a institucionalizacao da delacao no direito positivo brasile

Upload: anahuangela

Post on 03-Apr-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/28/2019 A Institucionalizacao Da Delacao No Direito Positivo Brasile

    1/4

    1

    A INSTITUCIONALIZAO DA DELAONO DIREITO POSITIVO BRASILEIRO

    RMULO DEANDRADE MOREI RA

    Promotor de Justia, Coordenador do Centro de ApoioOperacional das Promotorias Criminais e Professor deDireito Processual Penal da UNIFACS

    Ainda que agrade a traio, ao traidor tem-se averso. (Aunquela traicin place, al traidor se aborrece) - CERVANTES ( 1547-1616), Dom Quixote, Parte Primeira, Cap. XXXIX.

    No ano de 1990, mais precisamente no dia 26 de julho, publicava-se no Dirio Oficial da Unio, o texto completo de uma nova lei, vinda como uma resposta aos anseiospopulares de diminuio da violncia urbana que, j naquela poca, beirava a insuportabilidade (talcomo hoje, nada obstante os cinco anos de sua vigncia).

    Sancionada pelo Presidente da Repblica, Sr. Fernando Collor (detriste memria), tentava em seus 13 artigos (dois destes vetados) conter a presso popular sobre osgovernantes, atravs da exasperao das penas de determinados crimes, impossibilitando-se, tambm,a concesso de benefcios aos sentenciados, tais como, a anistia, a graa e o indulto, alm de proibiro gozo de direitos subjetivos individuais (mesmo estando presentes os requisitos especficos para asua fruio), como a fiana e a liberdade provisria, tudo a atender ao contagiante clima psicolgicode pavor criado pelos meios de comunicao social e aos interesses imediatos de extratos sociaisprivilegiados, como acentuou Alberto Silva Franco, in Cdigo Penal e sua InterpretaoJurisprudencial, 5a. edio, 1995, p. 2074).

    Como no poderia deixar de ser, inmeras vozes, quase emunssono, levantaram-se contra a sua edio, taxando-a de inoportuna, atcnica e inconstitucional.

    Estamos a falar da Lei n. 8.072/90 que dispe sobre os crimeshediondos, nos termos do art. 5o., XLIII, da Constituio Federal, e determina outras providncias,cujos defeitos no iremos aqui abordar, pois no este o nosso escopo no momento.

    Trataremos, to-somente, de um instituto por ela criado: a delaocomo causa obrigatria de diminuio da pena em favor de autor, co-autor ou partcipe nos crimes deextorso mediante sequestro e quadrilha ou bando (este ltimo quando a societas sceleris tiver sido

    formada com o intuito de praticar os crimes considerados hediondos e outros a eles assemelhados),fato que, alis, no deixa de ser outro gravssimo defeito, como explicitaremos adiante.

    Mas, no s.

    Ainda mais recentemente, em 03 de maio deste ano, o PresidenteFernando Henrique Cardoso (o socilogo de esquerda que no gosta de grevista), sancionou a Lei n.9.034/95, dispondo sobre a utilizao de meios operacionais para a preveno e represso de aespraticadas por organizaes criminosas.

    Tal como o anterior, este instrumento normativo, criado paradefinir e regular meios de prova e procedimentos investigatrios que versarem sobre crime resultantede aes de quadrilha ou bando , tambm considera causa compulsria de diminuio da pena a

    delao de um dos participantes na organizao criminosa.

    Alis, na Lei de Crimes Hediondos, o legislador foi mais explcito eutilizou o verbo denunciarcomo sinnimo da delao, enquanto que nesta segunda norma, preferiu aexpresso colaborao espontnea, como que para escamotear a vergonhosa presena da traiopremiada em um diploma legal.

  • 7/28/2019 A Institucionalizacao Da Delacao No Direito Positivo Brasile

    2/4

    2

    Por fim, em 19 de julho deste ano, foi sancionada a Lei n. 9080/95,prevendo, igualmente, a delao como prmio ao co-autor ou partcipe de crime cometido contra osistema financeiro nacional ou contra a ordem tributria, econmica e relaes de consumo, quandocometidos em quadrilha ou co-autoria. Agora fala- se em confisso espontnea, o que resulta omesmo.

    Apenas para ilustrar, diga-se que alguns doutrinadores costumamdistinguir a delao como aberta ou fechada, aduzindo que naquela primeira o delator aparece e seidentifica, inclusive favorecendo-se de alguma forma com o seu gesto, seja na reduo da pena, sejano recebimento de recompensa pecuniria; nesta, ao contrrio, o delator se assombra no manto doanonimato, propiciando auxlio desinteressado e sem qualquer perigo , como assevera Paulo LcioNogueira ( Crimes Hediondos, LEUD, 4a. ed., p. 126).

    Afora questes de natureza prtica, como, por exemplo, ainutilidade, no Brasil, desse instituto, por conta, principalmente, do fato de que o nosso Estado notem condies de garantir a integridade fsica do delator criminis, nem a de sua famlia, o queserviria como elemento desencorajador (note-se que, conforme informou o ilustrado Damsio E. deJesus, quando do III Encontro Estadual do Ministrio Pblico do Estado da Bahia, em Comandatuba, noperodo de 31 de agosto de 1995 a 03 de setembro do mesmo ano, at aquela data, apenas um caso

    de delao premiada tinha sido por ele visto, quando de um julgamento do Tribunal de Alada Criminalde So Paulo), aspectos outros, estes de natureza tico-moral, informam a profunda e irremedivelinfelicidade cometida mais uma vez pelo legislador brasileiro, muito demaggico e pouco cuidadosoquando se trata dos aspectos jurdicos de seus respectivos projetos de lei, como si acontecer.

    Para ns, tremendamente perigoso que o Direito Positivo de umpas permita, e mais do que isso, incentive os indivduos que nele vivem prtica da traio comomeio de obter-se um prmio ou um favor jurdico.

    Se considerarmos que a norma jurdica de um Estado de Direito oltimo refgio do seu povo, no sentido de que as proposies enunciativas nela contidas representamum parmetro de organizao ou conduta das pessoas (a depender de qual norma nos refiramos, se,respectivamente, de segundo ou primeiro graus, no dizer de Bobbio), definindo os limites de suasatuaes, inaceitvel que este mesmo regramento jurdico preveja a delao premiada, em flagranteincitamento transgresso de preceitos morais intransigveis que devem estar, em ltima anlise,embutidos nas regras legais exsurgidas do processo legislativo.

    Que no se corra o perigo, j advertido e vislumbrado pelo poetaDante Alighieri, lembrado por Miguel Reale, quando filosofa que o Direito uma proporo real epessoal, de homem para homem, que, conservada, conserva a sociedade; corrompida, corrompe-a.( in Lies Preliminares de Direito, Saraiva, 19a. ed. 1991, p. 60).

    Diante dessa sombria constatao, como se pode exigir dogovernado um comportamento cotidiano decente, se a prpria lei estabelecida pelos governantes,permite e galardoa um procedimento indecoroso? Como fica o homem de pouca ou nenhuma cultura,

    ou mesmo aquele desprovido de maiores princpios, diante dessa permissividade imoral ditada pelaprpria lei, esta mesma lei que, objetiva e obrigatoriamente, tem de ser respeitada e cumprida, sobpena de sano? Estamos ou no estamos diante de um paradoxo?

    certo que em outras legislaes, inclusive de pasesdesenvolvidos economicamente (embora possuidores de uma sociedade em desencanto, como, porexemplo, a italiana), a figura da delatio j existe h algum tempo (l, diga-se de passagem,assegura-se inquestionavelmente a vida do denunciante), como ocorre nos Estados Unidos (bargain) ena Itlia (pattegiamento), entre outros pases. So exemplos, contudo, que no deveriam serseguidos, pois desprovidos de qualquer carter moral ou tico, como j acentuamos.

    To-somente para se argumentar, pode-se dizer que o bem jurdicovisado pela delao (a segurana pblica), justificaria a sua utilizao, ou, em outras palavras, o fim

    legitimaria o meio. Ocorre que tal princpio de todo amoralista, alis, prprio do sistema polticodefendido pelo escritor e estadista florentino Niccol Machiavelli (1469-1527), sistema este dito deum realismo satnico, na definio de Frederico II em seu Antimaquiavel, tornando-se sinnimo,inclusive, de procedimento astucioso, velhaco, traioeiro, etc., etc...

  • 7/28/2019 A Institucionalizacao Da Delacao No Direito Positivo Brasile

    3/4

    3O prprio Rui Barbosa j afirmava no se dever combater um

    exagero (no caso a violncia desenfreada) com um absurdo (a delao premiada).

    Entendemos que o aparelho policial do Estado deve se revestir detoda uma estrutura e autonomia, a fim de poder realizar seu trabalho a contento, sem necessitar deexpedientes escusos na elucidao dos delitos. O aparato policial tem a obrigao de, por si prprio,valer-se de meios legtimos para a consecuo satisfatria de seus fins, no sendo necessrio,

    portanto, que uma lei ordinria use do prmio ao delator (crownwitness), como expediente facilitadorda averiguao policial e da efetividade da punio.

    Ademais, no prprio Cdigo Penal j existe a figura da atenuantegenrica do art. 65, III, b, onde a pena ser sempre atenuada quando o agente tiver procurado, porsua espontnea vontade e com eficincia, logo aps o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe asconsequncias, ou ter, antes do julgamento, reparado o dano, que poderia muito apropriadamentecompensar (por assim dizer) uma atitude do criminoso no auxlio autoridade investigante oujudiciria.

    Alm da atenuante referida, h o instituto do arrependimentoeficaz que, igualmente, beneficia o agente quando este impede, voluntariamente, que o resultado daexecuo do delito se produza, fazendo-o responder, apenas, pelos atos j praticados (art. 15).

    Pode-se, ainda, referir-se ao preceito do art. 16, arrependimentoposterior, bem verdade queeste limitado queles crimes cometidos sem violncia ou grave ameaa pessoa, mas, da mesma forma, compensador de uma atitude favorvel por parte do delinquente,reduzindo-lhe a pena.

    V-se, destarte, que o ordenamento jurdico existente econsubstanciado no Cdigo Penal j permitia beneficiar o ru em determinadas circunstncias, quandodemonstrasse menor endurecimento no querer criminoso, certa sensibilidade moral, um sentimentode humanidade e de justia que o levam, passado o mpeto do crime, a procurar det-lo em seuprocesso agressivo ao bem jurdico, impedindo-lhe as consequncias, como j acentuou o mestreAnbal Bruno (Direito Penal, 4a. ed. t. III, p. 140, 1984). No necessitava, portanto, o legislador, emlei extravagante, vir a prever a delao premiada, como causa de diminuio da pena. Tambm porisso foi inoportuno.

    A traio demonstra fraqueza de carter, como denota fraqueza olegislador que dela abre mo para proteger seus cidados. A lei, como j foi dito, deve sempre esempre indicar condutas srias, moralmente relevantes e aceitveis, jamais ser arcabouo de estmuloa perfdias, deslealdades, aleivosias, ainda que para calar a multido temerosa e indefesa (alis, porculpa do prprio Estado) ou setores economicamente privilegiados da sociedade (no caso da represso extorso mediante sequestro).

    Em nome da segurana pblica, falida devido inoperncia socialdo Poder e no por falta de leis repressivas, edita-se um sem nmero de novos comandos legislativossem o necessrio cuidado com o que se vai prescrever.

    Incita-se, ento, traio, este mal que j matou os conjuradosdelatados pelo crpula Silvrio dos Reis; que levou Jesus cruz por conta da fraqueza de Judas e deunovo alento aos invasores holandeses graas ajuda infame de Calabar.

    Esses traidores histricos, e tantos outros poderiam ser citados,so smbolos do que h de pior na espcie humana; sero sempre lembrados como figurasdesprezveis. Advirta-se, que no estamos a fazer comparaes, pois, sequer so, neste caso,cabveis. Apenas tencionamos mostrar a nossa indignao com a utilizao da ordem jurdica comoinstrumento incentivador da traio, ainda que se traia um sequestrador, um latrocida ou umestuprador.

    No podemos nos valer de meios esconsos, em nome de quem quer

    que seja ou de qualquer bem, sob pena, inclusive, de sucumbirmos promiscuidade da ordem jurdicacorrompida, pelo que procuramos, sucintamente, neste trabalho, condenar a delatio premiadaintroduzida em nosso Direito Positivo.

  • 7/28/2019 A Institucionalizacao Da Delacao No Direito Positivo Brasile

    4/4

    4Em verdade te digo que hoje, nesta noite, antes

    que duas vezes cante o galo, tu me negars trs vezes. ( Marcos, 14,30 - Palavras de Jesus aPedro).