen (1937, pg 276-277) se refere às diversas formas de tributação sobre o ouro nas regiões de mineração:

quintos, parte retirada do produto a ser exportado; exigia a instalação de casas de fundição

finta, montante fixo anual, por região mineradora

por batéia, imposto sobre a quantidade de batéias empregadas na mineração (batéias são as gamelas de madeira com que se recolhe a areia do fundo do rio e na qual se lava essa areia e se separa o outro)

de capitação (per capitã), imposto por escravo empregado na mineração. 35 Simonsen (1937, pg 413 e 414). Vale lembrar, no entanto, que em Portugal já existia a sisa como imposto sobre transmissão de direitos fundiários desde, pelo menos, o final do século XIV. (Faoro, 1925). 36 Simonsen (1937, pg 458) referindo-se a Max Fleiuss, História Administrativa do Brasil.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 93

21 de janeiro de 1809 – “Alvará concedendo aos habitantes do Brasil o privilégio

de não serem executados na propriedade de seus engenhos, fábrica ou lavoura, e

sim em uma parte dos rendimentos”.

3 de junho de 1809 – “Alvará impondo o tributo de décimos aos prédios urbanos

do Brasil”.

3 de junho de 1809 – “Alvará estabelecendo o direito de sisa no Brasil”.

26 de abril de 1811 – “Decreto isentando de décima por 10 anos aos que

edificarem casas na Cidade Nova do Rio de Janeiro”.

2 de outubro de 1811 – “Alvará declarando o de 3 de junho de 1809 para que a

sisa das compras dos bens de raiz do Brasil se pague a prazos, como se pagar a

preços”.

O imposto de décimos aos prédios urbanos é citado por Raquel Glezer37 como

Décima Urbana, instituído por Alvará em 27 de junho de 1808. c

Correspondia a um imposto de 10% sobre o rendimento líquido dos prédios urbanos.

O mesmo Alvará definiu como prédios urbanos os que estivessem nas demarcações

das Câmaras, o que exigia não só ter alguma clareza sobre essas demarcações como

também manter uma relação dos prédios sujeitos ao imposto.

Não está claro se essas demarcações das Câmaras deveriam corresponder aos termos

originais ou se as Câmaras teriam poderes para estabelecê-las. Pela documentação

levantada por Glezer e por outra semelhante citada num livro sobre “grilagem” de

terras em São Paulo38, esse novo “perímetro urbano” veio complicar um pouco mais

a já confusa sobreposição de datas, termos, sesmarias, rossio etc.

Às vésperas da Independência alguma forma de imposto sobre a propriedade

imobiliária já fazia parte das fontes normais de receita mas esse imposto era mínimo

em termos de valor. Segundo Simonsen39, a receita geral orçada para o Brasil em

1820 previa menos de 365:000$ de receitas diversas sobre um total de 9.971:000 $ (o

37 Glezer (1992). 38 Coe [1983?]. Ver nota 20. 39 Simonsen (1937, pg 424 e 425).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 94

que corresponde a 3,66%). Essas “receitas diversas” arrolam correio, papéis selados,

pesca de baleia, imposto territorial etc.

Os núcleos urbanos ainda se mantinham graças à administração, aforamento e venda

dos bens do Conselho (isto é, dos bens da comunidade).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 95

CAPÍTULO 5: A LEI DAS TERRAS

E O FIM DA PRODUÇÃO ESCRAVA

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 96

5 A LEI DAS TERRAS E O FIM DA PRODUÇÃO ESCRAVA

“Antes bons negros da costa da Africa para felicidade sua e nossa, ...

Antes bons negros da costa da Africa para cultivar os nossos campos

férteis do que ... empresas mal avisadas, muito além das legítimas forças

do país, as quais perturbando as relações da sociedade, produzindo uma

deslocação de trabalho, têm promovido mais que tudo a escassez e alto

preço de todos os víveres.”1

A história oficial brasileira nos apresenta a Declaração de Independência como um

ato pouco contestado, quase um acordo diplomático, resultado não de uma revolução

ou tomada de poder pela força mas de uma simples divisão familiar de tarefas: D.João

voltou para Portugal e D.Pedro ficou tomando conta do Brasil. De fato, a

permanência de D.Pedro, mesmo contra as ordens de Lisboa, seguida da Declaração

de Independência, abriu um longo período de lutas em que se misturaram confrontos

entre portugueses e brasileiros e entre republicanos e monarquistas, intrigas

palacianas para manter privilégios (mesmo à custa da independência) e revoltas

populares por uma reestruturação da ordem social. Tudo sob a pressão dos

comerciantes e conselheiros ingleses.

Para a elite colonial, cujos interesses giravam em torno da exportação de produtos

primários, tratava-se de assegurar a continuidade da reprodução social nas novas

condições de nação independente. Para tanto o desafio imediato a partir de 1822 foi

montar uma administração capaz de fazer funcionar de maneira autônoma uma

sociedade rigidamente estruturada por vínculos de sujeição, externos e internos,

1 Do relatório da comissão de inquérito sobre a situação financeira do país, nomeada pelo ministro Ângelo Ferraz em 1859. Relatório transcrito por Caio Prado Júnior (1957a, pg. 87/88).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 97

consolidados por três séculos de exploração colonial. O aparelho de Estado esboçado

no período de D.João VI tivera como objetivo justamente a manutenção da estrutura

de subordinação.

Apesar das turbulências e oscilações quanto ao predomínio dos diversos grupos de

poder, principalmente durante o primeiro Império e a Regência, não chegou a haver

uma ruptura institucional e acabaram prevalecendo (já então!) situações de

compromisso que, afinal, apenas consolidavam a hegemonia dos senhores de terras e

a manutenção do status quo. Werneck Sodré assim descreve o compromisso da

Independência:

“o Brasil seria país autônomo, estruturando a sua autonomia sob o domínio da

classe senhorial, os proprietários de terras e de escravos; permaneceria intocada a

estrutura de produção, pois; o Brasil seria governado por um príncipe, a que se

dera o título de Imperador, ligado a Portugal por ser filho de Portugal, o que era

aspecto meramente formal, mas também por ser filho do rei de Portugal e

herdeiro do trono português, o que tinha significação muito mais séria e colocaria

em posição de desconfiança, no país recém autônomo, o seu próprio governante.”

(Sodré, 1986, pg.172)

As lutas de emancipação se estenderam até o 2° período da Regência, quando ficou

definido que a estrutura da nova sociedade brasileira permaneceria a mesma da

colônia, mudando para tanto as condições de sua reprodução: a elite ligada ao

latifúndio continuava como classe dominante, substituindo-se as regras de exploração

ditadas pela Corte portuguesa pela “remuneração do capital estrangeiro”, “pagamento

da dívida externa” ou “dependência do comércio exterior” como fatores de

expatriação de excedente. Havia uma diferença, no entanto: a necessidade, nova, de

escamotear o fato do interesse da elite (brasileira) estar vinculado com interesses

externos ou a necessidade de fazer passar os interesses de particular, o tratamento

dado à propriedade da terra e à sua tributação refletem essa necessidade. Até hoje é

característica dessa organização o fato de boa parte da legislação relativa ao controle

fundiário ser inaplicável ou apenas parcialmente aplicável, apesar de ser formalmente

calcada em moldes capitalistas.

Page 98: A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil

Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 98

5.1 A primeira Constituição do Brasil

O Império se iniciou com características conservadoras e os primeiros confrontos

ocorreram logo na elaboração da constituição, culminando com a dissolução da

Assembléia de representantes e a nomeação de outra, disposta a produzir um texto

mais a gosto da corte.

A Constituição Política do Império do Brasil, jurada a 25 de março de 1824 e que

vigiu durante todo o Império, trata com certa ênfase dos direitos individuais mas

omite qualquer referência à organização territorial, diz muito pouco sobre finanças

públicas em geral, menciona os impostos apenas “em passant” e deixa totalmente

indefinida a base de lançamento e arrecadação. É possível que essa base fosse a

mesma que já vinha do tempo da Colonia e que havia sido consolidada por diversos

atos de D.João VI e, não havendo contestação que pusesse em risco o sistema, não

houve necessidade de levantar a questão. Simplesmente “deixa como está” já que

havia problemas mais prementes a serem resolvidos (como o papel da Assembléia e

suas relações com o Imperador) para garantir a manutenção do poder e das relações

de produção na nova situação institucional.

Sendo uma constituição calcada em moldes burgueses, foi afirmado o direito de

propriedade, junto com a única menção à distribuição da carga tributária, no Título

8°, Das Disposições Gerais, e Garantias dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos

Brazileiros:

Art.179 – A inviolabilidade dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos

Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade,

é garantida pela Constituição do Império pela maneira seguinte

I Nenhum Cidadão póde ser obrigado a fazer, ou deixar de fazer alguma

cousa, senão em virtude da Lei.

...

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 99

XV Ninguém será exemplo de contribuir para as despezas do Estado em

proporção dos seus haveres.

...

XXII É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o

bem publico legalmente verificado exigir o uso, e emprego da

Propriedade do Cidadão, será elle préviamente indemnisado do valor

della. A Lei marcará os casos, em que terá logar essa única excepção, e

dará as regras para se determinar a indemnisação.

Não há nenhuma referência ao próprio conceito de propriedade (com o que parece

não haver dúvidas quanto à sua definição) ou ao significado da plenitude com que o

direito de propriedade é garantido2. Também não há menção alguma sobre imposto

imobiliário ou sobre fontes próprias de recursos das administrações municipais.

Essa última questão foi tratada alguns anos mais tarde por lei de 1° de outubro de

1828, que “dá nova fórma às Camaras Municipaes, marca suas atribuições, e o

processo para sua eleição, e dos Juízes de Paz”. Essa lei tem um título inteiro sobre

despesas e cita como fontes de receita as multas por desobediência às posturas

(Art.72) e as rendas provenientes da venda, aforamento, arrendamento ou

administração dos bens do Conselho (isto é, do patrimônio municipal). Essas rendas

não são mencionadas diretamente mas apenas pelas regras que a elas se aplicam:

Art.42 – Não poderão [os Vereadores] vender, aforar, ou trocar bens immoveis do

Conselho sem autoridade do Presidente da Província em Conselho, emquanto se

não installarem os Conselhos Geraes, e na Côrte sem a do Ministro do Imperio,

exprimido os motivos, e vantagem da alienação, aforamento ou troca, com a

descripção topographica, e avaliação por peritos dos bens que se pretendem alienar,

aforar, ou trocar.

2 Um século e meio mais tarde esta questão continua em aberto: a Constituição de 1988 se omite completamente sobre o conceito de propriedade da terra e o substitui por uma menção vaga à sua “função social”. São frequentes as discussões jurídicas sobre definições de propriedade e função social e, principalmente, sobre as limitações ao direito de uso e ocupação fundiária. “O conceito de função social da propriedade é ainda muito mal definido na doutrina, não raro é obscurecido confusão com os sistemas de limites e restrições da propriedade.” (Silva, J.A., 1981, pg.93/94).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 100

Art.43 – Obtida a faculdade, as vendas se farão sempre em leilão publico, e a quem

mais der, excluidos os Officiaes que servirem então nas Camaras, e aquelles que

tiverem feito a proposta, e exigindo-se fianças ideoneas, quando se fizerem a

pagamentos, por se não poderem realizar logo a dinheiro, pena de responsabilidade

pelo prejuizo d’ahi resultante.

Art.44 – Da mesma fórma, e com as mesma cautelas, e responsabilidade prescriptas

no Artigo antecente, se farão os arrendamentos dos bens dos Conselhos; mas estes

contractos poderão as Camaras celebrar por deliberação sua, e serão confirmados

pelos Presidentes das Provincias em Conselho, e na Côrte pelo Ministro do

Imperio.

Art.45 –Quando acharem não ser a prol dos Conselhos, que se alienem, ou arredem

os bens, mandal-os-hão aproveitar, pondo neles bons administradores, para que

venham a melhor arrecadação, ficando os ditos Vereadores responsaveis pela falta

de execção.

Continuava portanto o sistema colonial em que os recursos da administração local

provinham do patrimônio imobiliário concedido ao núcleo urbano quando do seu

reconhecimento oficial e administrado pelo Conselho. As cidades e vilas continuaram

sustentando seus gastos graças a esse patrimônio imobiliário que foi sendo parcelado

e cedido a diversos títulos ao longo dos anos.

O Acto Addicional de 12 de agosto de 1834 (lei n° 16) que alterou a Constituição de

1824 foi outro resultado de compromisso, de mútuas concessões entre as partes que

disputavam o poder durante o período da Regência. Esse mesmo ato, acertando uma

trégua e portanto o reforço das posições conservadoras, marcou o início de um

período de “regresso”3 em que o Estado foi definitivamente caracterizado como

instrumento da classe de proprietários de terras e de escravos, com a exclusão de

qualquer caráter burguês.

“As reivindicações populares mais sentidas ficaram fora do texto da reforma, que

se esmerou em medidas meramente políticas ou administrativas, limitando

consideravelmente os seus efeitos.” (Sodré, 1986, pg.172) 3 Neste movimento de “regresso” se insere a Declaração da Maioridade em 1840.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 101

As reivindicações “populares” citadas por Werneck Sodré eram de fato

reivindicações burguesas por uma atuação mais decidida do Estadod em favor da

formação de um mercado de trabalho e da proteção à indústria nascente.

Como parte das “medidas meramente políticas ou administrativas” o Acto Addicional

estabeleceu as competências das Assembléias Legislativas Provinciais, e normas

sobre arrecadação e gastos públicos acenando, pela primeira vez, com a necessidade

de impostos para as “despezas municipaes e provinciaes”.

Art.10 – Compete ás mesmas Assembléas legislar:

§5° Sobre a fixação das despezas municipaes e provinciaes, e os impostos para

ellas necessarios, com tanto que estes não prejudiquem as imposições geraes do

Estado. As Camaras poderão propôr os meios de occorrer ás despezas dos seus

municipios.

§6° Sobre repartição da contribuição directa pelos municipios da Provincia, e

sobre a fiscalisação do emprego das rendas publicas provinciaes e municipaes, e

das contas da sua receita e despeza.

As despezas provinciaes serão fixadas sobre orçamento do Presidente da

Provincia, e as municipaes sobre orçamento das respectivas Camaras.

Apesar do avanço quanto ao conhecimento da necessidade de impostos, esses ainda

são citados sem especificação e não parece ter sido estabelecido qualquer tipo de

tributo sobre o domínio fundiário. O que transparece é a necessidade de buscar fontes

de receita alternativas pois nestas alturas o patrimônio imobiliário dos núcleos

urbanos já devia ter sido bem dilapidado e, por outro lado, o sistema de foros,

laudêmios e enfiteuse tornava-se inviável nas novas condições de produção e de

urbanização. Os imóveis já eram normalmente objeto de transações comerciais e de

hipotecas, o que exigiu diversos atos de regulamentação na década de ’40:

20 de outubro 1843 – Lei 317 sobre o registro de garantia hipotecária.

14 de novembro 1846 – Decreto 482 sobre a transmissão de imóveis e as

garantias hipotecárias.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 102

1850 – Regulamento 737 sobre terras devolutas.

E finalmente a Lei 601/50, Lei das Terras Devolutas, instituiu as novas regras de

aquisição de domínio sobre as terras.

5.2 A Lei das Terras Devolutas.

A Lei 601 de 18 de setembro de 1850 é um marco na história da propriedade

fundiária no Brasil. Dada pelo Imperador D. Pedro II essa lei

“Dispõe sobre as terras devolutas no Imperio, e acerca das que são possuidas por

titulo de sesmaria sem preenchimento das condições legais, bem como por

simples titulo de posse mansa e pacifica; e determina que, medidas e demarcadas

as primeiras, sejam ellas cedidas a titulo oneroso, assim para emprezas

particulares, como para o estabelecimento de colonias de nacionaes e de

extrangeiros, autorizado o Governo a promover a colonização extrangeira na

forma que se declara.”4

Com ela se encerra, formalmente, o período da conquista, os três séculos e meio em

que as terras foram sendo ocupadas, doadas e cedidas pelos mais diversos títulos e

formas.

Em 1822, por ato de D.Pedro ainda Príncipe Regente (Resolução de 17 de julho),

havia sido abolido o regime de sesmarias. Entre 1822 e 1850, coincidindo portanto

com o processo de consolidação da estrutura social da nova nação, a posse foi o único

método legítimo de aquisição de domínio sobre terras devolutas. A intenção a este

respeito está clara na provisão de 14 de março de 1822 (portanto antes da Resolução

que aboliu as sesmarias) que diz:

4 Na íntegra, em anexo.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 103

“Hei por bem ordenar-vos procedais nas respectivas mediações de demarcações,

sem prejudicar quaesquer possuidores, que tenhão effectivas culturas no terreno,

porquanto devem elles ser conservados nas suas posses, bastando para título as

reaes ordens, porque as mesmas posses prevaleção ás sesmarias posteriormente

cencedidas.” (Transcrito de Lima, 1954, pg.48)

Considerando a organização social baseada no trabalho escravo e na subserviência e o

baixo nível de consumo da esparsa população livre, essa institucionalização da

simples ocupação, esse gesto magnânimo dizendo “a terra está aí, quem quizer que

dela se aproprie”, obviamente não tinha o sentido de estruturar uma produção em

pequenas propriedades mas, ao contrário, o de permitir tanto a reserva privada de

grandes áreas, sem as complicações burocráticas das cessões de sesmarias, quanto a

invasão das que porventura estivessem ocupadas indevidamente (isto é, perturbando a

expansão das culturas dominantes). Foi o que aconteceu.

“... a posse de fato ... só fez aguçar o problema da excessiva concentração da

terra na mão de muito poucos, embora representasse vistas grossas a

generalizadas invasões.” (Marx, Murillo, pg.103)5

Ao fim dessas três décadas de transição a Lei 601 regulamentou as condições de

posse e a partir de então passou-se a reconhecer a propriedade, mediante título, como

forma corrente de domínio sobre a terra. Isto é colocado logo no início claramente,

apesar da exceção que aparece em seguida.

Art.1° Ficam prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro título que

não seja o de compra.

Exceptuam-se as terras situadas nos limites do Imperio com paizes estrangeiros

em uma zona de 10 leguas, as quaes poderão ser concedidas gratuitamente.

As novas regras faziam-se necessárias face à iminente abolição da escravatura cujo

processo foi iniciado no mesmo ano de 1850 com a efetiva proibição do tráfego de 5 Parece deslocada a ressalva. Não diria embora “representasse vistas grossas a invasões” pois o que a Resolução de 17 de julho de 1822 fez foi justamente permitir invasões pela oficialização do processo de posse, antes reservado apenas à subsistência dos trabalhadores sem condição de invadir o que quer que fosse. De fato eram parte do próprio processo de concentração justamente apontado por Murillo Marx.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 104

escravos. De fato, se a autorização da posse beneficiaria principalmente os senhores

de escravos porque eram os únicos a poder ocupar e defender vastas áreas de terra,

com a abolição de escravos essa defesa já não seria viável sem o apoio do Estado,

através do aparato jurídico (reconhecimento de título) e policial (garantia desse

reconhecimento). Se a população de escravos e agregados era suficientemente

submissa para não se constituir em ameaça para a estrutura fundiária, a perspectiva de

imigração em larga escala de trabalhadores livres representava o perigo, claramente

exposto por Wakefield em seu trabalho sobre “colonização sistemática”6, desses

imigrantes preferirem ocupar e cultivar a própria terra em vez de se empregar nas

grandes fazendas.

“Lá onde a terra custa quase nada e os homens são livres, cada um podendo obter

à vontade um pedaço de terra para si, não somente o trabalho é muito caro em

relação à parte do trabalhador na produção, mas é difícil obter trabalho

combinado, por qualquer preço.” [Wakefield, 1833, pg.247]7

Um discípulo de Wakefield aponta para a solução:

“Nos velhos países civilizados o trabalhador, apesar de livre, é dependente do

capitalista por uma lei natural [!]; nas colônias essa dependência deve ser criada

por meios artificiais.” (Citado por Marx, 1867, 1° Livro, pg.563)

Tendo constatado que não há capitalistas se não houver assalariados, Wakefield

apresentou um plano de “colonização sistemática” visando resolver o problema da

falta de assalariados nas colônias: o governo deveria vender as terras públicas (isto é,

ainda não apropriadas) a um preço suficientemente alto para que os novos imigrantes

fossem obrigados a trabalhar durante vários anos como assalariados antes de poder

adquirir a própria terra.

“O governo deve pois vender a terra virgem a um preço artificial, oficialmente

fixado por ele, sem nenhuma relação com a lei da oferta e da demanda. O

imigrante será assim obrigado a trabalhar um bom tempo como assalariado antes

6 Wakefield (1833). 7 Citado por Marx (1867, 1° Livro, pg.561).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 105

que ele consiga ganhar dinheiro suficiente para comprar uma terra e tornar-se

cultivador independente.” (Marx, 1867, 1° Livro, pg.564)

Wakefield visava principalmente a Austrália. Apesar de não ter dado bons resultados

nas colônias inglesas onde foi aplicada, pois os fluxos migratórios simplesmente

continuaram desviando para os E.U.A.8, essa “colonização sistemática” orientou a

instituição da Lei das Terras Devolutas no Brasil, em 1850.

Ao mudar as regras do jogo a Lei 601 consolidou o status quo, de extrema

concentração da terra em latifúndios, regulamentando o reconhecimento das

propriedades oriundas, seja de sesmarias e outras concessões, seja de posse. Os

posseiros passaram a ser obrigados (mediante pagamento) a tirar títulos de

propriedade para ter sua posse reconhecida, o que exigia um nível de conhecimento e

de articulação social geralmente muito acima das possibilidades dos caboclos,

plantadores der roças. Sem título, esses continuaram à mercê dos avanços dos

latifúndios e, a partir do fim do século, das empresas agrícolas e colonizadoras.

Para passar os títulos o Governo designou repartições provinciais.

Art.11 Os posseiros serão obrigados a tirar titulos dos terrenos que lhes ficarem

pertencendo por effeito desta Lei, e sem elles não poderão Hypothecar os

mesmos terrenos, nem alienal-os por qualquer modo.

Esses titulos serão passados pelas Repartições provinciaes que o Governo

designar, pagando-se 5$ de direitos de Chancellaria pelo terreno que não exceder

de um quadrado de 500 braças por lado, e outrotanto por cada igual quadrado que

de mais contiver a posse; e além disso 4$ de feitio, sem mais emolumentos ou

selho.

8 Nos E.U.A. o Homestead Act, em 1862, foi um incentivo à ocupação e ao povoamento. Defendida como a solução para os crescentes problemas de desemprego e de congestionamentos nas grandes cidades, essa lei previa a distribuição das terras públicas a todos os que quisessem se tornar produtores independentes. Na prática não resolveu nenhum dos problemas sociais apontados mas foi parte da estratégia da “marcha para o Oeste”, atingindo a meta de uma rápida expansão do espaço econômico e reforçando o ideário sobre propriedade e liberdade individual. Para uma comparação entre Homestead Act e a Lei das Terras Devolutas, ver Costa (1987).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 106

Essas declarações de posse e a emissão dos correspondentes títulos, poderiam ter sido

a base de um cadastro de terras privadas e um esboço de registro de imóveis.

Art.13 O mesmo Governo fará organizar por freguezias o registro das terras

possuidas, sobre declarações feitas pelos respectivos possuidores, impondo

multas e penas àquelles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas

declarações, ou as fizerem inexactas.

As terras devolutas deveriam ser medidas e receber destinação: uma parte reservada

para os indígenas, para povoações, estradas ou estabelecimentos públicos, e para a

construção naval (reserva de madeira), e o restante a ser vendido em lotes de 500

braças de lado9, ao preço de meio real a dois réis por braça quadra. Os recursos assim

obtidos deveriam ser aplicados na medição de terras e na “importação” de colonos.

Art.19 O producto dos direitos de Chancellaria e da venda das terras, de que

tratam os arts. 11 e 14 será exclusivamente applicado: 1°, à ulterior medição das

terras devolutas e 2°, à importação de colonos livres, conforme o artigo

precedente.

Por pressão dos grandes proprietários foi retirada da lei qualquer menção a impostos

sobre a terra, previstos na versão original.10

Ao proibir “as aquisições de terras devolutas por outro título que não seja o de

compra” a Lei 601 fez mais do que alterar procedimentos burocráticos. Com um

único ato todas as terras do Brasil foram transformadas de áreas formalmente

comuns, passíveis de serem apossadas e concedidas para produção ou assentamento,

em propriedade. Impôs-se de imediato a necessidade de distinguir entre a

“propriedade pública” e a “propriedade privada”, especialmente nos núcleos urbanos,

como bem descreve Murillo Marx11. De fato se antes de 1850 a terra era domínio da

Corôa (brasileira que a herdara da portuguesa) e poderia ser apenas cedida para uso,

os limites entre o que havia sido cedido e o que continuava de uso comum podiam ser

9 Uma braça corresponde a 2,2 m. 10 Glezer (1992). 11 Marx, Murillo (1991).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 107

tênues e eram mutáveis conforme as novas necessidades. Nas aglomerações urbanas,

por exemplo, as áreas do rossio podiam ser ocupadas pelos novos moradores ou pela

expansão de alguma atividade, sendo do interesse comum o adensamento da

população, a construção de novos edifícios ou o cultivo de áreas para abastecimento.

Não era necessária (nem possível) a distinção entre passagem, local de encontros ou

área para guardar a carroça ou amarrar o cavalo e, não havendo propriedade mas

apenas direito de uso (mesmo permanente e hereditário) não havia como dar à terra

outro uso que não aquele para o qual havia sido cedida. Ao impor a obrigatoriedade

da compra/venda das terras devolutas e os títulos de propriedade a todas as terras do

país, o governo se colocou na mesma posição de qualquer proprietário, sujeito às

mesmas regras de definição de limites, de aquisição e transmissão etc. A terra passou

a ser negociável diretamente, enquanto pedaço definido de chão e não mais enquanto

direito de uso, exigindo nos núcleos urbanos a demarcação de “alinhamentos” e

“lotes” e eliminando as “brechas”, as áreas de uso mal definido passíveis de serem

ocupadas por mais um morador ou servir de pasto para mais um cavalo. As parcelas

de chão passaram a ser negociáveis (e portanto devem ser definidas) antes e

independente da decisão quanto ao seu uso, donde a regularidade monótona dos

“loteamentos” urbanos que começaram a surgir no fim do século XIX e continuam

sendo a principal forma de expansão das cidades brasileiras.

A Lei 601/1850 foi regulamentada pelo Decreto 1318 (30//1/1854) que montou a

estrutura operacional para o seu cumprimento. Criou uma Repartição Geral das

Terras Públicas, subordinada ao ministro dos Negócios do Império, com amplas

atribuições que iam desde a formulação de políticas de distribuição e reserva de terras

até o estabelecimento de normas de mediação e a fiscalização das cessões e registros.

Também foram criadas repartições nas províncias, encarregadas de supervisionar as

medições e registros das terras. Por sua vez as Províncias seriam divididas em

distritos de medição para o trabalho de “escreventes, desenhadores e agrimensores”,

subordinados a um inspetor.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 108

O mesmo decreto também pôs formalmente fim ao período de lutas de conquista com

as populações indígenas que passaram a ser tuteladas pelo Estado e confinadas em

reservas.

Art.72 Serão reservadas terras devolutas para colonização e aldeamento de

indígenas nos distritos onde existirem hordas selvagens.

Art.75 As terras reservadas para colonização de indígenas, e por elas distribuídas,

são destinadas ao seu usufruto; e não poderão ser alienadas enquanto o Governo

Imperial por ato especial não lhes conceder o pleno gozo delas, por assim

permitir o seu estado de civilização.

Apesar das novas regras de titulação, o Decreto 1318 conservou a prática do

aforamento nos casos de fundação de povoações, ainda reconhecendo a área de

domínio das Câmaras, o direito à concessão dessas áreas e a terra de uso comum.

Art.77 As terras reservadas para fundação das povoações serão divididas,

conforme o governo julgar conveniente, em lotes urbanos e rurais ...

Depois de reservados os lotes que forem necessários para aquartelamentos,

fortificações, cemitérios (fóra do recinto das povoações) e quaisquer outros

estabelecimentos e servidões públicas, será o restante distribuído pelos

povoadores, a título de aforamento perpétuo, devendo o foro ser fixado sob

proposta do diretor geral das terras públicas, e sendo sempre o laudemio em caso

de venda a quarentena.

Apesar de perdurarem os foros e as relações de enfiteuse essas passaram a ser

exceções, cada vez mais dominadas pela forma de título de propriedade, negociável

como qualquer bem material. E cresceram cada vez mais os movimentos para

transformação dos direitos forais e enfitêuticos em títulos de propriedade.

Mais que a Lei 601, o Decreto 1318 reflete a necessidade de se estabelecer alguma

ordem na questão dos direitos de posse e propriedade das terras. Pela primeira vez se

fala em mapeamento:

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 109

Art.14 O inspetor é responsável pela exatidão das medições; o trabalho dos

agrimensores lhe será portanto submetido; e sendo por ele aprovado, procederá à

formação dos mapas de cada um dos territórios medidos.

Art.15 Destes mapas fará extrair três cópias: uma para a Repartição Geral das

Terras Públicas, outra para o delegado da província respectiva, e outra que deve

permanecer em seu poder, formando afinal um mapa geral de seu distrito.

Art. 16 Estes mapas serão acompanhados de memoriaes, contendo as notas

descritivas do terreno medido, e todas as outras indicações que deveram ser feitas

em conformidade do Regulamento especial das medições.

Também é ressaltada a obrigatoriedade do registro das terras possuidas, sendo os

Vigários das freguezias encarregados de receber as declarações.

Art.97 Os Vigários de cada uma das freguezias do Império são os encarregados

de receber as declarações para o registro das terras, e os incumbidos de proceder

a esse registro dentro de suas freguezias, ...

Art.98 Os Vigários ... instruirão a seus freguezes da obrigação em que estão de

fazerem registrar as terras que possuírem, declarando-lhes o prazo em que devem

fazer, as penas em que incorrem, e dando-lhes todas as explicações que julgarem

necessárias para o bom cumprimento da referida obrigação.

Art.99 Estas obrigações serão dadas nas missas conventuais, e publicadas por

todos os meios que parecem necessários para o conhecimento dos respectivos

freguezes.

Apesar dos objetivos de controle sobre a propriedade territorial por parte do Estado

expressos na legislação, é fácil imaginar as arbitrariedades e as imposições em defesa

dos interesses privados (grandes e pequenos) considerando a inexistência de uma

estrutura autônoma de controle, a precariedade das condições de medição (gente,

equipamento, transporte) e a enormidade das terras a medir. Ao nível institucional

essas arbitrariedades seriam facilitadas pela própria disparidade dos títulos a serem

reconhecidos ou não, impondo a necessidade de exame “caso a caso” e a

interpretação de uma legislação que se tornava confusa à medida em que tentava

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 110

resolver todos os casos. Considerem-se, por exemplo, os artigos 3°, 4°, 5° e 6° da Lei

601 (Anexo 1), que tentam definir os critérios de reconhecimento ou não de título de

propriedade privada e acrescentem-se os 36 do Capítulo III do Decreto 1318 (Anexo

2) que trata da “revalidação e legitimação das terras e modo prático de extremar o

domínio público e particular.”

A maneira como o Estado brasileiro dispôs do patrimônio nacional representado pelas

terras devolutas é um perfeito exemplo de alteração de regras formais, necessárias

para a manutenção do status quo. Se, por um lado, a Lei 601 institui uma forma de

titulação das terras mais adequada às necessidades das novas relações de produção,

por outro a falta de clareza da legislação subsequente (decretos, portarias, resoluções

etc.), a precariedade das condições de registro e a absoluta inexistência de referências

cadastrais e cartográficas confiáveis fizeram da aplicação da lei uma sucessão de

batalhas jurídicas e facilitaram todo tipo de negócios e violências com relação a

terras.

Grandes fortunas foram conseguidas no fim do século passado e começo deste com a

ocupação de terras indígenas12 e os “programas de colonização” (em geral simples

doação de grandes glebas, financiamento a fundo perdido ou endividamento público

sobre empreendimentos privados) promovidos pelo governo. Esse assunto é vasto e a

documentação deve ser procurada, pacientemente, nos poucos registros paroquiais e

nas atas das Câmaras e Assembléias. Duas obras já citadas, os trabalhos de Raquel

Glezer (1992) e Paulo Coe [1983?], dão um vislumbre do caos de demarcações,

atribuições e direitos sobrepostos, condições ideais para especulações e apropriações

ilícitas.

5.3 Escravos e trabalhadores livres

12 As terras do aldeamento de S.Miguel, município de São Paulo, ainda hoje são objeto de pendências judiciais.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 111

O processo de abolição arrastou-se, sob a crescente pressão da Inglaterra, durante

quase todo o século XIX, instituído por etapas para, supostamente, permitir a

substituição paulatina do escravo pelo trabalhador livre. De fato esse processo por

etapas, retardando e dificultando a formação de força de trabalho assalariada, apenas

evidenciou mais uma vez que os interesses da elite dominante estavam muito

distantes dos interesses que seriam os de uma burguesia nacional.

Não era a competição pelos menores custos de produção que justificava o apego ao

regime escravagista, uma vez que a produtividade do escravo é menor que a do

assalariado na produção de mercadorias13, mas sim a preocupação da classe

dominante em evitar uma reorganização social inteiramente baseada nos interesses da

acumulação capitalista, o que implicaria na perda de seus privilégios.

Como parte da estrutura social ligada aos engenhos e fazendas de gado havia se

formado uma classe de trabalhadores livres (isto é, não escravos), vivendo de

produção de subsistência e de serviços prestados aos senhores. Essa população

ocupou os interstícios e as áreas mal definidas entre as grandes propriedades, se

embrenhou nos matos, multiplicando roças além das fronteiras ocupadas pelos

engenhos e fazendas, ou se instalou em terras das sesmarias, em acordos de parceria

ou de serviços com os senhores, sempre sujeitos a expulsão sem aviso prévio.

As tentativas esparsas de povoamento por pequenos proprietários nunca prosperaram.

Antes da Lei das Terras grupos de trabalhadores provenientes de Minas Gerais se

apossaram de terras não florestadas no oeste do que é hoje o estado de São Paulo,

ocupando-as com criação de gado. Esses primeiros povoamentos foram engulidos

pelo avanço das grandes fazendas.

“... sem dinheiro, sem apoio político, pouco numerosos, os mineiros foram

incapazes de resistir aos fazendeiros de café, que seguiram suas pistas e 13 Mesmo Caio Prado Júnior, que em diversas ocasiões defende a permanência da mão de obra escrava como uma imposição econômica, afirma que “de um modo geral” e de um ponto de vista estritamente financeiro e contabilístico, o trabalho escravo, sendo as outras circunstâncias iguais, é mais oneroso que o assalariado.” (Prado Júnior, 1959, pg.180)

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 112

começaram a derrubar a floresta. Esta segunda onde pioneira ... não teve

dificuldade em obter títulos de propriedade sobre imensos territórios, antes

reconhecidos como pertencentes aos criadores de Minas.” (Monbeig, 1951,

pg.109)

O mesmo Monbeig (1952, pg.211 ss) fala de propriedade enormes, com 30.000

alqueires de média, cobrindo todo o Estado de São Paulo.

“No Estado de São Paulo todas as terras são de propriedade particular, tanto as de

florestas como as de campos. Isso se deve à legislação fundiária, ao povoamento

da fase inicial e à perseverança dos grileiros.” (Monbeig, 1952, pg.211)

Por volta de 1850 a população escrava era de cerca de 2.500.000 e a livre de

5.500.000 pessoas14 dentre as quais um contingente significativo de assalariados.

Face à concorrência dessa mão de obra assalariada a produção escrava tornava-se

cada vez mais insustentável, o que acabou levando à efetiva proibição do tráfego em

1850 e à abolição da escravidão em 1888, apesar dos fortes interesses ainda ligados à

sua manutenção.

Tais interesses haviam sido impostos à sociedade pelo viés da falta de mão de obra.

Com a expansão da cultura do café e a implantação da infraestrutura que a

acompanhava, crescera a demanda por trabalhadores, justificando a manutenção do

tráfego de escravos, única maneira então aceita de abastecer o mercado a curto

prazo15. Assim, apesar da baixa produtividade e dos inconveniêntes do trabalho

escravo face ao assalariado, o tráfego só parou por medidas efetivas de força,

principalmente por parte da Inglaterra. Mas nas discussões entre os diversos grupos

de interesse em torno da questão da abolição da escravidão, além do problema básico

da mão de obra para a economia em expansão, estava presente a preocupação com

14 Prado Júnior (1959, pg.346). 15 Na década que antecedeu 1850 (quando o tráfego já havia sido formalmente proibido e a abolição já era previsível) as importações de escravos se intensificaram, sendo da ordem de 50.000 por ano. Esse número caiu para 23.000 já em 1850 e para 3.000 em 1851, cessando definitivamente no ano seguinte. O comércio de escravos era sem dúvida um negócio altamente lucrativo e chegou a representar a metade do total das importações. (Prado Júnior, 1959, pg. 155).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 113

uma eventual alteração da estrutura social no caso do pleno assalariamento da

população.

Essas preocupações se manifestaram, mesmo depois de abolida a escravidão pelas

variadas formas de obtenção de trabalho, todas tentando fugir à simples relação

salarial. O Senador Nicolau de Campos Vergueiro, “figura prestigiosa na política do

país”16 chegou a propor (e implantar) o que foi considerado uma forma intermediária

entre colônias de pequenos proprietários e o trabalho assalariado: a fixação de

colonos nas fazendas, trabalhando como subordinados, em regime de parceria. O

fazendeiro lhes comprava a colheita e de fato sua situação era semelhante à dos

escravos. Esse sistema foi largamente utilizado até mostrar-se inviável pela pouca

atração que exercia sobre os emigrantes europeus.

“Muito bem adaptado à mentalidade escravista das classes dominantes

brasileiras, um tal sistema apresentava contudo um inconveniente maior: não era

capaz de provocar uma imigração massiva. ... Foram necessários mais de 10 anos

para que os fazendeiros de café, obrigados pelas exigências da acumulação de

Capital, se decidissem a abandonar seus métodos pré-capitalistas e oferecer aos

trabalhadores condições de trabalho baseadas em contratos salariais, facilitando

assim a imigração.” (Silva,Sérgio, 1976, pg.43/44)

Os programas de colonização incentivados ou aprovados pelo governo17 foram

tímidos e desarticulados, com poucos efeitos sobre o povoamento e a disponibilização

de mão de obra. No fim do Império o Governo propôs, sob a denominação de Burgos

Agrícolas, um projeto geral de colonização através da concessão de terras devolutas,

“com o fim de desenvolver a riqueza agrícola e industrial deste paiz”. Para ele foram

solicitados recursos (não aprovados) no orçamento da Agricultura para 1889. Mesmo

sem recursos orçamentários o projeto começou a ser implantado, com um contrato

(18/7/1889) de exploração e venda de terras devolutas na Província do Espírito Santo, 16 Prado Júnior (1959, pg. 191). 17 A primeira colônia de imigrantes estrangeiros (não portugueses), para 2.000 colonos suiços foi criada no Rio de Janeiro (Friburgo) ainda antes da Independência, em 1818. A experiência de Friburgo foi considerada muito dispendiosa e não teve sequências significativas na época. (Simonsen, 1937, pg.416).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 114

para a fixação de 1.240 famílias de imigrantes. (Coe, [1983?], pg.163). Ver também

Lima (1954, pg.75).

Houve defensores desses programas, postos de lado pelos interesses dos proprietários

que queriam uma solução imediata para o problema da falta de mão de obra.

“O plano de ‘colonização’ não apresentava solução tão pronta e imediata [para o

problema de mão de obra das fazendas]; mas suas perspectivas eram mais

amplas. Argumentavam seus partidários que o principal era incrementar o

povoamento do país; a questão de braços para a grande lavoura se resolveria

naturalmente no futuro como consequência de tal incremento.” (Prado Júnior,

1959, pg.109)

A partir da década de ’70 o problema imediato da falta de mão de obra passou a ser

resolvido, graças a incentivos governamentais à imigração e ao abandono do sistema

de parceria em favor do assalariamento.

5.4 As novas condições de manutenção da velha ordem social

Com o fim da escravidão a condição de ser senhor de escravos para receber terras, ela

concessão de sesmarias, deixou de existir sendo então necessário instituir outro

critério de seleção para ingresso na classe de proprietários. Esse critério foi a

capacidade de pagamento. Se até 1850 o processo geral havia sido o da compra de

escravos para poder ocupar a terra (e isto bastara para garantir um número de

senhores suficientemente reduzido para manter o poder e a coesão de interesses da

classe), a partir dessa data passa a ser o da compra direta de terra. E uma vez

instituída essa nova regra os próprios interesses e ações individuais em jogo se

encarregaram de estabelecer os preços mínimos suficientes para alijar os pequenos

produtores na exata medida necessária para a acumulação de interesse da elite

dominante.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 115

A Lei das Terras Devolutas foi assim um pré-requisito para a substituição do escravo

pelo trabalhador assalariado. Era necessário impedir que o imigrante recém chegado

tivesse a possibilidade de ocupar um pedaço de chão sem dono e produzir para si em

vez de se empregar numa fazenda de café ou numa fábrica.

A ocupação do território avançava lentamente e, o que é mais importante, de maneira

predatória. Com a garantia da abundância de terras sem dono e sem pretendentes

válidos os engenhos e fazendas se expandiam e se multiplicavam na medida em que

ia se esgotando a capacidade produtiva do solo do qual se extraia toda a riqueza, o

mais rápido possível e sem reposição. Vários autores apontaram essa característica

destrutiva da agricultura brasileira18 relacionando-a em geral com “atrazo cultural” e

“herança escravagista” o que está correto mas deixa de lado o aspecto crucial do

interesse na manutenção dessa forma de produção por parte da elite dominante. A

agricultura predatória, sempre associada a um estágio de acumulação

predominantemente extensiva, com altas taxas de lucros, significava no Brasil a

manutenção da possibilidade de expatriação de excedente e portanto a garantia da

manutenção da elite como classe dominante.

Em meados do século passado a terra ainda era abundante para a capacidade

produtiva da época e o sentido imediato da imposição de pagamento não era o de

reservar a terra para produção em larga escala de bens de exportação, mas sim o de

garantir a mão de obra para essa mesma produção, nas grandes fazendas dos senhores

de terra (não mais de escravos).

Assim, ambas as condições para um processo de acumulação plenamente capitalista

no Brasil, baseada na propriedade, no trabalho assalariado de uma população de 8

milhões de habitantes e na formação de um amplo mercado interno, foram

formalmente estabelecidas no mesmo ano de 1850: a propriedade do principal meio

de produção, a terra, e a consolidação de uma classe de assalariados pela supressão do

18 Pierre Mombeig (1951 e 1952), Caio Prado Júnior (1957a) especialmente em Problemas de povoamento e a divisão da propriedade rural, Ignácio Rangel (1962), Sérgio Silvia (1976), para citar só alguns.

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abastecimento da mão de obra escrava. Porém tanto a abolição do tráfego de escravos

quanto a formalização da propriedade não resultaram da necessidade de se estabelecer

as condições para um processo de acumulação capitalista mas, ao contrário, da

necessidade de se reimpor, sob outra forma, os entraves a essa acumulação e portanto,

o que tinha a aparência de uma ruptura com a organização social e econômica vigente

até então era de fato apensas um rearranjo para a continuidade dessa mesma

organização.

O tráfego de escravos africanos foi abolido, mas sem que houvesse um programa

efetivo de assalariamento do total da população, continuando a predominar durante

várias décadas os acertos pessoais e as relações moldadas pela escravidão, pelo

clientelismo e pelos processos de parceria em suas diversas formas. Criou-se um

contingente por mais de um século com restos de escravidão e economia de

subsistência. O mercado nacional continuou inexpressivo, com a fragmentação em

mercados regionais desarticulados e grande parte da população sem condições de

consumo.

Quanto às terras, passaram a ser propriedade, reconhecida mediante título, mas, sem

registros e demarcações em escala significativa, continuaram sujeitas a toda sorte de

arbitrariedades, objeto de intensa especulação que propiciou inclusive considerável

expatriação de excedente19.

19 Veja-se Joffily (1985) para um exemplo da participação dos capitalistas (e governo) ingleses nos negócios de terras no Brasil, no caso no norte do Paraná.

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CAPÍTULO 6:

O ARCABOUÇO INSTITUCIONAL REPUBLICANO

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6 O ARCABOUÇO INSTITUCIONAL REPUBLICANO

“A questão da terra no Brasil sempre acabou em tiroteio ... ou em cadáver.”

Pedro Teixeira, Senador da República152

6.1 A primeira Constituição da República

Diversos atos tomados pelo Gôverno Provisório, logo após a Proclamação da

República demonstram a importância dada às questões fundiárias, especialmente

quanto à adequação da estrutura legal às possibilidades da comercialização das terras,

privadas e públicas, cada vez mais demandadas pela expansão das empresas agrícolas

e industriais.

Em 1890 foi instituído o Registro Torrens153 numa tentativa de estabelecer critérios

de garantia jurídica de propriedade das terras, que continuavam não demarcadas e

apenas parcialmente registradas.

Também em 1890, o Decreto 528 regulamentou a cessão de terras devolutas e tratou

da organização de núcleos coloniais, retomando o projeto Burgos Agrícolas que havia

sido debatido pela Câmara ainda no Império (ver pg.122). Seguiu-se a criação de

bancos agrícolas com garantias do Gôverno (Decreto 964, de 7/11/1890). No mesmo

ano, com base no Decreto 528, o Gal.Francisco Glycério, Ministro da Agricultura,

Comércio e Obras Públicas, assinou pelo menos dez contratos de cessão de terras

para a criação de Burgos Agrícolas, nos estados de São Paulo, Paraná, Sta.Catarina, 152 E entrevista à TV Bandeirantes apresentada dia 15.1.95. A entrevista fez parte de uma reportagem sobre grilagem de terras no Distrito Federal. 153 Ver mais detalhes no Capítulo 10: As terras agrícolas e o Imposto Rural.

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Espírito Santo e Ceará, pra a fixação de cerca de 70.000 famílias de imigrantes. Boa

parte dessas concessões de terras foram motivos de controvérsias e litígios que

duraram décadas. Um dos casos mais conhecidos envolveu o Banco Evolucionista e a

Companhia Predial de São Paulo e teve por objetivo a concessão de 50.000 ha às

margens do Tietê (municípios de São Paulo e Mogi das Cruzes), feia e, 14/10/1890 ao

eng. Ricardo Medina154. A parte do Decreto 528 referente às concessões foi revogada

no ano seguinte pela Constituição.

A Constituição da República dos Estados Unidos do Brazil, promulgada a 24 de

fevereiro de 1891, primeira constituição republicana, já mostra alguma preocupação

com a organização do território, descentraliza parte da administração fiscal e

orçamentária e estabelece a base dos impostos. A urbanização crescente, a

transformação da terra em bem negociável e a inviabilidade da prática de concessão

de terras como fonte de recursos públicos foram fatores que forçaram a definição de

uma estrutura tributária mais adequada à nova organização da produção que,

formalmente, se estabelecia em moldes inteiramente capitalistas. Pela primeira vez a

propriedade imobiliária como tal pode ser tributada, sendo competência dos estados.

Art.9° É da competencia exclusiva dos Estados decretar impostos:

1° Sobre a exportação de mercadorias de sua propria producção;

2° Sobre immoveis ruraes e urbanos;

3° Sobre transmissão de propriedade;

4° Sobre industrias e profissões.

A questão da propriedade permaneceu sem alterações, como parte dos direitos

individuais:

Art.72 A Constituição assegura a brazileiros e estrangeiros residentes no paíz a

inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à

propriedade nos termos seguintes:

154 Para detalhes sobre esse assunto, incluindo transcrição do “Contrato de Burgos Agrícolas” feito com o eng.Medina, ver Coe [1983?], particularmente pg.163 ss.

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17. O direito de propriedade mantém-se em toda a plenitude, salva a

desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante

indemnização prévia.

De acordo com o espírito federativo de fragmentação do espaço155 que prevaleceu na

Proclamação da República, a administração do território foi atribuida aos estados.

Não só esses passaram a cobrar os impostos fundiários (Art.9°) mas

Art.64 Pertencem aos Estados as minas e terras devolutas situadas nos seus

respectivos territórios, cabendo à União sómente a porção de territorio que for

indipensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construcções militares e

estradas de ferro federaes.

As oligarquias regionais mantinham, portanto, o controle direto sobre a ocupação das

terras e, por meio de uma divisão previamente estabelecida, podiam restringir os

conflitos aos níveis locais, no interior de cada estado.

O Art.64, passando para os estados as terras devolutas, até então incorporadas ao

domínio da União, entrou em conflito com as disposições da Lei das Terras (Lei 601

de 1850) e de seus regulamentos que haviam instituido os serviços de planejamento e

controle das terras públicas no âmbito do governo central. A Lei 601, dispondo sobre

alienação de terras do domínio estadual. Apesar da maioria dos estados ter adaptado

essa Lei, com maiores ou menores modificações, houve não só uma descontinuidade

administrativa como, principalmente, o fracionamento do patrimônio nacional,

institucionalmente sujeito, a partir de então, a diferentes critérios de cessão e de uso.

É pitoresco o artigo 1°, pelo inusitado do assunto tratado como primeira declaração

de uma constituição que estabelece a República em substituição ao Império:

Art.1° Fica pertencendo à União, no planalto central da República, uma

zona de 14.400 kilometros quadrados, que será opportunamente

demarcada, para nella estabelecer-se a futura Capital Federal.

155 A fragmentação do território nacional em estados federados, com autonomia alfandegária e tributária, facilitou a manutenção dos entraves à formação de um mercado nacional unificado.

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Note-se a substituição das braças e légoas, como medidas de comprimento, pelo

sistema métrico decimal156.

Enquanto a Constituição estabeleceu a nova organização política, a estrutura jurídica

só foi consolidada em 1916 pelo Código Civil, substituído as Ordenações Filipinas de

1643 (ver nota pg.88).

6.2 O Código Civil e os direitos de propriedade

O Código Civil brasileiro, em vigor desde 1917, foi publicado em 1° de janeiro de

1916, como Lei 3071. Ao longo dos quase 80 anos de sua vigência a maioria dos seus

artigos (se não todos) foram complementados, detalhados ou mesmo alterados por

outras leis permanecendo, porém, a estrutura e a organização do Código como

conjunto das leis que definem os conceitos jurídicos básicos relativos aos direitos

individuais e ao “acordo social”. No Código Civil são explicitadas as regras desse

“acordo”, por oposição às suas exceções.

Especialmente importantes para este trabalho são os conceitos que consolidam o

reconhecimento da propriedade fundiária157 e dos direitos a ela ligados. Baseado no

Direito Romano que definia a propriedade como “jus utendi, fuendi et abutendi re

sua” (direito de usar, fruir e abusar da coisa sua), o Código Civil estabelece que

156 O sistema métrico havia sido instituido a partir de 1° de janeiro de 1874 (cf. Simonsen, 1937, pg.462). 157 A palavra fundiário vem do latim fundus significando, no direito romano, o solo com todos os seus acessórios, especificamente o solo agrário. “Juridicamente, no direito agrário, entende-se por fundo os bens de raiz, ou seja, os bens imóveis, terrenos, campos, herdades. Estes são os bens de fundo, também designados bens fundiários, pois o adjetivo fundiário sempre diz respeito a imóveis ou bens de raiz.” (Enciclopédia Saraiva do Direito, ed.1979, 39° vol. Pg. 166). As sociedades de língua inglesa usam a expressão real estate, definida pelo Oxford Dictionary como: “Person’s holdings in landed property”. Por oposição a personal estate: “Personal holding in omvables”.

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Art.524 ... a lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus

bens, e de reavê-los do poder de quem quer que, injustamente, os possua.

Isto deixa em aberto as questões de como se estabelece um proprietário ou como se

define que alguém possui algo injustamente. O direito de propriedade acaba sendo

substituído, enquanto definição, por um conjunto de direitos em condições

específicas, formalizando regras ou melhor, relações de forças já existentes. Tais

direitos são exaustivamente comentados em trabalhos de juristas. Dentre estes se

destacam os de Hely Lopes Meirelles158 e José Afonso da Silva159, sobre o direito de

propriedade relacionado com o direito de construir, trabalhos que tem constituido

manuais de consulta para gerações de arquitetos e urbanistas.

Hely Lopes Meireles cita o direito de propriedade como direito real, no sentido de

que incide sobre as coisas (do latim res, rei), por oposição ao direito pessoal.160

“O direito de propriedade é o que afeta diretamente as coisas corpóreas – móveis

ou imóveis -- subordinando-as à vontade de homem.”

O “direito de uso, gôzo e disponibilidade das coisas, associado ao poder de

reivindicá-las de quem as detenha injustamente, configura o domínio na sua

acepção mais ampla.” (Meirelles, 1965, pg.1-2).

Assim o domínio seria “o poder absoluto, ilimitado e exclusivo sobre a coisa”. O

Código Civil diz (Art.527) que “o domínio presume-se exclusivo e ilimitado até

prova em contrário” e admite a propriedade limitada pela existência de ônus real ou

pelo domínio resolúvel ou revogável isto é, com duração limitada.

“Onus real é toda restrição que incide diretamente sobre a coisa, traspassando a

terceiro parcela do direito de propriedade.” (Meirelles, 1965, pg.2).

158 Meirelles (1965). 159 Silva,J.A. (1981). 160 Vale lembrar aqui os comentários feitos no Capítulo 1: A propriedade sobre as peculiaridades do sistema jurídico pressuposto pelo modo de produção capitalista: todos os seres são distribuidos entre as categorias de “pessoas” e “coisas”, não havendo distinção, do ponto de vista legal, entre os seres dentro de cada categoria.

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A um ônus real corresponde um direito real de outrem que não o proprietário da

coisa, sobre a mesma coisa.

Os direitos reais (ou ônus reais, dependendo do ponto de vista) são, ao mesmo tempo,

restos das forma jurídicas feudais (que não compreendiam a propriedade da terra mas

sim do direitos de uso) e portanto fadadas ao desaparecimento, e modificações do

conceito de propriedade como direito irrestrito sobre a terra, necessárias para a

organização social exigida pelo estágio de acumulação (e portanto mutável com esse).

Sem entrar nos detalhes e meandros das definições jurídicas vale a pena citar essas

formas parciais de domínio, enumeradas (Art.674) e definidas pelo Código Civil, não

só para ter uma idéia do arcabouço institucional erigido em torno do direito de

propriedade mas também porque esses ônus reais correspondem a termos

frequentemente usados na literatura sobre urbanismo e planejamento territorial onde

nem sempre seu significado é claro.

I Enfiteuse161

Enfiteuse, aforamento ou emprazamento é o direito, atribuído pelo

proprietário a outrem, do domínio útil do imóvel mediante o pagamento de

“pensão ou foro, anual, certo e invariável”. (Código Civil, Art.678). O

contrato de enfiteuse é hereditário e perpétuo, diferindo nisto do

arrendamento que é por tempo limitado. Os aforamentos são resgatáveis

após certo prazo (fixado em 10 anos pelo Código Civil) mediante o

pagamento de laudêmio, correspondente a “2,5% sobre o valor atual da

propriedade plena” (Art.693).

II Servidão

“Servidão representa o encargo ou o ônus que se estabelece sobre um

imóvel em proveito e utilidade de um outro imóvel, pertencente a outro

proprietário.” (Silva,De P., 1963, pg.1442). Corresponde à perda do

161 Enfiteuse – Apesar da sonoridade, não é uma palavra francesa. Vem do grego “emphytheusis”, do verbo “emphyteusein” significando plantar dentro ou melhorar terreno inculto (Silva,De P., 1963)

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exercício de alguns direitos por parte do proprietário em favor de outrem

ou a obrigação de tolerar que outro se utilize da propriedade para certos

fins. A servidão se estabelece entre imóveis vizinhos e, obrigatoriamente,

de proprietários diferentes.

São comuns as servidões de passagem, pelas quais o ocupante de um lote

encravado tem acesso à via pública através do terreno de outro. Ou a de

iluminação, pela qual um proprietário não pode construir na divisa se com

isto ele fecha uma janela de construção vizinha aprovada ou regularizada.

Na maioria das vezes servidões são remanescentes de relações anteriores à

legislação urbanística que hoje impede a criação de situações como um

lote encravado ou uma janela aberta na divisa com um vizinho. Mas elas

também são estabelecidas, por leis gerais, para os casos de proteção da

comunidade em que o simples direito de propriedade pode representar

perigo. É o caso, por exemplo, do escoamento das águas pluviais cujo

caminho natural não pode ser bloqueado, ou do escoamento da lava nas

encostas do Etna, que não pode ser desviado para o vinhedo do vizinho.

III Usufruto

É o “direito real de fruir as utilidades e frutos de uma coisa, enquanto

temporariamente destacado da propriedade” (Código Civil, Art.713).

IV Uso

É o direito de fruir “a utilidade da coisa dada em uso, quanto o exigirem as

necessidades pessoais suas e de sua família” (Código Civil, Art.742). O

usufruto se relaciona diretamente com a produção enquanto que o uso tem

a ver com a reprodução da força de trabalho.

V Habitação

O direito de habitação é definido como o direito de ocupar ou o de habitar

gratuitamente casa alheia. Esse direito, considerado como uma “servidão

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 125

pessoal”, não pode ser transferido (por aluguel ou empréstimo). É o caso

particular de direito de uso.

VI Rendas constituídas sobre imóveis

Correspondem ao direito do proprietário de um imóvel de continuar a

receber o equivalente à renda proporcionada por esse imóvel mesmo

depois deste ter sido alienado. Esse direito sobre renda surge como fonte

de disputa nos casos de desapropriações pois nos demais casos pode ser

simplesmente incorporado ao preço de venda do imóvel.

VII Penhor

É um direito sobre bem imóvel, dado em garantia de pagamento de dívida.

O fato do bem ser móvel é o que caracteriza o penhor e o distingue da

hipoteca.

VIII Anticrese

Vem do grego anti (contra) e khresis (uso). É “o contrato pelo qual um

devedor, conservando ou não a posse do imóvel, dá ou destina ao credor,

para segurança, pagamento ou compensação de dívida, os frutas e

rendimentos produzidos pelo mesmo imóvel. Também se lhe dá o nome de

contrato de consignação de rendimentos.” (Silva, De P., 1963).

IX Hipoteca

É um direito real sobre imóvel ou bem de raiz, dado em garantia de uma

obrigação (em geral, pagamento de dívida).

Vale também lembrar a distinção entre posse e propriedade nos dizeres de Hely

Lopes Meirelles162: “A propriedade é um direito, a posse um fato”; ao que o mesmo

Lopes Meireles acrescente a distinção entre posse e detenção, ambas como situações

de fato, sendo a primeira legítima e a detenção ilegítima.

162 Meirelles (1965, pg.7).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 126

Finalmente, o Código Civil define os bens públicos, por oposição aos particulares:

Art.65 São públicos os bens do domínio nacional pertencentes à União,

aos Estados ou Municípios. Todos os outros são particulares, seja qual for

a pessoa a que pertencerem.

Art.66 Os bens públicos são:

I Os de uso comum do povo, tais como os mares, rios, estradas,

ruas e praças.

II Os de uso especial, tais como os edifícios ou terrenos aplicados

a serviço ou estabelecimento federal, estadual ou municipal.

III Os dominicais, isto é, os que constituem o patrimônio da

União, dos Estados ou dos Municípios, como objeto de direito

pessoal, ou real de cada uma dessas entidades.

Sobre esse mesmo assunto, e além das Constituições, foi sendo acumulada desde

1917 uma vasta legislação, tanto federal como estadual, definindo e regulamentando

os bens públicos163.

Além de definir os direitos ligados às diversas formas de domínios parcial sobre os

imóveis o Código Civil também estabeleceu regras para o reconhecimento desses

direitos, instituindo o registro de imóveis, parte do conjunto dos registros públicos

(assim como o das pessoas naturais, o das pessoas jurídicas ou o de títulos e

documentos). O registro de imóveis substitui as anotações e livros mantidos pelos

vigários a partir das determinações da Lei 601/1850 (Lei das Terras) e passou a se

constituir na forma de garantia dos direitos privados sobre imóveis. A descrição e

evolução do registro de imóveis são assunto do Capítulo 8: Os Cartórios de Registro

de Imóveis.

163 Cito alguns ítens da legislação federal, deixando deliberadamente de lado o que se refere ao espaço aéreo, defesa nacional e fronteiras, águas territoriais, terrenos de marinha e plataforma submarina: D 10.105/13 (Terras devolutas e terrenos aforados); D 19.924/31; DL 22.658/33; D 22.785/33; DL 710/38; DL 2.490/40; DL 7.724/45; DL 7.916/45; DL 9.063/46 (Definição dos bens da União); L 3.081/56; D 40.735/57; DL 200/67; DL 900/69 (Estrutura administrativa).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 127

6.3 O primeiro período Vargas

O governo Getúlio Vargas, de 1930 a 1945, alterou profundamente a estrutura

administrativa e montou o quadro institucional de atribuições e relações formais entre

níveis de governo em vigor até hoje.

No seu discurso de posse em 3 de novembro de 1930 Getúlio Vargas cita, entre as

idéias centrais do “programa de reconstrução nacional”, a

“consolidação das normas administrativas com o intúito de simplificar a confusa

e complicada legislação vigorante, bem como refundir os quadros do

funcionalismo, que deverá ser reduzido ao indispensável, suprimindo-se os

adidos e excedentes”.164

Os movimentos e pressões que se seguiram à tomada do poder por Vargas com a

instituição do Governo Provisório em 1930 e à Revolução Constitucionalista de 1932

levaram à formação de uma Assembléia Constituinte, eleita com forte participação de

membros de sindicatos e representantes profissionais (“classistas”), uma novidade

com relação às tradições de representação até então. Os confrontos básicos se

articularam em torno da questão federalismo versus centralização mas, mesmo entre

os defensores do federalismo, crescia a aceitação do papel intervencionista do Estado

em assuntos de política econômica, intervenção necessária face à crise internacional e

aos conflitos regionais internos. O país continuava fragmentado numa “constelação”

de mercados regionais, cada qual inserido de maneira autônoma no mercado

internacional, todos dominados pelas oligarquias locais cujos interesses estavam

muito mais vinculados a esse mercado internacional do que ao processo de

acumulação interna.

164 Henriques (1966, pg.129) transcreve alguns dos 17 ítens do programa de reconstrução nacional anunciados por Getúlio Vargas em seu discurso de posse, dia 3 de novembro de 1930.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 128

A Constituição resultante foi um texto de compromisso, reflexo da multiplicidade das

forças políticas presentes165 e da necessidade de eliminar da sociedade a memória dos

conflitos de classe esboçados com os movimentos operários da década anterior166.

“Procurou-se conciliar a democracia liberal com o socialismo, no domínio

econômico-social; o federalismo com o unitarismo, no setor político; o

presidencialismo com o parlamentarismo, na esfera governamental” (Bastos,

197-?, pg.4).

Na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada a 16 de

julho de 1934, de curtíssima duração, aparecem nitidamente as preocupações com a

integridade do território, com a infraestrutura nacional, com a complexidade

crescente das funções administrativas e do governo mas também com a participação

política de uma população que crescia e se urbanizava rapidamente.

As questões do domínio e distribuição das terras, incluindo a da ocupação das terras

públicas e a do reconhecimento da posse e do usucapião, continuavam a merecer cada

vez mais a atenção dos constituintes:

Art.121 A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do

trabalho, na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador

e os interesses econômicos do país.

§4° O trabalho agrícola será objeto de regulamentação especial, em que se

atenderá, quanto possível, ao disposto neste artigo. Procurar-se-á fixar o

homem no campo, cuidar da sua educação rural, e assegurar ao trabalhador

nacional a preferencia na colonização e aproveitamento das terras públicas.

§5° A União promoverá, em cooperação com os Estados, a organização de

colônias agrícolas, para onde serão encaminhados os habitantes de zonas

empobrecidas, que o desejarem, e os sem trabalho.

165 Para uma análise detalhada da composição da Assembléia Constituinte e dos embates que resultaram na Constituição de 1934 ver Confronto e compromisso no processo de constitucionalização, de Ângela Maria de Castro Gomes, na História geral da civilização brasileira. 166 Chauí (1981).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 129

Art.125 Todo brasileiro que, não sendo proprietário rural ou urbano, ocupar, por

dez anos contínuos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, um

trecho de terra até dez hectares, tornando-o produtivo por seu trabalho e tendo

nele a sua morada, adquirirá o domínio do solo, mediante sentença declaratória

devidamente transcrita.

Art.130 Nenhuma concessão de terras de superfície superior a dez mil hectares

poderá ser feita sem que, para cada caso, preceda autorização do Senador

Federal.167

Os registros públicos, que haviam sido instituídos em 1916 pelo Código Civil, são

mencionados pela primeira vez na Constituição:

Art.5° Compete privativamente à União:

XIX. legislar sobre:

a) direito penal, commercial, civil, aéreo e processual; registros

públicos e juntas commerciais;

§3° A competencia federa para legislar ... sobre registros públicos ... não exclui a

legislação estadual supletiva ou completamente sobre as mesmas matérias.

É também a primeira Constituição que define claramente as competências entre os

três níveis de governo e estabelece as regras gerais da tributação sobre a propriedade

imobiliária. A partir dela, as Constituições subsequentes apenas iriam alterar detalhes

(por vezes importantes), permanecendo a estrutura da tributação, resumida, para o

interesse deste trabalho, nas questões da distribuição de competências e na definição

dos impostos imobiliários.

Art.6° Compete também privativamente à União:

I decretar impostos:

167 É reconfortante saber que dez mil hectares (quatro mil alqueires ou 100 quilômetros quadrados) de terra pública é uma área suficientemente grande para merecer a atenção do Senado Federal. A preocupação não era descabida. Joaquim Nabuco cita que “em 1878 o governo brasileiro fez concessão por vinte anos do Alto Xingu, um tributário do Amazonas cujo curso é calculado em cerca de dois mil quilômetros, com todas as suas produções e tudo o que nele se achasse, a alguns negociantes do Pará!”

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a) sobre importação de mercadorias de procedência estrangeira:

b) de consumo de quaiquer mercadorias, exceto os combustíveis de

motor à exploração;

c) de renda e proventos de qualquer natureza, exceptuada a renda

cedular de immoveis;

Art.8° Também compete privativamente aos Estados:

I decretar impostos sobre:

a) propriedade territorial, excepto a urbana;

b) transmissão de propriedade causa mortis;

c) transmissão de propriedade immobiliaria inter vivos, inclusive a

sua incorporação ao capital de sociedade;

Art.13 Os Municípios serão organizados de fórma que lhes fique assegurada a

autonomia em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse, e especialmente:

I a eletividade do Prefeito e dos Vereadores da Câmara Municipal,

podendo aquele ser eleito por esta;

II a decretação dos seus impostos e taxas, e a arrecadação e applicação

das suas rendas;

III a organização dos serviços de sua competência.

§2° ... pertencem aos Municipios:

I o imposto de licenças

II os impostos predial e territorial urbanos, cobrado o primeiro sob a

fórma de decima ou de cédula de renda;

III o imposto sobre diversões publicas;

IV o imposto cedular sobre a renda de immoveis ruraes;

V as taxas sobre serviços municipaes.

A reorganização do Estado, promovida desde o início por Vargas, inclui uma ampla

revisão das jurisdições fiscais, sempre no sentido de diminuir a autonomia dos

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 131

Estados e Municípios (dominados pelas oligarquias locais), de romper a estrutura de

“constelação” de mercados regionais e de consolidar um mercado nacional unificado.

Os impostos que já vinham sendo cobrados tradicionalmente permaneceram

centralizados na União. Os estados poderiam arrecadar o imposto territorial rural,

com o que resolviam “em casa” a questão da participação financeira dos grandes

proprietários que, via de regra, mantinham o poder político regional. Mas o imposto

sobre a renda das propriedades rurais cabia aos municípios, que também tinham

autonomia para tributar as propriedades urbanas e a concessão de licença de

funcionamento para atividades econômicas.

Entre as medidas legais apoiadas na Constituição de ‘34 vale ressaltar o Decreto

58/37 que “dispõe sobre o loteamento e a venda de terrenos para pagamento em

prestações” colocando, pela primeira vez, a questão do controle do parcelamento e

ocupação do solo urbano.

Art.1° Os proprietários ou co-proprietários de terras rurais ou terrenos urbanos,

que pretendem vendê-los, divididos em lotes e por oferta pública, mediante

pagamento do preço a prazo em prestações sucessivas e periódicas, são

obrigados, antes de anunciar a venda, a depositar no cartório do registro de

imóveis da circunscrição respectiva:

I Um memorial ... contendo:

a) denominação, área, limites, situação e outros característicos do

imóveil;

b) relação cronológica dos títulos de domínio, desde 30 anos, ...

c) plano de loteamento ...

II planta do imóvel ...

III exemplar de caderneta ou do contrato-tipo de compromisso de venda

dos lotes.

....

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 132

§1° Tratando-se de propriedade urbana, o plano e planta do loteamento devem

ser previamente aprovados pela Prefeitura Municipal ouvidas, quanto ao que

lhes disser respectivo, as autoridades sanitárias e militares.

O Decreto 58/37 foi o único instrumento legal para disciplinar os loteamentos até a

Lei 6.766 de 1979 (Lei Lehman). Serviu como norteador para a legislação de muitos

municípios e ajudou a formar quadros técnicos e serviços incumbidos de examinar e

aprovar loteamentos. Mas não tinha nenhuma “garra” que pudesse obrigar a cumprir

nem o Artigo 1° nem, muito menos, o seu primeiro parágrafo.

As medidas de reorganização do Estado consolidadas na Constituição de ’34 e na

legislação que a seguiu não foram suficientes para garantir os instrumentos

necessários para a manutenção da ordem social frente à radicalização dos

movimentos que exigiam mudanças: seja no sentido de maior liberalização ou de

maior autonomia das oligarquias regionais, seja no sentido de um decidido apoio ao

desenvolvimento “nacionalista”.

“A curta duração que [a Constituição de 1934] teve não deve ser explicada por

defeitos que trazia em sim, mas, em verdade, pela radicalização do clima social

de então.

Tanto a extrema esquerda quanto a extrema direita tornaram inviável a sua plena

aplicação gerando condições para que fosse possível o Golpe de 1937.” Bastos,

197-?, pg.6.

Em verdade, mais do que “possível” o Golpe de 1937 foi “necessário” para a continuidade do

programa de dotar o país das condições para viabilizar o mínimo de acumulação exigido pela

própria reprodução da organização social e pela manutenção da estrutura econômica.

A Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 10 de novembro de 1937 foi

decretada por Getúlio Vargas em substituição à de 1934 como ato de força, para

permitir ao governo central controlar as agitações e pressões políticas geradas em

todo o país pelo descontentamento tanto dos trabalhadores e da burguesia em

formação quanto entre a elite dominante (que compreendia boa parte dos capitalistas)

que sentia seus privilégios ameaçados pelo rápido processo de unificação do mercado

Page 133: A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil

Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 133

nacional e pelas condições de incorporação da população (40 milhões) nesse

mercado. Medidas de força, centralizadas e institucionalizadas, seriam necessárias

para preservar as reformas exigidas pelo processo de acumulação. Isto está refletido

no próprio texto que introduz a Constituição:

“O Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil:

Atendendo às legítimas aspirações do povo brasileiro à paz política e social,

profundamente perturbada por conhecidos fatores de desordem, resultantes da

crescente agravação dos dissídios partidários, que uma notória propaganda

demagógica procura desnaturar em luta de classes, e da extremação de conflitos

ideológicos, tendentes, pelo seu desenvolvimento natural, a resolver-se em

termos de violência, colocando a nação sob a funesta iminência da guerra civil;

Atendendo ao estado de apreensão creado no país infiltração comunista, que se

torna dia a dia mais extensa e profunda, exigindo remédios de caráter radical e

permanente;

Atendendo a que, sob as instituições anteriores, não dispunha o Estado de

meios normais de preservação e de defesa da paz, da segurança e do bem estar do

povo;

Com o apoio das fôrças armadas e cedendo ás inspirações da opinião nacional,

umas e outra justificadamente apeensivas diante dos perigos que ameaçam a

nossa unidade e da rapidez com que se vem processando a decomposição das

nossas instituições civis e políticas;

Resolve assegurar á Nação a sua unidades, o respeito á sua honra e á sua

independência, e ao povo brasileiro, sob um regime de paz política e social, as

condições necessárias á sua segurança, ao seu bem estar e á sua prosperidade,

Decretando a seguintes Constituição, que se cumprirá desde hoje em todo o

país:” (Campanhole, 1976).

As alterações com relação à Constituição anterior são todas no sentido da

centralização do poder e do controle político e econômico. A consolidação de um

mercado nacional deu um passo essencial com a eliminação dos impostos

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 134

interestaduais que, além de manter a fragmentação em mercados regionais, haviam

constituído até então uma das maiores fontes de receita dos estados168:

Art.25 O território nacional constituirá uma unidade do ponto de vista

alfandegário, econômico e comercial, não podendo no seu interior estabelecer-se

quaisquer barreiras alfandegárias ou outra limitações ao tráfego, vedado assim

aos Estados como aos Municípios cobrar, sob qualquer denominação, impostos

inter-estaduais, inter-municipais, de viação ou de transporte, que gravem ou

perturbem a livre circulação de bens ou de pessoas e dos veículos que os

transportarem.

A organização burocrático/institucional no que diz respeito ao controle e tributação

fundiária permaneceu a mesma. As disposições sobre os impostos seguiram, quase

ipsis litteris, as da Constituição de ‘34.

Dois anos mais tarde o Decreto Lei 1202 de 8 de abril de 1939 “dispõe sôbre a

administração dos Estados e Municípios”, complementando a Constituição e

consolidando a estrutura da administração pública do Estado Novo. As competências

e os tributos relativos aos imóveis foram mantidos, com as mesmas redações, e foram

fortemente reforçadas as restrições à cessão de terras públicas pelos estados e

municípios, o que constituía mais um golpe na autonomia dos estados:

Art.35 A concessão, a cessão, a venda, o arrendamento e o aforamento de terras e

quaisquer imóveis do Estado e dos Municípios ficam sujeitos, no que couber, às

restrições impostas por lei no que diz respeito às terras e imóveis da União,

inclusive o Decreto-Lei nº 893, de 26 de novembro de 1938.

Parágrafo único Os Estados e Municípios não poderão, sem licença do Presidente

da República:

a) conceder, ceder ou arrendar, por qualquer prazo, terras de área

superior a 500 hectares, ou terras de área menor por prazo superior a

10 anos;

b) vender terras de área superior a 500 hectares;

168 Skidmore (1968 pg.56).

Page 135: A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil

Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 135

c) vender qualquer área de terra ou conceder, ceder ou arrendar

qualquer área e por qualquer prazo a estrangeiros ou sociedades

estrangeiras, ...

A Constituição de 1937 foi alterada por vinte e uma Leis Constitucionais (L.C.). As

primeiras oito decretadas por Getúlio Vargas visaram o reforço da autoridade central

e a sua instrumentação para decisões rápidas em situações de guerra ou de

insubordinação interna, chegando até a restringir o direito de propriedade em casos de

emergência (L.C. nº 5).

Já a L.C. nº 9, de 28 de fevereiro de 1945, ao contrário, reflete a necessidade de ceder

às fortes pressões para alterar a condução da política nacional; é a Lei Constitucional

mais extensa, alterando a relação e o funcionamento dos órgãos de governo e

determinado eleições para Presidente e Governador dos estados, para o Parlamento e

as Assembléias Legislativas.

As Leis Constitucionais de nº 11 a 21 já vem assinadas por José Linhares como

Presidente da República169 e visam desativar os instrumentos de controle do Estado

Novo, instituir uma Assembléia Constituinte e assegurar a rápida posse do Presidente

a ser eleito.

Encerrava-se assim uma fase de transição na qual o Estado havia sido reorganizado

em molde mais centralizado e nacional e havia sido plenamente consolidada a

instituição da propriedade fundiária e a estrutura de tributação sobre a mesma.

6.4 Intervalo liberal: de Dutra a JK

169 A última L.C. decretada por Vargas (L.C. nº10, de 26 de maio de 1945) proíbe aos juízes exercerem qualquer outra função pública. A primeira assinada por José Linhares (L.C. nº 11 de 30 de outubro de 1945) trata do mesmo assunto, abrindo exceção para cargos de confiança direta do Presidente da República ou dos Interventores.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 136

A Constituição dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 18 de setembro de

1946, atribuiu grande poder de decisão ao Congresso, permitindo a rearticulação das

representações municipais e regionais, dominadas pelo esquema do coronelismo. A

composição do Congresso assegurou uma representação proporcionalmente maior

para os estados atrazados e com maior número de analfabetos.

Apesar da mudança dos grupos no poder, a estrutura administrativa montada no

período Vargas foi consolidada e as competências quanto aos impostos

permaneceram as mesmas.

Art.19 Compete aos Estados decretar impostos sobre:

I propriedade territorial, exceto a urbana;

II transmissão de propriedade causa mortis;

III transmissão de propriedade imobiliária inter vivos e sua incorporação

ao capital de sociedades;

...

Art. 29 ...pertencem aos Municípios os impostos:

I predial e territorial urbano;

II de licença;

III de industrias e profissões

...

Sob a fácil bandeira da “democratização” e da defesa dos sagrados direitos de

propriedade os senhores de terra garantiram (Art.141, § 16) que a desapropriações

teriam pagamento prévio, justo e em dinheiro. O pagamento prévio data do Império; o

justo já havia sido estabelecido pela Constituição de 1934; o pagamento em dinheiro

foi uma inovação “em flagrante contradição com a tendência universal a condicionar

o uso da propriedade ao bem estar social”170.

170 Em nota de rodapé na História Geral da Civilização Brasileira, vol.III/3, pg.144, citando entrevista com Carlos Medeiros Silva.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 137

Com relação à ocupação das terras públicas e à legitimação da posse, a Constituição

de 1946 é, nos dizeres do jurista Themistocles Brandão Cavalcanti, um “retrocesso na

evolução dos direitos dos posseiros”. De fato, enquanto a Lei 601 de 1850 (Lei das

Terras Devolutas) e toda a legislação que a seguiu colocavam a posse, a moradia

habitual e a exploração como únicos requisitos para a legitimação do título de

domínio, a Constituição do ’46 apenas se refere a “preferência para aquisição”:

Art.156 A lei facilitará a fixação do homem no campo, estabelecendo planos de

colonização e de aproveitamento das terras públicas. Para êsse fim, serão

preferidos os nacionais e, dentre eles, os habitantes das zonas empobrecidas e os

desempregados.

§1º Os Estados assegurarão aos posseiros de terras devolutas, que nelas tenham

morada habitual, preferência para aquisição até vinte e cinco hectares.

§2º Sem prévia autorização do Senado Federal, não se fará qualquer alienação ou

concessão de terras públicas com área superior a dez mil hectares.

O segundo parágrafo reintroduz a necessidade de ouvir o Senado para concessão de

terras públicas com mais de dez mil hectares, substituindo as restrições impostas pelo

artigo 35 da Constituição de 1937, que limitava a 500 há as cessões sem autorização

do Presidente da República.

Alguns dias antes da promulgação da Constituição as condições de cessão das terras

públicas haviam sido alteradas pelo Decreto Lei 9760, de 5.9.46, que autorizava o

aluguel, aforamento ou cessão de imóveis da União, prevendo inclusive a ocupação

por funcionários públicos em casos de guarda. O mesmo D.L. também criou o

Conselho de Terras da União (CTU) e incumbiu o Serviço do Patrimônio da União

(SPU) de identificar e descrever as terras do domínio da União, em mais uma

alternativa, formal, de demarcar e controlar as terras públicas.

Art.6º As controvérsias entre a União e terceiros, concernentes à propriedade ou

posse de imóveis, serão dirimidas, na esfera administrativa, pelo Conselho de

Terras da União (C.T.U.), criado por este Decreto-lei.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 138

Art.7º O referido Conselho terá, ademais, atribuições de órgão de consulta do

Ministro da Fazenda, sempre que este julgue conveniente ouvi-lo sobre assuntos

que interessem ao patrimônio imobiliário da União.

Art.19 Incumbe ao S.P.U. promover, em nome da Fazenda Nacional, a

discriminação administrativa das terras na faixa de fronteira e nos Territórios

Federais, bem como de outras terras do domínio da União, a fim de descrevê-las,

medi-las e extremá-las do domínio particular.

Art.186 Fica criado, no Ministério da Fazenda, o Conselho de Terras da União

(CTU), órgão coletivo de julgamento e deliberação, na esfera administrativa, de

questões concernentes a direitos de propriedade ou posse de imóveis entre a União

e terceiros, e de consulta do Ministro da Fazenda.

Art.199 A partir da data da publicação do presente Decreto-lei, cessarão as

atribuições cometidas a outros órgãos na esfera administrativa, de questões entre a

União e terceiros, relativas à propriedade ou posse do imóvel.

O Decreto-lei se refere (Art.199) a “atribuições cometidas a outros órgãos” o que faz

supor que já havia sido institucionalizada uma estrutura de controle das terras

públicas. No entanto, ao invés de ativar a estrutura existente dando-lhe efetivas

condições de operação, criaram-se novos órgãos, novas formalidades, igualmente

fadadas à inoperância pela falta das medidas operacionais de suporte. De maneira

geral, não é por falta ou falha de legislação que não são dadas soluções aos problemas

já sobejamente detectados. Ao contrário, grande parte das leis e decretos apresentam

soluções e permitiriam a ação, caso houvesse intenção de remover os entraves. Para

tanto os atos legais deveriam ser coordenados com a efetiva instrumentação dos

órgãos encarregados do controle e da execução das medidas complementares, em

termos de pessoal, de qualificação técnica, de equipamento, de recursos. Não havendo

a intenção, a legislação é usada de fato como pseudo solução, numa função

puramente ideológica, como se sua presença bastasse para assegurar seu

cumprimento.

Em 1947 duas tentativas de reorganização da produção agrícola morreram no

Congresso: 1) uma proposta de reforma agrária encaminhada pelo Executivo que

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 139

pretendia facilitar o loteamento e a redistribuição (por particulares) das terras rurais;

2) uma proposta de desapropriação de terras improdutivas e de incentivo à produção

de alimentos através da lavoura de subsistência. Os dois projetos esbarravam no

princípio defendido pelos senhores de terra de que qualquer reforma agrária deveria

começar pelas terras devolutas, em geral em regiões pouco habitadas e sem

infraestrutura. Houve fortes reações, explicitadas pela Imprensa como porta voz

principalmente da Sociedade Rural Brasileira, e as propostas acabaram sendo

arquivados171.

Na primeira metade da década de ‘50 Getúlio Vargas, reconduzido à presidência por

voto popular, defrontou-se mais uma vez com a necessidade de retirar alguns dos

entraves que emperravam o crescimento industrial. O esbanjamento das reservas

(sobras da 2ª Guerra) pelo Gal.Dutra atirava novamente “a restrição externa”,

tornando necessário um alargamento da produção para o mercado internacional. Uma

pré-condição para isto era a ampliação da infraestrutura ou, na linguagem ideológica

da sociedade de elite, a “eliminação dos estrangulamentos”. Uma das linhas maestras

do segundo governo Vargas foi justamente um programa de implantação de

infraestrutura industrial: Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico, Petrobrás,

Cia.Siderúrgica Nacional, Eletrobrás (que não chegou a ser implantada por Vargas).

A nova fase de expansão industrial, apoiada nessa ampliação da infraestrutura, longe

de corresponder a uma alteração na organização social, redundou, mais uma vez, na

consolidação do processo de acumulação regulado muito mais pela manutenção dos

privilégios das elites do que pelo pleno desenvolvimento do mercado.

Os diversos grupos sociais formados no processo de industrialização e urbanização

tinham fraca articulação política e não chegavam a desafiar a elite como classe

dominante. Os movimentos operários e camponeses haviam sido abafados em 1928-

29 e diluidos nas reformas do Estado Novo172. Os capitalistas, em sua maioria, eram

parte da elite dominante, interessados na manutenção do processo de acumulação 171 História Geral da Civilização Brasileira, vol.III/3 pg.144-5. 172 De Decca (1981).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 140

entravada. Continuava a existir um largo setor de subsistência, sem nenhuma

importância política e, portanto, sem nenhuma condição de exigir mudanças no

sistema de propriedade rural.

Tanto o governo Vargas quanto o de Kubitschek se caracterizaram por um

“nacionalismo desenvolvimentista” condicionado pelos entraves institucionais

mantidos e pelas diversas formas de “conciliação” entre todos os interesses

manifestos173. Não houve nenhuma tentativa mais séria de alteração da estrutura

social do que as generalizadas discussões sobre “reforma agrária” que marcaram as

décadas de ‘50 e ‘60 (e que, de alguma forma, se prolongam até hoje). Especialmente

Kubitschek baseou seu governo num programa de acelerado desenvolvimento

econômico, apoiado num clima de confiança e de entusiasmo por grandes realizações

nacionais. A nova capital, usinas hidroelétricas, estradas cortando regiões até então

inaccessíveis, dispensaram ou adiaram a necessidade de reformas.

“Quanto aos outros agricultores [os grandes proprietários – LB], tinham poucas

razões para continuar a temer reformas significativas na estrutura arcáica do uso da

terra. Kubitschek, pelo contrário, assim como Vargas antes dele, nunca levantou o

problema da terra de outra forma, senão a de sugerir medidas politicamente

inóquas, tais como a expansão do crédito rural ou o aperfeiçoamento da

distribuição de alimentos através das facilidades de construção de novos armazéns.

Tendo sido bem treinado na escola política da PSD de Minas Gerais, Kubitschek

estava pouco inclinado a influir no sistema de propriedade rural existente.”

(Skidmore, 1968, pg.209-10).

No entanto cresciam as agitações e os movimentos “radicais” entre os camponeses,

principalmente no Nordeste, e pela primeira vez os proprietários rurais se sentiram

ameaçados, criando pressões para que algo fosse feito ao nível das instituições.

Apesar dessas pressões, no confuso período que se seguiu ao governo Kubitschek a

única alteração significativa com relação à propriedade fundiária foi introduzida pela

Emenda Constitucional nº 5 (21/11/61) que “instituiu nova discriminação de rendas

173 Skidmore (1968).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 141

em favor dos municípios brasileiros”, passando aos municípios os impostos sobre

propriedade rural e transmissão de propriedade:

Art. 29 ...pertencem aos Municípios os impostos:

I Sôbre propriedade territorial urbana e rural;

II predial;

III sôbre transmissão de propriedade imobiliária inter vivos e sua

incorporação ao capital de sociedade;

IV de licença;

V de industrias e profissões;

Essa atribuição durou pouco tempo pois a Emenda Constitucional nº 10/64 devolveu

o imposto rural para a União.

O desenvolvimento das forças produtivas e o alargamento do mescado interno

ocorrido no governo Kubitschek resultaram na consolidação de uma classe de

assalariados (operários e camponeses) e de uma burguesia nacional, mais uma vez

desafiando a permanência do regime de acumulação entravada. No período

Janio/Jango a elite perdeu o contrôle do Estado, tornando necessário o Golpe de 1964.

6.5 A Constituição de 1967/69 e o Sistema Tributário Nacional

A consolidação jurídica do golpe de Estado de 1964 se fez através de uma série de

Leis e Emendas Constitucionais até ser promulgada nova Constituição em 1967,

seguida da outra redação dada pela Emenda nº1, em 1969. As Emendas à

Constituição de 1946 prepararam o caminho para as leis que iriam dar uma estrutura

muito mais rígida de controle sobre os orçamentos e as finanças públicas por parte do

governo central. Duas medidas de alcance estrutural, diretamente ligadas ao interesse

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 142

deste trabalho, forma impostas logo no início do governo militar: o Estatuto da Terra

e o Sistema Tributário Nacional.

A Lei 4.504 (30/11/64) que “dispõe sobre o Estatuto da Terra”174 se constitui num

marco histórico da legislação sobre a propriedade pois, pela primeira vez, coloca a

reforma agrária como assunto central.

Art.1° Esta Lei regula os direitos e obrigações concernentes aos bens imóveis

rurais, para os fins de execução da Reforma Agrária e promoção da Política

Agrícola.

Esta lei estabeleceu condições formais para uma reforma agrária (que nunca foi feita),

criou o IBRA (Instituto Brasileiro de Reforma Agrária) e instituiu um cadastro de

imóveis rurais, regulamentado pouco depois pelo Decreto 55.891 de 31 de março de

1965.

Já a Emenda Constitucional n° 18, publicada em 6.12.65, estabeleceu as novas regras

tributárias ao nível das determinações constitucionais, sendo a base da legislação

federal e municipal hoje em vigor.

O imposto sobre a propriedade territorial rural foi mantido como competência da

União, apoiado sobre o IBRA e o cadastro de imóveis rurais. Depois de arrecadado, o

imposto rural é redistribuido aos municípios.

O impôsto sôbre a propriedade predial e territorial urbana continuou sendo de

competência dos municípios e os estados ficaram com a arrecadação da sisa (imposto

sobre transmissão de imóveis).

Art.9° Compete aos Estados o impôsto sôbre a transmissão, a qualquer título, de

bens imóveis por natureza ou por cessão física, como definidos em lei, e de direitos

reais sôbre imóveis, exceto os direitos reais de garantia.

§ 1º O impôsto incide sôbre a cessão de direitos relativos à aquisição dos bens

referidos neste artigo.

174 O Estatuto da Terra será examinado no Capítulo 10: As terras agrícolas e o Imposto Rural.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 143

§ 2º O impôsto não incide sôbre transmissão dos bens ou direitos referidos neste

artigo, para sua incorporação ao capital de pessoas jurídicas, salvo o daquelas

cuja atividade preponderante, como definida em lei complementar, seja a venda

ou a locação da propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua

aquisição.

O segundo parágrafo traz uma alteração significativa com relação às constituições

anteriores qual seja, a eliminação do imposto sobre transmissão de bens para

incorporações ao capital de sociedade.

Um ano depois da Emenda Constitucional n°18 à Constituição de 1946 a Lei 5.172

de outubro de 1966 estabeleceu o Sistema Tributário Nacional, pela primeira vez

reunindo as “normas gerais de direito tributário”, explicitando uma estrutura de

tributação e estabelecendo os tributos e respectivas competências:

Impostos sobre o Comércio Exterior

Importação União

Exportação União

Impostos sobre o Patrimônio e a Renda

Propriedade Territorial Rural União

Propriedade Predial e Territorial Urbana Municípios

Transmissão de Bens Imóveis Estados

Renda e Proventos de qualquer natureza União

Impostos sobre a Produção e a Circulação

Produtos Industrializados União

Estadual sobre a Circulação de Mercadorias Estados

Municipal sobre a Circulação de Mercadorias Municípios

Operários de Crédito União

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 144

Serviços de Transporte e Comunicações União

Serviços de qualquer Natureza Municípios

Impostos Especiais

Combustíveis, Energia Elétrica etc. União

Extraordinários (em caso de guerra) União

Foram estabelecidas regras visando consolidar os sistemas de impostos federais,

estaduais e municipais. Em particular, os impostos imobiliários foram resolvidos em

três artigos para a propriedade urbana (de competência municipal) e outros tantos

para a rural (de competência da União):

Art.32 O impôsto, de competência dos Municípios, sôbre a propriedade predial e

territorial urbana tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse

de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil,

localizado na zona urbana do Município.

§1º Para efeito dêste impôsto, entende-se como zona urbana a definida em lei

municipal; observado o requisito mínimo da existência de melhoramentos

indicados em pelo menos 2 (dois) dos incisos seguintes, construídos ou

mantidos pelo Poder Público:

I meio-fio ou calçamento, como canalização de águas pluviais;

II abastecimento de água;

III sistema de esgôtos sanitários;

IV rêde de iluminação pública, com ou sem posteamento para distribuição

domiciliar;

V escola primária ou posto de saúde a uma distância máxima de 3

quilômetros do imóvel considerado.

§2º A lei municipal pode considerar urbanas as áreas urbanizáveis, ou de expansão

urbana, constantes de loteamentos aprovados pelos órgãos competentes,

Page 145: A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil

Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 145

destinados à habitação, à indústria ou ao comércio, mesmo que localizados

fora das zonas definidas nos termos do parágrafo anterior.

Art.33 A base de cálculo do imposto é o valor venal175 do imóvel.

Art.34 Contribuinte do impôsto é o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio

útil, ou o seu possuidor a qualquer título.

Art.29 O impostos, de competência da União, sobre a propriedade territorial rural

tem como fato gerador a propriedade, o domicílio [sic, deve ser domínio – LB]

útil ou a posse de imóvel por natureza, como definido na lei civil, localizado

fora da zona urbana do Município.

Art.30 A base de cálculo do impôsto é o valor fundiário.

Art.31 Contribuinte do impôsto é o proprietário do imóvel, o titular de seu domínio

útil, ou o seu possuidor a qualquer título.

Nota-se pela primeira vez a preocupação em distinguir entre urbano e rural. A falta

de sentido desta distinção e os problemas decorrentes são examinados nos Capítulo

10.

A Constituição da República Federativa do Brasil, de 24 de janeiro de 1967, com a

redação dada pela Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, consolidou

a estrutura jurídico-institucional montada a partir do Golpe de ‘64.

No que diz respeito aos impostos imobiliários, sua estrutura já tinha sido adequada

com as Emendas à Constituição anterior, especialmente a E.C. n°18, e foi apenas

confirmada em 67/69, com poucas alterações.

Vale ressaltar a manutenção da contribuição de melhoria.

Art.18 ...compete ... aos Municípios instituir:

II contribuição de melhoria, arrecadada dos proprietários de imóveis

valorizados por obras públicas

175 Venal (do latim venalis, venale) significa “vendável” ou “que está sujeito a ser vendido”. Portanto a expressão “valor venal” não se aplica corretamente no caso de “valor de base para tributação” pois esse valor difere exatamente do “valor de mercado” ou “valor de venda”.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 146

Houvera algumas tentativas anteriores de usar a contribuição de melhoria como

instrumento para forçar a participação efetiva dos proprietários de terra nos custos de

implantação da infraestrutura necessária para a acumulação. Já em 1949 a Lei 854

estabelecera com detalhes as condições e regras para cobrança de contribuição de

melhoria, pela União, Estados e Municípios, nos casos de valorização de imóveis

resultante de obras públicas. Somente a partir de EC nº 18, em 1966, as Constituições

passaram a citar a contribuição de melhoria como uma possibilidade, sempre

dependente de regulamentação. A Lei 5.172/66 (que institui o Sistema Tributário

Nacional) expressamente revogou a Lei 854/49 e apenas menciona vagamente a

competência municipal para cobrar contribuição de melhoria. Por que a lei de 1949

nunca foi aplicada e por que é tão difícil cobrar algo que parece simples, é uma

história que ainda precisa ser contada (ou, talvez, apenas publicada).

A Constituição de 67/69 pela primeira vez menciona a formação de regiões

metropolitanas:

Art.164 A União, mediante lei complementar, poderá, para a realização de serviços

comuns, estabelecer regiões metropolitanas, constituídas por municípios que,

independentemente de sua vinculação administrativa, façam parte da mesma

comunidade sócio-econômica.

Vale ainda lembrar a última alteração na ordenação do direito de propriedade,

ocorrida com a Lei 6.766 de 19 de dezembro de 1979 (Lei Lehmann). Promulgada

especificamente para regulamentar o parcelamento do solo urbano ela atingiu as

práticas de registro de títulos imobiliários, responsabilizando os Cartórios não só pela

correção dos registros mas também pela regularidade dos loteamentos registrados.

Art.18 Aprovado o projeto de loteamento ou de desmembramento, o loteador

deverá submetê-lo ao registro imobiliário dentro de 180 (cento e oitenta) dias, sob

pena de caducidade da aprovação, ...

§4º O Oficial do Registro de Imóveis que efetuar o registro em desacordo com as

exigências desa Lei ficará sujeito à multa equivalente a 10 (dez) vezes os

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 147

emolumentos regimentais fixados para o registro,... ,sem prejuízo das sanções

penais e administrativas cabíveis.

Art.22 Desde a data de registro do loteamento, passam a integrar o domínio do

Município as vias e praças, os espaços livres e as áreas destinadas a edifícios

públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial

descritivo.

Constitui crime contra a Administração Pública:

Art.52 Registrar loteamento ou desmembramento não aprovado pelos órgãos

competentes, registrar o compromisso de compra e venda, a cessão ou promessa de

cessão de direitos ou efetuar registro de contrato de venda de loteamento ou

desmembramento não registrado. Pena: Detenção, de um a dois anos, e multa de 5

a 50 vezes o maior salário mínimo vigente no País, sem prejuízo das sanções

administrativas cabíveis.

Apesar de não eliminar a prática de loteamentos irregular, a Lei Lehmann disciplinou

a questão. Até então, via de regra, os cartórios registravam qualquer subdivisão, fosse

ou não aprovada. Cabia ao Estado ou ao Município fazer valer as próprias leis

mediante aplicação de sanções que, no entanto, não punham em risco o direito de

propriedade e, portanto, de venda da terra parcelada176.

Essas duas décadas marcaram o fim do processo de urbanização do Brasil, não apenas

no sentido corriqueiro de transferência da maior parte de sua população para as

cidades mas, de fato, no sentido da completa unificação do mercado com a integração

nele de praticamente toda a população. Em outras palavras, atingiram-se os limites

para um estágio de acumulação predominantemente extensivo, o que coloca pela

primeira vez na história do país a crise como crise estrutural e não apenas de

conjuntura política.

176 Sobre o processo de aprovação de loteamentos ver Battaglia (1987).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 148

6.6 A Nova República

Como visto no Capítulo 3: O Estado no Brasil, o esgotamento do processo de

crescimento econômico pela transformação de produção pré-capitalista em produção

de mercadorias, significa o esgotamento das possibilidades de se manter o processo

de acumulação entravada e impõe alterações estruturais na economia e portanto na

organização social. A continuidade do processo de acumulação (equivalendo à

continuidade do modo de produção capitalista) implica na passagem para um estágio

de acumulação predominantemente intensiva, o que exige por sua vez infraestrutura e

condições de produtividade em patamares totalmente diversos do que forma

instituidos até o momento.

Vale notar também que essa reorganização, se ocorrer, se fará num quadro de crise

estrutural do capitalismo a nível mundial, crise esta cada vez mais difícil de ser

escamoteada.

A Nova República se implantou neste quadro, iniciando pela elaboração de mais uma

Constituição.

A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de

1988 foi precedida de ampla movimentação de grupos e da imprensa, com posições e

interesses que estavam longe de serem claros, situação que, aliás, perdura nos atuais

debates sobre a “revisão constitucional”. As partes são rotuladas de “liberais” ou

“estatizantes”, confundidas com “direita” e “esquerda” ou com “modernos” e

“retrógrados” (ou dinossauros), misturadas com “corruptos” e “honestos”, tornando

difícil a percepção das medidas tendentes a gerar condições para a continuidade do

processo de acumulação (em novo patamar tecnológico) no meio de todas as pressões

e ações para a manutenção dos privilégios e da estrutura de classe não burguesa.

Vista como porta de regresso a uma forma “democrática” de governo, a Constituição

de ‘88 foi construída e discutida ítem a ítem sob as pressões da imprensa para que a

“opinião pública” visse nela uma garantia de distribuição do poder e do bem estar

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 149

social, independente das reais condições de produção177. Nessa ilusão de conquista de

poder através de formalidades jurídicas pode-se entender as tentativas de “reforma

urbana” ou “desenvolvimento urbano”, conforme será examinado adiante.

As alterações introduzidas pela Constituição de ’88 com relação ao registro de terras

e à tributação foram poucas.

Há uma referência aos registros junto com a confirmação de seu caráter privado:

Art.236 Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por

delegação do Poder Público.

A menor possibilidade de terras se reflete na redução das áreas máximas de terras

públicas cedidas sem controle:

Art.188 A destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a

política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária.

§1° A alienação ou a concessão, a qualquer título, de terras públicas com área

superior a dois mil e quinhentos hectares a pessoa física ou jurídica, ...,

dependerá de prévia aprovação do Congresso Nacional.

A tributação sobre a propriedade fundiária teve poucas alterações, destacando-se:

1) Uma tentativa (até agora não regulamentada por lei complementar) de tributar as

grandes fortunas:

Art.153 Compete à União instituir impostos sobre:

I importação de produtos estrangeiros;

II exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados;

III renda e proventos de qualquer natureza;

IV produtos industrializados;

177 Observe-se que uma nova constituição não anula toda a legislação anterior, que continua valendo enquanto for interpretada como contrária, o que só faz adensar a selva institucional que regula direitos e deveres ligados a interesses por natureza conflitantes.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 150

V operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou

valores mobiliários;

VI propriedade territorial rural;

VII grandes fortunas, nos termos de lei complementar.

§4° O imposto previsto no inciso VI terá suas alíquotas fixadas de forma a

desestimular a manutenção de propriedades improdutivas e não incidirá

sobre pequenas glebas rurais, definidas em lei, quando as explore, só ou

com sua família, o proprietário que não possua outro imóvel.

2)A transferência da sisa (sobre compra/venda de imóveis) do Estado para os

municípios e a permissão de imposto predial progressivo amarrado, no entanto, ao

“cumprimento da função social da propriedade”178:

Art.156 Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

I propriedade predial e territorial urbana;

II transmissão intervivos ... de bens imóveis ...

III vendas a varejo de combustíveis ...

IV serviços de qualquer natureza.

§1° O imposto previsto no inciso I poderá ser progressivo, nos termos de lei

municipal, de forma a assegurar o cumprimento da função social da

propriedade.

§2° O imposto previsto no inciso II:

I não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao

patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, ...

Uma alteração importante, até agora com poucas consequências por falta de

regulamentação, foi a transferência para os municípios da competência para criar e

alterar distritos179:

178 Essa vinculação serviu de pretexto para impedir sua aplicação em São Paulo em 1992.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 151

Art.30 Compete aos Municípios:

IV criar, organizar e suprimir distritos,...

VIII promover no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante

planejamento e controle de uso, do parcelamento e da ocupação do

solo urbano;

IX promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local,...

A Constituição de ‘88 coloca, sem resolver, a questão do conflito entre planejamento

e propriedade privada do solo. O assunto é tratado em vários capítulos, sempre de

maneira suficientemente genérica para que os artigos se prestem a interpretações

diversas conforme os interesses envolvidos. A “função social da propriedade”, que

havia sido introduzida na Constituição anterior como princípio básico para o

“desenvolvimento nacional e a justiça social” (Art.160), reaparece com certa ênfase:

há uma afirmação (Art.5°) e, mais adiante (Art.170), uma declaração de princípios:

Art.5° Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,

garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a

inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à

propriedade, nos termos seguintes:

XXII é garantido o direito de propriedade;

XXIII a propriedade atenderá a sua função social;

Art.170 A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na

livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os

ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I soberania nacional;

II propriedade privada;

III função social da propriedade;

179 Disstritos são subdivisões administrativas do município. O distrito-sede pode, em alguns casos excepcionais, como o de São Paulo, ser subdividido em subdistritos que, com maiores ou menores distorções, formam a base da descentralização das ações do Estado: delegacias escolares, delegacias de polícia, zonas eleitorais, agrupamento de unidades censitárias etc.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 152

IV livre concorrência;

V defesa do consumidor;

VI defesa do meio ambiente;

VII redução das desigualdades regionais e sociais;

VIII busca do pleno emprego;

IX tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital

nacional de pequeno porte.

A mesma função social reaparece várias vezes, relacionada com propriedade urbana

(no capítulo sobre Política Urbana) e com propriedade rural e reforma agrária (Da

Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária).

Art.182 A política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder público

municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o

pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade [aqui não mais da

propriedade! – LB] e garantir o bem-estar de seus habitantes.

§1° O plano diretor ... é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de

expansão urbana.

§2° A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências

fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.

§3° As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa

indenização em dinheiro.

§4° É facultado ao poder público municipal, mediante lei específica para área

incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do

solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu

adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:

I parcelamento ou edificação compulsórios;

II imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo

no tempo;

III desapropriação ...

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 153

A sequência de sanções do último parágrafo transcrito é ridícula pela indefinição e

impossibilidade de sua aplicação.

Art.184 Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma

agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social,

...

Art.186 A função social é cumprida quando a propriedade rural atende,

simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos

seguintes requisitos:

I aproveitamento racional e adequado;

II utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação

do meio ambiente;

III observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos

trabalhadores.

A ênfase dada ao planejamento na Constituição de ‘88, longe de definir uma diretriz

para a construção do espaço nacional, cria um pouco mais de confusão numa área já

bastante conturbada. Mais uma vez percebe-se o resultado de compromissos entre

interesses conflitantes, mas não explicitados em têrmos de ações “possíveis” ou “de

consenso” e sim, ao contrário, em têrmos de “princípios” que podem ser traduzidos

em ações em qualquer direção, incluindo nenhuma.

A “política de desenvolvimento urbano” é atribuição dos municípios (Art.182) ou

seja, o planejamento continua sendo visto como “planejamento econômico”,

supostamente desvinculado de qualquer territorialidade, e “planejamento físico-

territorial” resultante das “políticas de desenvolvimento urbano”, supostamente

estabelecidas e executadas pelos 4.493 municípios (Art.182). Ora, se política urbana

significa ação deliberada sobre o território, no sentido de definir um espaço e

consolidar um mercado com razoável grau de autonomia, não é ao nível das decisões

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 154

municipais que ela se efetiva. Mais uma vez “política urbana” foi relegada à condição

de corretora de distorções geradas pela “política econômica”.

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III Cadastros e registros

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 156

III Cadastros e registros

Sem contar os cadastros imobiliários mantidos pela Prefeituras para fins tributários, existem

no Brasil cinco sistemas de registro de imóveis1:

a) O Geral, comum e obrigatório (ou melhor, condição sine qua non de

reconhecimento dos direitos de propriedade), disciplinado pela Lei Federal

6015/73).

b) O Torrens, facultativo, instituído no fim do século passado numa tentativa

de garantir de fato os direitos de propriedade sobre imóveis bem definidos;

hoje só é admitido para imóveis rurais.

c) O Rural, organizado pelo INCRA para tributação dos imóveis rurais.

d) O especial, de imóveis rurais adquiridos por estrangeiros (Lei 5.709/71 e

D.74.965/74).

e) O das terras públicas.

Cada sistema foi sendo instituído para atender a uma finalidade precípua, cada um

com uma estrutura própria de manutenção e consulta, cada um sendo alterado ao

sabor das pressões e problemas específicos do momento, sem nenhuma preocupação

com a possibilidade de complementaridade, de compatibilidade e de cruzamento de

dados com os demais sistemas cujos registros são, ou deveriam ser, em boa parte os

mesmos. É como se uma montadora quisesse gerenciar seus estoques de produtos

1 Diniz (1992, pg.23).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 157

mantendo separadamente um sistema de registro dos carros grandes, um dos carros de

luxo, um dos carros verdes etc.

A esses sistemas se acrescentam os cadastro das 4.4932 Prefeituras do país, mantidos

para fins tributários, que só cobrem as áreas consideradas urbanas. Esses cadastros,

cuja finalidade é o conhecimento das propriedades para fins de pagamento do Imposto

Predial e Territorial Urbano, não garantem o direito de propriedade, reconhecido

apenas através do Registro Geral no Cartório de Registro de Imóveis. Não há

vinculação direta entre esses dois serviços, e nenhum dos dois se baseia em mapas

cadastrais confiáveis.

Tanto o Registro Geral quanto o Torrens são organizados unicamente para provar

direitos individuais sobre imóveis. O sistema de registro das terras públicas seria por

suposto o complemento equivalente. No entanto ele é incompleto e também não

mapeado.

Essa multiplicidade de registros torna inviável, na prática, saber a quem pertence cada

metro quadrado do território nacional. No próprio cadastro imobiliário da Prefeitura

de São Paulo (certamente um dos melhor organizados do país) há centenas de imóveis

de “proprietário ignorado”. O imposto não é cobrado e qualquer ação no sentido de

ocupar a área para uso público deve ser precedida por demorados trâmites judiciais.

De acôrdo com toda a estrutura jurídica a terra não é, em princípio, bem público

cabendo o ônus da prova em contrário a um eventual proprietário privado. Ao

contrário, o poder público deve demonstrar que não há títulos sendo reivindicados

sobre determinada área, ou enfrentar longas disputas judiciais na tentativa de reaver

terrenos “grilados”. Em geral perde.3

Essa relutância em tornar pública a informação de quem é proprietário do que (ou a

quem pertence o território nacional) se esconde atrás da dificuldade técnica de se

2 Número de municípios brasileiros em 01.01.91, segundo o IBGE - Anuário Estatístico do Brasil, 1991. 3 Sobre “grilagem” em São Paulo ver indicações de documentação em Coe [1983?].

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 158

elaborar e manter um sistema de mapas cadastrais. Até poucos anos atrás4 os

cartórios continuavam registrando títulos com descrições do tipo “segue por um valo

até a cerca do João da Silva ou quem de direito” e, ainda hoje, quando há um

levantamento, este raramente está referenciado a um sistema geral, conhecido de

coordenadas. Não há controle efetivo possível nessas condições.

O Registro Torrens foi uma tentativa de resolver o problema das frequentes disputas

de terras rurais, pela descrição mais precisa das glebas. Acabou sendo abandonado,

salvo em alguns estados onde foi implantado (Goiás, Rio Grande do Sul, por

exemplos), mesmo assim apenas parcialmente. As tentativas de implantar esse ou os

demais sistemas que o seguiram (INCRA, terras de estrangeiros, terras públicas),

conforme o espírito dominante desde sempre na administração pública brasileira de

acrescentar novos serviços ao invés de fazer funcionar os já existentes, só reforçam a

confusão e dispersam os recursos.

As próprias divisas de estado e municípios tem problemas de demarcação e não estão

claros os procedimentos práticos em casos de alteração física do elemento definidor

da divisa. Exemplos clássicos são o da retificação de um rio ou córrego ou do imóvel

cujas divisas cruzam as divisas do município. Dificilmente essas indefinições trazem

problemas administrativos, razão pela qual as soluções, em geral muito simples, não

são tomadas, contribuindo para manter a confusão e o descaso com o assunto

mapeamento5.

Inúmeros são os temas relacionados com a propriedade, o processo de sua formação

ou mesmo apenas com as formalidades de seu reconhecimento, objeto específico 4 Que a prática ainda continua, prova-o a reportagem feita pela TV Bandeirantes de São Paulo (apresentada em 15 de janeiro de 1995) sobre “grilagem” de terras no Distrito Federal. 5 Um relato sobre a “febre da cassiterita” em São João Del Rei na década de ‘40 é um exemplo de problemas e vantagens da falta de mapeamento: “...requeriam-se autorizações de pesquisas até pelo telefone, enviando-se instruções a intermediários no Rio, que logo introduziam os requerimentos, obtendo praso para a juntada das plantas e demais documentos. Estas plantas, em geral, não eram obtidas por levantamentos diretos que, não obstante a simplicidade dos seus processos expeditos e sumários, exigiam a presença de um topógrafo no local, o que já poria de sobre-aviso o proprietário, que lhe barraria a entrada. Elas eram, em geral, forjada sobre a planta do município, muito falha e repleta de erros, e abrangiam terrenos onde o requerente nunca havia antes posto o pé, ...” J.G.Moraes Filho (1951).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 159

desta parte III. Foi portanto necessário delimitar, um tanto arbitrariamente, o assunto

a ser tratado e neste sentido o trabalho aqui apresentado se atém por um lado, a uma

introdução do tema, dando um quadro resumido da multiplicidade dos registros e, por

outro, à descrição de apenas dois sistemas: o registro geral e os cadastros fiscais,

objetos, respectivamente, dos Capítulos 8 e 9. O Capítulo 10 esboça, de maneira

abrangente porém sucinta, as questões relacionadas com as terras agrícolas.

Esses três capítulos são precedidos (Capítulo 7) por algumas informações sobre a

evolução dos cadastros em outros países, particularmente na França, procurando

mostrar a importância dada aos sistemas cadastrais nas sociedades burguesas.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 160

CAPÍTULO 7: SISTEMAS CADASTRAIS

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 161

7 SISTEMAS CADASTRAIS

“O levantamento tinha dois objetivos: primeiro providenciar as

informações para a arrecadação dos impostos sobre a propriedade e,

segundo, dar ao Rei um conhecimento detalhado da extensão e da

distribuição da riqueza, das terras e das rendas de seus vassalos.”

Morton, A People’s history of England1

O conhecimento do território e de seus recursos sempre foi uma preocupação dos

governantes pois constitui a informação básica para medir a força disponível e

elaborar qualquer plano de ação, seja de administração, de defesa ou de conquista.

Com a formação das nações-Estado burguesas essa preocupação assumiu formas

muito específicas, decorrentes da necessidade de, por um lado, assegurar a

propriedade individual como instituição confiável e, por outro, permitir ao Estado

utilizar as informações sobre a propriedade individual e os rendimentos dela advindos

como base para tributação.

“É evidente que um Estado de direito moderno, que reconhece duas vezes o

direito de propriedade no preâmbulo de sua Constituição como um direito natural

e fundamental, não pode dispensar um documento de referência fundiária

exaustivo.” (Coudert, 1993).

Esta frase, tirada de um artigo de apresentação do projeto de informatização do

sistema cartográfico nacional da França, apresenta alguns aspectos relevantes para

entender o significado do cadastro numa sociedade burguesa.

1 “The survey had two objects: first to provide the necessary information for the levy of the gel dor property tax, and second, to give the King a detailed knowledge of the extent and distribution of the wealth, lands and revenues of his vassals.” Comentários sobre o Domesday Survey, levantamento das terras e da produção da Inglaterra feito em 1086 por ordem de Guilherme I. (Morton, 1938, pg.64).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 162

Em primeiro lugar é evidente o entendimento ideológico do direito de propriedade,

aceito como direito natural e fundamental. Nota-se, além disso, que não há distinção

de tratamento entre os dois termos, apesar de suas distintas origens: a propriedade é

de fato fundamental para o modo de produção capitalista (ver Capítulo 1) enquanto

que ser considerada natural é apenas resultado de uma formação ideológica.

O segundo aspecto interessante é a importância dada à identificação fundiária

exaustiva. Exatamente porque a propriedade como instituição é fundamental para a

manutenção de uma sociedade burguesa, essa instituição deve ser cercada e protegida

por todas as formalidades jurídicas e técnico/administrativas necessárias para o seu

reconhecimento e a sua perpetuação. Um “documento exaustivo de referência

fundiária” significa o elenco de todas as propriedade e sua representação de maneira a

não haver dúvidas nem quanto à abrangência desse elenco nem quanto à

disponibilidade de todos os recursos fundiários para a produção capitalista, excluida

portanto a possibilidade de qualquer parcela ter sido deixada para produção de

subsistência.

O registro de uma propriedade não é apenas um ato burocrático, externo ao objeto

registrado, como o é, o registro de um nascimento ou de um óbito. Neste caso não é o

fato de registrar que faz com que alguém nasça ou morra, enquanto que no caso da

propriedade e sim o registro (ou qualquer outro ato equivalente) que confere

existência à propriedade como tal. Portanto o processo histórico de afirmação da

propriedade e da distribuição da terra em propriedades teve de ser acompanhado dos

correspondentes reconhecimentos formais, que no Brasil vão das cartaas de sesmarias

ao registro nos Cartórios.

Este capítulo apresenta um breve apanhado da formação da propriedade numa

sociedade burguesa, mas desta vez sob o ponto de vista das formalidades do seu

reconhecimento. São apontadas as relações, mais ou menos estreitas, entre o cadastro

e os registros jurídicos da propriedade, assim como seus precedentes históricos para,

em seguida, apresentar como exemplo algumas das características gerais do sistema

cadastral francês.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 163

A escolha da França para mostrar aspectos do tratamento dado à propriedade por uma

sociedade burguesa teve dois motivos:

O cadastro francês sempre foi apresentado no Brasil como modelo de qualidade,

devido talvez à indubitável influência da França nos nossos meios acadêmicos e entre

os profissionais do planejamento. Mesmo não tendo a perfeição muitas vezes

alardeada, é de fato um modelo pela sua organização e, principalmente, pelo fato de

estar apoiado numa sólida base cartográfica.

O segundo motivo tem a ver com a semelhança das estruturas jurídicas da França e do

Brasil, derivada da semelhança das estruturas sociais marcadas pela implantação

incompleta do assalariamento2. Ambas as estruturas jurídicas se baseiam no Direito

Romano e ambas tem uma forte tradição de direito baseado em textos formais, à

diferença da importância dada à jurisprudência pela Inglaterra (e ex-colônias), por

exemplo. Muito da legislação brasileira sobre cadastros e registros sofreu influência

direta da francesa, sem no entanto dispor da base organizacional capaz de garantir

resultados semelhantes. De fato, apesar da permanência em abas as sociedades de

uma classe de trabalhadores não assalariados, as duas se diferenciam pelas

características das classes dominantes (burguesa na França, de elite no Brasil) e,

portanto, pela organização social correspondente. Assim, enquanto na França a

acumulação capitalista exige o conhecimento do território e a contínua expansão da

infraestrutura, no Brasil a acumulação entravada requer o descontrole do espaço, a

escassez da infraestrutura e o cultivo do arbítrio. Nestas condições um cadastro

organizado não só é desnecessário como indesejado.

7.1 O conceito de cadastro

2 Vale lembrar que a Revolução Francesa não redundou no assalariamento de toda a população trabalhadora pois deixou uma classe de “camponeses”, produtores independentes.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 164

Cadastro, na origem, é o arquivo (ou sistema de arquivos) que reúne o conjunto de

informações sobre a propriedade imobiliária necessárias para o lançamento dos

impostos sobre as mesmas. É com este sentido que a palavra é usada na França3

(cadastre) e na Itália4 (cadastro), e é com este sentido que ela é empregada neste

trabalho.

Essa observação é necessária para evitar confusões geradas pelo frequente uso do

termo num sentido mais genérico, visto que no Brasil cadastro passou a designar uma

relação organizada de dados sobre um conjunto de elementos quaisquer.

“Por extensão cadastro, aproveitado na organização informativa que representa,

passou a designar todo sistema de fichário, organizado pelos estabelecimentos

públicos ou particulares, referente a qualquer assunto de seu interesse, seja

econômico ou mesmo administrativo. E assim se conhecem os cadastros

policiais, bancários, e outros.” (Silva, De P., 1963, pg.272)

Distinguem-se dois tipos de cadastros: os fiscais e os jurídicos.

Os fiscais, são mantidos pelo Estado apenas para fins de tributação, sem que com isso

ele assuma a prova da propriedade que cabe, exclusivamente, ao proprietário. Quando

da confecção ou atualização do cadastro o Estado aceita a informação aparente,

fornecida mediante certas regras que não incluem o estabelecimento da prova jurídica

da propriedade. O cadastramento se dá sem que seja precedido pela publicação dos

dados com vistas ao levantamento de possíveis contestações e ao acerto e

reconhecimento legal. A Inglaterra, por exemplo, mantém um cadastro deste tipo,

separado do registro fiscal isto é, os dados que contém não tem valor jurídico, não

3 Eis um exemplo de definição de cadastro na França: “O cadastro poderia ser definido como o inventário geral dos imóveis construídos e não construídos de um território, identificados graças a uma representação planimétrica das parcelas (lotes), qualificados quanto à utilidade econômica e à propriedade, com a finalidade de fornecer à administração uma estimativa suficientemente exata para distribuir de maneira eqüitativa os impostos sobre a propriedade fundiária.” (Maurin, 1992, pg.13). 4 Definição de catasto segundo o Zingarelli – Vocabolario della lingua italiana: “Conjunto das operações destinadas a estabelecer a consistência e os rendimentos dos imóveis com a finalidade de lançar-lhes os correspondentes impostos. / Conjunto de documentos e registros que contém os resultados de tais operações.”

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 165

servem como prova de propriedade e, via de regra, não tem relação com os registros

nos Cartórios que, estes sim, constituem prova de propriedade.

Os cadastros jurídicos reúnem num único sistema o reconhecimento dos direitos e os

dados para tributação. Nestes casos o Estado intervém diretamente na determinação

das provas de propriedade: o cadastro e o registro são serviços complementares que

emitem um título de propriedade garantido pelo Estado. O Grundbuch, o livro

fundiário alemão onde são registradas as propriedades, está fundamentado sobre um

cadastro jurídico.

Qualquer que seja o tipo de cadastro ele tem duas funções, às quais correspondem

formas diversas de gerenciamento: uma função “estática”, de armazenamento de

dados de situação física, cuja alteração é esporádica; uma função “dinâmica”, de

manutenção das frequentes alterações de ocupação, uso, propriedade etc.

Nos últimos anos vem-se difundindo nos países centrais a utilização da estrutura

cadastral como suporte para dados de interesse para planejamento, obras, gestão de

serviços etc. Essa utilização, tornada viável graças aos avanços tecnológicos na área

da informação, ainda esbarra em problemas de organização e de mudança de

estruturas administrativas mesmo em países que dispõem de cadastros atualizados

como a França ou os Estados Unidos. No Brasil há tentativas isoladas de utilizar os

dados cadastrais para outros fins que não os tributários, tentativas essas limitadas não

só por problemas administrativos mas pela própria precariedade dos cadastros.

7.2 Precedentes históricos

Um dos primeiros cadastros de que se tem notícia foi criado no Egito, cerca de 3000

anos A.C., com a dupla função de estabelecer uma base tributária e de permitir a

recuperação dos limites dos terrenos periodicamente inundados pelo Nilo.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 166

Os cadastros gregos já incluíam as áreas urbanas e refletem uma vontade de controlar

a forma de ocupação do território através de parcelamentos cuidadosamente

projetados.

Os romanos, cuja organização social inclui durante muito tempo uma classe de

proprietários de terra, desde cedo dispuseram de bons serviços de medição e de

delimitação das áreas (ciência dos agrimensores). Nas províncias conquistadas

procederam à criação de cidades e à redistribuição de terras seguindo os princípios de

traçado dos campos militares, de tal modo que os cadastros se confundiam com os

planos de implantação. Esses planos continham as inscrições dos lotes, as medidas

das áreas que permaneciam de uso comum, a avaliação do rendimento e a situação

jurídica das terras: sob domínio do governo central ou do município, distribuídas

entre cidadãos romanos ou devolvidas aos antigos possuidores (em geral por serem

terras medíocres). Muitas propriedades, principalmente na França e na Itália (o caso

de Bologna é notável), guardam até hoje o traçado das centuriae romanas5.

Apesar da qualidade dos cadastros romanos é provável que estes não tivessem base

cartográfica. Registros de casos jurídicos mostram a preocupação em confiscar

representações cartográficas para evitar que outros que não o imperador tivessem

conhecimento da extensão do Império. Mas mesmo não relacionados a um sistema de

representação cartográfica único que permitisse a elaboração de um mapa geral de

uma província ou do Império, os cadastros tinham representações gráficas precisas

pois a planta cadastral de cada cidade ou projeto de assentamento era corretamente

amarrada a acidentes locais. Essas plantas cadastrais foram instrumentos importantes

para a administração fiscal, para a distribuição de terras, para projetos de utilização de

novas áreas (irrigação, drenagem, derrubada de florestas), para possibilitar o censo

dos recursos disponíveis.

5 A centuria correspondia ao terreno entre vias (o que hoje chamaríamos quadra) e recebia esse nome porque, na origem, era dividida em cem lotes individuais, de domínio privado. Tinham uma área de 200 jugeri (perto de 50 ha), cada jugerum (jeira em português) equivalendo à superfície que podeia ser arada num dia por uma parelha de bois sob jugum (canga).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 167

Com a queda do Império Romano os cadastros deixaram de ser mantidos, se bem que

alguns continuaram a ser utilizados por algum tempo como instrumentos fiscais.

Segundo Maurin6,

“muito provavelmente os Merovíngios mantiveram, sem atualização, o imposto

fundiário romano – e portanto o cadastro que permitia seu funcionamento –

enquanto puderam dispor de pessoal suficientemente capaz para administrá-lo.”

Bem mais do que a falta de pessoal para administrar os restos dos cadastros romanos

pesou no seu abandono o fato de não corresponderem mais nem a necessidades

administrativas nem a conceitos jurídicos, uma vez que a sociedade feudal se

organizou em torno do domínio senhorial sobre as terras e de intrincadas ralações de

vassalagem, o que não incluía qualquer conceito de propriedade individual.

Encontram-se restos de vários levantamentos de domínios feudais feitos durante a

baixa Idade Média para avaliar a extensão e qualidade das terras, a população servil e

portanto as rendas que poderiam ser extraídas. De maneira geral esses levantamentos

não possam de descrições pouco precisas.

Uma exceção foi o Domesday Survey7, um completo recenseamento da capacidade

produtiva da Inglaterra, feito por ordem de Guilherme o Conquistador em 1087,

apenas 20 anos após a conquista. Apesar das queixas e protestos generalizados,

registrados pelos cronistas da época, os encarregados do levantamento percorrem

quase todas as cidades e aldeias do país, perguntando sobre a extensão das áreas

cultivadas, quem as cultivava, quanta gente havia, quantos arados, quantos bois etc.

etc. Todas essas informações foram registradas no Domesday Book que nos dá uma

boa imagem da estrutura social e das fontes de riqueza na Inglaterra do século XI.

Não se trata de um cadastro mas de um levantamento mais abrangente que mostra

bem o tipo de informações que interessavam para a gestão dos domínios na época.

6 Maurin (1992, pg.53, n.31). 7 Morton (1938).

Page 168: A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil

Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 168

Durante a Idade Média, pelo menos na França, os municípios (restos das cidades de

administração autônoma do Império Romano) tinham liberdade para lançar, quando

necessário, impostos diretos em função da capacidade de contribuição de cada um. As

estimativas desta capacidade, sem base material de comparação, geraram revoltas e

acabaram fortalecendo a idéia de manter registros das declarações de capacidade de

contribuição com base nos bens disponíveis. Apesar de parciais e desarticulados, e de

não terem representação gráfica, esses registros são vistos como o ressurgimento dos

cadastros, a partir do fim do século XIII e início do XIV. A representação gráfica só

apareceu na França no século XVIII.

7.3 O cadastro na França

Coerentemente, o cadastro das propriedades (e não apenas o levantamento da

capacidade tributária) na França nasce com a revolução burguesa. As primeiras

medidas tomadas continuaram sendo na direção de se conhecer os rendimentos

fundiários, estabelecidos como base tributável, mas ficou claro desde o início que

para tanto era preciso substituir os velhos registros medievais. Esses, não só se

haviam tornado obsoletos pela própria forma de administração como, principalmente,

não respondiam às inúmeras alterações correspondentes às mudanças jurídicas

(direitos feudais transformados em propriedade) e aos confiscos das terras da Igreja.

Atribui-se a Bonaparte, Primeiro Cônsul, a declaração:

“Nunca se fez nada na França a favor da propriedade; aquele que fizer uma boa

lei sobre o cadastro será merecedor de uma estátua.”8

Conforme observado acima, a revolução burguesa na França, à diferença da

Inglaterra, não se fez sobre a espoliação do campesinato e a população camponesa foi

em grande parte transformada em pequenos proprietários. Isto impôs a necessidade de

8 Maurin (1992, pg.33).

Page 169: A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil

Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 169

se montar um sistema cadastral capaz de fornecer dados para tributação sobre muitas

pequenas parcelas, portanto mais difícil de manter do que um cadastro de grandes

propriedades.

Uma primeira tentativa de confecção de um cadastro geral foi lançada em 1802.

Previa-se o traçado, sobre mapas comunais na escala 1:5.000, das áreas de uso

homogêneo. A subdivisão entre os proprietários no interior de cada área não seria

mapeada, valendo as declarações de superfície de cada um. A experiência foi um

fracasso o que, em julho de 1807 valeu nova observação de Napoleão, já Imperador:

“As meias medidas sempre fazem perder tempo e dinheiro.”9

No mesmo ano de 1807 foi determinada a execução de um cadastro nacional, a nível

de lote. A extensão e objetivos desse cadastro estão claramente expressos na

exposição de motivos da lei que o criou:

Medir sobre uma extensão de mais de quarenta mil léguas quadradas mais de

cem milhões de parcelas ou propriedades separadas, confeccionar para cada

município um mapa em formato de Atlas contendo esses cem milhões de

parcelas, classificá-las de acordo com o grau de fertilidade do solo, avaliar o

produto bruto de cada uma; reunião em seguida, para cada proprietário, as

parcelas que lhe pertencem, determinar pela soma de seus produtos o rendimento

total, e fazer deste rendimento um indicador que será daí em diante a base

imutável para sua tributação ...10

Apesar desse caráter nitidamente fiscal do cadastro projetado (a cargo do Ministério

das Finanças), havia a idéia de que ele poderia ter valor jurídico com o que resolveria

todos os problemas de contestação de divisas. O próprio código cadastral, elaborado

no início do processo de levantamento diz:

9 Maurin (1992, pg.35). 10 Maurin (1992, pg.35).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 170

Art.1143 O cadastro pode, e deverá com o tempo, servir de título na justiça para

provar a propriedade.11

E, finalmente, vale mais uma citação do imperador que resume bem o significado do

cadastro naquele momento qual seja, o reconhecimento da nova situação jurídica da

propriedade no início do século XIX:

“O que melhor caracteriza o direito de propriedade é a posse pacífica e declarada.

É preciso que o cadastro se limite a constatar essa posse. Meu código fará o resto;

e na segunda geração não haverá mais processos para contestação de divisas.”12

O cadastro foi terminado em 1850 mas já muito antes começaram a se avolumar as

reclamações e críticas: não havia sistema de atualização e a própria legislação que

criara o cadastro o havia considerado imutável, um retrato definitivo da estrutura

fundiária e da capacidade de produção agrícola do país. Apenas os nomes dos

proprietários eram atualizados, o que obviamente não correspondia à mobilidade das

divisas e dos usos do solo, não mais presos a normas e tradições feudais.

Uma comissão montada em 1891 concluiu, após vários testes e 14 anos de trabalho,

pela revisão/reconfecção do cadastro e pela instituição de livros de registro fundiário,

baseados no cadastro e tendo valor jurídico. A comissão recomendava:

1) agilizar os trabalhos de colocação de marcos de referência em todo

o país

2) coordenar meios e programas para completar os trabalhos em trinta

anos

3) nomear um Conselho junto ao Ministro das Finanças para assegurar

a qualidade dos trabalhos

Essas conclusões não tiveram sequência.

11 “Art.1143 Le cadastre peut et doit même nécessairement par la suite, servir de titre en justice pour prouver la propriété.” 12 Maurin (1992, pg.59, n.90).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 171

Em 1898 nova lei instituiu regras para a reforma parcial do cadastro, condicionando-a

à solicitação dos departamentos ou das “communes”. Pelo seu caráter parcial e não-

jurídico essa reforma teve pouco efeito.

Diante das crescentes distorções fiscais geradas pela obsolescência do cadastro que

continuava em vigor, em 1907 o parlamento aprovou uma lei autorizando uma

reavaliação direta dos rendimentos de cada propriedade. Resolvia a curto prazo o

problema fiscal sem, no entanto, criar as condições para uma solução duradoura. De

fato, após uma primeira reavaliação, foram crescendo as dificuldades pra manter essa

avaliação atualizada, com a base cadastral cada vez mais obsoleta.

Uma lei de 1930 determinou a renovação do cadastro nas áreas de baixa densidade

(predominância de uso agrícola), aproveitando as plantas existentes e apenas

atualizando as alterações de divisas. A execução dos trabalhos demonstrou a

inviabilidade do aproveitamento de boa parte dessas plantas, seja por deficiências das

plantas, seja pela quantidade das alterações ocorridas.

A estrutura atual do cadastro se apoia em lei de 1941 (e decretos de regulamentação)

que determinou a execução de um novo levantamento e a unificação dos métodos e

serviços ligados à renovação cadastral. Foi previsto que, à medida em que ocorresse

esta renovação, o cadastro garantia a identificação dos imóveis. Ao mesmo tempo a

documentação da situação jurídica seria mantida por cartórios de registro de

hipotecas, com base no cadastro. Note-se que a importância dessas medidas e dos

serviços decorrentes não está apenas no fato de ter sido determinado um novo

levantamento mas principalmente no de ter sido montada uma estrutura

administrativa e jurídica, com recursos e regras estáveis de funcionamento, visando a

atualização permanente do cadastro. Não se tratava de refazer todo o levantamento

mas de corrigir, completar e atualizar, permanentemente, aproveitando todo o

trabalho já acumulado e revendo constantemente as prioridades. O novo cadastro foi

paulatinamente substituindo o velho cadastro, aproveitando grande parte de sua

estrutura e de seus dados, e vale notar que o processo de substituição ainda não está

terminado.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 172

A partir de 1972 foram introduzidas novas técnicas de informatização e as plantas

passaram a ser digitalizadas. Durante a década de ‘70 foram introduzidos os grandes

arquivos de apoio ao cadastro13, utilizados por todas as administrações públicas e

usuários privados:

RIVOLI (Répertoire dês Voies et Lieux-dits14) - Contém o nome de todas as vias

e localidades, por departamento e “commune”, e um código associado a cada

nome. É utilizado desde 1973.

RGU (Répertoire Géographique Urbain15) - Contém todas as quadras, por

departamento e “commune”, identificas por um código e associadas aos

segmentos das vias que as limitam. Contem também os nós que limitam os

segmentos de vias e os números dos imóveis (endereço) dos cantos de quadra.

Está em operação desde 1976.

RGP (Répertoire Géographique dês Parcelles16)- Contém todas as parcelas ou

lotes, por departamento e “commune”, cada uma identificada por um código e

associada à quadra que a contém e à via que lhe dá acesso. Em 1978 ainda estava

em fase experimental e tornou-se operacional na década de ‘80.

A esses arquivos foram acrescentadas a relação das construções e a relação dos

proprietários. Um sistema complexo apoiado num trabalho de padronização permite a

passagem de um arquivo a outro e a pesquisa a partir de qualquer dado de entrada.

Os números a seguir (de 1° de janeiro de 1987) dão uma idéia do volume de dados

tratados pelo sistema cadastral, provavelmente o sistema que manipula o maior banco

de dados da França17:

Área total do território metropolitano18 546.547 km2

13 CEESI (1979) e OPIDA (1978). 14 Relação das vias e localidades. “Lieux-dits” designa aglomerados de parcelas e/ou construções que, não correspondendo a alguma divisão administrativa, são conhecidos por algum nome. Correspondem mais ou menos aos nossos “bairros”. 15 Relação Geográfica Urbana. 16 Relação Geográfica das Parcelas. 17 Maurin (1992, pg.48).

Page 173: A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil

Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 173

Número de vias 788.388

Número de localidades 5,7 milhões

Número de parcelas 97,4 milhões

Número de proprietários 20 milhões

Número de atualizações por ano 20 milhões

O impostos sobre a propriedade imobiliária, mesmo sendo recursos das “communes”,

são lançados e arrecadados pelo governo nacional. Anualmente, por ocasião da

elaboração do orçamento, os dados cadastrais são usados para o cálculo e lançamento

dos impostos fundiários. Mas os mesmo dados de identificação de vias, quadras e

lotes também são fornecidos para as finalidades mais diversas, de gestão e

planejamento. São cada vez mais frequentes os convênios entre administrações de

diversos níveis para a troca e atualização permanente de dados.

Vale ainda mencionar que todo o cadastro se apoia sobre um sistema cartográfico

nacional, mantido pelo IGN (Institut Géographique National).

A meta de transformar o cadastro num instrumento de valor jurídico ainda não foi

plenamente alcançada. Os tribunais aceitam como pressuposto as informações do

cadastro mas essas não tem valor diante de um título ou outro documento de posse

reconhecido (contrato de compra e venda, por exemplo). No entanto, a cada caso de

acerto judicial de divisas e de propriedade os dados acertados são incorporados pelo

cadastro.

Muitas das pendências judiciais que ainda surgem se devem a situações não

perfeitamente enquadradas nas definições de propriedade como direito absoluto.

Existem ainda ônus e direitos sobre a terra, vindos de relações pré-capitalistas e que,

apesar de previstos no cadastro, nem sempre são corretamente anotados pelos

encarregados do levantamento. Esses ônus e direitos correspondem em boa parte aos

18 Não incluidos os territórios de além-mar.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 174

previstos no Código Civil brasileiro, acrescidos de alguns específicos de

determinadas regiões ou característicos de situações não existentes no Brasil

(relativos ao uso de canais, por exemplo). Diferentemente do que ocorre no Brasil, a

legislação francesa prevê detalhadamente qual parte de imposto compete a cada um

dos detentores de um direito real, o que exige informações mais precisas do que o

mero nome de um proprietário.

Estão em curso debates em torno da total informatização do cadastro e sua utilização

como base para o desenvolvimento de Sistemas de Informações Geográficas19. O

Plano Informatizado Nacional (PNN – Plan Numérique National20) tem por objetivo

“transformar o cadastro naquilo que se acredita ser”, especificamente:

definir os limites das propriedades e não a sua posse aparente;

definir esses limites através do acerto entre as partes, de modo a validá-los

juridicamente;

transformar em parcelas e delimitar todos os terrenos de domínio público;

elencar para cada parcela os direitos e ônus reais;

localizar cada parcela num sistema nacional de localização.

Finalmente, mesmo num relato sumário com este, é relevante notar a importância

dada às terras agrícolas que, historicamente, constituíram o primeiro objeto do

cadastro.

7.4 Informações esparsas sobre outros cadastros21

19 Mais conhecidos pela sigla inglesa GIS (Geographic Information Syystem). Ver a respeito o ítem 7.5 – Alterações tecnológicas. Sistemas de Informações Geográficas. 20 Coudert, Georges (1993). 21 Esses dados não foram objeto de pesquisa: foram aparecendo ao longo das leituras ou do trabalho profissional desenvolvido nesses últimos anos. Na inviabilidade de um tratamento sistemático julguei preferível apresentá-los assim mesmo, ao invés de ignorá-los e omiti-los.

Page 175: A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil

Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 175

Seguem algumas informações sobre cadastros e tributação imobiliário em alguns

países centrais: Itália, Holanda, Canadá e E.U.A. Essas informações não tem

nenhuma sistematização nem pretendem montar um quadro abrangente dos cadastros

no mundo. São apenas dados esparsos, com o intuito de mostrar a diversidade de

preocupações e de soluções em diversas sociedades capitalista e, ao mesmo tempo, a

constância de certos problemas.

Itália22

O sistema cadastral na Itália é essencialmente fiscal, salvo em algumas provincias que

faziam parte do Império Austríaco onde ele dá certa cobertura jurídica. É formado por

dois grandes cadastros: o dos terrenos e o das construções urbanas.

O primeiro foi organizado a partir de uma lei de 1886 para substituir os diversos

arquivos existentes antes da recente unificação do país. Houve várias alterações legais

até a consolidação por um texto único em 1931/33. O levantamento em si foi

terminado em 1956, tendo sido mapeadas todas as parcelas (lotes) em escala 1:2.000

ou 1:1000. Aos mapas são anexados arquivos alfanuméricos contendo dados sobre o

proprietário, sobre o uso, ocupação e características físicas da propriedade. Esses

dados são recuperáveis por lote ou por proprietário.

O cadastro das construções urbanas foi refeito a partir de 1961, com base nas

declarações e plantas fornecidas pelos proprietários (em escala 1:100 e 1:200).

Holanda

Na Holanda perto de 100 das 650 administrações locais fornecem informações

topográficas e cadastrais mapeadas à Agência Central de Cadastro. Essa agência tem

170 anos e, segundo os holandeses, mantém um dos cadastros mais completos do

mundo. A definição geométrica de todas as propriedades do país é atribuição dessa

22 Maurin (1992).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 176

Agência Central, que distribui os mapas cadastrais. As cidades que mantém serviços

próprios de levantamento e controle de uso do solo fornecem a esse cadastro central a

identificação de cada propriedade. A terra agrícola é isenta de imposto.

Canadá23

As informações disponíveis sobre o Canadá se referem à cidade de Toronto e à

província de Ontário abrangendo, portanto, a parte mais populosa e rica do país.

O Canadá se organiza em quatro níveis de governo: federal, provincial, regional

(metropolitano) e local. O cadastro das propriedades e os valores atribuídos a cada

uma (“property assessment”, correspondente ao valor venal) são mantidos pelo

Departamento Regional de Avaliação (Ministério da Receita) da Província de Ontário

e tratadas através do “Standard Assessment System”. Anualmente uma fita com os

dados cadastrais e os valores venais (“Assessment Tape”) é enviada a cada

administração local para o rateio e lançamento dos impostos. A partir dessa fita a

prefeitura da cidade de Toronto cria um arquivo (“Tax Master File”) que alimenta um

sistema (“Tax System”) para o cálculo, lançamento e controle de arrecadação dos

impostos. O sistema foi desenvolvido no fim da década de ‘50, a partir das rotinas

baseadas em arquivos em papel e cartões perfurados. O sistema mantém duas

contabilidades separadas, para propriedades imobiliárias e para atividades

econômicas.

Todas as alterações relativas à propriedade (compra/venda, desmembramento,

construção, reforma, mudança de uso) são comunicados ao cadastro provincial para

atualização.

O cálculo, lançamento e arrecadação do imposto são atribuiões do governo local. No

Canadá (assim como nos E.U.A.) o imposto imobiliário por unidade tributada não

resulta da aplicação de uma alíquota fixa a um valor venal do imóvel mas sim do

rateio do valor total do imposto a ser arrecadado, por todos os contribuintes, em 23 City of Toronto: manuais e relatórios técnicos.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 177

função do valor venal de cada imóvel. Na prática determina-se um índice de rateio

(mill rate24) que, em seguida, é aplicado ao valor da propriedade.

B

M= ____ ti = m * Ai

Ai

onde

m = mill rate

B = total do imposto imobiliário orçado

Ai = valor estimado da propriedade i

ti = imposto sobre a propriedade i

O imposto total a ser arrecado é definido (votado) como parte do orçamento e é

formado pela soma das parcelas a serem destinadas às administrações local, regional

e das escolas públicas. Como exemplo, foi a seguinte a distribuição desse imposto em

Toronto, em 1989:

Cidade de Toronto 20,9%

Região Metropolitana 25,8%

Escolas 53,3%

Os impostos imobiliários respondem por cerca de 86% do total das receitas próprias

da Cidade de Toronto.

E.U.A.25

Nas colônias inglesas da América eram comuns 5 tipos de imposto:

24 O índice recebe este nome porque costuma ser expresso em miliavos (um dólar de imposto por mil dólares de valor venal). 25 Eckert (1990).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 178

Per capita (“Poll tax”) isto é, um imposto igual por pessoa, independente

de ocupação, renda ou propriedade. Geralmente incidia sobre os

adultos de sexo masculino e às vezes sobre os escravos (o que o

transformava em imposto sobre propriedade).

Sobre propriedades especificadas (não necessariamente sobre a terra). Em

geral era fixo, independente do valor da coisa tributada.

Sobre a capacidade potencial de ganho, incidindo sobre pessoas dedicadas

a determinadas atividades ou tendo determinados recursos técnicos.

Sobre importação e exportação.

Sobre determinados ítens de consumo.

A composição variava nas diversas colônias, dependendo das relações de força do

momento. Em geral os grandes proprietários de terras conseguiam minimizar os

impostos fundiários.

O aumento de impostos para custear a Guerra de Independência pôs em evidência as

distorções na sua distribuição e provocou resistências, até armadas, em diversos

estados. Já no século XIX se difundiu a idéia de tributar todas as propriedades,

inclusive as moveis e as “intangíveis”. O Illinois foi o primeiro estado a incluir esse

tipo de imposto em sua constituição. As dificuldades (administrativas e jurídicas) de

lidar com impostos sobre qualquer tipo de propriedade levaram ao abandono dessa

base tributária ampla, permanecendo apenas o imposto sobre a propriedade

imobiliária.

Hoje a regulamentação e a administração do processo de avaliação da base tributária

são, em geral, responsabilidades dos governos estaduais. Em alguns estados são as

administrações locais que procedem à avaliação, supervisionadas por algum órgão

estadual.

A base cartográfica é mantida pelo Governo Federal. Em 1785 foi criado o primeiro

sistema de amarração cartográfica, o United States Public Land Survey System, com a

finalidade de demarcar as terras ainda não apropriadas (terras públicas). Consiste

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 179

numa malha retangular, definida por paralelos e por linhas paralelas a um meridiano

arbitrário, equidistantes aproximadamente seis milhas. Cada retângulo assim definido

é denominado “township” e é dividido em trinta e seis “sections” de

aproximadamente uma milha quadrada. Os cantos dos “township” foram marcados no

terreno, cobrindo todo o território, com exceção das treze colônias originais onde at

erra já havia sido dividida em propriedades. Esse sistema funciona como um índice

de localização dos mapas cadastrais.

Todas a plantas de subdivisão de terras são registradas por algum órgão oficial, em

geral ao nível do “country”.

7.5 Alterações tecnológicas. Sistemas de Informações Geográficas

Os avanços na tecnologia de armazenamento e manipulação de dados nas duas

décadas, principalmente a recente difusão da computação gráfica, levantaram em todo

o mundo a possibilidade (e portanto, a necessidade) de informatizar a cartografia e as

plantas cadastrais e de estabelecer o tratamento simultâneo dos dados gráficos e alfa-

numéricos. A informatização desses serviços requer (e provoca) mudanças na

organização administrativa da mesma ordem de grandeza das que já foram

provocadas nos países centrais pela introdução dos computadores no tratamento dos

arquivos de dados alfa-numéricos.

As discussões em torno dessas mudanças ainda estão em níveis técnico-operacionais

e aparecem em artigos de revistas especializadas e anais de congressos. Ao mesmo

tempo se avolumam as experiências em todo o mundo, pressionadas pela busca da

“eficiência” ou atraídas pelo fascínio da vanguarda tecnológica.

Uma reflexão sobre as perspectivas a médio prazo ainda está para ser feita. No

entanto, pelo menos na França, algumas questões estão sendo colocadas, não apenas

com relação às dificuldades operacionais para mudar rotinas administrativas mas

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 180

também pondo em dúvida a própria “eficiência” supostamente alcançável coma

informatização e integração de todos os serviços ligados ao cadastro, em todo o país.

Além de ter uma sólida tradição nas áreas da cartografia e do cadastro, os franceses

desenvolveram seus próprios aplicativos e sistemas de computação gráfica e há vários

anos já informatizaram os serviços nacionais, associando cartografia, cadastro e

imagem. Já o processo de informatização dos departamentos regionais e

“communes”, a ampliação dos serviços e o intercâmbio de dados avançam com

dificuldades maiores e começam a colocar de maneira aguda questões jurídicas e

gerenciais a serem resolvidas.

O problema mais recorrente nas publicações e congressos é o da adequação das

estruturas administrativas, em geral hierarquizadas, para a utilização de tecnologias

cujas vantagens residem justamente na possibilidade de distribuir informações e

responsabilidades não hierarquizadas. Um relatório governamental sobre a

informática na administração francesa conclui que

“O computador não melhorou a eficácia da administração. A introdução de

aplicativos informáticos raramente conduz a alterações profundas, limitando-se

na maioria das vezes a decalcar os sistemas pré-existentes, consolidando os

isolamentos tradicionais.” (Rouet26, 1992).

Foge ao escopo deste trabalho investigar se essas questões também são colocadas em

países como a Inglaterra, a Alemanha ou os E.U.A., que também dispõem de

cadastros bem organizados e de uma boa base cartográfica, ou se são problemas mais

restritos à França e, neste caso, investigar como essa diferença se relaciona com o

fato da França não ter se constituído desde o início numa sociedade inteiramente

capitalista.

26 Economista, responsável pelo desenvolvimento do Sistema de Informações por Parcela criado pela administração de Paris na APUR (Atelier Parisien d’Urbanisme), órgão de planejamento territorial da cidade.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 181

Muitos dos problemas levantados por técnicos e administradores franceses soam

familiares no Brasil, o que reforça o interesse nessas questões, apesar das diferenças

na organização social dos dois países.

Um desses problemas, por exemplo, diz respeito ao sigilo das informações cadastrais.

Se, por um lado, os “direitos individuais” são cada vez mais invocados como

justificativas de ações e de atos legais, por outro a manutenção do sigilo como forma

de preservar esses “direitos” assume cada vez mais o caráter de defesa de interesses

não mais aceitos como legítimos. A alegada necessidade de sigilo dos dados

cadastrais no Brasil é claramente apensa uma forma de inviabilizar o conhecimento

da distribuição das terras e a comparação entre bases tributáveis.

A divulgação da informação, que não se colocava como problema enquanto os bancos

de dados estavam escondidos em grandes computadores de acesso restrito, passa a ser

uma questão de acerto institucional à medida em que este acesso se torna

tecnicamente mais fácil e em que mais usuários compartilham dos mesmos dados

para diversas finalidades.

As possibilidades técnicas de armazenamento e manipulação de dados e a velocidade

com que a tecnologia evolui tornam obsoletos, cada vez mais rapidamente, os

equipamentos e programas aplicativos utilizados, ao mesmo tempo em que

enxurradas de dados se tornam acessíveis. Se, do lado dos capitalistas individuais isto

significa a cada vez mais rápida obsolescência do capital fixo27, do ponto de vista do

Estado significa a necessidade de adoção de procedimentos e rotinas administrativas

capazes de evoluir com a constante incorporação de nova técnicas de tratamento de

dados.

27 “Na definição mais geral, capital fixo é a parte do capital empregada para garantir as condições de produção por mais de um período de produção e capital circulante é a parte adiantada para as condições de produção para um período de produção isto é, um período ao fim do qual o valor de troca das mercadorias produzidas durante o mesmo período é realizado em forma monetária. ... Os componentes mais comuns do capital fixo são máquinas e edifícios, enquanto que os do capital circulante são salários e matéria prima.” (Deák, 1985, pg.127). A esses componentes do capital fixo deve-se acrescentar (para o que interesse no caso) as informações, parte essencial do processo de aumento de produtividade (e portanto da acumulação).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 182

Nas sociedades burguesas o avanço tecnológico é quase inteiramente financiado pelo

Estado, cujas instituições servem em parte para teste das aplicações de tais avanços.

No Brasil, não só a pesquisa científica praticamente inexiste, como o Estado

dificilmente adota novas técnicas em suas rotinas administrativas.

A incorporação de alterações tecnológicas pelo Estado brasileiro, restrita até agora a

poucos setores isolados, significaria uma efetiva “reforma administrativa” em que a

“informatização” (para usar um termo em voga) seria um jeito de fazê-la e não uma

sobreposição28.

28 Sobre as propostas de “reforma administrativa” e de “informatização” da Prefeitura de São Paulo ver Battaglia, 1990.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 183

CAPÍTULO 8:

OS CARTÓRIOS DE REGISTRO DE IMÓVEIS

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 184

8 OS CARTÓRIOS DE REGISTRO DE IMÓVEIS

“Antigamente tudo que a gente vê aqui na Vila Capivari, não tinha dono. Um dia

chegaram dois homens: um chamado Jordão e outro chamado Caetano. E

combinaram dividir entre eles todos os campos. Mas não sabiam como fazer as

divisas. Então combinaram que cada um reuniria os seus piões e estes iriam

ateando fogo em linha. Nos pontos onde os fogos se encontrassem, aí seriam as

divisas.” (pg.28)

“Ele veiu pros Campos do Jordão desde que os portugueses chegaram ao Brasil.

Desde a barra do Paraíba, desde Taubaté, tudo era dele, mas ele não comprou,

ficou com as terras.” (pg.29)1

8.1 A instituição dos registros

Os cartórios fazem parte do rol dos ofícios públicos cujas origens devem ser

procuradas na própria formação do Estado português. De acôrdo com as

Ordenações Filipinas2, os ofícios públicos eram considerados imóveis, providos

como propriedade vitalícia dos nomeados, podendo ser vendidos. Somente no

século XIX essa prática começou a ser revista. A Lei de 11/10/1827 (portanto já

depois da Independência) diz no Art.1° que

“nen-um offício de Justiça ou Fazenda, seja qual for a sua qualidade e

denominação, será conferido a título de propriedade”.

E segue (Art.2°) determinado que os ditos ofícios

1 Depoimentos recolhidos por Nicanor Miranda: Três lendas paulistas. In Revista do Arquivo Municipal CLXVI, Prefeitura do Município de São Paulo, 1962. 2 As Ordenações Filipinas, instituidas em 1603, eram o conjunto de eis que regulavam a administração de Portugal e suas colônias e que, mantidas pelo Brasil mesmo tipo da Independência, só foram revogadas em 1917 pelo Código Civil.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 185

“serão conferidos por títulos de serventias vitalícias à pessoas que para eles

tenhão a necessária e que os sírvão pessoalmente.”3

Deixaram portanto de ser propriedade, não podendo ser vendidos, mas

continuaram sendo vitalícios. Na prática os títulos de serventia eram concedidos

de modo a corresponder a uma transmissão hereditária, seguindo a boa tradição da

divisão do poder e das benesses entre os “homens bons”, providos da “necessária

idoneidade”.

O registro de imóveis aparece inicialmente como registro das hipotecas, sendo seu

objetivo o reconhecimento público das hipotecas sobre a propriedade e não da

propriedade em si.

Há diversos tratados jurídicos sobre o sistema de registro de hipotecas e de títulos

de propriedade no Brasil, comparando-o com o de outros países. De acordo com

Cretella Junior4, por exemplo, o Brasil adotou o sistema germânico de

reconhecimento de hipotecas (e direitos em geral) sobre a propriedade, por

oposição ao francês. O sistema germânico se baseia sobre o registro do título isto

é, reconhece que é pela transcrição e não pelo contrato que se adquire a

propriedade ou direitos sobre ela. Já o sistema francês admite que o direito é

adquirido pelo contrato e o registro tem por objetivo a publicidade do ato. Isto é

no Brasil, assim como na Alemanha, o contrato pelo qual se adquirem direitos

sobre um pedaço de chão deve ser registrado para que tenha valor jurídico.

Mas tanto o sistema germânico quanto o francês se baseiam num cadastro

mapeado e nisto o brasileiro difere de ambos. Os mesmos juristas ressaltam a

inexistência de um cadastro abrangente e, numa clara demonstração de defesa da

organização social vigente, afirmam a impossibilidade de se montá-lo:

“o registro de hipotecas foi timidamente introduzido pelo Art.35 da Lei

Orçamentária n° 317, de 21.10.1843 e regulamentado pelo Decreto n° 482 de

14.11.1846. A Lei 601 de 1850 (Lei das Terras Devolutas) e principalmente o

Decreto 1318 de 1854 que a regulamentou atribuiram aos vigários das

freguezias a incumbência de registrar os títulos de domínio, legalizando

3 Enciclopédia Saraiva do Direito (1981). 4 Cretella Junior (1968, vol.V, pg.120).

Page 186: A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil

Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 186

inclusive a posse. A respeito do Regulamento 1318 observa Teixeira de

Freitas: ‘Com esse registro nada se predispõe, como pensam alguns, para o

cadastro da propriedade imóvel, base do regime hipotecário germânico.

Teremos uma simples descrição estatística, mas não uma exata conta corrente

de toda a propriedade imóvel do país, demonstrando sua legitimidade e todos

os seus encargos. O sistema cadastral é impossível entre nós.’” (Wilson

Batalha, 1977)

ou:

“Num país em que a propriedade está cadastrada é possível se estabelecer, de

maneira irrefragável, a presunção de domínio. ... E num país imenso como o

Brasil, com população rarefeita como a sua, é impossível cadastrar a

propriedade imobiliária.” (Rodrigues, 1977)

Certamente não é impossível, como o mostra o Canadá que cadastrou suas

propriedades apesar de ser igualmente imenso e com população mais rarefeita que

o Brasil. O que foi impossível até agora, aos poucos que desejariam alterações na

organização social, foi mobilizar a vontade coletiva para isto.

O registro paroquial das terras, instituído pela Lei 601 de 1850, não chegou a ter

função cadastral e é difícil avaliar a importância de sua função como fonte de

informações estatísticas ou como base jurídica. Não há menção, nem na Lei nem

no decreto de regulamentação, a qualquer entrosamento entre os registros feitos

pelos vigários e o trabalho de medição e mapeamento das terras públicas,

atribuição da Repartição Geral das Terras Públicas. Esta foi mantida por mais de

trinta anos mas, apesar dos altos custos que lhe foram imputados na época, nunca

produziu um mapa ou inventário completo dos lotes já demarcados.

Em 1878 o Ministro da Agricultura nomeou uma comissão para estudar uma

reforma da Lei das Terras. A comissão se desincumbiu do encargo apresentando

um relatório e indicando alterações a serem introduzidas; a esse relatório

seguiram-se diversos estudos e projetos de lei sem que, até o final do Império,

algum desses textos tivesse sido aprovado.

Page 187: A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil

Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 187

Em 1890, já sob o Governo Provisório da República, foi instituído o Registro

Torrens5 para garantia jurídica da propriedade das terras mediante demarcação e

confrontação de divisas.

Em 1916 o Código Civil instituiu os registros públicos e explicitou a

obrigatoriedade do registro de imóveis para reconhecimento do título.

Pelo Código o direito real sobre um imóvel só é reconhecido juridicamente se

inscrito no registro de imóveis (Art.676). Há uma inteira seção (Seção VI)

dedicada a esses registros.

Art.530 Adquire-se a propriedade imóvel:

I Pela transcrição do título de transferência no registro do imóvel.

II Pela acessão.

III Pelo usucapião.

IV Pelo direito hereditário.

Art.531 Estão sujeitos à transcrição, no respectivo registro, os títulos

translativos da propriedade imóvel, por ato entre vivos.

Art.532 Serão também transcritos:

I Os julgados, pelos quais, nas ações divisórias, se puser termo à

indivisão.

II As sentenças que, nos inventários e partilhas, adjudicarem bens

de raiz em pagamento das dívidas da herança.

III A arrematação e as adjudicações em hasta pública.

Art.676 Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos

entre vivos só se adquirem depois da transcrição, ou da inscrição, no registro

de imóveis, dos referidos títulos, salvo os casos expressos neste Código.

Art.856 O registro de imóveis compreende:

I A transcrição dos títulos de transmissão da propriedade.

II A transcrição dos títulos enumerados no artigo 532.

5 Ver mais detalhes no capítulo 10.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 188

III A transcrição dos títulos constitutivos de ônus reais sobre coisas

alheias.

IV A inscrição das hipotecas.

Questões ligadas à concessão de terras públicas, no entanto, continuaram sendo

objeto de interpretações jurídicas díspares. A partir de 1850 essas concessões eram

feitas por contrato passado pelas Tesourarias da Fazenda, no caso de adjudicação

em hasta pública6, ou por título expedido pelo presidente da Província, se a venda

decorrera de proposta ou requerimento do adquirente. Houve dúvidas sobre se o

contrato dispensaria ou não a expedição do título, prevalecendo entre a maioria a

posição de que esse seria necessário em qualquer caso. Por outro lado, esse

mesmo título dispensava o registro. Diz Cirne Lima:

“Era o título de terras, mais do que lhe diz o nome, um verdadeiro modo de

aquisição de propriedade imóvel; dispensava-se-lhe a transcrição no registro

predial.” (Lima, 1954, pg.100-101)

e citando um reconhecido jurista do início do século:

“As concessões de terras públicas sempre dispensaram no nosso direito a

transcripção.” (Clóvis Bevilaqua; citado por Lima, 1954, pg.101)

Mesmo depois da promulgação do Código Civil o mesmo Bevilaqua defendia a

dispensa da transcrição do título:

“O Código Civil deu à transcripção o caracter de modo de adquirir, a elle

sujeitando os títulos translativos da propriedade immovel. Essa regra, porém,

applica-se aos actos jurídicos, que se desenvolvem na esphera do direito

privado. ...a transcripção segundo a systematizou o Código Civil, tem por fim

fornecer prova sufficiente da propriedade; fazer presumir a legalidade da

acquisição; dar publicidade à transferencia do dominio. ... Ora, aquêles dois

primeiros efeitos, o título de terras já os produz, de acôrdo com a doutrina

6 A venda em leilão, não vedada pela Lei 601 de 1850, é a grande diferença entre essa lei e as recomendações de Sir E Wakefiel sobre o sistema de colonização. Segundo essas o preço da terra deveria ser uniforme e fixo, variando somente segundo a extensão, proibida portanto a venda em hasta pública.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 189

firmada pela jurisprudência norte-americana [sic]”. (Clóvis Bevilaqua; citado

por Lima, 1954, pg.101)

Está claro que o registro de terras ou melhor, o registro dos títulos, tinha como

exclusiva finalidade a de legalizar esses títulos, sem a menor preocupação com um

possível cadastro ou inventário das propriedades.

As Constituições fazem pouquíssima referência a esses registros, limitando-se a

citá-los como parte das coisas sobre as quais a União tem competência exclusiva

para legislar.

8.2 A evolução dos registros

Com base no Código Civil os registros públicos foram unificados e reorganizados

pelo Decreto 4827 de 7 de fevereiro de 1924 que ainda manteve o caráter

privativo e vitalício dos oficiais.

Art.1° Os registros públicos instituidos pelo Codigo Civil, para

authenticidade, segurança e validade dos actos juridicos ou tão somente para

os seus effeitos com relação a terceiros, comprehendem:

I o registro civil das pessoas naturaes;

II o registro civil das pessoas jurídicas;

III o registro de titulos e documentos;

IV o registro de immoveis;

V o registro da propriedade litteraria, scientifica e artistica.

O Artigo 5° prevê os casos de inscripção, transcripção e averbação, enquanto o

Artigo 6° diz que os registros ficarão a cargo de officiaes privativos e vitalicios.

Alguns atos legais foram regulamentando a questão dos registros, seja diretamente

seja, no mais das vezes, ao tratar de assuntos correlatos.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 190

Por exemplo, a Lei 492/37 regulou o penhor rural e estabeleceu que a escritura de

penhor rural deve ser “apresentada ao oficial do registro imobiliário”.

O Decreto 58/37 que “dispõe sobre o loteamento e a venda de terrenos para

pagamento em prestações” e que, até 1979 foi o único instrumento legal para

disciplinar o parcelamento aprovado pela Prefeitura. No entanto não havia

nenhuma sanção prevista por desobediência e, na prática, essa tímida tentativa de

disciplinar a ocupação urbana foi burlada por todos os lados: os loteadores

apresentavam lantas falsas ou imprecisas e diferentes conforme a finalidade; as

próprias Prefeituras não verificavam essas plantas, não demarcavam as ruas e não

tomavam posse das áreas indicadas como públicas; os Cartórios registravam

qualquer documento, correspondesse ou não a um projeto aprovado ou à

conformação física do terreno.

Além da péssima qualidade da grande maioria dos projetos (ruas sem

continuidade e sem retorno, desconhecimento da topografia) são clássicos os

expedientes de má fé utilizados para burlar a lei, especialmente com relação à

reserva de áreas públicas. Alguns exemplos são ilustrativos:

Figura 8.2 a

Dois loteamentos aprovados com a mesma área pública

Loteamento A Loteamento B

Figura 8.2 b

Parte de outra propriedade oferecida como área pública

Planta apresentada Situação real

Figura 8.2 c

Registro em Cartório de lotes em área apresentada como pública na Prefeitura.

Planta para Prefeitura Planta para Cartório

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 191

A Prefeitura de São Paulo se debate até hoje com milhares de processos de

loteamentos irregulares, cuja situação indefinida e muitas vezes juridicamente

insolúvel emperra qualquer cadastro ou lançamento.

Depois do Decreto 58/37 outro marco importante foi o Decreto 4857/39, que

“dispõe sobre a execução específica dos serviços concernentes aos registros

públicos” assentados no Código Civil. Pela primeira vez se estabeleceu um

conjunto de normas e procedimentos para a escrituração dos registros, dentre os

quais o de imóveis, conjunto esse que vigorou, com pequenas modificações, até

1976 quando foi substituido pela Lei 6.015/73 que rege a questão até hoje.

O Decreto 4.857/39 enumera os registros públicos e atribui o registro de imóveis a

serventuários privativos e vitalícios:

Art.1° Os serviços concernentes aos registros públicos estabelecidos pelo

Código Civil, para autenticidade, segurança e validade dos atos jurídicos,

ficam sujeitos ao regime estabelecido neste decreto.

I o registro civil das pessoas naturais;

II o registro civil das pessoas jurídicas;

III o registro de títulos e documentos;

IV o registro de imóveis;

V o registro da propriedade literária, científica e artística.

Art.2° Os registros indicados nos números I a IV, do artigo anterior, ficarão a

cargo de serventuários privativos e vitalícios, nomeados de acordo com a

legislação em vigor no Distrito Federal, nos Estados e no Território do Acre,

e serão feitos:

...

3° de n.IV, nos ofícios privativos7, ou nos cartórios do registro de

imóveis.

7 A questão da responsabilidade atribuída a ofícios privados por uma função que é essencialmente pública é levantada por alguns juristas mas não encontrei nada muito esclarecedor. O seguinte trecho é um bom exemplo de simples constatação: “...cabe reinterpretar o Art.2°. O caráter privado os distingue do serviço público das serventes oficiais ou oficializadas, submetidas a funcionários públicos, integrados na administração direta e em cargos de carreira, nos moldes do Art.37 da Carta Magna.” (Ceneviva, 1991).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 192

O Título V, do Artigo 178 ao 296, é inteiramente dedicado ao registro de imóveis.

O Artigo 178 relaciona os documentos a serem nele inscritos (14 casos),

transcritos (10) ou averbados (8). Em seguida são estabelecidos os livros e os

procedimentos de escrituração:

Art.182 Haverá no registro de imóveis os seguintes livros:

- Livro n.1 - protocolo,

- Livro n.2 - inscrição hipotecária,

- Livro n.3 - transcrição das transmissões,

- Livro n.4 - registros diversos,

- Livro n.5 - emissão de debentures,

- Livro n.6 - indicador real,

- Livro n.7 - indicador pessoal,

- Livro n.8 - registro especial,

Seguem a descrição de cada livro, a forma de escriturar, os documentos

necessários etc. Finalmente o mesmo decreto estabelece “disposições peculiares

aos oficiais de Registro do Distrito Federal”, entre as quais a discriminação dos

ofícios para o registro de imóveis: um abrangendo dois distritos municipais

(Andaraí e Copacabana) e oito para as freguesias.

Alguns meses depois (29 de fevereiro de 1940) o Decreto 5318/40 “faz alterações

de redação no Decreto 4857/39”, simples correções de texto.

O Decreto 61.132 alterou o artigo 182 do Decreto 4857/39, mudando a finalidade

do Livro n.3 de transcrição para inscrição das transmissões, e acrescentando o

Livro n.9 para registro de cédulas de crédito rural, com 300 folhas.

Já o Decreto Lei 1000/69 é um caso particularmente interessante. Promulgado em

21 de outubro pelos três ministros militares que assumiram o governo quando do

impedimento do presidente Costa e Silva8, esse decreto lei alterou os serviços

relativos aos registros públicos, no sentido de simplificar e agilizar os processos 8 Ministro da Marinha de Guerra, Almirante Augusto Hamann Rademaker Grünewald; do Exército, General Aurélio de Lyra Tavares; da Aeronáutica Militar, Brigadeiro Márcio de Souza Mello.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 193

de escrituração. Ele é precedido de um texto justificativo9 em que são também

apresentadas as principais alterações:

Permite a utilização de técnicas de escrituração mais modernas que os

livros manuscritos: sistema de folhas soltas; certidões de inteiro teor por

cópia xerox autenticada; microfilmagem.

Aboliu a formalidade de rubrica dos livros pelo juiz.

Atualizou o valor das multas, indexando-as ao salário mínimo.

Permitiu pedidos de certidão por via bancária.

Unificou em uma só série de livros (livro 2) os livros 2, 3 e 4, e

autorizou a desmembrar o livro 2 em até 10 partes, para permitir a

escrituração simultânea por vários escriturários.

Aboliu o livro talão, duplicidade de registro criado para supostamente

permitir a reconstituição dos arquivos em caso de incêndio10.

Como consequência da unificação dos livros, cada imóvel passa a ter

um registro próprio ao invés de estar relacionado em vários registros,

conforme o tipo de transação.

Esse decreto lei deveria entrar em vigor 60 dias após sua publicação ou seja, em

21 de janeiro de 1969. No entanto, o Decreto 65.905/69, já do Presidente Medici,

considerando que o prazo de 60 dias fora muito exíguo para as necessárias

adaptações dos cartórios, prorrogou-o até 21 de abril de 1970. O Decreto

66.460/70, com a mesma justificativa, prorrogou-o novamente para 21 de outubro

de 1970. Ao findar mais esse prazo, novo decreto (67.375/70) pelo qual se

informava que o Poder Executivo enviaria ao Congresso um projeto de lei

alterando algumas disposições do decreto 1.000/69 e que portanto sua entrada em 9 “No tocante ao registro de imóveis, o Projeto orientou-se no sentido de torná-lo um instrumento mais simples e mais eficiente. Supriu-lhe falhas, escoimou-o de formalidades inúteis, adaptou-o à legislação vigente, modernizou seus métodos de controle, aboliu imperfeições e dinamizou-o, enfim”. “Finalmente, incluído já se encontra no Projeto determinação contida no recente DL 549 de 24 de abril de 1969, referente à desapropriação, por interesse social, de imóveis rurais situados nas áreas declaradas prioritárias para fins de reforma agrária.” 10 Precaução inútil pois, visto que os arquivos estaduais não recebiam os livros talão por falta de espaço, esse eram guardados no mesmo local que os demais e, em caso de incêndio, poderiam queimar junto com todos os outros livros.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 194

vigor era adiada para 30 de junho de 1971. Seguiram-se 4 decretos (68.773/71,

69.803/71, 71.523/72 e 72.406/73) pelos quais, sem qualquer explicação ou

justificativa, o prazo de entrada em vigor do decreto 1.000/69 foi passado

sucessivamente para 31/12/71, 31/12/72, 30/6/73 e 31/12/73. Finalmente, sem

nunca ter entrado em vigor, o Decreto Lei 1.000/69 foi substituído pela Lei 6.015

(31 de dezembro de 1973) que rege a questão dos registros públicos até hoje. Mas

antes dessa lei entrar em vigor, a Lei 6.064/74 revogou o DL 1000/69 ao mesmo

tempo em que adiou o início da vigência da 6.015 de 1° de julho de 1974 para 1°

de julho de 1975, com o que também adiou de um ano a revogação da Lei 4827/24

e dos Decretos 4857/39, 5318/40 e 5553/40. As manobras com datas de vigência

ainda não tinham acabado: em 30 de junho de 1975 (Governo Geisel) a entrada

em vigor da 6.015/73 foi novamente adiada, para 1° de janeiro de 1976, pela Lei

6.216, a qual também lhe alterou a redação e suprimiu vários artigos,

especialmente no tocante aos registros de imóveis.

Se algum dia for feita, uma comparação detalhada entre essas diversas peças

legais deve dar boas indicações sobre os interesses em jogo, além de elementos

adicionais para avaliar as transformações em curso num período “mal contado” da

história brasileira recente, classificado apenas, e simplistamente, como “período

militar” ou “ditadura”.

8.3 A legislação federal em vigor

Atualmente os Cartórios de Registro de Imóveis são regidos pela Lei Federal

6.015/73, Lei dos Registros Públicos (LRP), (que só entrou em vigor em 1976,

alterada pela Lei 6.216/75) e seu funcionamento é regulamentado por leis

estaduais e controlado pelas administrações estaduais através das Corregedorias

Gerais (Varas de Registros Públicos). Não há muito mais informações disponíveis

sobre seu funcionamento que as constantes nas leis e decretos que estabelecem

minuciosamente os livros, os horários de abertura, as formas de escrituração e de

atendimento etc.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 195

As transcrições que seguem são da versão pela Lei 621611.

Art.1° Os serviços concernentes aos Registros Públicos, estabelecidos pela

legislação civil para autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos,

ficam sujeitos ao regime estabelecido nesta Lei.

§1° Os registros referidos neste artigo são os seguintes:

I o registro civil das pessoas naturais;

II o registro civil das pessoas jurídicas;

III o registro de títulos e documentos;

IV o registro de imóveis;

§2° Os demais registros reger-se-ão por leis próprias.

Art.2° Os registros indicados no §1° do artigo anterior ficam a cargo de

serventuários privativos nomeados de acordo com o estabelecido na lei de

Organização Administrativa e Jurídica do Distrito Federal e dos Territórios e

nas Resoluções sobre a Divisão e Organização Judiciária dos Estados, e serão

feitos:

III os do item IV, nos ofícios privativos, ou nos cartórios de registro

de imóveis.

Com relação ao Decreto 4857/39, o Artigo 1° apenas substituiu “Código Civil”

por “legislação civil” e “validade dos atos jurídicos” por “eficácia dos atos

jurídicos”. O registro da “propriedade literária, científica e artística” permanecia

no original de 1973.

Foi mantida a mesma estrutura de regras quanto ao tamanho dos livros, número de

páginas, numeração, horário de funcionamento, ordem de registro, pagamento etc.

Também é mantido o caráter público dos registros, no sentido de que qualquer

pessoa pode requerer certidão.

No caso específico do registro de imóveis, essa lei introduziu muitas das

simplificações propostas pelo Decreto 1.000/69 e, apesar da estrutura de

apresentação dos assuntos continuar sendo às vezes um tanto confusa, o registro

11 Entre outras mudanças a lei passou de 310 para 296 artigos, com a supressão do registro da propriedade literária, científica e artística.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 196

de imóveis ficou certamente mais claro com a introdução da matrícula,

equivalente a uma inscrição cadastral. Após a matrícula são feitos os registros dos

fatos relativos ao imóvel e as averbações dos fatos que alteram ou complementam

um registro.

Art.227 Todo imóvel objeto de título a ser registrado deve estar matriculado no

Livro n.2 – Registro Geral...

Art.236 Nenhum registro poderá ser feito sem que o imóvel a que se referir

esteja matriculado.

Art.246 ...serão averbadas na matrícula as subrogações e outras ocorrências

que, por qualquer modo, alterem o registro.

O artigo 167 enumera 34 casos de registro e 13 de averbações. São transcritos alguns, a

esmo, como exemplos:

Art.167 No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos:

I o registro:

1) da instituição de bem de família;

3) dos contratos de locação de prédios, nos quais tenha sido consignada

cláusula de vigência no caso de alienação da coisa locada;

10) da enfiteuse;

11) da anticrese;

17) das incorporações, instituições e convenções de condomínio;

19) dos loteamentos urbanos e rurais;

27) do dote;

29) da compra e venda para e condicional;

II a averbação:

1) das convenções antenupciais ...;

2) por cancelamento, da extinção dos ônus e direitos reais;

4) da mudança de denominação e de numeração dos prédios, ...;

7) das cédulas hipotecárias;

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 197

13) “ex officio”, dos nomes dos logradouros, decretados pelo Poder

Público.

A simplificação introduzida permitiu diminuir o número de livros.

Art.173 Haverá no registro de imóveis os seguintes livros:

- Livro n.1 - Protocolo,

- Livro n.2 - Registro Geral,

- Livro n.3 - Registro Auxiliar;

- Livro n.4 - Indicador Real;

- Livro n.5 - Indicador Pessoal.

Art.174 O Livro n.1 - Protocolo - servirá para apontamento de todos os títulos

apresentados diariamente, ...

Art.176 O Livro n.2 - Registro Geral - será destinado à matrícula dos imóveis

e ao registro ou averbação dos atos relacionados no Art.167 e não atribuídos

ao Livro n.3.

Art.177 O Livro n.3 - Registro Auxiliar- será destinado ao registro dos atos

que, sendo atribuídos ao Registro de Imóveis por disposição legal, não digam

respeito diretamente a imóvel matriculado.

Art.179 O Livro n.4 - Indicador Real – será o repertório de todos os imóveis

que figurem nos demais livros, devendo conter sua identificação, referência

aos números de ordem dos outros livros e anotações necessárias.

Art.180 O Livro n.5 - Indicador Pessoal – dividido alfabeticamente, será

repositório dos nomes de todas as pessoas que, individual ou coletivamente,

ativa ou passivamente, direta ou indiretamente, figurem nos demais livros,

fazendo-se referência aos respectivos números de ordem.

Todos os livros, salvo o de Protocolo, podem ser substituídos por fichas.

Com a generalização do uso de arquivos eletrônicos essa forma de escrituração,

concebida para tornar viável a recuperação das informações guardadas em

Page 198: A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil

Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 198

livros12, deverá ser revista, junto com as regras de segurança e com a

responsabilidade pelas informações.

Não parece haver especial interesse na legislação posterior que apenas foi

introduzindo adaptações decorrentes das mudanças de regras do Sistema

Financeiro da Habitação ou dos indexadores monetários. É o caso das leis 6.850

de 12 de novembro de 1980 e 6.941 de 14 de setembro de 1981.

Vale ainda lembrar a última alteração na ordenação do direito de propriedade,

ocorrida com a Lei 6.766 de 19 de dezembro de 1979 (Lei Lehmann). Promulgada

especificamente para regulamentar o parcelamento do solo urbano ela atingiu as

práticas de registro de títulos imobiliários, responsabilizando os Cartórios não só

pela correção dos registros mas também pela regularidade dos loteamentos

registrados.

Art.18 Aprovado o projeto de loteamento ou de desmembramento, o loteador

deverá submetê-lo ao registro imobiliário dentro de 180 (cento e oitenta) dias,

sob pena de caducidade da aprovação, ...

§4° O Oficial do Registro de Imóveis que efetuar o registro em desacordo

com as exigências desta Lei ficará sujeito à multa equivalente a 10 (dez)

vezes os emolumentos regimentais fixados para o registro,... ,sem prejuízo

das sanções penais e administrativas cabíveis.

Art.22 Desde a data de registro do loteamento, passam a integrar o domínio

do Município as vias e praças, os espaços livres e as áreas destinadas a

edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do

memorial descritivo.

Constitui crime contra a Administração Pública:

Art.52 Registrar loteamento ou desmembramento não aprovado pelos órgãos

competentes, registrar o compromisso de compra e venda, a cessão ou

promessa de cessão de direitos ou efetuar registro de contrato de venda de

loteamento ou desmembramento não registrado. Pena: Detenção, de um a

dois anos, e multa de 5 a 50 vezes o maior salário mínimo vigente no País,

sem prejuízo das sanções administrativas cabíveis. 12 A multiplicação dos livros permite recuperar a informação por diferentes entradas: data de registro, número de matrícula ou nome de pessoa envolvida

Page 199: A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil

Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 199

Apesar de não eliminar a prática de loteamentos irregulares, a Lei Lehmann

disciplinou a questão. Até então, via de regra, os cartórios registravam qualquer

subdivisão, fosse ou não aprovada. Cabia ao Estado ou ao Município fazer valer

as próprias leis mediante aplicação de sanções que, no entanto, não punham em

risco o direito de propriedade e, portanto, de venda da terra parcelada13.

8.4 A legislação estadual complementar

As normas de reconhecimento da propriedade e a legislação federal sobre os

registros públicos são complementados pelas legislações estaduais sobre o

provimento dos encarregados desses registros e sobre o controle exercido pelas

Corregedorias estaduais. Isto é, enquanto as normas sobre registros públicos, em

particular sobre registros de imóveis, são federais, cabe ao Poder Judiciário dos

Estados assegurar e fiscalizar a execução dos serviços. Esses são feitos, seja por

funcionários públicos, pagos pelo Estado, seja, no mais das vezes, por oficiais

privados, nomeados e fiscalizados pelo Estado, remunerados diretamente pelas

taxas pagas pelos serviços prestados. Um Cartório de Registro é, na verdade, uma

cessão de serviço público.

A legislação sobre o assunto para o Estado de São Paulo versa quase que

exclusivamente sobre o provimento de funcionários e os direitos de opção dos

oficiais ou serventuários. Destacam-se abaixo os atos mais significativos.

O Decreto 12.520, de 22 de janeiro de 1942, “dispõe sobre provimento de Ofícios

de Justiça”.

Art.1° Nenhum ofício de justiça será provido a título de propriedade, mas o seu

exercício será atribuido em serventia vitalícia.

Art.4° O provimento dos ofícios de justiça, em cada série de nove vagas, far-se-

á:

13 Sobre o assunto controle e processo de aprovação de loteamentos ver Battaglia (1987).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 200

a) 1/3 por livre escolha do Chefe do Governo, dentre doutores e

bachareis em direito e cidadãos de reconhecimento idoneidade e

competência;

b) 1/3 dentre serventuários de justiça com mais de cinco anos

de efetivo exercício, escolhidos em lista tríplice e mediante

concurso de títulos;

c) 1/3 dentre escreventes habilitados, dos cartórios da mesma

natureza, com mais de 5 anos de efetivo exercício,

escolhidos em lista tríplice e mediante concurso de títulos,

...

Art.6° O 1° provimento dos ofícios que ser crearem ou se estabelecerem será

feito livremente pelo Chefe do Governo.

Seguem as condições de inscrição e de realização dos concursos e demais detalhes

operacionais visando estabelecer formalmente direitos e deveres dos servidores e

responsáveis pelos cartórios de registro.

Também a Lei 819, de 31 de outubro de 1950, “dispõe sobre provimento de

Offícios de Justiça” (e dá outras providências).

Art.1° Nenhum ofício de justiça será provido a título de propriedade, mas o seu

exercício será atribuido em serventia vitalícia.

Art.5° É instituida a carreira de Servidores da Justiça, na qual ficam

enquadrados os serventuários vitalícios e os escreventes habilitados de todos os

cartórios do Estado não estipendiados pelos cofres públicos, qualquer que seja

a sua natureza. Para esse efeito, as serventes de Justiça ficam classificadas da

seguinte forma:

a) Primeira classe: os ofícios de registro de imóveis e anexos, ... ,

das comarcas de 1ª instância;

b) Segunda classe: os ofícios de registro de imóveis e anexos, ... ,

das comarcas de 2ª instância;

c) Terceira classe: os ofícios de registro de imóveis e anexos, ... ,

das comarcas de 3ª instância;

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 201

d) Quarta classe: os ofícios de registro de imóveis e anexos, ... , da

comarca de São Paulo (4ª instância);

O Decreto Lei 159, de 28 de outubro de 1969, “dispõe sobre provimento das

serventias de justiça não oficializadas e dá providências correlatas”. A grande

alteração foi a perda do caráter vitalícia dos serviços cartoriais.

Art.1° Nenhuma serventia será provida a título de propriedade, nem em caráter

vitalício.

As serventias são reclassificadas, criando-se uma Classe Especial em que são

incluídos os Cartórios de Registro de Imóveis:

Art.4° Para fim de admissão, remoção e promoção, ficam assim classificadas

as serventias de justiça não oficializadas, qualquer que seja a sua natureza:

I Primeira Classe: Os Cartórios de Registro Civil das Pessoas

Naturais dos distritos e subdistritos que não sejam sede de

município, das comarcas de 1ª entrância.

II Segunda Classe:

III Terceira Classe:

IV Quarta Classe:

V Quinta Classe:

VI Classe Especial: Os Cartórios de Notas, os Cartórios de Registro

de Imóveis, ...

A seguir o decreto lei passa aos critérios as formalidades para admissão dos

serventuários e oficiais, por concurso de provas e títulos.14

A base mais geral da legislação estadual sobre registros públicos deve ser

procurada na organização do serviço judiciário. Destaca-se a Lei 8.051/63 que

“reorganiza o serviço judiciário do Estado, especialmente na Comarca da

Capital”. Todo o capítulo IV é dedicado à Vara dos Registros Públicos.

Art.32 Compete ao Juíz da Vara dos Registros Públicos:

14 O D.L.159/69 revoga, explicitamente, os decretos 5.120/31, 6.986/35, 11.464/40 (anexações de ofícios de justiça), 12.520/42 e as leis 819/50, 4.342/57, 4.633/58, 7.565/62, 9.189/65, 10.079/68, 10.171/68 e 10.304/68, todos eles sobre provimento de serventias vagas.

Page 202: A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil

Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 202

I processar e julgar as ações e procedimentos administrativos

referentes aos registros públicos, loteamentos de imóveis, bem de

família, usucupião e hipoteca legal, exceto as que interessarem à

Fazenda Pública;

Para completar este apanhado sobre a legislação estadual referente aos registros

fundiários vale ainda citar o Decreto 27.863/87 que estrutura a Secretaria de

Estado de Assuntos Fundiários e o Decreto 30.848/89 que “institui o Sistema

Estadual de Gestão do Patrimônio Imobiliário”.

8.5 O funcionamento dos Cartórios de Registro de Imóveis

O registro não é obrigatório mas é a única garantia da propriedade contra

eventuais direitos de herança ou hipotecas feitas pelo detentor do título

anteriormente registrado. Por causa do custo, da desinformação e dos trâmites

burocráticos muitos imóveis não são registrados. Segundo reportagem publicada

no jornal O Estado de São Paulo em 2.3.92, havia 880.000 imóveis sem registro

no município de São Paulo, de um total de aproximadamente 2 milhões de meio.

Os municípios menores são atendidos por um único Cartório enquanto que

municípios grandes, como é o caso de São Paulo, são subdivididos em

circunscrições. Ao contrário dos Cartórios de Registro Civil (nascimentos,

casamentos e óbitos) que, em geral, se situam nas próprias circunscrições, os

Cartórios de Registro de Imóveis não tem nenhuma vinculação, quanto à sua

localização, com o território a ser registrado. Pode-se observar na relação dos 18

cartórios de São Paulo (cf.pg.205) que muitos deles não se localizam nas suas

circunscrições e que, em seis casos, essas são descontínuas, conforme ressaltado

na Figura 8.5 a.

Figura 8.5 a.

Município de São Paulo, 1994.

Circunscrições dos Cartórios de Registro de Imóveis.

Page 203: A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil

Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 203

Cartório e Localização Circunscrição

1° V.Mariana Liberdade e V.Mariana

2° Barra Funda Sta.Cecília e PerdizesA Constituição

de 1988 trata da fiscalização e dos preços cobrados:

Art.236 Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado,

por delegação do Poder Público.

§1° Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal

dos notórios, dos oficiais de registro e de seus propostos, e definirá a

fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.

§2° Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos

relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.

Os preços do registro em São Paulo variam em função do valor venal do valor da

transação (valendo o maior), sendo a variação do preço do registro inversamente

proporcional à variação do valor do imóvel. Isto significa que quanto menor o

valor do imóvel, maior é a incidência dos custos para seu reconhecimento. A

Tabela 8.5 a, mostra as regras de cálculo para o preço de registro, com base na

tabela oficial, em vigor a partir de 1° de julho de 1994.

Tabela 8.5 a

Cartório de Registro de Imóveis, São Paulo, 1994

Cálculo do preço do registro

_______________________________________________________________

Valor do imóvel Cálculo

_______________________________________________________________

até R$ 374,78 R$ 34,50

de R$ 374,78 a R$ 2297,67 R$ 34,50 mais R$ 0,33 a cada R$ 4,47 ou fração

de R$ 2297,67 a R$ 54042,26 R$ 175,80 mais R$ 0,02 a cada R$ 4,47 ou fração

_______________________________________________________________

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 204

A Tabela 8.5 b mostra o preço de registro em porcentagem do valor do imóvel,

para os valores limites das faixas acima definidas.

Tabela 8.5 b

Cartório de Registro de Imóveis, São Paulo, 1995

Preço do registro

_______________________________________________________________

Valor do imóvel Preço do registro

(absoluto) (%)

_______________________________________________________________

R$ 374,78 R$ 34,50 9,21

2297,67 R$ 175,80 7,65

R$ 54042,26 R$ 404,06 0,75

_______________________________________________________________

A partir do valor de R$54042,26 o preço do registro é constante.

O projeto de lei que regulamenta a atividade cartorial, em tramitação no

Congresso, prevê a autofiscalização, através de representantes da própria

categoria.

As simplificações introduzidas pela legislação visam facilitar as buscas e agilizar

o trabalho de inscrição. Obedecidas as normas legais quanto aos livros a serem

mantidos, horários e emolumentos, cada cartório é livre quanto à organização dos

seus serviços. Alguns cartórios de São Paulo usam o Mapa Oficial da Cidade,

publicado pela Secretaria de Finanças da Prefeitura, para localizar os imóveis e

mantem um fichário das matrículas indexado pelo código Setor/Quadra/Lote do

cadastro fiscal da Prefeitura. Isto facilita as buscas e permite melhor controle

Page 205: A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil

Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 205

sobre a localização. No entanto, a maior preocupação com a localização parece

ser apenas a de evitar o registro de imóvel de outra circunscrição.

O direito de propriedade, apesar de ser sempre apresentado com sua áurea de

natural e sagrada, é objeto de acirradas controvérsias jurídicas:

“Por um lado os Códigos Civis proclamam a intangibilidade do domínio; por

outro, o Direito Administrativo rói e devora os direitos do proprietário. Daí os

embaraços torturantes do jurista na dedução das fórmulas sobre a realização do

direito de propriedade.”15

Trata-se afinal de situar o direito de propriedade no âmbito do Direito Privado

(direitos individuais) ou do Direito Público e isto tem a ver diretamente com o

enfoque com que é tratada a questão dos registros. Sendo assunto de Direito

Privado, também o seu reconhecimento é assunto privado e o Estado só intervém

para regulamentar e garantir a publicidade, exercendo apenas o poder de polícia.

“Assunto típico da órbita privatística, o direito de propriedade poderia parecer,

à primeira vista, deslocado em obra dedicada ao Direito Público, não fora a

ciência geral de que cumpre à Administração intervir não na realização do ato

jurídico, mas na fiscalização, vigilância e publicidade que deve cercá-lo. ...

A intervenção do Estado na tutela da propriedade constitui uma atividade

administrativa e pela finalidade que tem em mira é função de polícia de

segurança demarcada em lei. A polícia de segurança da propriedade privada

repousa nos Registros, sem os quais o direito de propriedade não pode ficar

protegido”16

Apesar dos importantes avanços no sentido da simplificação dos registros, e

mesmo nos casos de troca de dados com os cadastros municipais, o sistema todo

mantém suas características de serviço de interesse particular: garante os direitos

ligados a títulos de domínio contra terceiros (inclusive o poder público). Não é e

não pretende ser um cadastro das terras do país. Esse cadastro continua faltando.

15 José Augusto César, Ensaio sobre os atos jurídicos, 1913, pg.16, 17. Citado em Cretella Junior (1968, pg.117). 16 Cretella Junior (1968, vol.V, pg.118,119).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 206

CAPÍTULO 9

O CADASTRO FISCAL E O IMPOSTO PREDIAL E TERRITORIAL

URBANO EM SÃO PAULO

Page 207: A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil

Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 207

9 O CADASTRO FISCAL E O IMPOSTO PREDIAL E TERRITORIAL

URBANO EM SÃO PAULO

“Ninguém gosta de pagar impostos. A Revolução Francesa começou quando a

burguesia decidiu que a nobreza e o clero deveriam pagar impostos e taxas,

eliminando privilégios e cirando a república. ... A classe dominante brasileira

também não gosta de pagar impostos, tanto assim que a propriedade quase não

é taxada (correspondente a 1% da arrecadação total do país), garantindo que

ocupemos o 3° lugar mundial em concentração de riqueza e o 80° em

distribuição da renda.”

Marilena Chauí1

“Na origem da crise que o Brasil hoje atravessa está a encarniçada resistência

dos ricos a pagar impostos. ... Ninguém gosta de pagar impostos. Eu também

não gosto. Mas é difícil encontrar um imposto mais justo do que o IPTU. Um

imposto que distribua renda, em um país no qual a concentração de renda é

escandalosa.”

Luiz Carlos Bresser Pereira2

No Brasil, como aliás na maioria dos países capitalistas, compete ao Governo

local (Prefeitura, no caso) a gestão direta do patrimônio coletivo: o uso do

território, a localização das atividades, a organização da circulação etc. Para isto

as Prefeituras dispõem de legislação específica (zoneamento, código de obras) e

de recursos financeiros, em geral provindos de transferências do Governo central

1 Marilena Chauí: Nós quem, cara pálida?, artigo publicado no jornal Folha de São Paulo em 19 de fevereiro de 1992. 2 Luiz Carlos Bresser Pereira: O IPTU e os ricos, artigo publicado no jornal de São Paulo em 17 de fevereiro de 1992.

Page 208: A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil

Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 208

e de tributos próprios. Destes últimos os mais significativos para as grandes

cidades são os impostos sobre a propriedade imobiliária. No Brasil, as Prefeituras

arrecadam o Imposto Predial e o Imposto Territorial Urbano, ambos previstos na

Constituição e instituídos por lei federal. Para o lançamento desses impostos cada

Prefeitura mantém um cadastro que, no entanto, não garante o direito de

propriedade: o Brasil adota o sistema de cadastros fiscais (por oposição aos

jurídicos) ou seja, o Estado não assume responsabilidade com relação à prova da

propriedade, que é deixada inteiramente a cargo das proprietários através do

registro nos Cartórios de Registro de Imóveis. Os cadastros fiscais refletem a

situação mais provável de acordo com as informações de que o Estado (no caso as

Prefeituras) dispõe. Não há vinculação direta entre os cadastros e os registros e,

via de regra, nenhum desses dois serviços se apoia num sistema de mapeamento

abrangente ou em mapas cadastrais com valor jurídico.

No capítulo anterior foi esboçado o funcionamento dos Cartórios de Registros e

sua evolução a partir das origens coloniais. Neste serão detalhados alguns

aspectos de um cadastro fiscal, no caso o de São Paulo.

A escolha de São Paulo se deve não apenas à facilidade de acesso aos dados, mas

principalmente ao fato de que, pelo seu tamanho e pela complexidade dos

problemas que se entrecruzam, São Paulo apresenta exemplos de todos os casos

que ocorrem num sistema cadastral, em especial situações de discrepância entre a

aplicação da lei e as intenções declaradas. Além disso a operação de todo o

sistema tributário é exemplar, o que elimina da análise as variáveis desnecessárias

ligadas a deficiência de operação.

9.1 Os cadastros fiscais no Brasil

O lançamento do imposto sobre a propriedade imobiliária requer três conjuntos de

informações:

Page 209: A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil

Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 209

A identificação do imóvel, isto é, os elementos que permitem saber, de

maneira inequívoca, a qual imóvel se refere o imposto lançado.

A identificação da pessoa (física ou jurídica) de quem será cobrado o

imposto.

Os atributos do imóvel em função dos quais será lançado o imposto.

Cada um desses conjuntos de informações define características qualitativas do

cadastro e a sua eficiência como instrumento de arrecadação e eventual fonte de

dados para gestão e planejamento.

No Brasil essas informações estão todas contidas nos cadastros fiscais, que cada

Prefeitura mantém no Departamento (ou Secretaria) de Finanças. Tipicamente o

cadastro fiscal de uma Prefeitura é formado por um conjunto de plantas (em geral

esquemáticas, muitas vezes sem escala) onde são identificados os imóveis, e por

bancos de dados, informatizados ou não, onde são arquivados os atributos de cada

imóvel (área, forma, estado de conservação etc.) e os dados de seu proprietário.

No fim da década de ‘60 e início de ‘70 quando, em decorrência da reformulação

do sistema tributário nacional em 19663, foram reorganizados os cadastros fiscais

no país, a grande preocupação das administrações municipais se concentrou nos

atributos do imóvel: uso, padrão de construção, existência de serviços públicos,

eram objeto de discussões mais ou menos teóricas e de contratos de levantamento

cadastral. Procurava-se ao mesmo tempo a “justiça fiscal” e a eliminação do

processo subjetivo de avaliação através da acurada diferenciação de valor entre os

imóveis, resultante da combinação de fatores supostamente objetivos. As

planilhas de levantamento forma saturadas com detalhes sobre revestimentos de

piso ou a cor das louças do banheiro, detalhes estes que, afinal, se mostravam

inúteis para classificar o padrão de construção em “alto, médio ou baixo”.

Essa saturação de dados de levantamento, além de dificultar a manutenção

atualizada dos arquivos, ajudava a esconder os verdadeiros problemas:

3 Lei federal 5.172, de 25 de outubro de 1966 que instituiu o Sistema Tributário Nacional.

Page 210: A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil

Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 210

As dificuldades com a identificação do imóvel ou melhor, a dificuldade

em operar um sistema em que, pelas deficiências do mapeamento, não

há controle sobre o universo abrangido.

A dificuldade de se basear o sistema de avaliação sobre o valor da

localização, nem sempre representado pelo preço do terreno mas

certamente sem nada a ver com o custo de reposição da construção.

O fato de não se atribuir valores venais próximos (ou proporcionais) aos

valores de mercado, o que implicaria, por um lado, no reconhecimento e

correção das distorções na tributação e por outro, na explicitação de uma

política territorial, em geral não formulada.

Pressionadas pelo rápido crescimento das aglomerações urbanas, exigindo o

lançamento de impostos imobiliários como fonte de recursos para sua gestão, e

apesar das dificuldades criadas pelo falseamento das características da base

tributável, muitas Prefeituras conseguiram montar cadastros que atendem

satisfatoriamente as finalidades de lançar e arrecadar impostos, constituindo um

indiscutível avanço com relação à situação anterior ao Sistema Tributário

Nacional, de virtual inexistência de bases de tributação confiáveis.

A disponibilidade desses cadastros4 passos então a propiciar a outros serviços das

Prefeituras o uso de dados até então inaccessíveis, com consequentes pressões no

sentido de maior integração entre o cadastro e os demais arquivos e bancos de

dados mantidos pelos diversos órgãos municipais. Os trabalhos e compromissos

decorrentes dessas pressões levaram à implantação dos CTM (Cadastros Técnicos

Municipais) ou equivalentes, com diferentes níveis de sucesso. O passo seguinte,

em plena discussão hoje em dia, é o da implantação dos Sistemas de Informações

Geográficas (GIS – Geographic Information Systems) e/ou dos cadastros

digitalizados (LIS – Land Use Systems), o que coloca de maneira aguda o

problema da precariedade das representações cartográficas.

4 Disponibilidade relativa pois se constituíram desde o início em propriedade de uso exclusivo dos Departamentos (ou Secretarias) de Finanças, sempre relutantes (com amparo legal) em disponibilizar os dados para outros usuários, mesmo da própria Administração.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 211

9.2 A definição dos tributos em São Paulo

Em São Paulo o cálculo e o lançamento dos impostos imobiliários são feitos pela

Prefeitura, com base nos dados do cadastro fiscal instituído como parte do

Sistema Tributário Municipal pela Lei 6.989/665. Sucederam-se várias alterações

legais, com mudanças nas alíquotas, na definição do valor venal e no cálculo dos

impostos exigindo, vinte anos depois, a consolidação da legislação tributária

através do Decreto 26.129 de 7 de junho de 1988. Parte dessas leis apenas

concedem isenções ou alteram as alíquotas e os valores venais unitários, via de

regra simples reajustes monetários, mas duas delas introduzem alterações

significativas:

Lei 10.235 (16/12/86) que “dispõe sobre a forma de apuração do valor venal de

imóveis ...” e passou a tratar os dois impostos num conjunto único, Imposto

Predial e Territorial Urbano - IPTU6.

Lei 10.394 (20/11/87) que instituiu alíquotas progressivas, em função do valor

venal7.

O artigo 1° da Lei 6.989/66 criou 4 impostos municipais, 6 taxas e a contribuição

de melhoria:

Art.1°8 - Ficam criados os seguintes tributos, que se regularão pelo disposto

nesta Lei e pelos demais atos normativos que sejam expedidos pelo Executivo:

I impôsto predial; 5 A lei municipal 6989 de 29/12/66, que “dispõe sobre o Sistema Tributário do Município e dá outras providências”, foi publicada dois meses depois da lei federal 5.172 de 25 de outubro de 1966 que instituiu o Sistema Tributário Nacional, obedecendo ao disposto no artigo 212 dessa lei federal. 6 Trata-se de dois impostos alternativos: sobre um mesmo imóvel ou se cobra Imposto Predial (se o imóvel for construido) ou Imposto Territorial Urbano (se for um terreno vazio). 7 A desvinculação das alíquotas para predial e territorial permite a utilização do imposto como instrumento de intervenção na organização espacial, na medida em que é possível incentivar ou penalizar determinados usos de solo. As tentativas de se aplicar imposto territorial progressivo para induzir a ocupação de terrenos centrais vazios foram até agora barradas por medidas judiciais, o que apenas confirma que o instrumento não é inóquo. 8 Esse artigo não é mencionado no Decreto de consolidação que já inicia com a incidência do imposto predial.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 212

II impôsto teritorial urbano;

III impôsto sôbre operações realtivas à circulação de mercadorias;

IV impôsto sôbre serviços de qualquer natureza;

V taxa de limpeza pública;

VI taxa de conservação de vias e logradouros públicos;

VII taxa de pavimentação e de serviços preparatórios de pavimentação;

VIII taxa de licenças;

IX taxa de expediente;

X taxas de serviços diversos;

XI contribuição de melhoria.

O imposto predial e o imposto territorial urbano são tratados respectivamente nos

Capítulos I e II:

Art.2° Constitui fato gerador do imposto predial a propriedade, o domínio útil

ou a posse de bem imóvel construído, localizado na zona urbana do Município.

Art.4° Para os efeitos deste imposto, considera-se construído todo o imóvel no

qual exista edificação que possa servir para habitação ou para o exercício de

quaisquer atividades.

Art.23 Constitui fato gerador do imposto territorial urbano a propriedade, o

domínio útil ou a posse de em imóvel não constuído, localizado na zona urbana

do Município...

Art.24 Para os efeitos dêste imposto, consideram-se não construídos os

terrenos:

I em que não existir edificação como definida no artigo 4°;

II em que houver obra paralisada ou em andamento, edificações

condenadas ou em ruínas, ou construções de natureza temporária;

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 213

III cuja área exceder de 3 (três) vêzes a ocupada pelas edificações,

quando na 2ª (zona9), e 10 (dez) vezes quando além do perímetro

desta última;

IV ocupados por construção de qualquer espécie, inadequada à sua

situação, dimensões, destino ou utilidade.

Para ambos os impostos o cálculo consiste na multiplicação da alíquota pelo valor

venal havendo, em cada caso, dois artigos sobre a forma de se determinar o valor

venal.

Para o imposto predial:

Art.8° Determina-se o valor venal em função dos seguintes elementos, tomados

em conjunto ou separadamente:

I declaração do contribuinte, desde que aceita pelo Fisco;

II preços correntes das transações no mercado imobiliário;

III custos de reprodução;

IV decisões judiciais passadas em julgado, em ações renovatórias de

locações ou revisionais de aluguéis;

V locações correntes;

VI localização e características do imóvel;

VII outros dados informativos tecnicamente reconhecidos.

§2° O valor venal determinado na forma deste artigo não poderá ser inferior:

I ao décuplo do aluguel efetivo anual;

II ao preço decorrente do valor unitário fixado para efeito de

desapropriação amigável ou judicial, proporcionalmente à parte

expropriada e à parte remanescente do imóvel.

Art.16 – O valor venal dos imóveis construídos, para efeito de lançamento,

apura-se:

9 Trata-se no caso de zona fiscal isto é, de um dos três conjuntos, concêntricos, de setores fiscais em que está dividida a cidade. A primeira zona fiscal corresponde à área central, a terceira à coroa periférica e a segunda é a Intermediária. Não confundir com zonas de uso, definidas para efeitos da aplicação de normas de ocupação e edificação.

Page 214: A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil

Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 214

I pela conjunção dos valores médios unitários de terrenos com os

valores unitários de construção, constantes das “Plantas Genéricas

de Valores”;

II em razão do metro quadrado de construção, que inclua o valor do

terreno correspondente, nos casos de unidade:

a) autonomas, de prédios em condomínio;

b) distintas, em edifícios destinados a habitação ou ao exercício de

atividade comercial ou profissional ou mistos;

III em função de qualquer dos incisos do artigo 8° e respectivos

parágrafos, quando superior ao resultado da aplicação do disposto

nos incisos anteriores deste artigo.

§1° As “Plantas Genéricas de Valores” serão publicadas pelo Executivo e

vigorarão a partir do exercício imediato aquele em que forem editadas,

enquanto não substituídas ou modificadas por outras, no todo ou em parte.

§2° As “Plantas Genéricas de Valores” descreverão os métodos de avaliação a

serem utilizados, em caráter genérico ou específico.

Para o imposto territorial urbano:

Art.8° Determina-se o valor venal em função dos seguintes elementos, tomados

em conjunto ou separadamente:

I declaração do contribuinte, desde que aceita pelo Fisco;

II preços correntes das transações no mercado imobiliário;

III arrendamentos correntes;

IV localização, forma, dimensões e outras características ou condições

do terreno;

V outros dados informativos tecnicamente reconhecidos.

Art.35° O valor venal dos terrenos, para efeito de lançamento, é o resultante da

aplicação:

I dos valores médios unitários constantes das “Plantas Genéricas de

Valôres”, a que se refere o artigo 16;

Page 215: A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil

Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 215

II de quaisquer dos incisos do artigo 28 e dos respectivos parágrafos,

se superior ao decorrente do inciso anterior deste artigo;

Esses artigos não são propriamente conflitantes entre si mas são redundantes visto

que a Planta Genérica de Valores (tomada como um dos critérios) já deveria ser o

resultado de todos os critérios enumerados nos artigos 8° e 28.

Essas regras foram alteradas pela Lei 10.235/86 que definiu tipos e padrões de

construção:

Art.2° (Art.35 do Decreto 26.120/88) Os valores unitários de metro quadrado

de construção e de terreno são determinados em função dos seguintes

elementos, tomados em conjunto ou separadamente:

I preços correntes das transações e das ofertas à venda no mercado

imobiliário;

II custos de produção;

III locações correntes;

IV características da região em que se situa o imóvel;

V outros dados informativos tecnicamente reconhecidos.

Parágrafo único. Os valores unitários, definidos como valores médios para os

locais e construções, serão atribuídos:

I as faces de quadras, a quadras ou quarteirões, a logradouros ou a

regiões determinadas, relativamente aos terrenos;

II a cada um dos padrões previstos para os tipos de edificação

indicados na Tabela V10, relativamente às construções.

As alterações mais significativas entre as duas leis foram a junção dos dois

impostos e a supressão do §2° do Art.8° da Lei 6.989/66, em especial seu ítem II.

9.3 O sistema cadastral

10 A Tabela V define os tipos e padrões de construção. Ver pg. 225.

Page 216: A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil

Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 216

Para responder às determinações legais sobre tributos e considerando o volume

dos dados a serem manipulados a Secretaria de Finanças da Prefeitura reformulou

todo o sistema cadastral, permitindo o tratamento mais ágil das informações e a

paulatina incorporação de novos bancos de dados e rotinas. O núcleo central do

sistema, contendo a relação, endereços e atributos das unidades tributárias, foi o

primeiro a ser totalmente informatizado. Durante toda a década de ‘70 foram

desenvolvidos esforços e alocados recursos para complementar esse núcleo

central, resultando um sistema bastante sofisticado, baseado em conceitos e

tecnologia de ponta na época, que foi efetivamente implantado e passou a integrar

as rotinas operacionais da administração pública municipal. Consiste basicamente

de três sub-sistemas interligados através dos códigos de quadras e logradouros,

conforme esquematizado na Figura 9.3a:

TPCL que gerencia os dados referentes às unidades tributáveis.

Cadlog que gerencia os dados referentes aos logradouros.

Geolog que mantém os códigos de localização geográfica (coordenadas

para mapeamento).

Figura 9.3a Cadastro de São Paulo, 1994 Componentes do sistema cadastral

TPCL

A sigla TPCL corresponde às iniciais dos tribunais previstos pelo sistema:

(imposto) Territorial, (imposto) Predial, (taxa de) Conservação e (taxa de )

Limpeza. É formado por diversos bancos de dados e uma centena de programas e

está estruturado de forma hierarquizada11, eficiente para manipulação de grandes

11 Num sistema hierarquizado os dados são arquivados por critérios de mínima redundância. Por exemplo, se o valor venal unitário for constante para todos os lotes de uma quadra, esse valor será guardado num banco por quadra e cada lote da quadra terá uma ligação com esse banco para buscar aí o valor venal. O valor venal será arquivado por lote (ou por face de quadra) apenas nos casos em que não for constante por quadra.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 217

arquivos mas pouco flexível e de difícil operação para quem não o conhece a

fundo. Foi implantado no início da década de ‘70, época em que ainda prevalecia

a preocupação com o máximo aproveitamento da máquina, mesmo a custo de

muito trabalho direto humano. Vinte anos depois os recursos eletrônicos são

incomparavelmente mais potentes e mais baratos e, portanto, desenvolvem-se

programas que minimizam o trabalho ou a necessidade de especialização humana,

mesmo a custo de grande “desperdício” de máquina. Mesmo assim, a eventual

substituição do atual sistema por outro de manipulação mais fácil esbarraria, além

do problema de manutenção do histórico, nas dificuldades oriundas do volume de

dados a serem tratados: cerca de 2.200.000 unidades lançadas, distribuidas, em

50.000 quadras, acessadas por 65.000 ruas.

A inscrição dos imóveis no cadastro é obrigatória, seguindo as condições

estabelecidas pela Lei 6989/66:

Art.11° Todos os imóveis construídos, inclusive os que gozem de imunidade ou

isenção, situados na zona urbana do Município, devem ser inscritos, pelo

sujeito passivo, na repartição competente, de acordo com a legislação

municipal.

§1° A inscrição será feita em formulário próprio, no qual o sujeito passivo

declarará, sob sua exclusiva responsabilidade, e sem prejuízo de outros

elementos que sejam exigidos pelo Executivo:

I nome e qualificação;

II número de inscrição anterior e do contribuinte;

III localização do imóvel;

IV dimensões e área do terreno; área do pavimento térreo; número de

pavimentos e área total da edificação; uso, data da conclusão do

prédio;

V valor venal do imóvel;

VI aluguel efetivo anual;

VII dados do título de aquisição da propriedade ou do domínio útil;

VIII qualidade em que a posse é exercida.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 218

Art.31° Todos os imóveis não construídos, inclusive os que gozem de

imunidade ou isenção, situados na zona urbana do Município, devem ser

inscritos, pelo sujeito passivo, na repartição competente, de acordo com a

legislação municipal.

§1° A inscrição será feita em formulário próprio, no qual o sujeito passivo

declarará, sob sua exclusiva responsabilidade, e sem prejuízo de outros

elementos que sejam exigidos pelo Executivo:

I o nome e qualificação;

II o nome do procurador ou representante legal;

III o endereço para entrega do aviso;

IV o local do imóvel; denominação do bairro, vila ou loteamento e do

logradouro ou estrada em que estiver situado;

V as dimensões e área do terreno e confrontações;

VI o valor venal do imóvel;

VII os dados do título de aquisição da propriedade ou do domínio útil;

VIII a qualidade em que a posse é exercida;

IX a localização do imóvel, segundo esboço que anexará.

Cada unidade lançada constitui um lote ou melhor, um lote fiscal visto que esse

não corresponde necessariamente ao conceito corrente de lote qual seja, de

parcela de terreno. O lote no conceito fiscal é qualquer propriedade imobiliária

passível de ser tributada como unidade: pode ser uma casa, um apartamento, um

prédio, um terreno, uma vaga de garage, uma gleba de 50 ha etc.

Os lotes são agregados em quadras, normalmente delimitadas por ruas. No

entanto uma quadra pode também ser delimitada por uma propriedade tipo gleba

ou por um córrego, assim como pode haver diversas áreas delimitadas por ruas,

formando uma única quadra. No fundo trata-se apenas de um código de

localização, sem vínculo essencial com o conceito físico de quadra ou quarteirão.

A Figura 9.3b mostra alguns exemplos de numeração de quadras fiscais.

Figura 9.3b

Cadastro de São Paulo, 1994

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 219

Exemplo de numeração de quadras fiscais

Pela mesma lógica de código de localização, cada quadra, por sua vez, faz parte

de um setor fiscal. Todo o município está dividido em 310 setores a Figura 9.3c.

Figura 9.3c.

Município de São Paulo, 1994

Divisão em Setores Fiscais

Antes cada unidade tributada pode ser localizada através de um código composto

de três números que identificam sucessivamente o Setor, a Quadra dentro do setor

e o Lote dentro da quadra. Esse código é conhecido pela sigla SQL e corresponde

ao número do contribuinte isto é, ao número pelo qual a unidade a ser tributada é

identificada no cadastro e relacionada a um proprietário em nome do qual será

lançado o imposto.

setor

quadra

lote

dígito de controle

A cada lote são associados os dados de endereço e proprietário e os atributos

(área, tipo, uso, padrão) necessários para o lançamento do imposto:

Tipo de terreno (ver Figura 9.3d)

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 220

A legislação prevê descontos ou acréscimos para tipos de terreno considerados

desvalorizados ou mais valorizados com relação ao terreno normal.

1 normal

2 de esquema

3 com duas ou mais frentes

4 interno (acesso por viela ou via particular)

5 encravado (acesso por servidão)

6 de fundo (acesso por passagem com menos de 4m)

Figura 9.3d

Cadastro de São Paulo, Lei 10.235/86

Tipos de terreno

Uso

O conceito de uso se confunde em parte com o de tipo de construção,

especialmente no caso de residência como diferente de apartamento. O

primeiro dos códigos de uso identifica os terrenos não construídos, sujeitos a

imposto territorial.

0 terreno

1 residência (entendida como em prédio unifamiliar; no entanto inclui

residência coletiva)

2 apartamento (incluindo garagem)

3 escritório ou prédio de escritório

4 comércio

5 indústria, armazéns e depósitos

6 serviço (entendido como oficina, posto de serviço ou prédio de garagem)

7 cinemas, templos e clubes

Page 221: A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil

Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 221

8 especiais (hotéis, hospitais, asilos, etc.)

Padrão de construção

O padrão de construção, estabelecido por tipo, deveria complementar as

informações sobre o uso mas de fato se sobrepõe de maneira um tanto confusa.

Cada tipo é classificado em até 5 padrões de construção que vão do

“arquitetura modesta” (padrão A) ao “prédio isolado com projeto arquitetônica

especial e personalizado” (padrão E). Apesar das descrições extensas de cada

padrão o critério que prevalece é o da área bruta construída:

Tipo 1: Residencial horizontal

Padrão “A” – até 80 m²

Padrão “B” – até 120 m²

Padrão “C” – até 300 m²

Padrão “D” – até 500 m²

Padrão “E” – acima de 500 m²

Tipo 2: Residencial vertical

Padrão “A” – até 60 m²

Padrão “B” – até 85 m²

Padrão “C” – até 200 m²

Padrão “D” – até 350 m²

Padrão “E” – acima de 350 m²

Tipo 3: Comercial horizontal

Padrão “A” a “D”

Tipo 4: Comercial vertical

Padrão “A” a “D”

Tipo 5: Oficinas, depósitos, indústrias

Padrão “A” a “E”

Tipo 5: Garages, clubes, templos, teatros

Padrão “A” a “D”

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 222

Código de cobrança

O código de cobrança identifica os imóveis isentos ou imunes de impostos ou

taxas. Estão nesses casos as propriedades municipais, estaduais e federais,

algumas sociedades de economia mista e casos especiais de particulares. O

código de cobrança 0 (zero) se refere a imóveis de proprietário ignorado.

Código de regularidade

Combina a regularidade ou não do loteamento e da construção.

Para cada combinação de uso, tipo e padrão podem ser estabelecidos valores

venais unitários e alíquotas para cálculo dos impostos.

Cadlog

O segundo componente do sistema cadastral, o Cadlog – Cadastro de

logradouros, foi desenvolvido entre 1974 e 1978 com a principal finalidade de

reduzir o espaço gasto com os nomes das ruas, redundantemente repetidos a cada

registro de propriedade, substituindo o nome completo do logradouro por um

código sequencial. Para isto foi criado um arquivo de logradouros com os

respectivos códigos (Codlog), conforme exemplo da Figura 9.3e.

Figura 9.3e.

Cadastro de São Paulo, 1994

Códigos de logradouros

O Codlog tem um potencial de utilização muito maior do que a simples

codificação dos logradouros pois sua estrutura permite armazenar dados sobre

cada trecho da rua, como numeração das extremidades, largura, redes de serviço

existentes etc. ele se constitui no Indice Mestre de Logradouros (IML) ao qual se

relacionam todos os bancos de dados do sistema cadastral.

Geolog

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 223

Ao mesmo tempo em que se desenvolvia e implantava o Cadlog também foi

organizado o conjunto de mapas e projetado o terceiro sub-sistema cadastral, o

Geolog – Geocodificação dos Logradouros. Esse consistiu na atribuição das

coordenadas de localização geográfica (mesmas referências UTM do Sistema

Cartográfico Metropolitano) a cada intersecção de eixos de ruas (permitindo

assim o traçado de mapas de ruas e quadras por computador) e no

desenvolvimento de programas para mapear seletivamente, usando os dados do

Cadlog.

9.4 A identidade dos imóveis e o mapeamento

A caracterização de um imóvel para fins tributários, a rigor, não requer a

representação cartográfica desse imóvel pois mesmo atributos geométricos como

área ou testada podem ser registrados como valores num banco de dados

alfanuméricos. Bastaria portanto uma representação topológica12 que fornecesse a

posição com relação a elementos conhecidos: rios, ou vias públicas, por

exemplo13. No entanto um mapa (representação cartográfica) é necessário: não

para a caracterização dos imóveis mas sim para a caracterização dos imóveis mas

sim para a caracterização do universo considerado, garantindo, por um lado que

todas as propriedades sejam representadas e, por outro, que a soma das áreas das

propriedades seja igual à área total do território. Em outras palavras, uma

representação cartográfica é a única maneira de evitar sobreposição de

propriedade e de evidenciar eventuais lacunas. Sem essa representação não há

condição de se afirmar que as áreas estão corretas (qualquer que seja a precisão

definida a priori) ou que todas as propriedades foram cadastradas. O exemplo a

seguir ilustra a questão.

12 Topologia aqui é usado como a geometria das relações de posição, que não se interessa pelas dimensões, lineares ou angulares. 13 É o caso do endereço postal.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 224

A Figura 9.4a mostra a representação cartográfica, em escala 1:1000, de uma

quadra e sua subdivisão em lotes. Em cada lote está assinalada a respectiva área,

obtida diretamente através do desenho que, por sua vez, foi feito a partir de algum

tipo de levantamento ou de descrição. A soma das áreas dos lotes deve

corresponder à área da quadra (também conhecida graças ao desenho) sendo,

portanto, um critério simples de checagem. Observe-se que um mapa, ou

representação cartográfica, não dispensa a fonte primária dos dados qual seja, um

levantamento ou uma descrição apoiada em levantamento. Apenas não há

degenerescência da informação, como é o caso de uma representação

esquemática.

Figura 9.3e.

Exemplo de representação de lotes sobre uma base cartográfica

Escala 1:2:000

Uma representação esquemática (ou topológica) da mesma quadra (Figura 9.4b)

também permite localizar cada imóvel na rua e assinalar em cada lote a respectiva

área. Neste caso, porém, a área não pode ser obtida do desenho (sem escala) e não

há como conferir eventuais erros, visto não haver vinculação cartográfica entre a

representação individual de cada lote e o conjunto dos lotes (a quadra).

Figura 9.4b

Representação esquemática dos lotes do exemplo anterior (cf. Figura 9.4b)

A representação cartográfica não é apenas uma forma de arquivo de leitura direta,

mas é a única maneira segura de registrar todas as informações sobre elementos

espacialmente localizados. Donde a necessidade de mapeamento das quadras e

das propriedades, mesmo para o simples controle fiscal.

A necessidade de dispor de mapas confiáveis foi expressa pelo presidente da

Prodam (Cia. De Processamento de Dados do Município) na abertura de um

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 225

seminário sobre geoprocessamento, em novembro de 1978, por ocasião da

apresentação do Geolog e do sistema de mapeamento:

“Nos primórdios das necessidades da Secretaria das Finanças, de uma melhor

visão sobre o imposto territorial e da necessidade de melhorar a base desse

imposto. Quando foi visto que havia necessidade de melhorar essa base física

do imposto, verificou-se que nós não tínhamos uma base física. Os mapas que

havia na Secretaria anão correspondiam biunivocamente aos dados do cadastro

da Secretaria. Por outro lado, esses mesmos dados não correspondiam aos

mapas do Sistema Cartográfico Metropolitano. Além disso nós tínhamos vinte

mil ruas na cidade que não tinham nomes oficiai. Havia uma indefinição total

sobre a realidade de cada um dos logradouros da cidade, suas características

legais, suas características físicas, em resumo, muito pouca informação sobre a

base física, e no entanto administrar a cidade é conhecer a base física.

Quaisquer planos que a gente faça, qualquer plano que a gente queira fazer,

depende essencialmente de um conhecimento da base física.” (Isu Fang, 1978)

O sistema de mapeamento então apresentado tornara-se possível graças à

elaboração do Sistema Cartográfico Metropolitano pelo Gegran14 em 1972. O

Sistema Cartográfico Metropolitano é formado por um conjunto articulado de

14 Em 1967, antes mesmo do reconhecimento federal das regiões metropolitanas (Constituição de 1967/68 e Lei Complementar n°14, de 1973), o Governo de São Paulo subdividiu o Estado em 11 Regiões Administrativas uma das quais a da Grande São Paulo e criou para esta o Conselho de Desenvolvimento da Grande São Paulo --Codegran--e o Grupo Executivo da Grande São Paulo --Gegran-- , este último ligado à Secretaria de Economia e Planejamento. Pela primeira vez a ocupação da Região Metropolitana foi colocada como uma questão a exigir uma política territorial coordenada e toda a atuação do Gegran se baseou na instrumentalização para a elaboração dessa política. Em pouco tempo o Gegran se baseou na instrumentalização para a elaboração dessa política. Em pouco tempo o Gegran conseguiu não só reunir um considerável acervo técnico, com também colocar esse acervo em termos de instrumentos de ação. Entre esses instrumentos talvez o mais importante tenha sido o levantamento aerofotogramétrico de toda a região e a implantação do Sistema Cartográfico Metropolitano (SCM).

A atuação do Gegran é um exemplo claro de que os órgãos públicos na são ineficientes e incapazes por natureza. No entanto, mais uma vez mostrou-se a descontinuidade de ação do Estado brasileiro: o trabalho do Gegran punha em risco o descontrole sobre a organização territorial por parte do Estado e este agiu, transformando o Grupo Executivo em Empresa: Empresa Metropolitana de Planejamento S.A. - Emplasa. A Emplasa, sem suporte político efetivo, e paralizada pela ambiguidade de ser uma empresa (e portanto sujeita às regras do mercado) de planejamento do Estado (e portanto com atribuição de intervir no mercado externamente), limita-se a assessorar municípios pequenos e a controlar uma parte da legislação urbanística. Para uma análise da atuação do Gegran, ver Battaglia, 1990.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 226

cartas nas escalas 1:2000 (cadastral) e 1:10.00015, e constitui a base

cartográfica usada até hoje.

Figura 9.4c

Sistema Cartográfico Metropolitano – Gegran 1972

Escala 1:2.000

Figura 9.4d

Sistema Cartográfico Metropolitano – Gegran 1972

Escala 1:10.000

Entre 1974 e 1978 a Secretaria de Finanças da Prefeitura elaborou um mapa de

quadras16, com os limites dos setores fiscais e a numeração dos setores e das

quadras, o qual, instituido como Mapa Oficial da Cidade (MOC), é a base de

referências para os trabalhos da Prefeitura. Esse mapa foi feito em conjunto com a

Emplasa (Empresa Metropolitana de Planejamento AS) a partir do Sistema

Cartográfico Metropolitano.

Figura 9.4e

Mapa Oficial da Cidade – PMSP 1985

Escala 1:7.500

O MOC é completado pelas plantas de quadras, desenhos esquemáticos de cada

quadra com os lotes de terreno e a indicação dos lotes fiscais em cada terreno.

Figura 9.4f

Cadastro de São Paulo – PMSP 1994

Planta da quadra

15 Fazem parte do conjunto do SCM as cartas 1:25.000, redução fotográfica de 1:10.000. 16 Originalmente na escala 1:5000, obtido por ampliação fotográfica do mapa 1:10.000. A segunda versão do mapa foi feita na escala 1:7500.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 227

Por sua vez o Mapa Oficial da Cidade serviu de base para a geocodificação das

quadras e ruas, formando o banco de dados do Geolog. Mal chegou a ser

terminado e, em 1982, o Geolog foi desativado sob a alegação de que sua

manutenção era muito cara.

Figura 9.4g

Cadastro de São Paulo – PMSP 1994

Geolog

O Geolog foi retomado em 1991, já com outras perspectivas de utilização, graças

a um início de integração com outros serviços municipais, e contanto com

profundas alterações na forma de manipulação, graças aos avanços técnicos na

área da computação gráfica e das redes de micro-computadores.

9.5 Problemas na manutenção da base cartográfica

A atualização do sistema MOC / Quadras fiscais é feita pela Secretaria de

Finanças a partir das informações dos processos administrativos (plantas de

loteamentos, projetos de melhoramento viário, desmembramentos, aprovação de

obras etc) e das vistorias e levantamentos feitos pelos inspetores fiscais.

Enquanto a Secretaria de Finanças teve recursos para manter uma equipe de

desenhistas e pessoal de campo que assegurasse o trabalho permanente de

levantamento e fiscalização, esse método foi bastante eficaz no sentido de que o

cadastro fiscal se mantinha suficientemente atualizado para garantir a necessária

expansão da base tributável, apesar da crescente perda de qualidade cartográfica.

Mesmo assim alguns problemas se tornaram evidentes, acentuados ainda mais

com a política17 de paulatina desativação dos serviços relacionados com o

17 Para implantar uma política de desativação de serviços não é necessária nenhuma ação deliberada: basta não expandir os recursos no mesmo ritmo do aumento da demanda ou das mudanças tecnológicas que ocorrem no conjunto da sociedade. Um serviço baseado em fichas

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 228

controle e o planejamento da ocupação do território, no caso específico, de

manutenção da base cartográfica. Esses problemas são do mais diversos tipos e

podem ser resumidos em alguns exemplos a seguir.

Rede de marcos de apoio geodésico

Um levantamento, seja aerofotogramétrico seja fotográfico, deve estar

amarrado (ou referenciado) a pontos fixos, dos quais se conhecem as

coordenadas geográficas isto é, a longitude e a latitude sobre o geóide de

representação da Terra. E necessário, portanto, existir uma rede desses

pontos, ou marcos de apoio geodésico, fisicamente demarcados, em

densidade suficiente para que de qualquer área a ser levantada se tenha

fácil acesso a, pelo menos, dois deles. Na falta de uma rede de marcos

oficiais, cada entidade que necessita mapear uma área extensa coloca um

conjunto de marcos para seu próprio uso, às vezes georeferenciados, às

vezes com coordenadas arbitrárias. Em São Paulo vários órgãos

implantaram verdadeiras redes de apoio: as companhias de estradas de

ferro, a Light, o IBGE. Essas redes acabaram sendo unificadas e

consolidadas numa única, oficial, mas mesmo assim a densidade de

marcos é insuficiente como referência para os levantamentos na regi5o. A

falta de administração efetiva dessa rede impediu até agora que ela fosse

utilizada como referência para as atualizações cartográficas: os marcos

físicos são destruidos, não há (ou pelo menos não se conhece) um registro

centralizado com a localização e descrição desses marcos, não há um

serviço de fornecimento de referências de apoio para levantamentos

topográficos, não há serviço permanente de reposição e adensamento de

marcos.

Como consequência os levantamentos parciais continuam sendo feitos

desvinculados do sistema geral e, portanto, não são aproveitáveis como

dado cartográfico.

Levantamentos topográficos incorretos

datilografadas em máquinas de escrever numa sociedade que se reorganiza usando redes de computadores está fadado à rápida obsolescência.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 229

Tanto empresas privadas quanto órgãos públicos fazem, constantemente,

levantamentos topográficos parciais: para anteprojeto ou projeto de

loteamentos, para abertura ou locação de obras viárias, para grandes

construções etc. Esses levantamentos deveriam ser a base de informações para

atualização do sistema cartográfico. No entanto a dificuldade na obtenção de

referências de apoio, a falta de controle público sobre sua qualidade, a própria

falta de uma base cartográfica atualizada são fatores que concorrem para que

os levantamentos de rotina não sejam confiáveis para a atualização

cartográfica.

Alterações sem controle

Aberturas de ruas sem projeto aprovado, projetos aprovados com base em

levantamento falhos, obras em desacordo com o projeto, são outros tantos

fatores que promovem a rápida desatualização da base cartográfica.

Lote físico não identificado

O sistema cadastral adotado em São Paulo identifica cada parcela de terreno

pois trabalha com o conceito de lote fiscal e não de lote físico. Este é

representado nos desenhos das quadras mas não é acoplado, no cadastro, a cada

unidade tributada. Essa desvinculação dificulta o acompanhamento do histórico

de cada imóvel em termos de projetos aprovados e executados, infrações,

desmembramentos etc.

Falta de articulação dos serviços de atualização

Dispondo de uma base cartográfica ou melhor, de um sistema cartográfico

confiável, a atualização cadastral deveria fazer parte dos serviços de rotina dos

diversos órgãos de uma Prefeitura: aprovação de projetos e de obras, atribuição

de nome de rua, autorização para serviços nas vias, concessão de alvará de

funcionamento, extensão de rede pública, são atividades próprias de qualquer

administração municipal que só podem ser bem desenvolvidas se forem

instruídas por mapas e plantas cadastrais. Ao mesmo tempo a própria atividade

traz alterações que, se forem registradas sistematicamente, podem garantir a

atualização permanente das plantas cadastrais. Não é isto que ocorre. Os serviços

são pulverizados em inúmeros órgãos independentes, cada um examinando e

respondendo por um aspecto específico da questão em pauta, cada um usando

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 230

fontes de informações diferentes e fazendo anotações ou atualizações parciais

(quando as fazem) em mapas de uso restrito para o serviço específico. Essa falta

de articulação acabou gerando problemas cuja solução escapa totalmente das

rotinas, exigindo um trabalho sobreposto a elas e em muitos aspectos em conflito

com elas. É o caso, por exemplo, dos milhares de ruas não identificáveis (rua A,

rua UM, rua Particular) ou dos imóveis do patrimônio municipal não mapeados e

não localizáveis.

Na origem de todas as dificuldades apontadas para a atualização cartográfica está

o fato do sistema ser de uso exclusivo para tributação, sem qualquer

compromisso.

9.6 A Planta Genérica de Valores e o cálculo dos impostos

A manutenção do cadastro fiscal e a atribuição dos valores venais são tarefas da

Secretaria de Finanças. Os valores venais são consolidados e aprovados

anualmente num documento conhecido como PGV – Planta Genérica de Valores.

Os valores unitários de terreno, definidos em função da localização, eram de fato

mapeados (por zonas de mesmo valor), e a Lei 6.986/66 se refere à Planta

Genérica de Valores (ver Artigos 16 e 35, à página 217).

Já a Lei 10.235/86 substituiu a PGV por uma Lista de Valores Unitários, por face

de quadra18.

Art.1° A apuração do valor venal, para fins de lançamento dos Impostos sobre

a Propriedade Predial e Territorial Urbana, será feita conforme as normas e

métodos ora fixados.

Lista de Valores.

Art.4° O valor venal do terreno ... resultará da multiplicação de sua área total

pelo correspondente valor unitário de metro quadrado de terreno, constante da

Listagem de Valores ...

A partir da informatização dos cadastros a planta foi substituída para efeitos

operacionais por uma listagem das faces de quadra e seus respectivos valores 18 Face de quadra é o resultado do cruzamento de quadras com ruas. Por exemplo, uma quadra X, limitada por quatro ruas A, B, C e D, terá quatro faces de quadras XA, XB, XC e XD.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 231

venais. Via de regra os valores venais dos terrenos isto é, os valores que refletem

diferenças de localização, são atualizados linearmente, o que significa apenas uma

correção monetária. A valorização em função de alterações de fatores de

localização como acessibilidade a sistema viário, transporte ou redes de serviços,

só se reflete em termos de valores venais com anos de atrazo, através de pesquisas

de valor de mercado.

Dentro das conquistas estabelecidas cabem à Secretaria de Finanças da Prefeitura

as tarefas de manter o cadastro das propriedades imobiliárias, estabelecer os

valores venais de cada propriedade e calcular os impostos.

A legislação é ao mesmo tempo muito detalhada em certos aspectos e omissa em

outros, deixando dúvidas para quem “não é do ramo”. Isto é, de fato as atribuições

se resolvem pela prática dos funcionários e pelas rotinas e sistemas implantados.

As leis fornecem alguns critérios gerais, justificativas e parâmetros de cálculo,

além de constituírem as bases para discussões e negociações político-partidárias.

Pela Lei 6.989/66 o imposto era calculado mediante aplicação de alíquotas fixas

sobre os valores venais apurados segundo as regras citadas (ver pg.218).

Art.7° O impôsto [predial] calcula-se à razão de 1,2% sôbre o valor venal do

imóvel.

Art.27 O impôsto [territ.urbano] calcula-se sobre o valor venal do imóvel, à

razão de:

I quando situado na 1ª subdivisão da zona urbana, 4,2%;

II quando situado na 2ª subdivisão da zona urbana, 3,0%;

III quando situado além do perímetro desta última, 2,4%.

A partir da Lei 10.235/86 os dois impostos passaram a ser tratados em conjunto,

num único Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), o que gera uma certa

confusão com a possível interpretação de que o IPTU resultaria da soma dos dois.

De fato, sem considerar o caso de excesso de área, como definido no inciso III do

Artigo 24, os dois impostos são alternativos isto é, se aplica um ou outro,

conforme o imóvel seja ou não construído. No entanto o Imposto Predial é

calculado sobre um valor venal obtido pela soma dos valores venais do terreno e

da construção: o do terreno depende da localização e o da construção é definido

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 232

para todo o município em função do uso, tipo e padrão. Obviamente essa forma de

cálculo de valor venal do imóvel pela soma de valores venais de imóveis

inexistentes (um terreno vazio com determinado uso e uma construção sem

terreno) não corresponde a nenhum critério de avaliação de mercado. No entanto

é uma forma bastante eficaz de distribuir a carga tributária e, a menos dos

problemas pontuais comuns num cadastro tão grande como o de São Paulo, não

parece haver grandes distorções.

Por outro lado, a Lei 10.394/87 estabeleceu alíquotas diferenciadas, em função do

uso e do Valor Venal do Imóvel (VVI), em substituição à alíquota única de 1,2%

para imóveis construidos e às três alíquotas em função da localização para os

terrenos vagos.

Art.1°, inciso I (art.7° do Decreto 26.120/88) O imposto [predial] calcula-se

sobre o valor venal do imóvel à razão de:

I tratando-se de imóvel utilizado exclusivamente como residência:

Classes de VVI (em UFM)19 Alíquotas

acima de até 30 0,8% acima de 30 até 80 1,0% acima de 80 até 120 1,2% acima de 120 até 200 1,4% acima de 200 até 300 1,6% acima de 300 até 1000 1,8% acima de 1000 2,0%

II demais casos:

Classes de VVI (em UFM) Alíquotas

acima de até 80 1,2% acima de 80 até 120 1,4% acima de 12 até 200 1,6% acima de 200 até 300 1,8% acima de 300 até 1000 2,0% acima de 1000 2,2%

§1° O imposto é calculado em cada classe sobre a porção de valor venal do

imóvel em UFM, compreendida nos respectivos limites.

19 UFM – Unidade Fiscal do Município. É um indexador usado para Prefeitura para corrigir os valores recebidos de impostos e taxas e os valores pagos a fornecedores.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 233

§2° O imposto progressivo é a soma das parcelas correspondentes a cada

classe.

Art.1°, inciso IV (art.23 do Decreto 26.120/88) O imposto [territorial urbano]

calcula-se sobre o valor venal do imóvel à razão de:

I tratando-se de imóvel utilizado exclusivamente como residência:

Classes de VVI (em UFM) Alíquotas

acima de até 30 2,4% acima de 30 até 100 3,0% acima de 100 até 200 3,6% acima de 200 até 500 4,2% acima de 500 até 1500 5,0% acima de 1500 até 3000 6,0% acima de 3000 7,0%

As Leis 10.805/89 e, mais ainda, 11.152/91 alteraram não apenas os valores das

alíquotas mas principalmente a estrutura de distribuição dos impostos,

aumentando-os mais para as propriedades de valores venais mais altos.

Alíquotas definidas pela Lei 11.152/91:

I imóvel construído, utilizado exclusivamente como residência:

Classes de VVI (em UFM) Alíquotas

acima de até 550 0,2% acima de 550 até 1400 0,4% acima de 1400 até 4600 0,6% acima de 4600 até 15000 0,8% acima de 15000 1,0%

II imóvel construído não residencial:

Classes de VVI (em UFM) Alíquotas

acima de até 80 0,60% acima de 80 até 300 0,75% acima de 300 até 500 0,95% acima de 500 até 800 1,15% acima de 800 até 1200 1,30% acima de 1200 até 2600 1,50% acima de 2600 até 10000 1,70% acima de 10000 2,40%

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 234

III terreno não construído:

Classes de VVI (em UFM) Alíquotas

acima de até 50 0,75% acima de 50 até 100 0,95% acima de 100 até 200 1,30% acima de 200 até 300 1,50% acima de 300 até 600 1,70% acima de 600 até 1500 1,90% acima de 1500 até 4500 2,80% acima de 450 até 9000 3,70% acima de 9000 5,00%

A título de exemplo, segue a sequência de operações para cada cálculo do IPTU

de uma residência (sobrado), de acordo com a notificação emitida pela Prefeitura.

IMAGEM

Area construída: 96 m².

É a área constante do cadastro. Neste caso específico a área real é de 220 m².

Valor m² construído: CR$ 1 229,0020.

Valor venal unitário da construção, definido por lei, função do tipo e padrão da

construção. Trata-se no caso de 1B isto é,

Tipo 1 - residencial horizontal

Padrão B - área bruta entre 80 e 120 m².

Fator de obsolescência: 0,79.

O fator de obsolescência é um redutor do valor venal do imóvel em função da

idade, sendo essa contada a partir do último alvará (seja de construção, de

reforma ou de conservação). O fator 0,79 corresponde a 15 anos.

Fatores.

Três espaços reservados para eventuais fatores de (des)valorização do imóvel.

20 Todos os valores monetários estão divididos por 1.000.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 235

Valor (venal) da construção: CR$ 93 207,00.

Area construída pelo valor venal unitário corrigido pelos diversos fatores.

96 m² X CR$ 1 229,00/m² X 0,79 = CR$ 93 270,00

Area de terreno incorporada: 276 m².

Calculada em função da área ocupada (projeção da área construída sobre o

terreno) e da zona em que se situa o imóvel. Neste caso trata-se de imóvel na 2ª

zona, com área ocupada de 46 m².

46 m² X 6 = 276 m²

Valor m² terreno: CR$ 1 201,00.

Valor venal unitário do terreno, definido por quadra ou por face de quadra na

Planta Genérica de Valores.

Fator (no caso, de profundidade): 0,9877.

O fator de profundidade é um redutor do valor venal, definido em função da

“profundidade equivalente”, essa sendo a relação entre área e testada. A

intenção desse fator é considerar a desvalorização de terrenos com proporções

muito diferentes do clássico lote de 10 X 30 m. O fator de profundidade é

aplicado, de maneira progressiva, para terrenos em que a relação entre área e

testada é menor que 20 ou maior que 40.

Fator.

Espaço reservado, sem aplicação neste caso.

Fator condomínio.

Aplicado em casos de prédios com mais de uma unidade, tributada

(apartamentos, escritórios, lojas etc). Notar que, no cadastro, a cada unidade

tributada está associado o terreno inteiro e não apenas sua fração ideal. Esta é

aplicada diretamente para o cálculo do valor venal.

Valor terreno incorporado: CR$ 327 392,00.

Area do terreno incorporado, pelo valor unitário, pelos fatores de correção,

condomínio e fração ideal.

276 m² X CR$ 1 201,00 X 0,9877 = CR$ 327 392,00

Page 236: A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil

Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 236

Fator especial.

Mais uma correção para casos previstos por leis específicas.

Valor venal imóvel: CR$ 420 599,00.

Soma dos valores venais da construção e do terreno incorporado.

CR$ 93 207,00 + CR$ 327 392,00 = CR$ 420 599,00

Fator de desconto.

Não está sendo usado. A Prefeitura costuma conceder descontos em função do

valor venal apurado (o que equivale a uma alteração de alíquotas), seja na

forma de um percentual (ou fator), seja na de valores fixos. Em 1993 foi

concedido desconto fixo de 400 UFM, razão pela qual o “fator de desconto”

não foi usado.

Valor venal do imóvel corrigido: CR$ 266 423,80.

Valor venal calculado anteriormente ao qual se aplicou o desconto de 400

UFM.

Alíquota: 0,0060.

A alíquota é estabelecida por lei, em função do uso do imóvel. Ao longo dos

anos houve várias tentativas mais ou menos bem sucedidas de se estabelecer

alíquotas progressivas, em função do valor venal do imóvel. Em 1993 a

alíquota foi única.

Parcela a deduzir.

Campo disponível para os casos de alíquota progressiva por faixa de valor, para

evitar descontinuidade nos valores do imposto.

Area do terreno não incorporado:

Área total menos a área do terreno incorporado.

400 m² - 276 m² = 134 m²

O cálculo do valor venal do terreno não incorporado se repete, com todos os

fatores de correção, e neste caso sem desconto.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 237

Sobre o valor venal do terreno não incorporado é aplicada a alíquota do imposto

territorial, normalmente mais alta que a do imposto predial. Em 1993 as duas

alíquotas foram iguais mas em 1992, por exemplo, as alíquotas foram:

Predial 0,006

Territorial 0,017

Seguem os códigos do logradouro, de uso, tipo, cobrança etc., além dos dados

necessários para o lançamento das taxas. Finalmente, o imposto total é calculado

pela soma dos impostos predial (referente à construção e terreno incorporado) e

territorial (referente ao terreno não incorporado).

Predial CR$ 266 423,80 X 0,006 = CR$ 1 598.50

Territorial CR$ 158 952,00 X 0,006 = CR$ 953.70

_______________

Total CR$ 2 552.20

A partir de 1990 a Prefeitura passou a fazer tentativas de cobrar o imposto em

valores constantes. Até 1989 o IPTU era calculado em moeda corrente “corrigida”

por uma estimativa de inflação futura21. O resultado era parcelado em prestações

e recebia um “desconto” para pagamento a vista. Em 1990 a Prefeitura conseguiu

a autorização para “atualizar o valor a pagar em 70% da variação do BTN entre o

mês base e o do vencimento”. Ainda não era uma atualização plena do valor mas

o reconhecimento da necessidade de se ter as contas públicas em alguma moeda

constante foi um passo importante no sentido do controle sobre o orçamento. No

ano seguinte a atualização foi pelo valor total do BTN. Em 1992 e 1993 os valores

em moeda corrente foram transformados em UFM (Unidade Fiscal do

Município), com variação mensal e, finalmente, em 1994 a Prefeitura adotou a

UFM diária para pagamento dos impostos municipais.

21 Considerando que o orçamento é montado em julho/agosto do ano anterior e enviado à Câmara em setembro, é fácil imaginar que essas previsões tem sido bastante próximas ao aleatório.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 238

9.7 Imóveis regulares e irregulares

A legislação não menciona qualquer diferença de tributação com base na

regularidade ou não do imóvel. No entanto a questão não é isenta de problemas.

A produção do lote (terreno com acesso à estrutura de vias públicas) se dá através

de processo de parcelamento de glebas, seja por desmembramento (simples

subdivisão das quadras resultantes). Esse processo passa pela aprovação do poder

público22 e, via de regra, está legalmente condicionado à implantação de

infraestrutura e à doação de áreas para uso público. Os lotes assim obtidos podem

receber construções cujo projeto também deve ser aprovado, dentro de regras

definidas de ocupação e uso. Um imóvel construído é considerado regular pela

Prefeitura Municipal quando é formado por uma construção aprovada sobre um

lote resultante de um processo de parcelamento aprovado. Ao longo da história de

São Paulo poucos imóveis foram produzidos estritamente de acordo com a

legislação em vigor. A grande maioria, irregulares ou “clandestinos” acabam

sendo reconhecidos em sucessivos processos de regularização e de anistias. No

entanto mesmo irregulares os imóveis podem ser (e são) cadastrados para

tributação, criando-se um duplo processo de reconhecimento: um para pagamento

de impostos, outro para obtenção de documentos de regularidade e direitos a

serviços públicos. Dois mundos, com regras e definições diferentes, com claro

predomínio, em termos de importância, do mundo tributário. E note-se que

nenhum desses dois mundos corresponde ao reconhecimento jurídico do direito

de propriedade que, como visto acima, depende do registro de um título no

Cartório de Registro de Imóveis.

Na prática isto significa a pouca utilidade de todo o sistema de proposição e

aplicação da legislação urbanística cujos recursos de persuasão estão limitados a

certidões esporádicamente necessárias (no caso de financiamentos, por exemplo)

ou a complicadas e demoradas ações jurídicas. 22 Para uma descrição detalhada do processo de aprovação de parcelamento do solo em São Paulo Battaglia (1987).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 239

As regras estabelecidas pela legislação federal e municipal com relação à

tributação da propriedade imobiliária são bastante simples e coerentes se

consideradas isoladamente isto é, apenas como conjunto de normas tributárias. As

coisas se complicam à medida em que as mesmas categorias ou conceitos usados

pelo sistema tributário, não sendo exclusivos deste sistema, aparecem em outros

contextos, em outros conjuntos legais, muitas vezes com definições diferentes,

mesmo conflitantes. É aí que a legislação se torna um instrumento paralizante,

que impede qualquer tentativa de resolução dos problemas concretos que surgem.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 240

CAPÍTULO 10

AS TERRAS AGRÍCOLAS E O IMPOSTO RURAL

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 241

10 AS TERRAS AGRÍCOLAS E O IMPOSTO RURAL

“Se os pobres tivesse crédito e terreno

que beleza não seria.

Todos os pobres plantavam

e todos os pobres coía.

Nisto eu falo a verdade

até o povo da cidade

muito mais fácil vivia.”

(Sebastião Roque, cantador de cururu)1

O sistema cadastral brasileiro é formado pelos 4.493 cadastros urbanos mantidos

pelas prefeituras para lançamento do Imposto Predial e Territorial Urbano e pelo

cadastro das propriedades rurais, atualmente mantido pelo INCRA (Instituto

Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e destinado ao lançamento do

Imposto Territorial Rural.

Com o intúito de completar um quadro suficientemente abrangente do sistema de

cadastros e registros no Brasil, este capítulo apresenta informações sobre o

cadastro do INCRA, suas origens e alguns problemas, e uma breve indicação sobre

o registro Torrens cujo interesse hoje parece ser apenas histórico. Serão deixados

deliberadamente de lado os registros das terras públicas e de estrangeiros por

constituírem assuntos para áreas de estudos a parte, que fogem da viabilidade de

tratamento neste trabalho.

1 Verso de cururu cantado por Sebastião Roque, cantador de Sorocaba na década de ‘50. Toda a cantoria foi reproduzida em 1964 pelo Grêmio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, num folheto editado por ocasião da apresentação de cantadores de cururu na FAU.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 242

Antes de abordar a origem e as características do cadastro de propriedades rurais é

necessário examinar a separação entre territorial urbano e territorial rural do ponto

de vista da validade da dicotomia urbano e rural como conceitos de análise para,

em seguida, avaliar sua utilidade quanto à aplicação prática.

10.1 A falsa oposição entre rural e urbano

O uso generalizado do termo rural como oposto a urbano não facilita o

entendimento dessa oposição assim como não elimina as dificuldades em separar

fenômenos e processos que possam ser definidos como urbanos de outros não

urbanos.

A questão é tratada por alguns autores, sob diferentes pontos de vista:

Michael Ball2, por exemplo, critica a possibilidade de se definir “economia

urbana” enquanto área de estudo ou de atuação.

Merrington3 examina a dicotomia cidade/campo na economia feudal e a sua

dissolução no processo de transição para o capitalismo.

Deák4 aborda a questão sob o enfoque do processo de produção e de acumulação:

no capitalismo a formação de um mercado unificado, correspondente ao espaço de

uma nação-Estado, elimina os mercados locais, tornando sem sentido a separação

entre cidade e campo.

A falsa dicotomia urbano / rural é uma herança da dicotomia cidade / campo na

sociedade feudal, em que o campo era o lugar da produção e a cidade o lugar da

troca e do consumo de excedente. Duas características essenciais da sociedade

feudal originavam essa separação:

2 Ball (1979). 3 Merrington (1975). 4 Deák (1985).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 243

1 A produção estava estruturada em boa medida diretamente em função

do valor de uso (meios de subsistência), sendo a troca restrita ao

excedente; mesmo a produção mercantil (para troca) estava

subordinada à estrutura de produção de valores de uso.

2 O espaço era fracionado em áreas de produção e mercados separados,

o que permitia a atividade mercantil, baseada na possibilidade de

“comprar barato e vender caro”5

Os espaços eram fisicamente separados, seja pela distância, seja por muros de

defesa das cidades e vilas, onde se acumulavam os excedentes.

Ao contrário, o processo de acumulação capitalista, em que predomina a produção

pelo valor de troca, em que a produção de mercadorias se estende aos meios de

subsistência, e em que a base do mercado é a troca de valores equivalentes, requer

(e constroi) um espaço unificado, em que a separação cidade / campo não tem

mais significado.

“O surgimento do capitalismo é precisamente o processo de transformação no

qual a forma mercadoria se torna generalizada e dominante, a produção para

subsistência e a produção de excedente como tal (renda) são incorporadas

(subordinadas) à produção de valor na forma de mercadorias pelo trabalho

assalariado sob o comando do capital, e a troca passa a ser troca de

equivalentes num mercado unificado. Assim enquanto no feudalismo a

separação entre a produção e a troca/consumo numa constelação de mercados

separados acarreta a dicotomia cidade/campo e o fracionamento do território

numa constelação dos espaços locais, a produção capitalista de mercadorias

num mercado unificado acarreta a redução da anterior dicotomia

cidade/campo e a redução da constelação de espaços locais a um único

espaço no qual mercadorias, trabalho e capital fluem livremente e numa

escala suficientemente grande para sustentar um processo autônomo de

acumulação – como o que ocorreu historicamente dentro das fronteiras da

moderna nação-estado.” (Déak (1985, pg102).

Na transição do feudalismo para o capitalismo o espaço unificado, correspondente

à produção capitalista de mercadorias, foi concretamente construído pelas redes de

5 Merrington (1975).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 244

transporte e comunicações, pela eliminação das barreiras alfandegárias internas (e

eventual reforço das externas) e pela desconsideração dos muros periféricos das

cidades que separavam o espaço dentro do espaço fora (como espaços com

características diferentes enquanto formas e relações sociais de produção). O

espaço passa a ser único, formado por um contínuo de localizações, independente

da forma assumida pela localização específica de cada atividade.

No período feudal português os municípios correspondentes a cidades com

administração autônoma, em geral fiéis ao rei, constituíam uma força para

contrabalançar a da nobreza cujo poder dependia da produção do campo.

No Brasil-colônia o campo correspondia aos locais de produção, aos engenhos, às

sesmarias, à relação senhor/escravo. As cidades e vilas eram o local do comércio,

das formalidades administrativas e dos encontros sociais, onde o assentamento se

dava através das concessões feitas pelos Conselhos e a dominação, apesar de ser

exercida pelos mesmos senhores de terras, não o era diretamente mas sim através

das posições políticas e das ações administrativas.

A evolução para uma estrutura social inteiramente capitalista no Brasil teria

levado (como levou nos Estados burgueses) ao abandono da separação cidade /

campo por não corresponder mais ao modo de produção determinante. Ao invés,

foi mantida uma separação, mas sem significado para a estrutura de produção,

substituindo-se cidade por “zona urbana” e campo por “zona rural”, o que apenas

dificulta a administração e facilita a manutenção de privilégios em matéria de

impostos. Toda a legislação tributária e de controle do uso e ocupação do solo está

solidamente ancorada na distinção, cada vez mais vazia de significado, entre

“urbano” e “rural”. Na falta de corresponder a processos concretos, essa distinção

exige definições formais, das quais o melhor exemplo é o dos traçados dos

perímetros urbanos.

10.2 Os perímetros urbanos

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 245

O trabalho de Raquel Glezer, Chão de terra6, oferece importante contribuição em

matéria de documentação e bibliografia específica sobre as origens dos perímetros

urbanos no Brasil.

A partir do início do século XIX os moradores das povoações estavam sujeitos ao

pagamento da décima urbana, imposto sobre os prédios urbanos, definidos como

tais os que estivessem compreendidos nas demarcações dos Conselhos (mais tarde

Câmaras). A décima urbana fora instituída por Alvará de 27 de junho de 1808 (e

estendida a todas as povoações pelo Alvará de 3 de junho de 1809) e correspondia

a 10% do rendimento líquido. O seu lançamento exigiu a anotação, em livros e

cadernos, não só dos valores lançados e arrecadados, mas também da relação dos

imóveis, seus proprietários e inquilinos, os foros, os rendimentos, a quantidade de

andares e lojas etc., constituindo-se assim os primeiros cadastros fiscais7. A título

de curiosidade vale citar Raquel Glezer sobre as juntas incumbidas da avaliação

dos imóveis:

“Para a cobrança do novo tributo a Coroa exigiu a formação de uma Junta da

Décima, para lançamento do valor, composta por Superintendente, ..., um

Escrivão, dois homens bons, um nobre e outro do povo, dois carpinteiros, um

pedreiro e um fiscal, obrigatoriamente advogado.” (Glezer, 1992, pg.90).

Em 1983 a décima urbana foi transformada em imposto provincial.

Por outro lado o registro das posses, determinado pela Lei das Terras

Devolutas (1850), foi dispensado nos núcleos urbanos8. Uma circular

de 13.1.1855 da Repartição Geral das Terras Públicas aos Presidentes das

Províncias dizia:

“Visto ser princípio regulador do Registro das terras possuídas o destino

destas para a lavoura ou criação, se observe em geral como linha de

separação a demarcação da décima urbana declarando comprehendidos na 6 Glezer (1992). 7 Segundo Raquel Glezer, o livro de São Paulo em 1809 arrolava 56 ruas e 1.288 propriedades. 8 Raquel Glezer cita o trabalho de Viviane Tessitore de compilação dos registros paroquiais de freguesia da Sé, em São Paulo: os 69 registros compilados estão todos fora do perímetro da décima.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 246

obrigação do registro todos os terrenos que estão fora da dita demarcação.”

(Glezer, 1992).

Em 29 de setembro de mesmo ano o Aviso nº 17 reforçava a circular:

“Na obrigação do registro não forão comprehendidos os terrenos que ficão

dentro da demarcação da Décima Urbana.” (Glezer, 1992).

Formalizavam-se assim dois regimes de terras, separados por uma linha

demarcatória mal definida:

O correspondente às áreas urbanas, não registradas, sujeitas à décima

urbana e ao pagamento de foro às Câmaras municipais.

O correspondente às demais, sujeitas a registro para obtenção de

título de propriedade e isentas do imposto da décima.

O traçado dessa linha demarcatória não está muito claro para os historiadores de

hoje, especialmente no caso de São Paulo onde havia uma certa confusão entre a

área do rossio e a área do termo.

“Chamo atenção para o fato da palavra rossio ter tido seu sentido alterado.

Era originalmente a área destinada ao uso comum, e só podia ser doada para

moradia ou aforada, pois era parte integrante dos bens do conselho. No

decorrer dos séculos, de “terras de uso comum” rossio se transformou na área

de controle direto da Câmara, como se fosse o termo.” (Glezer, 1992, pt.136).

Acrescente-se a essa confusão de nomes o fato de que, em São Paulo, o rossio só

foi demarcado em 17269 e novamente em 176910 e que o termo (nunca

demarcado) correspondia vagamente a seis léguas em torno da vila, para se ter

idéia das condições de controle sobre domínio e propriedade. Sem contar com a

divisão eclesiástica em freguesias, sem correspondência com qualquer outra, sobre

a qual se organizava o sistema de registro dos títulos de propriedade.

Em correspondência ao processo de regulamentação e implantação das medidas

estabelecidas pela Lei das Terras iniciaram-se movimentos nos diversos

municípios no sentido de se livrar dos foros às Câmaras e de transformar os

9 Glezer (1992, pg.142). 10 Glezer (1992, pg.151).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 247

direitos de ocupação em títulos de propriedade. Esse processo já durou mais de

um século11 e não há evidência de que esteja totalmente concluído.

10.3 Competências tributárias e legislação sobre o território

Talvez porque a tributação sobre a terra fosse ainda incipiente, a primeira

Constituição republicana (1891) não fez distinção entre imóveis rurais e urbanos,

dando aos Estados a competência de decretar impostos sobre ambos.

Já a Constituição de 1934 definiu como competência dos Estados a de lanças

impostos sobre a “propriedade territorial, excepto a urbana” e como pertencentes

aos municípios os “impostos predial e territorial urbanos”. Enquanto estes últimos

permaneceram desde então no âmbito municipal, o lançamento do impostos sobre

a propriedade não urbana foi atribuído ora aos Estados, ora à União e durante um

curto período aos municípios, sendo que o produto arrecadado foi parcialmente

repassado aos municípios.

A parte o fato de que os termos urbano e rural não definem categorias de análise,

a manutenção desta separação traz problemas na prática, na medida em que é cada

vez mais difícil distinguir entre “urbano” e “rural” mesmo apenas para efeito de

tributação. Um prédio de apartamento no centro de São Paulo é considerado um

imóvel “urbano” enquanto que uma plantação de cana no município de

Iracemápolis é um imóvel “rural”, de acordo com a lógica de separação por

atividade predominante do imóvel. Mas seria difícil considerar como “rural” os

dois hectares na periferia de Itaquera, plantados com hortaliças no aguardo de uma

ocupação “urbana” (entenda-se “construída”), ou mesmo a plantação de cana

numa área contígua à ocupação “urbana” e aguardando os trâmites legais para ser

parcelada em lotes de 10m X 30m.

11 Ver o caso de Salvador, citado na nota 5 à pg.88.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 248

Segundo o ponto de vista legal/tributário o problema se resolve com um perímetro

urbano traçado segundo as normas do próprio Sistema Tributário Nacional (Lei

Federal 5.172/66):

Art.32

§1°: Para os efeitos dêste imposto (sôbre a propriedade predial e territorial

urbana), entende-se como zona urbana a definida em lei municipal;

observado o requisito mínimo da existência de melhoramentos indicados

em pelo menos 2 (dois) dos incisos seguintes, construídos ou mantido

pelo poder público:

I meio-fio ou calçamento, com canalização de águas pluviais;

II abastecimento de água;

III sistema de esgotos sanitários;

IV rêde de iluminação pública, com ou sem posteamento para

distribuição domiciliar;

V escola primária ou pôsto de saúde a uma distância máxima de 3

(três) quilômetros do imóvel considerado. §2°: A lei municipal pode considerar urbanas as áreas urbanizáveis, ou de

expansão urbana, constantes de loteamentos aprovados pelos órgãos

competentes, destinados à habitação, à indústria ou ao comércio, mesmo

que localizados fora das zonas definidas nos termos do parágrafo

anterior.

Para tributar a propriedade, portanto, é necessário definir uma zona urbana

através de lei municipal. Esta definição é normalmente interpretada como

descrição de perímetro e, posteriormente, a Prefeitura deveria encaminhar à

Câmara projeto de lei alterando o Perímetro urbano. A legislação municipal em

vigor em São Paulo (consolidada através do Decreto 26.120/88) repete as

definições da Lei Federal 5.172/66 e acrescenta:

Art.3° Observados os requisitos do Código Tributário Nacional, considerar-

se-ão urbanas, para os efeitos deste imposto (predial), as áreas

urbanizáveis e as de expansão urbana, a seguir enumeradas, destinadas à

habitação - inclusive à residencial de recreio - à indústria ou ao comércio,

ainda que localizadas fora de zona urbana do Município:

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 249

I áreas pertencentes a loteamentos de solo regularizados pela

Administração Municipal, mesmo que executados

irregularmente;

II as áreas pertencentes a loteamentos aprovados, nos termos da

legislação pertinente;

III as áreas dos conjuntos habitacionais, aprovados e executados,

nos termos da legislação pertinente;

IV as áreas com uso ou edificação aprovada de acordo com a

legislação urbanística de parcelamento, uso e ocupação do solo e

de edificações.

Parágrafo único As áreas referidas nos incisos I, II e III deste artigo terão

seu perímetro delimitado por ato do Executivo ...

As mesmas regras são repetidas para o caso dos terrenos não construídos (sujeitos

ao imposto territorial).

Ou seja, o Executivo pode traçar quaisquer perímetros urbanos desde que

englobem áreas de loteamentos aprovados ou regularizados, mas não basta

aprovar um loteamento para reconhecê-lo como área urbana: é necessário também

alterar o(s) perímetro(s) urbano(s). Ao mesmo tempo um loteamento irregular fora

do perímetro urbano, ou um conjunto habitacional executado pelo governo

estadual sem aprovação da Prefeitura (e os há!) podem não entrar no sistema

cadastral para pagamento de impostos municipais.

As tentativas de se contornar as dificuldades mediante a definição por uso do

terreno só aumentam a confusão pois, via de regra, vão no sentido inverso ao da

tendência de urbanização:

Lei Federal 5.868/72

Art.6° Para fim de incidência do Imposto sobre a Propriedade Territorial

Rural ... considera-se imóvel rural aquele que se destinar à exploração

agrícola, pecuária, extrativa vegetal ou agro-industrial e que,

independentemente de sua localização, tiver área superior a um hectare.

§ único Os imóveis que não se enquadrem no disposto neste artigo,

independentemente de sua localização, estão sujeitos ao Imposto sobre a

propriedade Predial e Territorial Urbana.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 250

Lei Municipal 10.515/88

Art.1° São isentos do imposto (predial):

Os imóveis com área de terreno superior a 1 (um) hectare que,

embora localizados na zona urbana do Município, inclusive áreas

urbanizáveis ou de expansão urbana, forem utilizados efetiva e

comprovadamente para exploração agrícola, pecuária, extrativa

vegetal ou agroindustrial, vistoriados por órgão competente da

Administração, que informará à Secretaria das Finanças a

atividade rural nele explorada.

A mesma lei municipal concede isenção, nas mesmas condições para o imposto

territorial urbano. Isto significa que terrenos com algum uso considerado agrícola,

independente da localização, deveriam ser cadastrados pelo INCRA e pagar

Imposto Territorial Rural. Inversamente, terrenos de uso não agrícola, devem

pagar impostos urbanos. As duas determinações para serem efetivas, requereriam

um perfeito entrosamento entre os cadastros municipais e o do INCRA.

Por um lado há uma declarada intenção de controle por parte da União ao manter

o cadastro das propriedades rurais e o lançamento do ITR, apesar de não ficar com

o produto da arrecadação. Por outro lado não há acesso municipal a esse cadastro

(cruzamento de dados, por exemplo) e, na prática, parece não haver controle

público sobre a propriedade rural e sobre a tributação correspondente.

Recentemente o Secretário de Finanças do município de São Paulo assim se

manifestou a respeito do ITR:

“Nas discussões sobre a reforma do Sistema Tributário Nacional em todo o

país impera completo e conivente silêncio sobre um dos seus principais

componentes: o Imposto Territorial Rural (ITR). Escândalo notório na

questão tributária, a arrecadação ridícula desse imposto reflete a influência

lobista dos grandes proprietários rurais sobre os Poderes Executivos,

Legislativo e Judiciário.

Tributo equivalente ao IPTU para os imóveis rurais, o ITR recolhido em todo

o território nacional em 1990 atingiu a insignificante cifra de US$14,6

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 251

milhões, algo próximo à arrecadação de um dia da Prefeitura do Município de

São Paulo e a 6% do IPTU no mesmo exercício.”12

Essa separação de competências sobre o mesmo território do município cria uma

série de problemas além dos relativos à simples distribuição dos impostos.

Convém lembrar que a Prefeitura aprova loteamentos urbanos. Aqueles para

ocupação rural devem ser aprovados pelo INCRA e a administração municipal não

tem controle sobre eles. O zoneamento municipal da área rural só tem aplicação

enquanto restrições para usos urbanos.

Em São Paulo, a partir da Lei 9.300/81, o zoneamento abrange todo o território do

município, incluindo a zona rural. Isto resolveu o problema legal das restrições

urbanísticas que passaram a ser definidas para todo o município mas não resolveu

a questão das competências de tributação fundiária para o que ainda é necessário

delimitar perímetros urbanos.

Cria-se assim uma área de confusão de competências com a simples separação

entre controle de uso e ocupação do solo e tributação fundiária, todo o processo

girando em torno de qual imposto deve ser pago: se IPTU (Imposto Predial e

Territorial Urbano) ou ITR (Imposto Territorial Rural).

10.4 O Estatuto da Terra e o cadastro nacional

Apesar do Imposto Territorial Rural já estar previsto desde a Constituição de

1891 as condições efetivas para seu lançamento, isto é a organização de um

cadastro de propriedades, só foi institucionalizado em 1964 como parte da

“reforma agrária”.

12 Amir Antônio Khair: Escândalo nacional, artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo em 5.10.91.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 252

Todo o período entre o Estado Novo e o golpe militar de 1964 foi marcado por

acirradas discussões e tímidas tentativas em torno da reforma agrária.

Praticamente todos os grupos sociais clamavam por ela como o remédio para pôr

fim ao êxodo rural que aumentava as populações das cidades num ritmo que as

Prefeituras não acompanhavam em termos de provimento da infraestrutura e das

condições sanitárias. Já a maneira de implantar e o sentido da reforma agregavam

interesses e opiniões divergentes, que iam desde tentativas de lutas armadas pela

posse de terras agricultáveis até a promulgação de leis e decretos para formalizar

“soluções” sem as correspondentes medidas operacionais. Entre essas “soluções”

inclui-se o Estatuto da Terra (Lei 4.504/64) que, formalmente, incorporou todas as

reivindicações relativas a uma reforma agrária, diluindo assim as discussões

sobre o assunto e a necessidade de ações mais efetivas.

A questão agrária e suas relações com o processo de

desenvolvimento/industrialização do país estão necessariamente fora dos

objetivos deste trabalho. No entanto alguns aspectos devem ser assinalados,

mesmo que esquematicamente e correndo o risco de simplificar, para além do

compreensível, uma histórica complexa.

Ignácio Rangel13 traz muitas contribuições para essa história e o que também

exige esclarecer alguns pontos de entendimento. O autor atribui a origem da

valorização da terra e as conseqüentes mudanças na estrutura de produção no

campo ocorridas na década de ‘40 a ‘60 ao que ele chama de “inclosure” [sic] isto

é, “a conversão do latifúndio agrícola em latifúndio pecuarista”14. Certamente

houve essa conversão, em larga escala, mas nem foi um fenômeno isolado,

autônomo, nem seria suficiente para explicar as alterações ocorridas na

distribuição da população e na estrutura de produção. A valorização da terra

aconteceu junto com a rápida industrialização e com a expansão de investimentos

nos ramos de energia, transporte, saneamento, fertilizantes, mecanização etc.;

junto com as dificuldades institucionais na manutenção dos regimes de parceria,

13 Especialmente em A questão agrária brasileira (Rangel, 1962). 14 O uso do termo “enclosure” não é apropriado no caso: a conversão do latifúndio agrícola em pecuarista no Nordeste brasileiro no século XX tem pouco a ver com o fechamento dos campos comunais na Inglaterra nos séculos XIV a XVIII.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 253

com a incorporação paulatina da população no mercado de trabalho (e de

consumo), com a extensão desse mesmo mercado a todo o território nacional.

Segundo Rangel, a industrialização substituidora de importações dispensou no

Brasil a reforma agrária prévia pela disponibilidade de terras livres, passíveis de

serem incorporadas à economia justamente pelo desenvolvimento industrial:

transporte, saneamento, energia, adubos etc.

As tensões sociais manifestadas no início da década de ’60, especialmente

centradas sobre alterações da estrutura fundiária e das relações de produção no

campo como caminho para uma reformulação da ordem social brasileira, levaram

o governo militar que assumiu em abril de 1964 a promover uma reforma agrária,

na forma de uma legislação que facilitasse a desapropriação de terras

improdutivas, a implantação de programas de colonização e de regularização

fundiária e a captação de recursos para isto através de um sofisticado sistema de

Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR). A Lei 4.504 de 30.11.64

“dispõe sobre o Estatuto da Terra” e, pela primeira vez coloca a questão fundiária

como assunto central.

O Estatuto define os tipos de propriedades rurais, dá as condições de acesso à

propriedade, oficializa um programa de reforma agrária e de colonização, cria o

IBRA – Instituto Brasileiro de Reforma Agrária, o INDA – Instituto Nacional de

Desenvolvimento Agrário e o Fundo Nacional de Reforma Agrária, institui o

cadastro das propriedades rurais, regulamenta a tributação, promove programas de

eletrificação e mecanização e cria linhas de crédito para financiamento da

produção e da comercialização.

O Estatuto da Terra foi regulamentado através de três decretos, todos do dia 31 de

março de 1965:

D 55.889 que regulamenta a IBRA

D 55.890 que regulamenta o INDA

D 55.891 que regulamenta a execução da reforma agrária, incluindo a

elaboração e manutenção do cadastro de imóveis rurais.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 254

O programa que deu origem à promulgação do Estatuto era ambicioso e não teve

o respaldo político, operacional e financeiro para ser efetivamente implantado.

Houve alguns avanços em termos de cadastramento e tributação, mantendo-se no

entanto uma prudente distância de qualquer organização de um sistema cadastral

confiável.

Uma análise crítica da Lei 4.504 foi apresentada em julho de 1965 pela Codepar –

Companhia de Desenvolvimento Econômico do Paraná15. Uma frase desse

trabalho resume as circunstâncias em que a lei e seus regulamentos foram

elaborados:

“o Estatuto da Terra parece apresentar todas as características de um

compromisso entre o impulso do Executivo Federal e a notória relutância do

Legislativo em conceder-lhe os instrumentos adequados para os fins da

Reforma Agrária.”

Para o melhor entendimento do comentário acima é necessário mudar

ligeiramente o foco, passando dos personagens para os interesses em jogo: a

eventual divergência entre Executivo e Legislativo é circunstancial; o que é

estável e permanente é a oposição entre a necessidade de alterações na ordem

social para permitir o pleno desenvolvimento das forças produtivas e os entraves

colocados a esse desenvolvimento. Visto sob este ângulo o Estatuto da Terra é o

perfeito exemplo de aparente avanço ou reforma mantendo e consolidando o

status quo.

Sem entrar em todos os meandros da legislação, bastante complexa, relativa ao

Estatuto da Terra cabe assinalar dois de seus aspectos diretamente ligados ao

assunto deste trabalho: a estrutura administrativa criada e a complexidade do

cadastro de terras rurais para lançamento de impostos.

Estrutura administrativa

A estrutura administrativa criada simplesmente ignorou qualquer organização

existente e lhe sobrepôs dois Institutos: o IBRA (Instituto Brasileiro de Reforma

15 Estudo sobre o Estatuto da Terra. Elaborado por Ricardo Werneck de Aguiar.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 255

Agrária) e o INDA (Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário). Mais uma

vez uma “reforma” começou por sobrepor órgãos e atribuições como se cada

projetos nascente autônomo e pudesse ser implantado a partir do nada, numa

sociedade sem organização, sem estrutura de poder e sem instituições

permanentes a serem consideradas.

A criação do IBRA, diretamente ligado à Presidência da República, como órgão de

coordenação interministerial das ações relativas à reestruturação e à tributação

fundiária teria sido um grande avanço no sentido dessa reestruturação. No entanto

a mesma lei que o criou atribui-lhe funções de administração e execução direta,

duplicando serviços já existentes e inviabilizando qualquer ação efetiva pela

complexidade e volume dos serviços a serem montados por um órgão novo, sem

suficiente pessoal qualificado, sem experiência e sem a documentação histórica.

O IBRA tinha “por objetivo primordial promover, coordenar e controlas as

atividades que visam corrigir a estrutura agrária do país, e a executar os planos de

Reforma Agrária.”

Suas finalidades estão enumeradas no Decreto 55.889 de 31 de março de 1965,

abrangendo 33 ítens (dos quais apenas alguns foram relacionados a seguir)

distribuídos em cinco campos de atuação:

zoneamento, cadastro e tributação

a) promover a realização de estudos e elaborar o zoneamento do país em

regiões homogêneas do ponto de vista sócio-econômico e das

características da estrutura agrária;

b) organizar e manter atualizado o cadastro dos imóveis rurais de todo o

país;

d) elaborar os estudos para fixação dos índices e tabelas relativos à

tributação, e das normas para a respectiva arrecadação;

distribuição de terras

a) promover o acesso á propriedade rural mediante a distribuição e

redistribuição de terras;

b) pronunciar-se sobre qualquer alienação de terras públicas;

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 256

f) promover a discriminação das áreas de domínio federal ocupadas por

posseiros, a fim de regularizar a situação destes, se for o caso, ou

de tomar as medidas necessárias para reintegrar a União na sua

posse;

colonização

a) efetuar estudos e promover a colonização, fixando a metodologia a ser

aplicada nas ares prioritárias e fora delas, aqui sob a supervisão

do INDA;

d) exercer as atividades relacionadas com a educação e capacitação de

pessoal ...;

promoção agrária

a) exercer as atividades de extensão rural e das várias formas de assistência

social, técnica e agronômica nos empreendimentos de exploração

agropecuária;

b) promover a eletrificação rural e outras obras de melhoria da infra-

estrutura;

assistência financeira

a) promover a expansão do crédito rural tecnificado, efetuando

empréstimos a agricultores e a parceleiros, ...;

b) promover a colocação dos títulos da Dívida Agrária Nacional, bem

como a adequada aplicação dos recursos obtidos para garantia do

respectivo resgate;

Mesmo considerando que o Decreto previa com certa frequência convênios e

colaboração com outros órgãos é impressionante o conjunto das atribuições sobre

postas às de outras entidades, desde o Ministério da Fazenda, com relação à

arrecadação de imposto, até o Banco do Brasil ou o BNDE com relação ao crédito

rural. Sem contar que diversos critérios e normas a serem elaborados deveriam

obedecer a Instruções Especiais, a serem baixadas pelo Ministro do Planejamento

ou pelo Ministro da Fazenda.

A participação do Ministério da Agricultura (é bom notar que está-se falando de

reforma agrária) se daria através de outro instituto, o INDA (Instituto Nacional de

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 257

Desenvolvimento Agrário) o qual tinha “como objetivos primordial promover o

desenvolvimento rural, essencialmente através das atividades de colonização,

extensão rural e cooperativismo” e cujas atribuições remontavam em grande parte

com as do IBRA.

Cadastro rural

A estrutura prevista para o cadastro de imóveis rurais resultou dos dois decretos

de regulamentação, do cadastro e do IBRA.

Mais uma vez trata-se de um cadastro cartorial, sem nenhuma amarração

cartográfica, montado a partir das declarações dos proprietários. Os textos legais

deixam a impressão de que a execução de um cadastro imobiliário é algo muito

semelhante à organização de um “cadastro” de contas bancárias ou de clientes de

uma companhia de seguros. O caráter dúbio das finalidades reais do cadastro rural

transparece claramente em alguns pontos, como no D.55.891/65:

Art.47

Parágrafo único Os levantamentos cadastrais serão precedidos de amplo

serviço de divulgação das normas de sua execução, para garantia da

adequada informação dos proprietários que deverão preencher os

questionários, a fim de que possam eles conhecer as vantagens e as

obrigações que, para si, decorram das declarações fornecidas.

As funções que deveriam ser preenchidas por esse cadastro foram enumeradas

pelo Decreto 56.792/6516 que estabeleceu critérios para o lançamento e

arrecadação do Imposto Territorial Rural (ITR), calculado sobre o valor da terra

nua alterado por quatro coeficientes:

De dimensão – considera “a relação entre a área total agricultável do conjunto

de imóveis rurais de um mesmo proprietário e a média ponderada dos módulos

de todos esses imóveis.”

16 O grande avanço desse Decreto foi relacionar o ITR com o Imposto de Renda no caso de rendas provenientes de exploração agrícola. O imposto de Renda passou a poder ser lançado “ex officio” com base em dados do cadastro do IBRA.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 258

De localização – em função da zona de situação do imóvel e das condições de

acesso.

De condições sociais – considera “o grau de alheamento ou de dependência e

participação do proprietário nas responsabilidades da administração e nos

frutos da exploração do imóvel”. É formado por três fatores que medem a

participação do proprietário no trabalho de exploração agrícola, as condições

de moradia e as condições de educação na propriedade.

De rendimento economico – em função das “condições técnico-economicas de

exploração do imóvel rural”. É obtido por fatores que, além de considerar a

existência ou não de escrituração, relacionam a área total explorada a

explorável, a renda bruta efetiva e a potencial, o nível de investimento em

benfeitorias e o valor total do imóvel, o rendimento efetivo com o rendimento

padrão para certos produtos.

Segue um impressionante elenco de “dados considerados para a fixação do

tributo”, que inclui descrições das construções existentes, discriminação das áreas

plantadas e número de residentes entre 7 e 14 anos. Só não inclui uma planta

confiável de localização do imóvel, substituída por uma “descrição da linha de

divisas e nome dos confrontantes”. Esses dados seriam utilizados para definir

índices, de acordo com tabelas elaboradas pelo IBRA.

Art.47 Para incentivar a política de desenvolvimento rural, o Poder Público se

utilizará da tributação progressiva da terra, do Imposto de Renda, da

colonização pública e particular, da assistência e proteção à economia rural e

ao cooperativismo e, finalmente, da regulamentação do uso e posse

temporários da terra, objetivando:

I desestimular os que exercem o direito de propriedade sem

observância da função social e econômica da terra;

II estimular a racionalização da atividade agropecuária dentro dos

princípios de conservação dos recursos naturais renováveis;

III proporcionar recursos à União, aos Estados e Municípios para

financiar os projetos de Reforma Agrária;

IV aperfeiçoar os sistemas de contrôle da arrecadação dos impostos.

Art.48 Observa-se quanto ao Imposto Territorial Rural, os seguintes princípios:

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 259

I a União poderá atribuir, por convênio, aos Estados e Municípios, o

lançamento, tendo por base os levantamentos cadastrais executados

e periodicamente atualizados;

II a União também poderá atribuir, por convênio, ao Município, a

arrecadação, ficando a eles garantida a utilização da importância

arrecadada;

III quando a arrecadação for atribuída, por convênio, ao Município, à

União caberá o controle da cobrança;

Art.49 As normas gerais para a fixação do impôsto territorial obedecerão a

critérios de progressividade e regressividade, levando-se em conta os seguintes

fatores:

I os valôres da terra e das benfeitorias do imóvel;

II a área e dimensões do imóveis e das glebas de diferentes usos;

III a situação do imóvel ...

IV as condições técnicas e econômicas de exploração agropecuária-

industrial;

V a natureza da posse e as condições de contratos de arrendatários,

parceiros e assalariados;

VI a classificação das terras e suas firmas (sic) de uso e rentabilidade;

VII a área total agricultável do conjunto de imóveis rurais de um

mesmo proprietário no país.

Seguem-se considerações sobre a responsabilidade do proprietário pelas

declarações, a alíquota e os critérios de progressividade das alíquotas em função

da área total por proprietário. O mesmo decreto fixou as taxas de serviços

cadastrais:

Art.58 O acréscimo de 1/25 (vinte e cinco avos) do maior salário mínimo

vigente no país, a ser cobrado para cada 50 ha ou fração que exceda de 20 ha

para fixação da taxa de serviços cadastrais no fornecimento do Certificado, ...,

será limitado às áreas dos imóveis rurais até 1000 ha. Acima dessa área os

acréscimos serão efetuados à razão de vinte e cinco avos para cada milhar ou

fração que exceder os primeiros 1000 ha.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 260

Também foram definidos critérios e prioridades para a redistribuição de terras

agrícolas, havendo uma inteira seção sobre o “zoneamento do país em regiões

homogêneas do ponto de vista sócio-econômico e das características da estrutura

agrária” (Art.43)

Um mês depois da publicação da Lei 5.172/66 (STN), o Decreto-Lei n° 57

(18/11/66) “altera dispositivos sôbre lançamentos e cobrança do Impôsto sôbre a

Propriedade Territorial Rural, institui normas sôbre arrecadação da Dívida Ativa

correspondente, e dá outras providências”. Esse DL, além de instituir multas pelo

atrazo no pagamento do ITR, consolidou as disposições da Lei 5.176/66 e da Lei

4.504/64. Em resumo:

Responsabilizou o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA) pelo

Cadastro de Propriedade Rurais.

Definiu as áreas a serem ou não consideradas aproveitáveis para efeito

de impôsto.

Proibiu o desmembramento de que resultassem áreas menores que os

módulos definidos pelo IBRA.

Proibiu os Cartórios de Registro de Imóveis de registrar esses

desmembramentos.

Previu a cobrança de IPTU sobre os “sítios de recreio”, mesmo em zona

rural, e a cobrança de ITR sobre imóveis de exploração agrícola, em

zona urbana.

Em 1970 o DL 1.110 extinguiu o IBRA, o INDA e o GERA, criando no lugar o

INCRA (Instituo Nacional de Colonização e Reforma Agrária), ligado ao

Ministério da Agricultura.

Dois anos depois a Lei 5.868/72 criou o Sistema Nacional de Cadastro Rural,

compreendendo os cadastros de:

I imóveis rurais

II proprietários e detentores de imóveis rurais

III arrendatários e parceiros rurais

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 261

IV terras públicas

A validade jurídica desses cadastros é declarada pela própria lei:

Art.3°

Parágrafo único: Os documentos expedidos pelo INCRA, para fins cadastrais,

não fazem prova de propriedade ou de direitos a ela relativos.

Em 1987 o INCRA foi extinto pelo DL 2.363 que criou o Instituto Jurídico das

Terras Rurais, junto ao Ministério da Reforma Agrária. O texto desse decreto lei,

no entanto, foi rejeitado dois anos depois pelo Decreto Legislativo 2/89.

10.5 O Registro Torrens

O Torrens Title System foi introduzido em 1858 na Austrália por proposta

(aprovada em lei) de Sir Robert Richard Torrens, então deputado por Adelaide, e

regulado em 1861 pelo Real Property Act. Tratava-se de um sistema de registro de

propriedade fundiária elo qual o governo assumia a garantia da propriedade

registrada, simplificando os processos de transferência e dispensando o seguro dos

títulos. Sua implantação pôs ordem nos títulos de domínio e facilitou as transações

imobiliárias pois a matrícula no registro fundiário passou a ser prova bastante

segura do direito de propriedade e base para todas as transações posteriores.

O sistema foi rapidamente adotado em toda a Austrália e em colônias inglesas e

francesas, notadamente no Canadá.

O Registro Torrens foi incorporado ao direito brasileiro logo depois da

proclamação da República por esforço de Rui Barbosa, Ministro de Estado do

Governo Provisório, que via nele uma maneira de “criar um título indestrutível de

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 262

propriedade imóvel, tornada absoluta e indisputável.”17 Na sua exposição de

motivos Rui Barbosa enumera as vantagens desse registro

“que permitiria:

a) a instituição de um processo expurgativo, destinado a delimitar a

propriedade e a fixar, irrevogavelmente, os direitos dos proprietários,

autenticando-os num título público;

b) a criação de um sistema de publicidade hipotecária, adequado a

patentear exatamente a condição jurídica do solo, com os direitos reais e

gravames que o onerarem;

c) a mobilização da propriedade.”18

Esse sistema de registro imobiliário foi estabelecido pelo Decreto número 451 B,

de 31 de maio de 1890, regulamentado pelo Decreto 955-A de 5 de novembro de

1890.

“Por ele, com o intuito de legalizar e sanear tôda posse não fundada em

perfeito título de propriedade, estabeleceu-se a matrícula do imóvel ocupado,

mediante a satisfação de certos requisitos, indicados pela própria lei.

A efetivação da matrícula ou do Registro Torrens atribui ao requerente-

ocupante do prédio o domínio sobre êle, de modo a não permitir qualquer

contrato ou ato, mesmo de data anterior, desde que não seja também

registrado na forma da lei.

O título efetivo desta matrícula equivale ao título legítimo de propriedade

sôbre o imóvel registrado pelo sistema Torrens.

Prevalecem contra êle, entretanto, na forma do que estabelece o art.41 do

citado decreto, os encargos, direitos e servidões, constantes das notas

lançadas no livro de matrícula, quando ocorreu o processo de registro, e que

se reputaram legítimas.” (Silva, De P., 1963, pg.1329).

Pelo Decreto 451-B a inscrição no sistema Torrens foi permitida para qualquer

imóvel e obrigatória para as terras adquiridas do Governo e para os terrenos e

construções no perímetro urbano da capital federal. O serviço estava a cargo dos 17 Assis (1974). 18 Diniz (1992, pg.).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 263

oficiais do “registro geral das hipotecas”. O pedido de inscrição de imóvel rural

devia ser instruído por levantamento planimétrico em escala entre 1:500 e

1:10.000, dependendo do tamanho da propriedade, acompanhado das cadernetas

de campo, de memorial descritivo das culturas e benfeitorias e de avaliação.

A lei dispensou a escritura pública nos casos de transferência de uma imóvel já

registrado, bastando preencher um formulário impresso ou redigir um termo

equivalente.

“A verdade, porém, é que esse processo de transferência nunca foi usado

entre nós. O excesso de simplicidade gerou a desconfiança. Todos os

interessados preferem a escritura pública. É que a lei Torrens, nesse

particular, está em briga com o Código Civil, e por isso a prudência

aconselha que as alienações e instituições de ônus sejam feitas por escritura

pública. Apesar de a mobilização do solo constituir, no dizer de Bichara

Tabbah, a idéia mais original do sistema; apesar de se encontrar na

equiparação dos imóveis às coisas móveis quanto ao modo de transferência a

base de todo o mecanismo da lei Torrens, no dizer de Rui, a verdade é que

essa maneira de transferência da propriedade nunca terá aplicação entre nós.”

(Borges, ‘960, pg.33)

A inscrição pode ser anulada por processo judicial em casos comprovados de

fraude mas, enquanto o título estiver inscrito ele é garantia absoluta da

propriedade. Teve grande aplicação nos primeiros tempos da República,

principalmente nos estados do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais. Mais tarde

Goiás, Mato Grosso e Pará também usaram o sistema Torrens para distinguir os

títulos “seguros” dos direitos adquiridos sobre posses, heranças e promessas de

toda sorte.

O Código Civil (1916) não menciona o registro Torrens e muitos juristas

entenderam que não era mais admitido. No entanto o Código de Processo Civil

(1939) o manteve, limitado porém aos imóveis rurais.

A Lei 6.015/73 que regulamenta os registros públicos admite a inscrição

facultativa no sistema Torrens para os imóveis rurais, mantendo assim uma área

de confusão pela sobreposição de serviços com a mesma finalidade. No entanto o

registro Torrens é cada vez menos usado e muitos proprietários de imóveis já

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 264

inscritos pediram sua exclusão do sistema. Na medida em que as propriedades

passam a ser melhor demarcadas, a matrícula no registro comum é considerada

suficiente para garantir os direitos.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 265

IV À guisa de conclusão

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 266

IV À guisa de conclusão

Uma das maiores dificuldades no desenvolvimento deste trabalho foi a constante

necessidade de delimitar o campo de coleta e apresentação do material, de modo a

manter o equilíbrio entre o tema específico escolhido - - os cadastros e registros

fundiários no Brasil- - e a complexidade das áreas que com ele se relacionam

diretamente - -a propriedade de porções do território nacional e a forma como o

Estado tributa e organiza o uso dessas propriedades. Essas áreas, por sua vez, são

básicas para o entendimento do processo de formação da sociedade brasileira e de

sua inserção no conjunto dos Estados Nacionais.

Por outro lado, a vinculação entre fatos concretos e uma interpretação abrangente

dos processos sociais dos quais esses fatos são parte é a única maneira de entender

nossas ações quotidianas e de optar, o tempo todo, com alguma consciência

quanto às consequências ou ao significado da opção. Em outras palavras, a

preocupação subjacente a este trabalho é a da possibilidade de ação.

É neste sentido, de volta ao concreto na forma de ação, que esta parte completa as

anteriores com algumas propostas tentativas de discussão sobre as alterações que

deverão ocorrer na organização do Estado brasileiro com relação ao planejamento

do território, na perspectiva plausível de uma saída da crise da sociedade brasileira

para um estágio de desenvolvimento baseado em significativo aumento da

produtividade do trabalho e no correspondente aumento também do nível de

subsistência de sua população. Tal perspectiva implica na consolidação e defesa

de um espaço nacional, no sentido de um mercado unificado e capaz de sustentar

um processo autônomo de acumulação. Pressupõe também um Estado forte, o que

não significa economia estatizada, capaz de intervir na organização da produção

mediante planejamento, adequação das instituições e provimento da infra

estrutura.

Page 267: A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil

Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 267

Trata-se pois de retornar ao assunto do terceiro capítulo, O Estado no Brasil, para,

a partir do entendimento das características peculiares do processo de acumulação

brasileiro e, em decorrência, da maneira como se efetua a construção do espaço,

repensar as possíveis ações do Estado relativas a essa construção, correpsondentes

à transformação daquele processo e ao abandono das práticas que visam a

manutenção da atual sociedade de elite.

Esta última parte do trabalho é composta por dois capítulo:

O Capítulo 11: O espaço urbano brasileiro, constitui um resumo da atual situação

de descontrole (institucionalizado) sobre o espaço por parte do Estado, situação

essa que está vinculada às características do processo de acumulação no Brasil e

que, portanto, deverá se alterar na perspectiva de alterações desse processo.

No Capítulo 12: Na perspectiva de mudanças nas condições de produção

propõem-se algumas diretrizes para ações relativas aos cadastros e registros

fundiários, no intuito de contribuir para uma discussão sobre alternativas para a

atuação do Estado brasileiro com relação ao planejamento territorial, supondo que

sejam removidos os entraves ao desenvolvimento das forças produtivas,

permitindo a passagem para um estágio de acumulação predominantemente

intensiva.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 268

CAPÍTULO 11:

O ESPAÇO URBANO BRASILEIRO

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 269

11 O ESPAÇO URBANO BRASILEIRO

11.1 A ocupação do território

A distribuição da propriedade do território brasileiro, ao longo dos quase 500 anos

de história, é o resultado de três “ondas” sucessivas de ocupação das terras

inicialmente consideradas como patrimônio da Ordem de Cristo (e administradas

pelo rei como seu Grão Mestre) e posteriormente denominadas públicas ou

devolutas.

O primeiro período é o do desbravamento e da conquista sobre os indígenas. Essa

conquista se deu pela ocupação agrícola baseada na monocultura de exportação e

no trabalho escravo e propiciou a formação dos latifúndios coloniais. Estando o

Brasil na situação jurídica de patrimônio da Ordem de Cristo, as terras eram

outorgadas pelo rei (ou por sua delegação) através das cartas de sesmaria que

também estabeleciam as condições e direitos e se constituíam em documentos

suficientes para a comprovação de tais direitos.

A população mais pobre e menos influente, trabalhadores livres sem condições de

obter sesmarias, foram ocupando as terras mais distantes ou intersticiais com

roças de subsistência, sem nenhuma alternativa de reconhecimento institucional

de domínio e portanto sempre sujeitos a expulsão, ao arbítrio dos senhores das

terras. Na sociedade estruturada em torno dos senhores (na casa grande) e dos

escravos (na senzala) a população livre dependia da vontade pessoal dos primeiros

para sobreviver.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 270

Já nos núcleos urbanos, formados em terras concedidas a entidades religiosas ou

ao Conselho da vila ou cidade, o assentamento da população se fazia mediante

pagamento de foro ou prestação de serviços, o que dava certos direitos e garantia

de estabilidade. Não havendo “propriedade” não havia a noção de assentamentos

“irregulares”.

O fim da dependência colonial e o esgotamento do regime escravagista foram

marcados por um período de ocupação por simples posse, seguido pela

consolidação e reconhecimento tanto dessas posses quanto das sesmarias (Lei das

Terras Devolutas). O reconhecimento do domínio sobre a terra passou a ser feito

através dos títulos de propriedade, facilitando o processo de compra/venda e o

desenvolvimento do mercado de hipotecas. O processo de registro dos títulos,

inicialmente anotados pelos vigários, evoluiu para o sistema dos Cartórios de

Registro de Imóveis.

A Lei das Terras Devolutas, ao mesmo tempo em que permitiu a titulação das

posses (aparentemente resolvendo o problema de assentamento da população

livres), também impôs para essa titulação um preço e procedimentos burocráticos

que continuaram mantendo a terra fora do alcance da maioria da população. Com

a substituição dos escravos por trabalhadores livres o assentamento desses passou

a ser vinculado a relações de trabalho mal definidas, em que o alojamento ou a

autorização para plantar uma hora eram parte e justificativa do baixo salário.

Muitas indústrias em São Paulo usaram do mesmo esquema, construindo e

mantendo “vilas operárias” como meio de garantir mão de obra barata.

A ocupação de grandes extensões de território se fez com os programas de

colonização associados ao avanço das frentes pioneiras do café e do gado,

propiciando a formação de grandes fortunas baseadas na obtenção e comercio de

terras devolutas1.

A terceira “onda” corresponde à extensão da propriedade sobre todo o território,

simultaneamente com a expansão e adensamento das redes rodoviárias e de

telecomunicações. As terras públicas ou devolutas foram sendo parceladas (em

programas de reassentamento e de colonização) ou cedidas em grandes glebas, 1 Cf. França (1960), Martins (1979), Monbeig (1951 e 1952), Silva,S. (1976).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 271

seja por venda, seja na forma de concessão pra exploração. As propriedades assim

criadas se soprepuseram à ocupação por pequenas posses (roças de subsistência e

abastecimento local), na grande maioria sem qualquer título. Na medida em que

foram se esgotando as terras devolutas e a simples ocupação foi deixando de ser

viável, foram se acirrando os inúmeros conflitos, seja entre posseiros e detentores

de títulos, seja entre detentores de títulos sobrepostos, seja ainda por processos de

“grilagem”. A precariedade das descrições das terras reforça esses conflitos e está

na origem de boa parte deles.

Como alternativa de assentamento nas aglomerações urbanas os contratos de

enfiteuse e os alojamentos fornecidos pelas indústrias foram sendo substituidos, a

partir do fim do século passado, pelas construções precárias em lotes na periferia.

As medidas formais para disciplinar esse tipo de assentamento tiveram pouco

efeito e os lotes continuaram sendo produzidos e ocupados em desacordo com a

legislação urbanística na quase totalidade dos casos. Todas as grandes cidades do

país cresceram pela multiplicação dos loteamentos “irregulares” ou

“clandestinos”. A alternativa “regular”, ensaiada pelo Plano Nacional de

Habitação, cobriu uma pequena parte das demandas2.

Nos útlimos anos, e principalmente nas grandes cidades, nota-se a tendência a

substituir os loteamentos por empreendimentos que abrangem todas as operações

de implantação de unidades para moradia ou para atividades econômicas. Na

medida em que se esgotam as possibilidades de compra de lote ou de ocupação de

pequenas áreas em glebas mal demarcadas as alternativas de assentamento da

população mais pobre se reduzem ao adensamento em áreas já construídas

(cortiços) ou à ocupação do que sobra de áreas públicas (favelas)3.

A constante dessas sucessivas ondas de ocupação é a desqualificação

institucionalizada das formas de assentamento da grande maioria da população.

Sua presença, necessária, sempre foi apenas tolerada. Sem contar os casos que

2 No auge de sua atuação o BNH chegou a financiar cerca de um milhão de residências entre 1968 e 1973 (cf. Francisconi, 1974, pg.68) ou seja, em torno de 16% do total construído no período. 3 O que define a favela não é a precariedade da construção mas sim o fato de estar em terra pública ou de propriedade alheia. A favela é uma invasão, sendo o termo grilagem reservado para a classe dominante.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 272

atingiam um número restrito de pessoas (aforamento nos núcleos urbanos no

período colonial, por exemplo) não houve formas legítimas de assentamento para

o conjunto da massa de trabalhadores, evidenciando, nas palavras de Roberto

Schwartz,

“o descompromisso da classe dominante brasileira para com seus

dependentes e também para com a própria norma burguesa” (Schwartz, 1991,

pg.70)

Essa situação de ilegalidade estrutural em que foi mantido até agora o

assentamento da população mais pobre cria impasses incômodos para o conjunto

da sociedade, bem conhecidos de todos os técnicos de planejamento,como a

permanência de habitações em áreas de inundação ou o adensamento de áreas sem

condições sanitárias.

Mas a mesma ilegalidade estrutural, ao justificar o desprezo da lei (e aliada à

precariedade da demarcação das propriedades), também permite negócios

fabulosos com a compra/venda de terras. Um exemplo atual (e noticiado) é dado

pela proliferação de loteamentos no Distrito Federal, quase contíguos ao Plano

Piloto, em áreas que já foram desapropriadas pelo Governo. O mapa esquemático

da Figura 11.1, publicado como parte de uma reportagem sobre parcelamentos

irregulares em Brasília, mostra o tipo de negócios propiciados pelas indefinições

legais e pela falta de registros confiáveis das propriedades.

Figura 11.1

DISTRITO FEDERAL, 1995

Localização esquemática de parcelamentos irregulares

Segundo a reportagem

“Na região, há todos os tipos de situação: terras vendidas por um herdeiro

que já havia morrido, condomínio formados em terras públicas e até

empreendimentos fantasmas.”4

4 Reportagem do Correio Braziliense, de 24 de março de 1995, assinada por Luis Turiba. A reportagem foi motivada pelas investigações da “CPI da Grilagem” da Câmara Legislativa do D.F.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 273

Acrescente-se a essa situação o fato de que boa parte dos condomínios descritos

se sobrepõem uns aos outros e que muitos dos compradores são funcionários

públicos ou membros do Legislativo ou do Judiciário, para se ter uma idéia da

extensão dos negócios (e dos problemas).

Finalmente cabe observar que os títulos correspondentes às diversas formas de

ocupação, reconhecidas ou apenas toleradas, ao longo de quase cinco séculos

foram os mais variados e sua padronização hoje é um trabalho que só pode ser

feito caso a caso, à medida em que suas transações levam os proprietários (novos

ou velhos) aos Cartórios de Registro.

11.2 Planejamento e informações sobre o território

No Capítulo 2: O Estado foi enfatizada a importância do Estado, numa economia

capitalista, na produção do espaço ou seja, no planejamento e organização

espacial da produção de mercadorias.

“ (E)nquanto a regulação pelo mercado é capaz de exercer um papel bastante

importante na regulação do uso do espaço uma vez que este tenha sido

produzido (pois localizações podem ser consumidas como mercadorias), ela

não ajuda em nada na produção do espaço que transcende o domínios dos

capitais individuais. A intervenção do Estado tem um papel dominante na

produção do espaço - - mesmo quando, como no caso de crescimento

anárquico, ele mais segue do que antecipa e induz as necessidades criadas

pelo crescimento ‘espontâneo’; e mesmo quando o Estado deixa a regulação

do uso do espaço em grande parte para o mercado.” (Deák, 1885, pg.216-17)

Se no estágio inicial do capitalismo a necessidade de localizações diferenciadas, e

portanto de infraestrutura, era baixa, deixando pouco perceptível a intervenção do

Estado, no estágio intensivo a produção capitalista requer concentrações de

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 274

atividades e de infraestrutura, exigindo planejamento e intervenção direta do

Estado, de maneira explícita e em escala significativa.

Sendo o território o suporte físico sobre o qual se organiza a produção e em

função do qual uma sociedade define o seu espaço, as informações sobre o

território são essenciais à própria permanência e organização de uma sociedade

burguesa enquanto Estado-nação. Não apenas é necessário conhecer, como nas

sociedades medievais, os recursos naturais disponíveis (minérios, fertilidade do

solo, hidrologia etc.) como, principalmente, é necessário conhecer a localização

dos fatores de produção. Pode-se esquematizar essas necessidades em três

objetivos abrangentes:

1 A sociedade burguesa deve garantir a propriedade da terra, condição básica

para a manutenção da relação salarial. Essa garantia é instituída através dos

sistemas de títulos e cadastros sistemas esses que, de acordo com a norma

burguesa de igualdade entre as pessoas e entre as coisas, não podem fazer

distinção entre diferentes proprietários ou entre diferentes usos da

propriedade.

2 A tributação sobre a propriedade, além de ser fonte de recursos para o

Estado, é uma forma pela qual a sociedade reconhece a existência da

propriedade e regula a sua utilização para a produção capitalista.

3 A função de planejamento do espaço, inerente ao Estado, exige o

conhecimento do território (cartografia) e da sua distribuição em propriedades

(cadastro). As informações para isso se apresentam na forma de dados

associados a representações gráficas de porções do território isto é, a plantas e

mapas.

A capacidade e as formas de intervenção no espaço por parte do Estado definem

os sistemas de informações a serem mantidos, ao mesmo tempo em que

dependem da qualidade e conteúdo desses mesmos sistemas. Algumas das bases

dos sistemas de informações sobre o espaço no Brasil foram objeto dos capítulos

precedentes, em que se procurou ressaltar aspectos de sua deliberada

precariedade. As propostas de discussão sobre possíveis melhorias dos sistemas

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 275

cartográficos e cadastrais, objeto do capítulo seguinte, partem das condições

atuais de estruturação e articulação desses sistemas.

Cartografia

Na época dos descobrimentos Portugal dispunha de uma avançada cultura

cartográfica. A confecção de mapas era crucial para o programa de navegação e

descobrimentos dos séculos XV e XVI e a Escola de Sagres era o centro de

conhecimentos mais desenvolvido da época. As cartas e os livros de navegação,

os portulanos, eram objetos valiosos, guardados e roubados com igual empenho,

pois continham as informações necessárias seja para chegar nas novas terras, seja

para evitar as áreas de maior perigo. Cada documento, acumulando novos

conhecimentos aos anteriores, permitia novas conquistas. Com a perda do

domínio da navegação Portugal também perdeu o domínio (e a necessidade) das

técnicas de elaboração de mapas, que passaram para as mãos dos holandeses e

franceses.

A história da representação cartográfica do Brasil segue, obviamente, a da sua

ocupação territorial. No início apenas descrições da costa, com detalhes dos

portos, embocaduras de rios e povoações, boa parte dos mapas dos séculos XVI e

XVII desenham essa costa na posição em que ela se apresenta para os

navegadores vindos do leste: com o norte voltado para o lado direito. As primeiras

informações mapeadas além da costa são os rios navegáveis e, à medida em que a

rede hidrográfica foi sendo esboçada, consolidaram-se os conhecimentos sobre a

forma do continente e as posições relativas das diversas regiões de penetração e

povoamento.

A fixação dos limites entre os domínios de Portugal e Espanha passou a merecer a

atenção dos cartógrafos a partir do século XVIII. Motivo de guerras e de vários

tratados na região do Sacramento, esses limites não tinhas base de disputa

concreta nos imensos territórios desabilitados e a linha demarcatória fixada em

Tordesilhas pode ir sendo deformada para oeste, a partir da costa brasileira, pelas

ocupações extremamente rarefeitas dos posseiros, garimpeiros e caçadores.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 276

Alguma preocupação com a integridade do território levou à elaboração de dois

mapas gerais durante o Império:

A Carta Corográfica do Império do Brasil, elaborada em 1846 pelo

Cel.Eng.Conrado Jacob de Niemeyer.

Um mapa composto de 31 cartas, terminado em 1875, feito pela

Comissão Geral da Carta do Império criada em 1864.

Em 1903 foi criada no Rio Grande do Sul a Comissão da Carta Geral do Brasil,

ligada ao Exército, com a incumbência de produzir uma base cartográfica do

território, assinalar as fronteiras e estabelecer uma rede de marcos de apoio

geodésico. Por dificuldades técnicas e insuficiência dos recursos para o

empreendimento5 o trabalho, iniciado no extremo sul, não passou do paralelo de

Porto Alegre.

A partir da década de ‘20 começaram a ser aplicadas técnicas que possibilitaram

levantamentos muito mais rápidos, precisos e em condições de trabalho menos

penosas. Fotos aéreas, medição eletrônica de distância, radar, imagens de satélite,

sem contar os recursos de cálculo e a melhoria das redes viárias e de transporte,

tudo isto fez com que a elaboração de mapas gerais se tornasse tarefa viável em

prazos relativamente curtos.

Em 1937 foi criado o Conselho Brasileiro de Geografia. No ano seguinte, pelo

Decreto-Lei 218 de 26 de janeiro de 1938, esse Conselho foi reunido ao Instituo

Brasileiro de Estatística6 para formar o Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística (IBGE)7.

O problema hoje não está mais no conhecimento e localização dos acidentes

geográficos tanto assim que algumas atividades dispõem de mapas detalhados e

precisos, constantemente atualizados, como por exemplo as cartas de navegação

aérea.

5 É bom lembrar que na época qualquer levantamento era totalmente feito no chão, por equipes viajando a pé, a cavalo e em carroças puxadas por mulas. 6 Criado pelo Decreto 24.609 de 1934. 7 Informações fornecidas pelo IBGE, São Paulo.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 277

O que falta é o conhecimento e atualização das jurisdições e propriedades, um

sistema cartográfico que permitia articular mapas gerais e plantas cadastrais nas

diversas escalas necessárias para as funções e serviços ligados à organização e ao

uso do espaço.8

Dados cadastrais

Ao longo deste trabalho procurou-se enfatizar a importância de uma base

cartográfica para o mapeamento dos dados referentes a localizações espaciais,

especialmente os relativos à propriedade fundiária. No Brasil o registro jurídico

das propriedades não é mapeado e os cadastros tem representações gráficas em

geral esquemáticas e não vinculadas a uma base cartográfica.

Assim como não há um sistema cartográfico abrangente e unificado para servir de

base às plantas cadastrais, também não há um sistema abrangente e unificado de

cadastro das propriedades nacionais.

Os registros jurídicos são mantidos por cartórios, na grande maioria privados

(Cartórios de Registro de Imóveis), regidos por legislação federal e controlados

pelos Estados. O objetivo desses registros é o da garantia dos direitos privados.

Não é um serviço concebido para fornecer informações para planejamento ou

controle por parte do Estado.

Os cadastros fiscais são mantidos pelas Prefeituras e pela União (atualmente

através do INCRA), separados por conceitos mal definidos de urbano (a cargo das

Prefeituras) e rural (a cargo da União).

A desarticulação entre esses sistemas, associada ao fato de nenhum deles ser

mapeado, propicia a criação de sobreposições e a multiplicação de sistemas para

objetivos diferentes, como o registro das terras públicas separado do das

8 O descaso institucional com a cartografia e os sistemas cadastrais se reflete no descaso com a precisão dos levantamentos e das locações de obras públicas ou com a fidelidade da execução. São clássicos os casos de ruas abertas sobre lotes (cujos proprietários exigem indenizações) e raríssimos os casos em que uma obra pública é executada de acordo com o projeto ou mesmo que tenha um registro posterior de execução (o chamado “as built”). Aliás, a grande maioria das obras públicas é licitado sem projeto executivo, sobre um estudo preliminar ou um anteprojeto.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 278

propriedades, ou um cadastro para aprovação de projetos de construção separados

daquele para lançamento de impostos. Essa multiplicação é mantida pela própria

estrutura institucional que trata cada serviço público como algo independente dos

demais, fechado num mundo supostamente autosuficiente de informações e

rotinas. Esse isolamento impede a avaliação das informações (e portanto dos

resultados de seu uso) por parte de outros setores da administração pública ou da

sociedade.

A legislação ou melhor, a estrutura jurídica que a interpreta, se baseia na defesa

dos interesses individuais como resguardo contra possíveis arbitrariedades por

parte do poder público. No nível operacional o funcionário público, sujeito por

sua vez a arbitrariedades político/administrativas, não toma decisões que possam

implicar em responsabilidade técnica pessoal e, portanto, qualquer decisão requer

uma prévia diluição de responsabilidades através de regras genéricas, discutidas

em termos de modelos abstratos. Isto se aplica à PGV como ao zoneamento, por

exemplo. Para permitir a preservação deste quadro abstrato em que as

responsabilidades se diluem e os interesses não aparecem (ou, na expressão

popular, em que não se dá nome aos bois) as informações são consideradas

sigilosas mesmo quando, como no caso da Listagem Genérica de Valores

(Prefeitura de São Paulo), por exemplo, são publicadas em Diário Oficial9.

Apesar de sua posição de vanguarda na organização de um cadastro e de um

sistema de controle fiscal exemplares no país, São Paulo não escapou da

tendência geral de fechar o sistema tributário num mundo a parte, não accessível

para outros usos: tanto o sistema de mapeamento e de identificação dos imóveis

quanto os critérios de atribuição de valor venal dificultam a avaliação de conjunto

e a utilização dos dados para outros fins.

Não seria de se esperar que o processo de apropriação das terras do Brasil tivesse

sido ordenado por normas claras e documentado em registros sistematizados. No

tempo do descobrimento o mundo português não era mais feudal mas o

capitalismo ainda não se havia implantado como modo de produção dominante

numa Europa em transição. Terras de extensão limitada e sem donos capazes de

9 O que garante o sigilo é o fato da Listagem ser ilegível ou melhor, sem aplicação por procedimentos manuais, devido ao seu tamanho.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 279

contestar sua ocupação era uma situação que fugia de todas as vivências sociais e

para a qual não havia regras estabelecidas. Estas foram sendo moldadas, a partir

das formalidades feudais ainda vigentes, ao sabor dos projetos dominantes do

momento.

Mas após quase cinco séculos em que o capitalismo se impôs como modo de

produção dominante, o Estado brasileiro continua sem os instrumentos básicos

para a sua organização espacial. Decorrem as sobreposições de competências

administrativas, os conflitos pela propriedade, as inúmeras pendências judiciais,

as dificuldades na partilha das heranças, a perda sistemática das áreas públicas, os

loteamentos sem controle etc. O que espanta não é o fato de não ter havido

normas e documentação no período colonial, mas sim o fato de não ter havido

normas e documentação da propriedade do território não parece ser problema para

o Estado brasileiro, em qualquer nível da administração. O que espanta é que

técnicos e administradores constituem discutindo e propondo em torno de uma

legislação que não tem a menor condição de ser aplicada por falta de instrumental

básico, como uma planta cadastral coerente e confiável.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 280

CAPÍTULO 12

NAS PERSPECTIVAS DE MUDANÇAS NAS CONDIÇÕES DE

PRODUÇÃO

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 281

12 NAS PERSPECTIVAS DE MUDANÇAS NAS CONDIÇÕES DE

PRODUÇÃO

Sapo não pula de boniteza mas porém por precisão (João

Guimarães Rosa)

O trabalho desenvolvido conduziu à explicitação de um conjunto de idéias

arraigadas, normas, leis e procedimentos institucionais relativos à propriedade

fundiária no Brasil, ao seu reconhecimento público e aos impostos incidentes

sobre ela. Esse conjunto se articula formando uma teia densa e resistente a

alterações, teia esta que constitui uma parte importante do sistema de sustentação

de uma elite dominante, visceralmente refratária a mudanças e, portanto, incapaz

de aceitar, quanto menos liderar, um processo de transformação social. A

estrutura de sustentação do poder compõe-se de instrumentos de força e de

ideologia. Os dois esteios de sustentação dessa última, a produção acadêmica e a

grande imprensa, mantém e divulgam a convicção de que a resistência a

alterações se deve a causas impessoais como “tradição cultural”, “estrutura

administrativa”, “falta de recursos” e quejandos, deixando sistematicamente de

lado os interesses pessoais e de grupos que cultivam a “tradição cultural” e a

“escassez dos recursos’.

O processo de acumulação no Brasil se sustentou até agora pela contínua

ampliação do espaço, significando a incorporação a esse espaço de novas terras e

novas populações. O esgotamento dessa possibilidade de ampliação impõe a

necessidade de alterar a forma de ocupação do território em termos de

planejamento, provimento de infraestrutura e distribuição da carga tributária.

É na perspectiva dessa alteração, para que seja possível de fato uma nova

organização social, voltada para a criação e defesa de um espaço brasileiro, que

este trabalho pretende trazer alguma contribuição para a discussão que deverá se

estabelecer em torno dos instrumentos do Estado para o planejamento e

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 282

intervenção sobre o espaço. Essa contribuição se baseia tanto nas posições

teóricas defendidas nesta tese quanto na experiência acumulada em vários anos de

trabalho profissional.

12.1 Elementos de ação governamental

Uma vez que a opção pelo desenvolvimento econômico leva à exigência da

implantação de um processo efetivo de planejamento do espaço por parte do

Estado, esse processo deverá incorporar a organização e manutenção de sistemas

de informações sobre o território na forma, como visto acima, de plantas, mapas e

dados alfa-numéricos. Deverá, portanto, agir sobre os sistemas de registro e os

cadastros de imóveis.

A confecção de uma planta cadastral ou a articulação dos diversos sistemas de

registro são problemas técnicos cuja solução, mais ou menos complexa, é sempre

viável desde que o problema seja real e não apenas um pretexto para encobrir

outras questões ou para inviabilizar qualquer mudança. Isto significa que só pode

haver solução de fato na medida em que houver interesse nessa solução ou, em

outras palavras, na medida em que os problemas forem sendo reconhecidos como

tais. Portanto:

Uma pessoa concreta de ação só pode ser feita por quem percebe o

problema e tem condições e interesse de encaminhar a solução.

A própria discussão do problema é sintoma de que há interesse na

solução e, portanto, já é parte dela.

O que se propõe aqui não é um programa de ação (que não faria sentido

justamente por estar desvinculado de qualquer instância de governo) mas sim

alguns aspectos de eventuais programas, a serem discutidos no sentido de

substituir pseudo-soluções formais por medidas que permitam o efetivo

conhecimento, no caso dos direitos fundiários e dos tributos correspondentes.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 283

Até agora a maioria das ações relativas à implantação de sistemas de dados sobre

a propriedade tem-se caracterizado pela capacidade de confundir e escamotear as

informações, sob as aparências de organizá-las ou de resolver “problemas

administrativos”. A recolocação dos objetivos desses sistemas como sendo os de

igualar o tratamento burguês da propriedade e facilitar as ações de tributação e

planejamento por parte do Estado requer alterações na maneira de decidir sobre

medidas efetivas, pois requer que tais medidas correspondam de fato aos objetivos

declarados e não ao de escamoteá-los.

As observações que seguem são uma tentativa de identificar as características

gerais das ações destinadas a resolver problemas, no sentido de remover entraves

à produção e ao desenvolvimento de um processo de planejamento nacional:

Em primeiro lugar, cabe lembrar que a ideologia do entrave está

arraigada em todos os níveis de decisão: não é apenas nos altos escalões

do governo que existe a tensão entre o “fazer” e o “fazer de conta”. As

pequenas ações em todos os órgãos que manipulam dados sobre

propriedades podem ir num ou noutro sentido.

Por outro lado, alterações estruturais exigem tocar diretamente nos

pontos certos isto é, nos pontos capazes de alterar a estrutura e não

apenas detalhes. Mudanças de detalhe sem importância só provocam o

rearranjo dos interesses oponentes. Esses pontos nevrálgicos não são

sempre os mais visíveis e podem passar por detalhes sem importância.

Qualquer ação deve dispor de recursos suficientes alocados. Isto não

significa necessariamente muito dinheiro; significa sim garantia de

continuidade e de interesse político.

O avanço por etapas, colocando metas claras a curto prazo, facilita o

dimensionamento e a organização do trabalho e diminui a tendência ao

desânimo diante de um volume de tarefas aparentemente inexequível.

Medidas efetivas são frequentemente menos abrangentes, menos

completas, que pseudo-soluções formais pois devem obrigatoriamente

levar em conta a composição das forças presentes em cada momento.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 284

A última dessas observações diz respeito ao volume de trabalho

necessário. Em que pesem as facilidades de armazenamento e de

manipulação de dados permitidas pelas técnicas mais recentes, essas não

substituem trabalhos de coleta, de organização e de divulgação. Como já

foi observado acima, é parte da ideologia do entrave o desprezo pelo

fazer, sempre relegado para o estagiário ou o funcionário

desqualificado.1 Ora, alterar os sistemas de cadastros e registros

montados em muitos anos de rotinas, leis e tradições certamente não é

tarefa para trabalhadores despreparados nem para sofisticados sistemas

eletrônicos comprados prontos.

Um programa de reorganização dos sistemas cadastrais a nível nacional não se faz

sem alterações profundas na organização social pois implica em alterações na

legislação e nas práticas administrativas, alterações essas que não precedem um

programa de trabalho mas já são parte dele. Do mesmo modo, a discussão sobre

um programa de mudanças já é parte e sintoma da mudança em curso.

Na perspectiva de um debate sobre as possíveis alterações é que se esboçam

alguns elementos para um programa, centrado em duas linhas de ação:

1 Apoio à cartografia nacional

2 Articulação entre os diversos sistemas de cadastros e registros.

12.2 Apoio à cartografia nacional

A elaboração de um projeto de sistema cartográfico nacional não só não partiria

do zero como provavelmente já existe, aguardando apoio e condições de

implantação. Não se trata de mais um projeto a ser feito por mais uma entidade a 1 “E aqui chegamos à última das linhas mestras fundamentais da nossa cultura: o desamor ao trabalho orgânico e tudo quanto lhe esteja ligado: iniciativa, organização, cooperação, espírito técnico e científico. ... Abolida a escravatura, não foi a toda forma de atividade que passamos a ter aprêço. Ao contrário, de acôrdo com os nossos velhos preconceitos, um sem-número de formas de trabalho, em lugar de dignificar o indivíduo, passaram a rebaixá-lo e aviltá-lo.” (Moog, 1964, pg.231-2).

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 285

ser criada mais sim da articulação dos órgãos já envolvidos com o assunto, da

alocação de recursos e da atribuição clara de responsabilidades pelos diversos

serviços, principalmente os de atualização. Entre os órgãos federais

necessariamente envolvidos por uma coordenação conjunta de ações e recursos

estão o IBGE e as Forças Armadas que, ambos, detêm o conhecimento e a prática

dos levantamentos cartográficos. Às ações desses órgãos, por sua vez, deverão se

articular as de outras entidades federais, além das estaduais, metropolitanas e

municipais, sempre no sentido de permitir a junção e cruzamento dos dados nas

diversas escalas e de evitar a repetição dos serviços iguais. A atribuição clara de

responsabilidades significa compromisso com a alocação de recursos para tais

serviços e garantias de não dispersão de recursos pela alocação em serviços

sobrepostos.

Nestas articulações entre órgãos produtores e usuários de bases cartográficas

deverão se resolver todos os problemas técnicos e operacionais ligados aos

sistemas de projeção e de coordenadas, às redes de apoio geodésico, à articulação

das folhas, à padronização da nomenclatura e da linguagem cartográfica, à

compatibilização dos processos de informatização, aos limites administrativos e,

acima de tudo, aos serviços de atualização e aos fluxos de dados.

Haveria resultados a curto prazo em três linhas simultâneas:

1 A garantia de existência e de atualização periódica de mapas base (em

alguma escala e com algum nível de qualidade definidos), articulados ao

sistema cartográfico nacional, para todos os municípios brasileiros.

2 O dimensionamento e a implantação dos séricos de manutenção,

adensamento e divulgação das redes de apoio geodésico.

3 A elaboração e publicação das normas de padronização, em conjunto

com os protocolos de trocas de informações entre as diversas entidades

envolvidas.

Essa primeiro passo permitiria dimensionar prioridades para levantamentos

cadastrais abrangentes e estabelecer competências, além de normas e

procedimentos de atualização.

Page 286: A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil

Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 286

12.3 Articulação entre cadastros e registros

A articulação entre os registros e os sistemas cadastrais involve dois aspectos: a

sua representação gráfica (mapeamento) e a troca permanente de dados.

O mapeamento requer uma base cartográfica, donde parte da importância dos

resultados esboçados no ítem anterior. Mas muito trabalho pode ser feito sobre as

bases disponíveis, mesmo desatualizadas, principalmente no sentido de resolver

questões de jurisdição e de limites administrativos. Divisas de estados e

municípios e circunscrições dos Cartórios de Registro de Imóveis deveriam ser

perfeitamente acertados e amplamente divulgados para uso de todos.

A revisão das atribuições do INCRA e da separação entre imposto territorial

urbano e rural deve levar a conclusões sobre a permanência ou não dos perímetros

urbanos, em caso afirmativo, a sua redefinição periódica.

Partindo do atual funcionamento dos serviços existentes uma primeira articulação

poderia ser estabelecida através da adoção de um código comum de identificação

de imóvel, coincidente ou não (parcialmente) com o número de matrícula no

Cartório ou com o número do cadastro do INCRA ou das Prefeituras. Esse código

teria uma estrutura nacional, mesmo que a coordenação funcionaria como chave

de acesso comum, permitindo o cruzamento dos dados alfanuméricos entre os

principais sistemas de registro fundiário. Assim, mesmo antes de qualquer

mapeamento, seria possível comparar e, portanto, corrigir e completar esses

registros. A adoção de um código comum exige cuidados e alguma padronização

nos sistemas de informatização.

O segundo passo poderia ser no sentido do cruzamento de responsabilidades

como, por exempo, o lançamento de impostos ter como base os registros nos

Cartórios e os registros de propriedade serem feitos sobre mapas das Prefeituras

ou do INCRA.

O programa geral, a longo prazo, deveria tender para:

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 287

O mapeamento de todas as propriedades.

A recuperação dos dados por proprietário.

A eliminação de dados conflitantes sobre propriedades.

Os programas intermediários, balizados pelo de longo prazo, teriam como

objetivos principal o de quebrar o tradicional isolamento em serviços estanques e

autosuficientes, permitindo uma reorganização não necessariamente moldada

apenas pelos interesses imediatos de cada órgão.

12.4 O Sentido da discussão proposta

A manutenção dos entraves à plena acumulação vem sendo garantida no nível

institucional pelo complexo de leis, procedimentos e interpretações jurídicas e, ao

nível econômico, pela expatriação de excedente. A expatriação não é um entrave

em si mas sim a garantia e justificativa para a manutenção dos entraves. Estes

adquirem formas variadas, em todos os níveis de decisão e de consciência,

apoiados seja nas variações sobre o tema “não há recursos”, seja nas variações

sobre “a lei não permite”.

A história nos apresenta uma sucessão de reimposições da expatriação na

superação das crises que periodicamente são colocadas pelas necessidades do

próprio processo de acumulação (mesmo entravada). Até o momento foi possível

manter esse sistema graças às altas taxas de excedente que permitiram expatriar

mantendo porém o mínimo necessário para a continuação do processo de

acumulação interna. Cessando essas altas taxas de escedente, com o esgotamento

do estágio de acumulação predominantemente extensiva2, a questão que se coloca

não é mais da forma mas sim da própria possibilidade de reimposição da

expatriação e, com ela, a da continuidade de uma sociedade de elite.

2 A acumulação brasileira foi concedida até o momento pela contínua incorporação de terras incultas e de população até então vivendo de formas pré-capitalistas de produção.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 288

Os interesses estão visivelmente em luta e parecem suficientemente equilibrados

para manter as posições há perto de 15 anos. O desenlace é imprevisível no

momento e, apesar de parecer impossível a manutenção do status quo, não há

indicações precisar do rumo que será seguido, lembrando demais que a crise

brasileira deverá se resolver no contexto da crise mundial. Mas, mesmo sem

indicações precisas, o repensar a organização social e o espaço dessa organização

é certamente uma forma de participar do embate.

Ora, ao espaço nacional corresponde um território, sobre o qual se constituem

direitos, materializados em títulos de domínio e registros cadastrais. A forma de

conhecimento público desses direitos e, portanto, as condições de intervenção do

Estado na consolidação e defesa do espaço nacional, serão colocadas como

questões centrais e deverão ser repensadas no contexto de uma reestruturação da

sociedade. Não se trata de promover reforma agrária ou distribuição de terras mas

sim de ter clareza sobre o projeto nacional de ocupação do território e de

construção do espaço.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 289

Bibliografia e referências

Page 290: A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 295

ANEXO I:

Lei 601 de 1850 – Lei das Terras Devolutas

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Anexo I:

Lei 601 de 1850 – Lei das Terras Devolutas

Reproduzido do livro São Paulo, paraiso dos “grileiros” de Paulo Coe [1983?].

Lei nº 601 de 1.850

Dispõe sobre as terras devolutas no Império, e a cerca das que são possuídas por título de sesmaria sem preenchimento das condições legais, bem como por simples título de posse mansa e pacífica e determina, que, medidas e demarcadas as primeiras, sejão elas cedidas a título oneroso assim para empresas particulares, como para estabelecimentos de colônias de nacionais e de estrangeiros na forma que se declara.

Dom Pedro II, por Graça de Deus e Unanime aclamação dos Povos, Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil: Fazemos saber a todos os Nossos Subditos que a Assembléia Geral Decretou, e Nós Queremos a Lei seguinte:

Art. 1° -- Ficam as aquisições de terras devolutas proibidas por outro título do que não seja o de compra.

Excetuam-se as terras situadas nos limites do Império com países estrangeiros em uma zona de dez léguas, as quais poderão ser concedidas gratuitamente.

Art. 2° -- Os que se apossarem de terras devolutas ou alheias, e nelas derrubarem matos, ou lhe puzerem fogo, serão obrigados a despejo, com perda de benfeitorias e, demais, sofrerão a pena de dois a seis meses de prisão, e multa de cem mil réis, além da satisfação do dano causado. Esta pena porém não terá nos atos possessórios entre hereos confinantes.

§ - Único - Os juízes de Direito nas correições que fizerem na forma das Leis e Regulamentos, investigarão se as autoridades a quem compete o conhecimento destes delitos põem todo o cuidado em processá-los e puni-los, e farão efetiva a sua responsabilidade, impondo no caso de simples negligência a multa de cinquenta a duzentos mil réis.

Art. 3° - São terras devolutas: § 1° - as que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional,

provincial ou municipal.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 144

§ 2° - As que não se acharem no domínio particular por qualquer título legítimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em comisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura.

§ 3° - As que não se acharem dadas por sesmarias ou outras concessões do Governo, que, apezar de incursas em comissão, forem revalidadas por esta lei.

§ 4° - As que não se acharem ocupadas por posses, que, apesar de não se fundarem em título legal, forem legitimadas por esta lei.

Art. 4° - Serão revalidadas as sesmarias, ou outras concessões do Governo Geral ou Provincial, que se acharem cultivadas, ou com princípios de cultura, e morada habitual do respectivo sesmeiro ou concessionário, ou de quem os represente, embora não tenha sido cumprida qualquer das outras condições, com que foram concedidas.

Art. 5° - Serão legitimadas as posses mansas e pacíficas, adquiridas por ocupação primária, ou havidas do primeiro ocupante, que se acharem cultivadas, ou com princípio de cultura e morada habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente, guardadas as regras seguintes:

§ 1° - Cada posse em terras de cultura, ou em campos de criação, compreenderá, além de terreno aproveitado, ou - o necessário para pastagem dos animais que tiver o posseiro, outro tanto mais de terreno devoluto que houver contiguo, com tanto que em nenhum caso a extensão total da posse exceda a de uma sesmaria para cultura ou criação, igual às últimas concedidas na mesma comarca ou na mais vizinha.

§ 2° - As posses em circunstâncias de serem legitimadas, que se acharem em sesmarias ou outras concessões do Governo, não incursas em comisso ou revalidade por esta Lei, só darão direito a indenização pelas benfeitorias.

Excetua-se desta regra o caso de verificar-se a favor da posse qualquer das seguintes hipóteses: 1° a ter sido declarada boa por sentença passada em Julgado entre sesmeiro ou concessionários e os posseiros; 2° ter sido estabelecida antes da medição da sesmaria ou concessão, e não perturbada por cinco anos; 3°, ter sido estabelecida depois da dita medição, e não perturbada por dez (10) anos.

§ 3° - dada a excepção do parágrafo antecedente, os posseiros gozarão do valor que lhes assegura o § 1°, competindo ao respectivo sesmeiro ou concessionário ou ficar com o terreno que sobrar da divisão feita entre os ditos posseiros, ou considerar-se também posseiro para entrar em rateio igual com eles.

§ 4 - Os campos de uso comum dos moradores de uma ou mais Freguesias, Municípios ou Comarcas serão conservados em toda a extensão de suas divisas, e continuarão a prestar o mesmo uso, conforme a prática atual, em quanto por lei não se dispuzer o contrário.

Art. 6° - Não se haverá por princípio de cultura para a revalidação das sesmarias ou outras concessões do Governo, nem para a legitimação de qualquer posse, os simples roçados, derrubadas ou queimas de matos ou campos, levantamentos de ranchos e outros atos de semelhante natureza, não sendo acompanhadas da cultura efetiva, e morada habitual exigida no artigo antecedente.

Art. 7° - O Governo marcará os prazos dentro dos quais deverão ser medidas as terras adquiridas por posses ou por sesmarias, ou outras concessões, que estejam por medir, assim como designará e instruirá as pessoas que devam fazer a medição, atendendo às circunstâncias de cada Província, Comarca e Município, e podendo prorrogar os prazos marcados, quando o julgar conveniente, por medida geral que compreenda todos os possuidores da mesma Província, Comarca e Município, onde a prorrogação convier.

Art. 8° - Os possuidores que deixarem de proceder à medição nos prazos marcados pelo Governo serão reputados cahidos em comisso, e perderão por isso o direito que tenham a serem preenchidos das terras concedidas por seus títulos, ou por favor da presente Lei, conservando-o somente para serem mantidos na posse do terreno que ocuparem com efetiva cultura, havendo-se por devoluto o que se achar inculto.

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Luisa Battaglia A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil 145

Art. 9° - Não obstante os prazos que forem marcados, o Governo mandará proceder à medição das terras devolutas, respeitando-se no ato da medição os limites das concessões e posses que se acharem nas circunstancias dos Artigos 4° e 5°.

Qualquer oposição que haja da parte dos possuidores não impedirá a medição; mas, utimada esta, se concederá vista aos oponentes para deduzirem seus embargos em termo breve.

As questões judiciárias entre os mesmos possuidores não impedirão tão pouco as diligências tendentes à execução da presente Lei.

Art. 10° - O Governo proverá o modo prático de extremar o domínio público do particular, segundo as regras acima estabelecidas, incumbindo a sua execução as autoridades que julgar mais convenientes, ou a Comissárias especiais, os quais procederão administrativamente, fazendo decidir por arbítrios as questões e dúvidas de fato, o dando de suas próprias decisões recursos para o Presidente da Província, do qual haverá também para o Governo.

Art. 11° - Os posseiros serão obrigados a tirar títulos dos terrenos que lhe ficarem pertencendo por efeito desta Lei e sem eles não poderão hipotecar os mesmos terrenos, nem aliená-los por qualquer modo.

Esses títulos serão passados pelas Repartições Provinciais que o Governo designar, pagando-se cinco mil réis de direitos de Chancelaria pelo terreno que não exceder de um quadrado de quinhentas braças por lado, e outro tanto por cada igual quadrado que demais contiver a posse; e além disso, quatro mil réis de feitio, sem mais emolumento ou sêlo.

Art. 12° - O Governo reservará das terras devolutas as que julgar – necessárias. 1° - para a colonização dos indígenas; 2° para a fundação de Povoações abertura de estradas e quaisquer outras servidões, assento de Estabelecimentos públicos; 3° - para a construção naval.

Art. 13° - O mesmo Governo fará organizar por Freguezias e registro das terras possuidoras, sobre declarações feitas pelos respectivos possuidores impondo multas e penas aqueles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas declarações, ou as fizerem inexatas.

Art° 14 - Fica o Governo autorizado a vender as terras devolutas em hasta pública ou fora dela, como o quando julgar mais conveniente, fazendo previamente medir, dividir, demarcar e descrever a porção das mesmas terras que houver exposta a venda, guardadas as regras seguintes:

§ 1° - A medição e divisão serão feitas, quando o permitirem as circunstâncias locais, por linhas que correrão do norte ao sul, conforme o verdadeiro meridiano, e por outras que as cortem em ângulos retos, de maneira que formem lotes ou quadrados de 500 braças por lado demarcado convenientemente.

§ 2° - Assim esses lotes, como as sobras de terras, em que se não puder verificar a divisão acima indicada, serão vendidos separadamente sobre o preço mínimo, fixado antecipadamente e pago à vista, de meio real, um real, um real e meio e dois réis, por braça quadrada, segundo for a qualidade e situação dos mesmos lotes e sortes.

§ 3° - A venda fóra da hasta pública será feita pelo preço que se ajustar, nunca abaixo do mínimo fixado, segundo a qualidade e situação dos respectivos lotes e sobras, ante o Tribunal do Tesouro Público, com assistência do chefe da Repartição Geral das Terras, na Província do Rio de Janeiro, e ante as Tesourarias, como assistência de um Delegado do dito Chefe e com aprovação do respectivo Presidente, nas outras Províncias do Império.

Art. 15° – Os possuidores de terras de cultura e criação, qualquer que seja o título de suas aquisição, terão preferência na compra de terras devolutas que lhes forem contiguas, contanto que mostrem pelo estado de sua lavoura ou criação, que tem os meios necessários para aproveitá-los.

Art. 15 – A terras devolutas que se venderem ficarão sempre sujeitas aos ônus seguintes:

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§ 1° - Ceder o terreno preciso para estradas públicas de uma povoação a outra, ou algum porto de embarque, salvo o direito de indenização das benfeitorias e do terreno ocupado.

§ 2° - Dar servidão gratuita aos vizinhos quando lhes forem indispensáveis para sairem a uma estrada pública, povoação ou porto de embarque, e com indenização quando lhes for proveitosa por incurtamento de um quarto ou mais de caminho.

§ 3° - Consentir a tirada de águas desaproveitadas e passagem delas precedendo a indenização das benfeitorias e terreno ocupado.

§ 4° - Sujeitas as disposições das leis respectivas quaisquer minas que se descobrirem nas mesmas terras.

Art. 17 – Os estrangeiros que comprarem terras e nelas se estabelecerem, ou vierem à sua custa exercer qualquer indústria no País, serão naturalizados querendo, depois de dois anos de residência pela forma porque o farão os da Colônia de São Leopoldo, e ficarão isentos do serviço militar, menos do da Guarda Nacional dentro do Município.

Art. 18 - O Governo fica autorizado a mandar vir anualmente à custa do Tesouro, certo número de colonos livres para serem empregados, pelo tempo que fôr marcado, em estabelecimentos agrícolas, ou nos trabalhos dirigidos pela Administração Pública na formação de Colonias nos lugares em que estas mais convierem; tomando antecipadamente as medidas necessárias para que tais colonos achem emprego logo que desembarcarem.

Aos colonos assim importados são aplicáveis as disposições do art. antecedente.

Art. 19° - O Produto dos direitos de Chancelaria e da venda das terras, de que tratão os artigos 11° e 14°, será exclusivamente aplicado: 1° a - ulterior medição das terras devolutas e, 2°, a importação de colonos livres, conforme o artigo precedente.

Art. 20° - Em quanto o referido produto não for suficiente para as despesas a que é destinado, o Governo exigirá anualmente os créditos necessários para as mesmas despesas, às quais aplicará desde já as sobras que existiram dos créditos, anteriormente dados a favor da colonização, e mais a soma de duzentos contos de réis.

Art. 21° - Fica o Governo autorizado a estabelecer, com o necessário o Regulamento, uma Repartição especial que se denominará - Repartição Geral das Terras Públicas - e será encarregada de dirigir a medição, divisão, a descrição das terras devolutas, e sua conservação, de fiscalizar a venda e distribuição delas, e de promover a colonização nacional e estrangeira.

Art. 22° - O Governo fica autorizado igualmente a impor, nos Regulamento que fizer para a execução da presente Lei, penas de prisão até três meses, e de multa até duzentos mil de réis.

Art. 23° - Ficam derrogadas todas as disposições em contrário. Mandamos, portanto a todas as Autoridades, a quem o conhecimento e execução da Referida Lei pertencer, que a cumprão, e façam cumprir, e guardar tão inteiramente, como nela se contem. O Secretario d’Estado dos Negócios do Império a faça imprimir, publicar e correr. Dada no Palácio do Rio de Janeiro aos dezoito dias do mes de Setembro de mil oitocentos e cinquenta, vigésimo nono da Independência e do Império.

IMPERADOR com a Rúbrica e Guarda. Visconde de Mont'Alegre. Carta de Lei, pela qual Vossa Majestade Imperial executar o Decreto da

Assembléia Geral, que houve por bem sancionar, sobre terras devolutas, sesmarias, posses e colonização. Para Vossa Majestade Imperial vêr.

João Gonçalves de Araújo a fez. Euzébio de Queiroz Coitinho Matoso Camara. Selada na Chancelaria do Império em 20 de Setembro de 1.850. José de Paiva Magalhães Calvet. Registrada a fls. 57 do livro 1° de Atos Legislativos. Secretaria d’Estado dos Negócios do Império em 2 de Outubro de 1.850.

Bernardo José de Castro.

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ANEXO II:

Decreto 1.318 de 1854

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Anexo II:

Decreto 1.318 de 1854

DECRETO nº 1.318, de 30 de janeiro de 1854

Manda executar a Lei nº 601, de 18 de Setembro de 1850. Em, virtude das autorizações concedidas pela Lei nº 601, de 18 de Setembro

de 1.850, hei por bem que para execução da mesma Lei de observe o Regulamento que com este baixa assinado por Luiz Pedreira do Souza Ferraz, do meu conselho ministro e secretário do Estado dos Negócios do Império, que assim o tenha entendido e faça executar. Palacio do Rio de Janeiro em 30 de Janeiro de 1854, trigésimo terceiro da Independência e do Império. - Com a rubrica de S.M. o Imperador. - Luiz Pedreira do Couto Ferraz

REGULAMENTO

Para execução da Lei n° 601, de 18 de 09 de 1.850, a que se refere o Decreto

d’esta data.

CAPÍTULO 1

Art. 1° - A Repartição Geral das terras públicas, creada pela Lei n°. 601, de 18 de Setembro de 1.850, fica subordinada ao ministro e secretário de Estado dos Negócios do Império, e constará de um diretor geral das terras públicas, chefe da repartição, e de um fiscal.

A secretaria se comporá de um oficial-maior, dois oficiais, quatro amanuenses, um porteiro, e um contínuo.

Um oficial e um amanuense serão hábeis em Desenho topográfico, podendo ser tirados dentre os oficiais do corpo de engenheiros, ou do estado maior de 1a. Classe.

Art. 2° - Todos estes Empregados serão nomeados por decreto imperial excepto os amanuenses, porteiro e contínuo, que serão por portaria do ministro e secretário de estado dos negócios do Império; e terão os vencimentos seguintes:

Diretor geral, quatro contos de réis – 4:000$000 Fiscal, dois contos e quatrocentos mil réis – 2:400$000 Oficial-maior, três contos e duzentos mil réis - 3:200$000 Oficial (cada um), dois contos e quatrocentos mil réis 2:400$000 Amanuenses (cada um), um conto e duzentos mil réis - 1:200$000 Porteiro, um conto de réis - 1:000$000 Contínuo, seiscentos mil réis - 600$000. Art. 3° - Compete à repartição geral das terras públicas: § 1° - Dirigir a medição, divisão e descrição das terras devolutas, e prover

sobre a sua conservação. § 2° - Organizar um Regulamento especial para as medições no qual

indique o modo prático de proceder a elas, e quais as informações que devem conter os memorais de que trata o art. 16 deste Regulamento.

§ 3° - Propor ao Governo as terras devolutas que deveram ser reservadas: 1° para a colonização dos indígenas; 2°) para a fundação de povoações,

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abertura de estradas, e qualquer outras servidões e assentes de estabelecimentos públicos.

§ 4° - Fornecer ao ministro da marinha todas as informações que tiver acerca das terras devolutas que em razão de sua situação e abundância de madeiras próprias para as construções navais, convenha reservar para o dito fim.

§ 5° - Propor a porção de terras medidas que anualmente deveram ser vendidas.

§ 6° - Fiscalizar a distribuição das terras devolutas, e a regularidade das operações da venda.

§ 7° - Promover a colonização nacional e estrangeira. § 8° - Promover o registro das possuidas. § 9° - Propor ao Governo a fórmula que devem ter os títulos de revalidação

e de legitimação de terras. § 10° - Organizar e submeter à aprovação do Governo o Regulamento que

deve reger a sua secretaria, e as de seus delegados nas províncias. § 11° - Propor finalmente todas as medidas, que a experiência for

demonstrando convenientes para o bom desempenho de suas atribuições, e melhor execução da Lei n° 601, de 18 de Setembro de 1.850, e deste regulamento.

Art. 4° - Todas as ordens da repartição geral das terras publicas, relativas à medição divisão e descrição das terras devolutas nas províncias; a sua conservação, venda e distribuição e colonização nacional e estrangeira serão assinadas pelo ministro e secretário de estado dos Negócios do Império, e dirigidas aos presidentes das províncias.

Art. ° - As informações, porém, que forem necessárias para o regular andamento do serviço a cargo da mesma repartição poderão ser exigidas pelo diretor-geral de seus delegados, ou requisitadas das autoridades incumbidas por este Regulamento do registro das terras possuídas, da medição, divisão, conservação, fiscalização e venda das terras devolutas, e da legitimação ou revalidação das que estão sujeitas a estas formalidades.

§ 1° - Dar parecer por escrito sobre toda as questões de terras de que trata a Lei n° 601, de 18 de Setembro de 1.850, e em que estiverem envolvidos direitos e interesses do estado e tiver de intervir a repartição geral das terras públicas, em virtude deste Regulamento ou por ordem do Governo.

§ 2° - Informar sobre os recursos interpostos das decisões dos presidentes das províncias para o Governo Imperial.

§ 3° - Participar ao diretor geral das faltas cometidas por quaisquer autoridades, ou empregados, que por este Regulamento tem de exercer funções concernentes ao registro das terras possuídas, à conservação, venda, medição, demarcação e fiscalização das terras devolutas, ou que estão sujeitas à revalidação e legitimação pelos artigos 4° e 5° da Lei n° 601, de 18-09-1.850.

§ 4° - Dar ao diretor geral todos os esclarecimentos e informações que forem exigidas para o bom andamento do serviço.

Art. 6° - Haverá nas províncias uma repartição das terras públicas nelas existentes. Esta repartição será subordinada aos presidentes das províncias e dirigidas por um delegado do diretor geral das terras públicas; terá um fiscal, que será o mesmo da tesouraria; os oficiais e amanuenses que forem necessários, segundo a afluência do trabalho, e um porteiro servindo de arquivista.

O Delegado e os oficiais serão nomeados por decreto imperial; os amanuenses e o porteiro por portaria do Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império. Estes empregados perceberão os vencimentos que forem marcados por decreto, segundo a importância dos respectivos trabalhos.

Art. 7° - O Fiscal da repartição especial das terras públicas deve: § 1° - dar parecer por escrito sobre todas as questões de terras de que trata

a Lei n° 601, de 18-09-1.850 e em que estiverem envolvidos interesses do Estado

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e tiver de intervir a repartição especial das terras públicas, em virtude da Lei, Regulamento e ordem do Presidente da Província.

§ 2° - Participar ao Delegado do Chefe da Repartição Geral, afim de as fazer subir ao conhecimento do Presidente da Província e ao do mesmo Chefe, as faltas cometidas por quaisquer autoridades ou empregados nas respectivas provincias, que por este Regulamento tem de exercer funções concernentes ao registro das terras possuídas, à conservação, venda, medição, demarcação e fiscalização das terras devolutas ou que estão sujeitas à revalidação e legitimação pelos arts 4°, e 5° da Lei n° 601, de 18 de Setembro de 1.850.

§ 3° - Prestar ao Delegado do Chefe da Repartição Geral todos os esclarecimentos e informações que forem por ele exigidos para o bom andamento do serviço.

Art. 8° - O Governo fixará os emolumentos que as partes tem de pagar pelas certidões, cópias de mapas e quaisquer outros documentos passados nas secretarias das repartições geral e especiais das terras públicas. Os títulos, porém, das terras, distribuídos em virtude da Lei n° 601, de 18-09-1.850, somente pagarão o imposto fixado no artigo 11 da mesma Lei. Os emolumentos e impostos serão arrecadados como renda do Estado.

Art. 9° - O Diretor Geral das terras públicas, nos impedimentos temporários, será substituído pelo oficial maior da repartição; e os Delegados por um dos oficiais da respectiva secretaria, designado pelo Presidente da Província.

CAPÍTULO II

“Da medição das terras públicas” Art. 10° - As províncias onde houver terras devolutas, serão divididas em

tantos distritos de medição quantos convier, compreendendo cada distrito parte de uma comarca, uma ou mais comarcas, e ainda a província inteira, segundo a quantidade de terras devolutas ahi existentes, e a urgência de sua medição.

Art. 11° - Em cada distrito haverá um inspetor geral das medições no qual serão subordinados tantos escreventes, desenhadores e agrimensores, quantos convier. O inspetor geral será nomeado pelo Governo, sob proposta do diretor geral, os escreventes, desenhadores e agrimensores serão nomeados, com aprovação do presidente da província.

Art. 12° - As medições serão feitas por territórios, que regularmente formarão quadrados de seis mil braças de lado, subdivididos em lotes ou quadrados de quinhentos braças de lado, conforme a regra indicada no art. 14. da Lei n° 601, de 18-09-1.850, e segundo o modo prático prescrito no Regulamento especial que for organizado pela repartição geral das terras públicas.

Art. 13° - Os organizadores trabalharão regularmente por contrato que farão com o inspetor de cada distrito, e no qual se fixará os seus vencimentos por braça de medição, compreendidas todas as despesas com picadores, homens de corda, demarcação, etc. O preço máximo de cada braça de medição será estabelecido no Regulamento especial.

Art. 14° - O Inspetor é o responsável pela exatidão das medições; o trabalho dos agrimensores lhe será portanto submetido; o sendo por ele aprovado, procederá à formação dos mapas de cada um dos territórios medidos.

Art. 15° - Destes mapas fará extrair três cópias: uma para a repartição geral das terras públicas, outra para o delegado da província respectiva, e outra que deve permanecer em seu poder, formando afinal um mapa geral de seu distrito.

Art. 16° - Estes mapas serão acompanhados de memoriaes, contendo, as notas descritivas do terreno medido, e todas as outras indicações que deverem ser feitas em conformidade do Regulamento especial das medições.

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Art. 17° - A medição começará pelas terras que se reputarem devolutas e que não estiverem encravadas por posse, anunciando-se por editais e pelos jornais, se os houver no distrito, a medição que se vai fazer.

Art. 18° - O Governo poderá contudo, se julgar conveniente, mandar proceder a medição das terras devolutas contiguas tanto as terras que se acharem no domínio particular, como as sujeitas a legitimação e sesmarias, e concessões do Governo sujeitas revalidação, respeitando os limites de umas e de outras.

Art. 19° - Neste caso, se os proprietários ou posseiros vizinhos se sentirem prejudicados,, apresentarão aos agrimensores petição em que exporão o prejuízo que sofrem. Não obstante, continuará a medição; e ultimada ela, organizados pelo inspetor o memorial e mapa respectivos, será tudo remetido ao juiz municipal, se o peticionário prejudicado for possuidor ou sesmeiro não sujeito à legitimação ou revalidação, e ao juiz comissário criado pelo art. 30 deste Regulamento, se o dito peticionário for possuidor ou sesmeiro sujeito à revalidação. Tanto o Juiz municipal como o comissário darão vista aos opoentes por cinco dias para deduzirem seus embargos que serão decididos ou deduzidos perante o juiz comissário nos termos e com o recurso do art. 47, e os deduzidos perante o juiz municipal na forma das leis existentes, e um recurso para as autoridades judiciais competentes.

Art. 20° - As posses estabelecidas depois da publicação do presente Regulamento não devem ser respeitadas. Quando os inspetores e agrimensores encontrem semelhantes posses, o participarão aos juizes municipais para providenciarem na conformidade do art. 2° da lei supracitada.

Art. 21° - Os inspetores não terão ordenado fixo, mas sim, gratificação pelas medições que fizerem, as quais serão estabelecidas sob proposta do diretor geral das terras públicas, com atenção as dificuldades que oferecerem as terras a medir.

CAPÍTULO III

Da revalidação e legitimação das terras e modo prático de extremar o

domínio público do particular. Art. 22° - Todo o possuidor de terras que tiver título legítimo da aquisição

do seu domínio, quer as terras que fizerem parte dele tenhão sido originariamente adquiridos por posse de seus antecessores, quer por concessões de sesmarias não medidas ou não confirmadas, nem cultivadas, se acha garantida em seu domínio, qualquer que fora a sua extensão, por virtude do disposto no § 2 (do art. 3° da Lei n° 601, de 18-09-1.850, que exclui do domínio público, e considera como não devolutas todas as terras que se acharem no domínio particular por qualquer título legítimo.

Art. 23° - Estes possuidores, bem corno os que tiverem terras havidas por sesmarias e outras concessões do Governo geral ou provincial não incursas em comisso por falta de cumprimentos das condições de medição, confirmação e cultura, não tem precisão de revalidação, nem de legitimação, nem de novos títulos para poderem gozar, hipotecar ou alienar os terrenos que se acham no seu domínio.

Art. 24° - Estão sujeitas à legitimação: § 1° - As posses que se acharem em poder do primeiro ocupante não tendo

outro título senão a sua ocupação. § 2° - As que, posto se achem em poder de segundo ocupante, não terem

sido por este adquiridas por título legítimo. § 3° - As que, achando-se em poder do primeiro ocupante até a data da

publicação do presente Regulamento, tiverem sido alienadas contra a proibição do art. 11 da Lei n° 601, de 18-09-1.850.

Art. 25° - São títulos legítimos todos aqueles que, segundo o direito, são aptos para transferir o domínio (1).

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Art. 26° - Os escritos particulares de compra e venda ou doação, nos casos em que por direito são aptos para transferir o domínio de bens de raiz se consideram legítimos, se o pagamento do respectivo imposto tiver sido verificado antes da publicação deste Regulamento; no caso, porém, de que o pagamento se tenha realizado depois dessa data, não dispensarão a legitimação, se as terras transferias houverem sido adquiridas por posse e o que as transferir tiver sido o seu primeiro ocupante.

Art. 27° - Estão sujeitas a revalidação as sesmarias, ou outras concessões do Governo geral ou provincial que, estando ainda no domínio dos primeiros sesmeiros, ou concessionários, se acharem continuadas ou com princípio de cultura e morada habitual do respectivo sesmeiro ou concessionário ou de quem represente, e que não tiverem sido medidas e demarcadas. (1). Excetuam-se porém, aquelas sesmarias ou outras concessões do Governo geral ou provincial, que tiverem sido dispensadas das condições exigidas por ato do poder competente; e bem assim, as terras concedidas a companhias para estabelecimento de colonias, e que forem medidas e demarcadas dentro dos prazos da concessão.

Art. 28° - Logo que for publicado o presente Regulamento, os Presidentes das Províncias exigirão dos Juízes Municipais, Delegados, Subdelegados e Juízes de Paz, informação circunstanciada sobre a existência em suas Comarcas Termos e Distritos, de posses sujeitas à revalidação forma dos artigos 24, 25, 26 e 27.

Art. 29° - Se as autoridades a quem incumbe dar tais informações deixarem de o fazer nos prazos marcados pelos Presidentes das Províncias, serão punidos pelos mesmos Presidentes com a multa de cincoenta mil réis e com o dobro nas reincidências.

Art. 30° - Obtidas as necessárias informações, os Presidentes das Províncias nomearão para cada um dos municípios em que existirem sesmarias ou outras concessões de Governo Geral e Provincial sujeitas a revalidação, ou posses sujeitas a legitimação, um Juiz comissario de medições.

Art. 31° - Os nomeados para este emprego que não tiverem legítima excusa, a juízo do Presidente da Província, serão obrigados a aceitá-lo, e poderão ser compelidos a isso por multas até a quantia de cem mil réis (100$000).

Art. 32° - Feitas as nomeações dos juízes comissários das medições o Presidente da Província marcará o prazo em que deverão ser medidas as terras adquiridas por posses sujeitas a legitimação ou por sesmarias ou outras concessões que estejam por medir, e sujeitas à revalidação, marcando maior ou menor prazo, segundo as circunstâncias do município e o maior ou menor número de posses ou sesmarias sujeitas a legitimação e revalidação que ahi existirem.

Art. 33° - Os prazos marcados poderão ser prorrogados pelos mesmos Presidentes se assim o julgarem conveniente; e neste caso a prorrogação aproveita a todos os possuidores do município para o qual for concedida.

Art. 34° - Os juízes comissários das medições são os competentes: 1° - Para conceder a medição e demarcação da sesmaria, ou concessões do

Governo Geral ou Provincial sujeitas a revalidação e das posses sujeitas à legitimação.

2° - Para nomear os seus respectivos excrivões e os agrimensores que com elos devem proceder as medições e demarcações.

Art. 35° - Os agrimensores serão pessoas habilitadas por qualquer escola nacional ou estrangeira, reconhecida pelos respectivos governos, e em que se ensine topografia. Na falta de título copetente serão habilitados por exame feito por dois oficiais do corpo de engenheiros, ou por duas pessoas que tenham o curso completo da Escola Militar, sendo os examinadores nomeados pelos Presidentes da Províncias.

Art. 36° - Os juízes comissários não procederão a medição alguma sem preceder requerimento de parte; o requerimento deverá designar o lugar em que é sita a posse, sesmaria ou concessão do Governo e os seus confrontantes.

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Art. 37° - Requerida a medição, o juiz comissário, verificando a circunstância da cultura efetiva, e morada habitual, de que trata o art. 6° da Lei n° 601, de 18-09-1.850, e que não são simples roçados, derrubadas ou queima de matas, e outros atos semelhantes, os que constituem a pretendida posse, marcará o dia em que a deve começar, fazendo público com antecedência de oito (8) dias pelo menos, por editais que serão afixados nos lugares de costume, na freguezias em que se acharem as possessões ou sesmarias que houverem de ser legitimadas ou revalidadas, e fazendo citar os confrontantes por carta de editos.

Art. 38° - No dia assinado para a medição, reunidos no lugar o Juiz comissário, escrivão e agrimensor, e os demais empregados da medição, deferirá, o Juiz, juramento ao escrivão, e ao agrimensor se já o não tiverem recebido; e fará lavrar do termo do qual conste a fixação dos editais e a entrega das cartas de citação aos confrontantes.

Art. 39° - Imediatamente declarará aberta a audiência e ouvirá a parte e os confrontantes, decidindo administrativamente e sem recurso imediato os requerimentos tanto verbais como escritos que lhe forem apresentados.

Art. 40° - Se a medição requerida for de sesmaria ou outra concessão do Governo, fará proceder a ela de conformidade com os rumos e confrontações designados no título de concessão; contanto que a sesmaria tenha cultura efetiva e morada habitual, como determina o art. 6° da Lei n° 601, de 18-09-1.850.

Art. 41° - Se dentro dos limites da sesmaria ou concessão encontrarem posses com cultura efetiva e morada habitual em circunstâncias de serem legitimadas, examinarão se essas posses tem em seu favor algumas exceções constantes da segunda parte do § 2° , do art. 5° da Lei n° 601, de 18-09-1.850, e verificada algumas das ditas exceções, em favor das posses, deverão elas ser medidas, a fim de que os respectivos posseiros obtenhão a sua legitimação, medindo-se neste caso para o sesmeiro ou concessionário o terreno que restar da sesmaria ou concessão, se o sesmeiro não preferir o rateio de que trata o § 3° do art. 5° da Lei.

Art. 42° - Se, porém as posses que se acharem nas sesmarias ou concessões não tiverem em seu favor alguma das ditas exceções, o juiz comissário fará proceder a avaliação das benfeitoras que nelas existirem; e entregue o seu valor ao posseiro, ou competentemente depositado, se este o não quiser receber, as fará despejar, procedendo a medição de conformidade com o título da sesmaria ou concessão.

Art. 43° - A avaliação das benfeitorias se fará por dois arbitros nomeados, um pelo sesmeiro ou concessionário, e outro pelo posseiro; e se aqueles discordarem na avaliação, o juiz comissário nomeará um terceiro arbitro, cujo voto prevalecerá, e que poderá concecer com um dos dois, ou indicar novo valor; contanto que não esteja fora dos limites dos preços arbitrados pelos outros dois.

Art. 44° - Se a medição requerida for de posses não situadas dentro de sesmarias ou outras concessões, porem em terrenos que se achassem devolutos e tiverem sido adquiridos por ocupação primária ou havidas sem título legítimo do primeiro ocupante, devem ser legitimadas, estando cultivadas ou com princípio de cultura e morada habitual do respectivo posseiro ou de quem o represente; o Juíz comissário fará estimar por arbitros os limites da posse, ou seja em terras de cultura ou em campos de criação; e verificados esses limites e calculada pelo agrimensor a área neles contida, fará medir para o primeiro, o terreno que tiver sido cultivado ou estiver ocupado por animais, sendo terras de criação tanto mais de terreno devoluto que houver contíguo; contanto que não prejudique a terceiro e que em nenhum caso a extensão total da posse exceda a uma sesmaria para cultura ou criação, igual às últimas concedidas na mesma comarca ou na mais vizinha.

Art. 45° - Se a posse que se houver de medir for limitada por outras cujos posseiros possam ser prejudicados com a estimação de terreno ocupado, cada um dos posseiros limitrofes nomeará um arbitro, os quais, unidos ao nomeado

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pelo primeiro cujo terreno se vai estimar, procederão em comum a estimação dos limites de todas, para proceder-se ao cálculo de suas áreas e ao rateio segundo a porção que cada um posseiro tiver cultivado ou aproveitado. Se os arbitros não concordarem entre si, o juíz nomeará um novo, cujo voto prevalecerá, e em que poderá concordar com o de qualquer dos antecedentes arbitros ou indicar novos limites; contanto que estes não compreendam, em cada posse áreas maiores ou menores do que as compreendidas nos limites estimados pelos anteriores arbitros.

Art. 46° - Se, porém, a posse não for limitada por outras que possam ser prejudicadas, a estimação do terreno aproveitado ou ocupado por animais se fará por dois arbitros, um nomeado pelo posseiro, e outro pelo escrivão que servirá neste caso de promotor do juízo; e se discordarem estes, o juíz nomeará um terceiro arbitro, que poderá concordar com um dos dois primeiros ou fixar novos limites; contanto que estejam dentro do terreno incluido entre os limites estimados pelos outros dois.

Art. 47° - Nas medições, tanto de sesmarias e outras concessões do Governo Geral e Provincial, sujeitas a revalidação, como nas posses sujeitas a legitimação, as decisões dos arbitros aos quais serão submetidas pelo juíz comissário todas as questões e dúvidas de fato que se suscitarem, não serão sujeitas a recurso algum; aos dos juízes comissários, porem, que versarem sobre o direito de sesmeiro, ou posseiros e seus confrontantes, estão sujeitas a recursos para o Presidente da Província e deste para o Governo Imperial.

Art. 48° - Estes recursos não suspenderão a execução; ultimada ela, e feita a demarcação, escritos nos autos todos os termos respectivos, os quais serão também assinados pelo agrimensor, organizará este, mapa que deve esclarecer e unidos aos autos todos os requerimentos escritos que tiver havido o todos os documentos apresentados pelas partes, o juíz comissário a julgará por finda; fará extrair um traslado dos autos para ficar em poder do escrivão, e remeterá os originais ao Presidente da Província, ainda quando não tenha havido interposição de recurso.

Art. 49° - Recebidos os autos pelo Presidente e obtidos por ele todos os esclarecimentos que julgar necessário, ouvirá o parecer do Delegado do diretor das terras públicas, e este ao fiscal respectivo, e dará a sua decisão, que será publicada na Secretaria da presidencia, a registrada no respectivo livro da porta.

Art. 50° - Se o Presidente entender que a medição foi irregular ou que se não guardou as partes o seu direito, em conformidade da Lei n° 601, de 18-09-1.850, e do presente Regulamento, mandará proceder a nova medição, dando as instruções necessárias a concessão dos erros que tiver havido; e, se entender justo, poderá condenar o Juíz comissário, o escrivão, e agrimensor a perderem os emolumentos que tiverem percebido pela medição irregular.

Art. 51° - Se o julgamento do Presidente aprovar a medição, serão os autos remetidos ao delegado do diretor geral das terras públicas para fazer passar em favor do posseiro, sesmeiro, ou concessionário o respectivo título de sua possessão, sesmaria, ou concessão depois de pagos na tesouraria os direitos de Chancelaria, segundo a taxa do art. 11 da Lei n° 601, de 18-09-1.850. Os títulos serão assinados pelo Presidente.

Art. 52° - Das decisões do Presidente da Província da-se recurso para o Governo Imperial. Este recurso será interposto em requerimento apresentado ao secretário da província dentro de dez dias, contados da data da publicação da decisão na secretaria; e sendo assim apresentado, suspenderá a execução da decisão enquanto pender o recurso que será remetido oficialmente por intermédio do Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império.

Art. 53° - Os concessionários de sesmarias que, posto tenhão sido medidas, estão sujeitos à revalidação por falta do cumprimento da condição de confirmação, a requererão aos Presidentes da Província, os quais mandarão expedir o competente título pelo delegado do diretor geral das terras públicas, se a medição houver sentença passada em julgado.

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Art. 54° - Os concessionários de sesmarias que posto tenhão sido medidas, não tiverem sentença de medição passada em julgado, deverão fazer proceder a medição nos termos dos artigos 36 e 40, para poderem obter o título de revalidação.

Art. 55° - Os Presidentes das Províncias, quando nomearem os juízes comissários de medições, marcarão os salários e emolumentos que estes, seus escrivães e agrimensores deverão receber das partes pelas medições que fizerem.

Art. 56° - Findo o prazo marcado pelo Presidente para medição das sesmarias e concessões do Governo, sujeitas à revalidação, e das posses sujeitas a legitimação, os comissários informarão os presidentes do estado das medições e do número das sesmarias e posses que se acharem por medir declarando as causas que houverem inibido a ultimação das medições.

Art. 57° - Os Presidentes, a vista destas informações, deliberação sobre a justiça e conveniência da concessão de novo prazo; e resolvendo a concessão, a comunicação aos comissários, para prosseguirem nas medições.

Art. 58° - Findos os prazos que tiverem sido concedidos, os Presidentes farão declarar pelos comissários aos possuidores de terras que tiverem deixado de cumprir a obrigação de as fazer medir, que eles tem caido em comisso e perdido o direito a serem preenchidos das terras concedidas por seus títulos, ou por favor da Lei n° 601, de 18-09-1.850 e desta circunstância farão as convenientes participações ao delegado do diretor geral das terras públicas, e este ao referido diretor, afim de dar as providências para a medição das terras devolutas que ficarem existindo em virtude dos ditos comissos.

CAPÍTULO IV

Da medição das terras que se acharem no domínio particular por qualquer

título legítimo. Art. 59° - As posses originariamente adquiridas por ocupação, que não

estão sujeitas a legitimação por se acharem atualmente no domínio particular por título legítimo, podem ser contudo legitimadas se os proprietários pretenderem obter título de sua possessão, passado pela repartição geral das terras públicas.

Art. 60° - Os possuidores que tiverem nas circunstâncias do art. antecedente requererão aos Juízes municipais medição das terras que se acharem no seu domínio por título legítimo; e estes a vista do respectivo título a determinação citados confrontantes. No processo de tais medições guardar-se-ão as Leis e Regulamentos existentes, e conformidade com as suas disposições se darão todos os recursos para as autoridades judiciárias existentes (2).

Art. 61° - Obtida a sentença de medição, e passada em julgada, os proprietários poderão solicitar com ela dos Presidentes da Província o título de suas possessões; e estes o mandarão passar pela maneira declarada no art. 51.

Art. 62° - Os possuidores de sesmarias que, posto não fossem medidas não estão sujeitas a revalidação por não se acharem já no domínio concessionários, mas sim no de outrem com título legítimo, poderão igualmente obter novos títulos de sua propriedade, feita a medição pelos Juizes Municipais nos termos dos artigos antecedentes.

Art. 63° - Os Juízes de direito, nas correções que fizerem indagarão se os juízes municipais são ativos e diligentes em proceder as medições de que trata este capítulo, e que lhes forem requeridas; e achando-os em negligência, lhes poderão impor a multa de 100$000 e 200$000. Esta multa, bem como a dos artigos antecedentes, serão cobradas executivamente como dívidas da fazenda pública, e para esse fim as autoridades que as impuserem farão as necessárias participações aos inspetores das tesourarias.

CAPÍTULO V

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Da venda das terras públicas. Art. 64° - A medida que se for verificando a medição e demarcação dos

territórios que devem ser divididas as terras devolutas, os delegados do diretor geral das terras públicas remeterão ao dito diretor os mapas de medição e demarcação de cada um dos ditos territórios, acompanhados dos respectivos memoriais, e de informação e todas as circunstâncias favoráveis ou desfavoráveis ao território medido, e do valor de cada braça quadrada, com atenção aos preços fixados no § 2°, do art. 14 da Lei 601, de 18-09-1.850.

Art. 65° - O diretor geral, de posse dos mapas, memoriais e informações, proporá ao Governo Imperial a venda das terras que não forem reservadas para alguns dos fins declarados no art. 12 da Lei n° 601, de 18-09-1.850, tendo atenção a demanda que houver delas em cada uma das províncias e indicando o preço mínimo da braça quadrada que deva ser fixado na conformidade do disposto no § 2°, do art. 14 da citada Lei.

Art. 66° - Ao Governo Imperial compete deliberar, como julgar conveniente, se as terras medidas e demarcadas devem ser vendidas; quando o devem ser; e se a venda se ha de fazer em hasta pública, ou fora dela; bem como o preço mínimo pelo qual devão ser vendidas.

Art. 67° - Resolvido pelo Governo Imperial que a venda se faça em hasta pública, e estabelecido o preço mínimo, prescreverá o mesmo Governo o lugar, em que a hasta pública se ha de verificar; as autoridades perante quem ha de ser feita, e as normalidades que devem ser guardadas; contanto que se observe o disposto no § 2°, do art. 14 da Lei n° 601, de 18 de setembro de 1850.

Art. 68° - Terminada a hasta pública, os lotes que andarem nela e não forem vendidos, os serão fora dela, quando apareçam pretendentes. As ofertas para esse fim serão dirigidas ao Tribunal do tesouro nacional na província do Rio de Janeiro, e aos inspetores das tesourarias nas outras províncias do império.

Art. 69° - O Tribunal do tesouro nacional, recebidas as ofertas convocará o diretor geral das terras públicas, e com a sua assistência fará a venda pelo preço que se ajustar, não sendo menor do que o mínimo fixado para cada braça quadrada, segundo a qualidade e situação.

Art. 70° - Se as ofertas aos inspetores das tesourarias nas outras províncias do Império, estes a submeterão aos respectivos presidentes para declararem se aprovão ou não a venda; e no caso afirmativo convocarão o delegado do diretor geral das terras públicas, e com a sua assistência ultimarão o ajuste, verificando-se a venda de cada um dos lotes nos termos do art. antecedente.

Art. 71° - Quando o Governo Imperial julgue conveniente fazer vender fora da hasta pública algum, ou alguns dos territórios medidos, a venda se verificará sempre perante o tesouro nacional nos termos do artigo 69.

CAPÍTULO VI

Das terras reservadas: Art. 72° - Serão reservadas terras devolutas para colonização e aldeamento

de indígenas nos distritos onde existirem hordas selvagens. Art. 73° - Os inspetores e agrimensores, tendo notícia da existência de tais

hordas nas terras devolutas que tiverem de medir, procurarão instruir-se engenio e indole, número provável de almas que elas contem, e da facilidade ou dificuldade que houver para o seu aldeamento, e de tudo informarão do diretor geral das terras públicas por intermédio dos delegados, indicando o lugar mais azado para o estabelecimento do aldeamento, e dos meios de o obter; bem como a extensão de terra para isso necessário.

Art. 74° - A vista de tais informações, o diretor geral proporá ao Governo Imperial a reserva das terras para o aldeamento, e todas as providencias para que este as obtenha.

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Art. 75° - As terras reservadas para colonização de indígenas, e por elas distribuídas, são destinadas ao seu usofruto; e não poderão ser alienadas enquanto o Governo Imperial por ato especial não lhes conceder o pleno gozo delas, por assim o permitir o seu estado de civilização.

Art. 76° - Os mesmos inspetores e agrimensores darão notícia pelo mesmo intermédio dos lugares apropriados para a fundação de povoações, abertura de estradas, e quaisquer outras servidões, bem como para assento de estabelecimentos públicos; e o diretor geral das terras públicas proporá ao Governo Geral Imperial as reservas que julgar convenientes.

Art. 77° - As terras reservadas para fundação das povoações serão divididas, conforme o governo julgar conveniente, em lotes urbanos e rurais ou somente nos primeiros: estes não serão maiores de dez (10) braças de frente e 50 de fundo; os rurais poderão ter maior extensão, segundo as circunstâncias o exigirem, não excedendo porém cada lote de 400 braças de frente sobre outras tantas de fundo. Depois de reservados os lotes que forem necessários para aquartelamentos, fortificações, cemitérios (fóra do recinto das povoações) e quaisquer outros estabelecimentos e servidões públicas, será o restante distribuídos pelos povoadores, a título de aforamento perpétuo, devendo o fôro ser fixado sob proposta do diretor geral das terras públicas, e sendo sempre o laudemio em caso de venda a quarentena (1).

Art. 78° - Os lotes, em que devem ser divididas as terras destinadas a fundação de povoações serão medidos com frente para as ruas e praças, traçadas com antecedência, dando o diretor geral das terras públicas as providências necessárias para a regularidade e formosura das povoações.

Art. 79° - O Fôro estabelecido para as terras assim reservadas e o laudenio proveniente das vendas delas serão aplicados ao calçamento das ruas e seu aformoseamento, a construção de chafarizes e de outras obras de utilidade das povoações, incluindo a abertura e conservação de estradas dentro do distrito que lhes for marcado. Serão cobrados, administrados e aplicados pela forma que prescrever o governo quando mandar fundar a povoação, e enquanto esta não for elevada a categoria de vila. Neste caso a municipalidade proverá sobre a cobrança e administração do referido fôro, não podendo dar-lhe outra aplicação que não seja a acima mencionada.

Art. 80° - A requisição para a reserva de terras públicas, destinadas a construção naval será feita pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Marinha, depois de obtidos os esclarecimentos e informações necessários, seja da repartição geral das terras públicas, seja de empregados da marinha ou de particulares.

Art. 81° - As terras reservadas para o dito fim ficarão sob a administração da marinha, por cuja repartição se nomearão os guardas que devem vigiar na conservação de suas matas e denunciar aos juízes conservadores do art. 87°, aqueles que, sem legítima autorização, cortarem madeiras, afim de serem punidos com as penas do artigo 2° da Lei n° 601, de 18-09-1.850.

CAPÍTULO VII

Das terras devolutas situadas nos limites do Império com paízes

estrangeiros. Art. 82° - Dentro da zona de dez (10) léguas contígua nos limites do império

com paízes estrangeiros, e em terras devolutas que o Governo pretender povoar, estabelecer-se-ão colônias militares.

Art. 83° - Para o estabelecimento de tais colonias não é necessário que preceda a medição; porém esta deverá ser feita, logo que for estabelecida a colonia, por inspetores e agrimensores especiais, a quem serão dadas as instruções particulares para regular a extensão que devem ter os territórios que forem medidos dentro da zona de des (10) léguas, bem como a extensão dos quadrados ou lotes, em que hão de ser subdivididos os territórios medidos.

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Art. 84° - Deliberado o estabelecimento das colonias militares, o Governo marcará o número de lotes que hão de ser distribuidos gratuitamente, aos colonos, e aos outros povoadores nacionais e estrangeiros, as condições dessa distribuição e as autoridades que hão de conferir os títulos.

Art. 85° - Os empresários que pretenderem fazer povoar quaisquer terras devolutas compreendidas na zona de 10 léguas nos limites do Império com paízes estrangeiros, deverão dirigir suas propostas ao Governo Imperial por intermédio do diretor geral das terras públicas, sob as bases:

1° - da concessão aos ditos emprezários de 10 léguas em quadro ou o seu equivalente para cada colonia de mil e seiscentos almas, sendo as terras de cultura, e 400 sendo campos próprio para criação de animais;

2° - de um subsídio para ajuda da empreza, que será regulado segundo as dificuldades que ela oferecer.

Art. 86° - As terras assim concedidas deverão ser medidas a custa dos emprezários, pelos inspetores e agrimensores, na forma que for designada no ato da concessão.

CAPÍTULO VIII

Da conservação das terras devolutas alheias. Art. 87° - Os Juízes Municipais são os conservadores das terras devolutas.

Os Delegados e Subdelegados exercerão as funções de conservadores em seus distritos, e, como tais, deverão proceder ex-ofício contra os que cometerem delitos de que trata os arts. seguintes, e remeter depois de preparados os respectivos autos ao Juíz Municipal do termo para o julgamento final.

Art. 88° - Os Juízes Municipais logo que receberem os autos mencionados no artigo antecedente, ou chegar ao seu conhecimento por qualquer meio, que alguem se tem apossado de terras devolutas, procederão imediatamente ex-ofício contra os delinquentes, processando-os pela forma por que se processam os que violam as posturas municipais, e impondo-lhes as penas do art. 2° da Lei n° 601, de 18-09-1.850.

Art. 89° - O mesmo procedimento terão a requerimento dos proprietários, contra os que se apossarem de suas terras, e nelas derrubaram matos ou lançarem fogo; contanto que os indivíduos que praticarem tais atos não sejam hereos-confinantes. Neste caso, somente ao hereo prejudicado a ação civil.

Art. 90° - Os juízes de direito, nas correições que fizerem investigarão se os juízes municipais põem todo o cuidado em processar os que cometerem tais delitos, e os delegados e subdelegados em cumprir as obrigações que lhes impõe o art. 87° - e farão efetiva a sua responsabilidade, impondo-lhes, no caso de simples negligência, multa de 50$000 e 200$000, e, no caso de maior culpa, prisão até três meses.

CAPÍTULO IX

Do registro dos terras possuídas. Art. 91° - Todos os possuidores de terras, qualquer que seja o título de sua

propriedade ou possessão, são obrigados a fazer registrar as terras que possuirem, dentro dos prazos marcados pelo presente Regulamento, os quais se começarão a contar na Corte e Província do Rio de Janeiro, da data fixada pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império, e nas Províncias, da fixada pelo respectivo Presidente.

Art. 92° - Os prazos serão 1°, 2° e 3°, o 1° de dois anos; o 2° de um ano; e o 3° de seis (6) meses.

Art. 93° - As declarações para o registro serão feitas pelos possuidores, que as escreverão, ou farão escrever por outrem em dois exemplares iguais, assinando-os ambos, ou fazendo-os assinar pelo, indivíduo que os houver escrito, se os possuidores não souberem escrever.

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Art. 94° - As declarações para o registro das terras possuídas por menores, índios ou quaisquer corporações, serão feitas por seus pais, tutores, curadores, diretores, ou encarregados da administração de seus bens e terras. As declarações de que tratam este artigo e o antecedente não conferem algum direito aos possuidores.

Art. 95° - Os que não fizerem as declarações por escrito nos prazos estabelecidos serão multados pelos encarregados do registro na respectiva freguesia; findo o 1° prazo, em 25$000; findo o 2° em 50$000; e findo o 3° em 100$000.

Art. 96° - As multas serão comunicadas aos inspetores da tesouraria e cobradas executivamente, como dívidas da Fazenda Nacional.

Art. 97° - Os Vigários de cada uma das freguesias do Império são os encarregados de receber as declarações para o registro das terras, e os incumbidos de proceder a esse registro dentro de suas freguesias, fazendo-o por si ou por escreventes, que poderão nomear e ter sob a sua responsabilidade.

Art. 98° - Os Vigários, logo que for nomeada a data do primeiro prazo de que trata o art. 91°, instruirão a seus fregueses da obrigação em que estão de fazerem registrar as terras que possuírem, declarando-lhes o prazo em que devem fazer, as penas em que incorrem, e dando-lhes todas as explicações que julgarem necessárias para o bom cumprimento da referida obrigação.

Art. 99° - Estas obrigações serão dadas nas missas conventuais, publicadas por todos os meios, que parecerem necessários para o conhecimento dos respectivos freguezes.

Art. 100° - As declarações das terras possuidas devem conter o nome do possuidor, a designação da freguesia em que estão situadas, o nome particular da situação, se o tiver; sua extensão, se for conhecida, e seus limites.

Art. 101° - As pessoas obrigadas no registro apresentarão ao respectivo Vigário os dois exemplares de que trata o art. 93°; e sendo conferidos por clã, achando-os iguais e em regra, fará em ambos uma nota que designe o dia de sua apresentação; e assinadas as notas de ambos os exemplares, entregará um deles ao apresentante para lhe servir de prova de haver cumprido a obrigação do registro, guardando o outro para fazer esse registro.

Art. 102° - Se os exemplares não contiverem as declarações necessárias os vigários poderão fazer aos apresentantes as observações, no caso de que lhes pareção não satisfazer elas ao disposto no art. 100°, ou de conterem erros notórios; se, porém, as partes insistirem no registro de suas declarações pelo modo por que se acharem feitas, os vigários não poderão recusa-las.

Art. 103° - Os Vigários terão livros de registro por eles abertos, numerados, rubricados e encerrados. Nestes livros lançarão por si ou por seus escreventes textualmente, declarações que lhes forem apresentadas, e por esse registro cobrarão do declarante o emolumento correspondente ao número de letras que contiver um exemplar, a razão de dois reais por letra, e do que receberem farão notar em ambos os exemplares.

Art. 104° - Os exemplares que ficarem em poder dos vigários serão por eles emanados, e numerados pela ordem que forem recebidos, notando em cada fôlha de livro em que foi registrada.

Art. 105° - Os Vigários que extraviarem algumas das declarações, não fizerem o registro cometerem erros que alterem ou tornem ininteligíveis os nomes, designação, extensão e limites de que trata o art. 100° deste Regulamento, serão obrigados a restituir os emolumentos que tiverem recebido pelos documentos que se extraviarem de seu poder, ou forem mal registrados e além disso sofrerão a multa de 50$000 a 200$000, sendo tudo cobrado executivamente.

Art. 106° - Os possuidores de fôros que” fizerem declarações falsas, sofrerão a multa de 50$000 a 200$000; e conforme a gravidade da falta poderá também lhes ser imposta a pena de um a três meses de prisão.

Art. 107° - Findos os prazos estabelecidos para o registro, os exemplares emissados se conservarão no arquivo das paróquias, e os livros de registro serão

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remetidos ao delegado do diretor geral das terras públicas da província, para em vista deles formar o registro geral das terras possuídas na província, do qual se enviará cópia ao supradito diretor para a organização do registro geral das terras possuidas no Império.

Art. 109° - Todas as pessoas que arrancarem marcos e estacas divisórias, ou destruirem os sinais, números e declarações que se gravarem nos ditos marcos ou estacas e em árvores, pedras nativas, etc., serão punidas com multa de 200$000, além das penas a que estiverem sujeitas pelas leis em vigor.

Palácio do Rio de Janeiro, em 30 de Janeiro de 1.854. a) Luiz Pedreira do Couto Ferraz.