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1 A Inovação com Software Livre a Partir da Colaboração Online: O Componente Hegemônico do Discurso de Desenvolvedores da Comunidade PUG-PE i Autoria: Nelson da Cruz Monteiro Fernandes, Osiris Luis da Cunha Fernandes, Fernando Gomes de Paiva Júnior Resumo Os avanços das tecnologias de computação propiciam a inovação centrada no utilizador de artefatos advindos da cultura cibernética. Esse advento do capitalismo provoca a emergência de abordagens que contemplam a produção coletiva e imaterial vigente em comunidades de softwares de código aberto. Numa perspectiva pós-estruturalista aplicada à inovação, analisamos 6 entrevistas, 2 vídeos e uma lista de discussão on-line para identificarmos a construção do discurso hegemônico a partir das lógicas de equivalência, diferença e fantasia. Os discursos dos desenvolvedores simbolizam uma presença ainda por vir, com as demandas particulares diluídas numa cadeia equivalencial que abarcar o maior número de reivindicações. Palavras chaves: Inovação com Software Livre; Colaboração Online; Comunidade PUG-PE; Teoria do Discurso; Análise do Discurso.

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A Inovação com Software Livre a Partir da Colaboração Online: O Componente Hegemônico do Discurso de Desenvolvedores da Comunidade PUG-PEi

Autoria: Nelson da Cruz Monteiro Fernandes, Osiris Luis da Cunha Fernandes,

Fernando Gomes de Paiva Júnior

Resumo

Os avanços das tecnologias de computação propiciam a inovação centrada no utilizador de artefatos advindos da cultura cibernética. Esse advento do capitalismo provoca a emergência de abordagens que contemplam a produção coletiva e imaterial vigente em comunidades de softwares de código aberto. Numa perspectiva pós-estruturalista aplicada à inovação, analisamos 6 entrevistas, 2 vídeos e uma lista de discussão on-line para identificarmos a construção do discurso hegemônico a partir das lógicas de equivalência, diferença e fantasia. Os discursos dos desenvolvedores simbolizam uma presença ainda por vir, com as demandas particulares diluídas numa cadeia equivalencial que abarcar o maior número de reivindicações. Palavras chaves: Inovação com Software Livre; Colaboração Online; Comunidade PUG-PE; Teoria do Discurso; Análise do Discurso.

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1 Introdução O cenário atual é marcado por transformações culturais que se consolidaram a partir

da segunda metade do século XX, vinculadas à hegemonia do chamado capitalismo cognitivo. Nesse formato recente do capitalismo, são eleitas as novas tecnologias de informação e comunicação (TIC) como ativos simbólicos estratégicos do novo sistema de produção social (MUÑOZ, 2010). Seguindo essa linha de raciocínio, McCahill (2002) e Kumar (2006) entendem que o capitalismo cognitivo representa mais um esforço de compreensão de um contexto de mudanças estruturais constitutivas do mundo contemporâneo.

Nesse sentido, faz-se necessário o desenvolvimento de modelos que envolvam a interatividade permanente entre numerosos atores com diferentes habilidades, desse modo podem aprofundar as séries sequenciais de ida e volta entre a investigação e o desenvolvimento com o intuito de incorporar o utilizador no processo de inovação.

Na prática, a questão reside em construir um discurso que efetive métodos de concepção e desenvolvimento e que permitam a incorporação da perspectiva do usuário. Essa ótica permite dar conta da dinâmica de gostos, preferências e demandas de produtos em função do fluxo contínuo entre atividades de produtor e consumidor. Esse cenário nos leva a defender a hipótese de que as comunidades de consumo e desenvolvimento centradas no usuário têm sucesso quando tal usuário é contemplado com algum incentivo para inovar e revelar, voluntariamente, suas ideias. Inclusive, o conjunto delas pode vir a se tornar posteriormente competitivo no mercado.

Aqui, podemos nos referir à criação cooperativa de bens de informação por centenas ou milhares de autores que se comunicam por intermédio da Internet. Logo, existem instâncias desse fenômeno que vêm ocorrendo nos últimos dez anos, como o movimento de software livre , o qual se tornou um fenômeno global e logrou produzir um sistema operacional livre, completo e multifuncional, o GNU/Linux (SILVEIRA et. al., 2007; BENKLER, 2007). Trata-se de um movimento construído com base no princípio do compartilhamento do conhecimento e na solidariedade prática pela inteligência coletiva conectada em rede.

A técnica ao se abrir à multiplicidade torna possível a apropriação de tecnologia. Essa perspectiva põe em evidência a necessidade de repensarmos a relação dos humanos com os artefatos tecnológicos, que como no caso dos softwares livres tendem a gerar um número maior de agenciamentos tecno-humanos. Portanto, as práticas contemporâneas de produção do software livre e as comunidades que se formam por diferentes motivos na Internet representam novos usos de uma tecnologia, fato que já traz em si as condições apropriadas para a inovação (HADDON, 2005).

Nesse sentido, adotando a concepção de discurso proposta por Laclau e Mouffe (2001) nos aproximamos da comunidade PUG-PE de desenvolvimento de software livre, buscando compreender o componente hegemônico presente no discurso de desenvolvedores dessa comunidade por meio das três lógicas de construção discursiva propostas pela teoria do discurso de Laclau e Mouffe (2001): lógica da equivalência, lógica da diferencia e lógica da fantasia.

Sob essa lógica, a necessidade de identificarmos uma nova linguagem que não replique o discurso hegemônico do mercado e que indique as novas práticas sociais que afirmam uma constelação mais eficaz de governança dos processos de inovação emergentes, apresentamos a seguinte pergunta de pesquisa: como ocorre o discurso hegemônico dos desenvolvedores da comunidade PUG-PE, no âmbito do processo de inovação com software livre?

2 O usuário ator da inovação

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O sistema tecnológico relacionado às novas TIC não terá projeção no campo social se não for reconhecido como componente chave do capitalismo cognitivo, que, por sua vez, está atrelado à dinâmica de inovação emergente. No âmbito dos estudos organizacionais, os discursos sobre o novo e a inovação têm sido explanados sob a temática de transformação social da “sociedade do conhecimento”, em que a informação se manifesta como a principal força produtiva no cenário contemporâneo, conforme asseveram Cocco et. al. (2003). Assim, os softwares de código aberto, expressão cunhada por Eric Raymondii, podem ser apresentados como exemplo de implementação do diagrama capitalista cognitivista.

Esse diagrama cognitivo e econômico inverte o diagrama do panóptico de linhagem Foucaultiana, uma vez que não representa simplesmente um aparelho de vigilância e controle, mas também uma máquina para capturar parte do tempo e trabalho vivos e transformar a inteligência geral social em valor de rede (HARDT E NEGRI, 2006),

Contudo, a nova dinâmica econômica requer o entendimento das diferentes correntes teóricas que apontam o conhecimento como variável basilar da inovação. Teóricos como Friedman e Becker destacam a importância da inovação técnica e organizacional para o desenvolvimento capitalista (POSSAS, 2008). Dada a multiplicidade de visões sobre o assunto, Slappendel (1996) sugere a sintetização de três perspectivas de pesquisa: a corrente individualista, a corrente estruturalista e a corrente do processo interativo. A perspectiva individualista tende a eleger as características pessoais, a valorizar o papel dos líderes transformacionais (SOUZA E BASTOS, 2010; GUMUSLUOGLU; ILSEV, 2009). O mote principal da perspectiva estruturalista redunda no determinismo, já que a inovação ocorre em função de características estruturais da organização em intercâmbio de recursos com seu ambiente (TOMAEL et al., 2005).

A perspectiva interacionista pode representar um esforço para reduzir a lacuna entre as visões individualistas e estruturalistas ao inseri-las num mesmo processo, elaborando um modelo que traz a interface entre os fatores individuais e estruturais. Mas também pressupõe a inovação como um processo coletivo e interativo, cujos resultados, são de certa forma imprecisos, advêm do esforço de alinhamento de elementos individuais, organizacionais e contextuais (SLAPPENDEL, 1996; JULIEN, 2010).

Mesmo assim, a perspectiva do processo interativo não parece escapar da unilateralidade da maioria dos estudos de inovação, nem se adequar as particularidades do capitalismo cognitivo. Por encarar o conhecimento como um recurso neutro, continuam a suprimir do processo os aspectos políticos e culturais ao criarem uma fronteira entre criadores e utilizadores, tirando dos últimos a oportunidade de participarem na continuação da inovação. Assim, não contemplam a abertura de fronteiras proporcionadas pelas novas TIC como suporte para a geração de novos processos de inovação e modelos de negócio.

A apropriação crítica do paradigma tradicional de inovação representa um esforço de compreensão do fenômeno emergente da inovação disruptiva, operacionalizada em fluxo e desenvolvida por agentes com aptidão para a bricolagem. Assim, autores como Ortt e Duin (2008) começam a mostrar uma tendência de substituição dos modelos de inovação lineares e endógeno da firma individual para um arcabouço teórico que Moura et. al. (2008) chamam de processo em rede, exógeno, multidirecional e caótico, que permite a participação do usuário das novas TIC.

Nessa perspectiva, o objetivo de nos inserir numa comunidade open source e trazer a perspectiva do usuário/desenvolvedor é atender ao caráter ubíquo e cumulativo da inovação que demanda um esforço prático para ir além das lógicas de tecnólogy push/Market pull de forma a se entender os processos de produção e uso de softwares livres de código aberto. Esses podem auxiliar no processo de geração de ideais, na medida em que vão aumentando a quantidade e qualidade de atores envolvidos e diminuindo ou eliminando os intermediários entre o desenvolvimento e a aplicação/comercialização de novas ideias.

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3 Colaboração online

A colaboração online vem sendo compreendida como um fenômeno com potencial de

mudar vidas e desafiar hierarquias (RHEINGOLD, 1993), a partir das interações em redes (CASTELLS, 2010) que abrem espaços para participação nos processos organizacionais que vão além das fronteiras da organização (LEE; COLE 2003), incluindo usuários e outros “atores externos” (HEMETSBERGER; REINHARDT, 2009). Colaboração online está associada a temas como criação de conhecimento (LEE; COLE, 2003), inovação de produto (JEPPESEN; FREDERIKSEN, 2006) e desenvolvimento de sistemas de atividades (HEMETSBERGER; REINHARDT, 2009).

Lee e Cole (2003), que estudam a colaboração online no desenvolvimento de software livre, propõem um modelo de criação de conhecimento baseado no aprendizado em comunidades. Para eles, o aprendizado ocorre por meio de um processo coletivo de formação das identidades e do aculturamento em comunidades de práticas (BROW; DUGUID, 1991), em que os praticantes podem estar dispersos geograficamente, porque o que os classifica como grupo é a prática, o métier.

O desenvolvimento de software livre acontece num processo de colaboração entre voluntários. Ainda de acordo com Lee e Cole (2003), as contribuições dos diferentes desenvolvedores não são reguladas por um contrato formal de serviço remunerado, mas sim, por normas culturais e legais cujos mecanismos subjacentes ao processo de construção do conhecimento podem ser compreendidos em termos de pelo menos 4 pontos: 1) blocos de construção de conhecimento amplamente compartilhados; 2) incentivos a voluntários com fim de gerarem contribuições para a comunidade de software livre; 3) coordenação sobre condições de incerteza e; 4) orientação para a qualidade nos processos de inovação.

No caso das comunidades de software livre, Lee e Cole (2003) entendem que as normas culturais e legais permitem a emergência da estrutura de códigos paralelos e da estrutura de tarefa em dois níveis (two-tier task structure) que caracterizam os processos de operação e propiciam uma visualização do seu funcionamento. .

A estrutura de códigos paralelos se refere à existência simultânea de duas versões do mesmo software, uma versão estável e uma versão de testes. Todo o trabalho é desenvolvido na versão de testes, até que esta seja considerada satisfatória e segura para inclusão na versão estável. Tal prática permite a experimentação, o erro, a crítica e a correção do erro.

Jeppesen e Frederiksen (2006), também trabalhando com uma noção de comunidades, questionam porque usuários contribuem com inovações em comunidades online mantidas por empresas. Eles evidenciam que certas empresas vêm associando algumas das suas atividades a comunidades de usuários online, a exemplo de gestão de marca, suporte e reclamações. Em estudo recente sobre uma comunidade online de uma empresa de instrumentos musicais controlados por computador, Jeppesen e Frederiksen (2006) propõem que os usuários inovadores desenvolvam a inovação por hobby e não como sua ocupação principal. Segundo eles, existe uma predisposição dos hobbystas no sentido de compartilhar as inovações na comunidade, porque o reconhecimento pelos pares e pela organização constitui a principal motivação de sua participação, semelhante ao que acontece no movimento do software livre.

O argumento central de Hemetsberger e Reinhardt (2009) é que a colaboração online não diz respeito apenas a uma questão de coordenação de tarefas, mas principalmente à superação das tensões resultantes do alinhamento entre as atividades estratégicas (gerais) e a ação individual em grupos dispersos. Para esses autores é consenso entre os pesquisadores que os ingredientes mais importantes da colaboração online no desenvolvimento de software livre são o desenvolvimento paralelo do software, a revisão por pares e o envolvimento do usuário combinados com a abertura no processo.

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A participação e abertura dos usuários são apontadas também como elementos da colaboração online em outras produções envolvendo TICs (JEPPESEN; FREDERIKSEN, 2006; HADDON, 2005). Dessa forma, a investigação sobre colaboração online nos estudos de inovação pode ter, no atual modelo de produção de software livre, sua principal fonte de insights. Seja orientando-se por diferentes noções de comunidades, seja buscando outros conceitos que dêm conta dos tipos de interação nesses processos.

4 A Inovação com Software Livre a Partir da Colaboração Online à luz da Teoria do

Discurso de Laclau e Mouffe Em 1985, Ernesto Laclau e Chantal Mouffe publicaram o livro Hegemonia e

Estratégia Socialista onde desenvolvem um projeto pós-marxista que basicamente mantinha os conceitos de hegemonia e antagonismo social sem o reducionismo de classe e o determinismo econômico do marxismo estrutural (TORFING, 2000, 2005).

Esses autores cunharam a chamada Teoria do Discurso (TD) que traz uma concepção de discurso como uma “totalidade estruturada resultante de prática articulatória” (LACLAU; MOUFFE, 1985, p.105). Nessa lógica discursiva, as articulações representam “Quaisquer práticas estabelecendo uma relação entre os elementos de tal forma que sua identidade é modificada como resultado da prática articulatória” (LACLAU; MOUFFE, 1985, p.105), e articulação hegemônica a "formação de uma liderança política e moral-intelectual que envolve a articulação de uma variedade de elementos ideológicos em um projeto político comum que modifica a identidade das forças políticas por trás dele" (TORFING, 2000, p.12).

A TD introduz também a concepção de um social complexo, totalmente reconceituado em termos discursivos, sendo constituído por uma infinidade de identidades resultantes de articulações. De outra forma, o social é perpassado por antagonismos, caracterizando-se como o reino das diferenças discursivas que vão se homogeneizando com a formação de cadeias equivalenciais vis-à-vis com um exterior puramente negativo.

A TD privilegia o dinamismo que as sociedades e os diferentes grupos sociais apresentam, construindo-se e desconstruindo-se em múltiplos arranjos, produtores de significados instáveis, cambiáveis e, por vezes, hegemônicos (LACLAU E MOUFFE, 1985). Assim, um dos conceitos centrais da TD que é fundamental para o nosso estudo é a Hegemonia, que se define como “[...] uma relação em que um conteúdo particular assume, em certo contexto, a função de encarnar uma plenitude ausente” (LACLAU, 2002, p.122). No campo discursivo, ela representa o objeto de disputa entre os discursos que nele se encontram dispersos. Fixar a significação de um conteúdo em torno de um ponto de fixação, ou nodal, é condição para a hegemonia.

Três lógicas fundamentais da teoria do discurso entram em jogo nessa busca pela plenitude: A lógica da diferença que contribui para a demarcação das fronteiras do discurso, a lógica da equivalência que contribui para a articulação das igualdades entre os agentes ou entre uma série de diferentes "outros" e, a lógica da fantasia (ou fantasmática) fornece os meios para entendermos por que práticas sociais específicas e os sujeitos aderem a determinados regimes. A fantasia serve para garantir que a contingência radical da realidade social permaneça no fundo (STAVRAKAKIS, 1999; GLYNOS, 2008). Atores estão envolvidos na elaboração de equivalência entre as demandas, mas também na articulação de uma fronteira que define os limites de seu projeto. Na prática, a hegemonia é revelada por um consenso aparente ou por categorias sendo tomadas como certas, aceitas ou inquestionáveis. Como as equivalências são fundamentadas nos discursos, o objetivo dos atores hegemônicos é articular a equivalência como totalmente fixa em uma série de projetos hegemônicos.

Vendo por essa lente, a política é a dimensão que dá vida ao social. Logo, a TD tem o potencial de nos auxiliar na exploração do componente hegemônico presente nos discursos

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particulares dos desenvolvedores da comunidade PUG-PE, os quais criam as condições de possibilidade para a inovação com software livre a partir da colaboração online.

5 Procedimentos Metodológicos

Neste estudo buscamos investigar o componente hegemônico presente no discurso dos

desenvolvedores da comunidade PUG-PE para compreendermos como podem ser sujeitos ativos na definição das funcionalidades de softwares, ou seja, nas escolhas técnicas que determinaram a configuração do software. Ao entrarmos nesse campo de discursividade, intencionamos desvelar como o processo de produção tanto amplia o trabalho inovador de atribuir um uso diferente ao software, como pode criar um novo objeto no mercado. Isso faz com que possa existir um alinhamento entre a identidade de usuário e a do inovador.

Em se tratando de desenvolvedores de Software livre, eles se reúnem em comunidades que são espaços reais e/ou virtuais que agregam pessoas interessadas em um ou vários tipos de distrusiii a fim de trocar informações sobre a ferramenta em questão, configurando-se como possível exemplo de sociedade de colaboração ao forjar um discurso que almeja se sobrepuser aos dogmas da sociedade industrial (DIAMANTAS, 2004; FERRARI, 2007).

Assim, para se tentar entender a viabilidade do software livre, questionamos como é possível a construção colaborativa de uma linguagem de programação a ser distribuída gratuitamente. Mas, para os propósitos do estudo é suficiente não associar gratuidade ao software livre (que não se referem somente a software, mas também a música, livros filmes, etc.), mas, como sugere Evangelista (2010), pensá-lo a partir da ausência de restrição à cópia, cujo efeito seria a gratuidade, embora não sendo esta uma regra, uma vez que, esse fenômeno está associado a outros efeitos da distribuição livre de conteúdos digitais no sistema de trocas capitalista.

A comunidade PUG-PE não se constitui a partir de um campo funcional e nem dispõem de instrumentos imediatos de poder. O pertencimento se origina do ingresso voluntário decorrente de uma identificação com os conteúdos simbólicos e compartilhamento de discursos sobre diferentes aspectos da vida social.

Assim, para o entendimento da questão em estudo, adotamos a abordagem da análise do discurso, um método que objetiva não apenas apreender a forma como a mensagem é transmitida, mas também explorar o seu sentido. Para essa perspectiva, as posições assumidas pelos indivíduos são construídas em suas práticas discursivas, da mesma forma que os objetos, as subjetividades, as atitudes e os preconceitos são constituídos pelo discurso. (IÑIGUEZ, 2004).

O corpus de análise foi composto essencialmente por dois (2) vídeos sobre um encontro brasileiro dos desenvolvedores da linguagem de programação Python (Community Overflow [V1] e Construindo comunidades bem sucedidas [V2]) e seis (6) entrevistas realizadas com desenvolvedores de software livre da comunidade PUG-PE (Gileno Alves [E1], Marcelo Caraciolo [E2], Renato Oliveira [E3], Marcos Egito [E4], Daker Fernandes [5] e Henrique Foresti [6]). As entrevistas foram realizadas com base em um roteiro de questões visando o aprofundamento teórico-empírico, tendo os atores participantes do estudo sido intencionalmente selecionados, considerar-se sua expressiva representação no campo discursivo em questão.

A análise dos dados se deu em três momentos: no primeiro, procedemos à organização e preparação dos dados para a análise; no segundo momento realizamos uma leitura exaustiva do material coletado, procurando obter uma percepção geral das informações e refletir sobre seu significado global; no terceiro e último momento, procedemos à interpretação dos resultados obtidos. Durante essas análises, cada parte da coleta foi tratada sob a forma E1,§1R1, por exemplo, em que os números seguintes às letras correspondem à numeração

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atribuída a cada entrevista (E), parágrafo (§) e referência (R) em destaque. No quadro 1, apresentamos o protocolo de análise que utilizamos. Dados provenientes dos vídeos foram apresentados da seguinte forma: V1, 01:00-02:00 em que a letra V corresponde a vídeo seguido do tempo da fala. Quadro 1 – Processo de pesquisa em 5 etapas.

1. IDENTIFICAR PUG PE Desenvolver uma descrição densa do contexto Entrevistas semi-estruturadas Documentos e trabalhos publicados do grupo Transcrição Codificação no NVIVO

2. TRAÇAR AS HISTÓRIAS QUE COMPÕE OS DISCURSOS DO GRUPO Pesquisa nos bancos de dado on-line do Python Brasil e Internacional Acessar revistas de software livre on-line Acessar a lista de discussão on-line Identificar as palestras e vídeos dos integrantes do grupo Entrevistas semi-estruturadas

3. EXPLORAR DOS AGENTES ESTRATÉGIAS NA REITERAÇÃO DO DISCURSO Analisar a Lista de discussão on-line Identificar e destacar as principais lideranças

4. IDENTIFICAR AS ESTRATÉGIAS DE CONSTRUÇÃO DO DISCURSO DO GRUPO Identificar as equivalências, diferenças e fantasias Interpretar esses discursos

5. MONTAR A LÓGICA DE CONSTRUÇÃO DO DISCURSO DA COMUNIDADE Inferência sobre o componente hegemônico nos discursos dos. . desenvolvedores das comunidade PUG-PE

Fonte: Elaborado pelos autores (2013)

As inferências propostas encontram suporte na teoria do discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (2001), fundamentalmente nos conceitos de discurso, hegemonia e nas três lógicas de construção discursiva: lógica de equivalência, lógica de diferença e lógica da fantasia.

Com o intuito de preservarmos o processo analítico e evitarmos vieses interpretativos, a fase de tratamento dos resultados foi perpassada por idas e vindas interpretativas com apoio dialógico do auditor da investigação. Esse processo permitiu consubstanciar a análise dos dados como forma de validação. A reflexividade foi uma forma constante de atenuarmos elementos limitantes que restringem a qualidade das entrevistas e análises de campo. Assim, resgatamos a orientação de Alvesson e Skoldberg (2004) da reflexividade como um critério de confiabilidade que diz respeito ao antes e ao depois do acontecimento e gera transformação no pesquisador. 6 Análise dos Resultados

A análise dos dados se desenvolve com base no estabelecimento de um ponto de fixação discursiva em torno do qual as cadeias articulatórias são desenvolvidas. Essas cadeias se caracterizam pela construção de uma hegemonia do discurso que contempla a inovação centrada nas contribuições do usuário/desenvolvedor de software livre a partir de uma produção coletiva, imaterial e desenvolvida em fluxo vigente em comunidades de desenvolvimento open source. 6.1 A construção do discurso Hegemônico dos Desenvolvedores do PUG-PE

No que concerne ao marco teórico principal deste estudo, a noção de hegemonia é fundamental. Como um conteúdo particular que assume a função de encarnar, uma plenitude

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ausente (LACLAU, 2002), o processo de sua constituição discursiva tem como ponto de partida a cadeia de discursos que enunciam a preservação de um sentido comunitário de um grupo de pessoas que compartilham certos valores. Esses valores os demarcam de outros grupos e de outras propostas do mercado, ao manterem um status de um “grupo de compartilhamento de experiências que teve um início lento e difícil”, como mostra o trecho de um vídeo de Marcel Caraciolo, apresentando o PUG-PE:

“[...] a lista de discussão do PUG-PE ele teve início em 2007 e nessa época fazer encontro era complicado por geralmente o pessoal não ia. Para você ter idéia o primeiro encontro foi no restaurante Bugaloo, mas o pessoal quer é programar e não comer, e ninguém foi, só foi o cara. O ano de 2008 e 2009 foi mais ou menos assim (V2, 3:02.1-3:20.5).

No entanto, o ato de conseguiu sair de uma pequena célula e evoluir até hoje para ser reconhecido como “um dos principais encontros de tecnologia open source de Pernambuco” é o que alguns entrevistados gostam de destacar. No embate de interesses, benefícios e prejuízos que se estabelece nesse processo de construção discursiva, a busca da hegemonia do discurso “da comunidade bem sucedida” se alinha a elementos como o fato de ser um grupo de software livre que “cultiva a diversidade e a inovação”(E3), num contexto em que a competitividade do mercado demanda profissionais capacitados, criativos e autônomos no trabalho como já constatado por Gumusluoglu; Ilsev (2009) e Florida (2011).

Sob essa lógica, são construídas cadeias de equivalências que estabelecem núcleos em torno dos quais elementos discursivos se alinham, interligados pela preocupação com o regozijo com os ganhos esperados com a inserção numa cadeia de inovação organizada em rede de fluxo de informação em que o PUG-PE se colocaria como disseminador da inteligência em Python estabelecendo conexões com diferentes stakeholders.

Esse discurso é decorrente da mescla de argumentos pós-fordistas reivindicadas pela expansão da noção de “nova economia” que ganhou notoriedade com a obra ‘Sociedade da Informação’ de Manuel Castells, que denomina esse novo modelo produtivo hegemônico de “informacionalismo”, além de contribuições de Gorz (2005), Hardt e Negri (2006), os quais trazem formulações a respeito da “imaterialidade” e perda das habituais medidas de valor do trabalho. Esse cenário em que o PUG-PE emerge é enredado com discursos que apelam para novos modelos de gerenciamento da inovação, uma nova abordagem para os serviços e constituição de novas identidades coletivas que vão de encontro às hierarquias rígidas da era industrial (BESSANT; TIDD, 2009). Essas questões se destacam no discurso hegemonizante dos desenvolvedores a partir das lógicas de equivalência, diferença e fantasia. 6.1.1 A Lógica de Equivalências em torno dos discursos dos desenvolvedores do PUG-

PE Como ocorre em qualquer cadeia de equivalência, os momentos de constituição discursiva da comunidade PUG-PE como “projeto open-source de desenvolvimento de software” não se subordina a todas as demandas que compõe esta articulação, mesmo que esta variabilidade de demandas seja condição para sua existência. No que se refere ao Python, alguns elementos articulados nessa cadeia de equivalências podem ser resumidos assim: 1) Linguagem de programação interpretada e, portanto, voltada para o esforço do programador; 2) Fácil de aprender e altamente produtiva e inovadora; 3) Multiparadigma: implementação orientada ao objeto, Funcional e procedural; 4) Multiplataforma, open source e divertido. Essa Equivalência em torno do Python é fundamental para o objetivo de preservar um ambiente inclusivo para todos os

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usuários/programadores e para angariar o apoio dos stakeholders. Assim, a sustentação de uma cadeia de equivalência exitosa requer uma continua

reiteração desses discursos e a emergência dos equivalentes gerais constitui uma forma de repetir a ideia do discurso do PUG-PE como um espaço voltado para projetos inovadores em Python. As diferenças na visão de mundo entre os desenvolvedores se equivalem nos pontos de fixação discursiva como “ambiente colaborativo” e “comunidade”, mantendo as equivalências nas suas demandas, como acontece quando os desenvolvedores reiteram, por exemplo, que os encontros do PUG-PE estão entre os mais importantes eventos de tecnologia de Pernambuco por estimularem a programação, participação e a colaboração ou trazerem uma áurea de espaço compartilhado e inclusivo como mostra o trecho de Marcel Caraciolo (MC).

Outro ponto também é que eu gosto desse ciclo colaborativo e acho importante a troca de informação e uma das motivações para participar dessas comunidades de software livre é a troca de informação. Se eu fiz uma coisa de forma X e outro de forma Y. Se eu jogasse e escondesse a forma X de fazer a coisa não ia descobrir as falhas potenciais ou melhorias que poderia ter. Então a idéia de intercambiar essas informações é uma coisa legal dessas comunidades de software livre, e você não pagará nada por isso, só estará trocando conhecimento (E3, §6R3).

Isso representa a existência de elementos de constituição da identidade dos atores que

se veem num grupo que pode lhes proporcionar boas experiências, aliado ao fato de o PUG-PE, após 2010, expandir-se para várias outras universidades (mais de 10 em Pernambuco) e de chamar atenção de empresas locais que começam a usar essa linguagem de programação nos seus projetos.

Assim, o esforço de posicionamento do PUG-PE como um dos principais encontros de tecnologia de Pernambuco advém do fato de se colocarem como a comunidade de desenvolvedores mais ativa na cidade, competindo para se igualarem ou ultrapassarem o tradicional Java. Muito disso é decorrente da liderança bem sucedida de Marcel, reconhecida pelos demais integrantes, e a eficiência e simplicidade da linguagem que atrai outros interessados, “aumentando a massa crítica” do grupo. O êxito atual do grupo se alinha à narrativa de sucesso da maior parte dos empreendimentos relacionados a TIC, que é de um agente sozinho que acredita na sua ideia e consegue agregar pessoas chave no entorno, pavimentando o caminho para o sucesso. O trecho a seguir mostra a reiteração dessa retórica nesse processo:

[...] a gente começou pequeno lá no Centro de Informática da UFPE. Tudo começou lá, mas a gente foi se evoluindo, evoluindo e hoje temo um portal do site, lista de discussão, blogs, canal de vídeos e está bem organizado agora .... começamos bem lento promovendo pequenos cursos lá por 2009. Em 2010, começamos a ter encontros com novos participantes e quanto mais encontros fazíamos mais gente aparecia... Então a gente já fez muita coisa que justifica o que somos hoje... temos um bom conjunto de empresas que usam essa tecnologia, como a Nokia por exemplo, e particularmente as startups, e chegamos até a fazer uma ferramenta que media o êxito dos candidatos dos candidatos a eleição junto aos seus eleitores ... então faça, faça, faça. Não adianta ficar parado. Eu cheguei lá no Cin, vi o que tinha de fazer e juntamente com alguns amigos começamos a fazer as coisas acontecerem (V1, 07:35 - 15:00).

Então, as metáforas que dominam essa narrativa da história do grupo são a de um

"início difícil", com "várias tentativas fracassadas" até aparecer um "agente caótico" o Marcel Caraciolo, que vem dar um novo rumo aos destinos do grupo que “ganha massa crítica” e visibilidade no cenário de TI local, chamando a atenção de “pesquisadores, empresas,

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entusiastas, desenvolvedores e paraquedistas" com interesse na tecnologia e se esforçam para que o Python avance no estado.

A função dessas narrativas, portanto, se alinha à perspectiva de Hajer (2003) quando afirma que elas se referem às estratégias de simplificação do discurso de modo a enunciar um discurso mais acessível aos outros que fazem parte da cadeia equivalencial. Em outros termos, as pessoas de diversas origens, com diferentes perspectivas sobre questões complexas do grupo acabam construindo uma cadeia de equivalência em torno dos diversos argumentos e significados do PUG-PE. 6.1.2 Lógica da Diferença: comunidade e mercado/desenvolvedor e comunidade

A compreensão das diferenças entre os elementos-momentos que constituem a cadeia discursiva “comunidade” auxilia na melhor percepção das ligações equivalenciais que criam as conexões nessa cadeia de equivalência. Além disso, merece destaque o fato de que a idéia de identidade infere a necessidade da diferença, ou seja, se não houver diferença estaremos tratando do mesmo, pois o PUG-PE constitui a sua identidade a partir da existência de outras identidades distintas como é o caso de comunidades com outras abordagens, como mostra o trecho da entrevista de Marcos Egito (ME):

A galera troca pedaços de código em Python sem complicação. Você vê o caso do PUG, você vai lá e tem uma lista de discussão aberta. É só cadastrar e se você tiver alguma dúvida a respeito do código, você vai ter aquele grupo de pessoas disposto a trabalhar com você sobre aquilo. Não tem nenhum tipo de restrição do tipo, ah você não é sócio, tem de pagar x. Não tem nada disso que já acontece em outros grupos por aí (E4, § 10R2).

No caso do mercado, a diferença se dá a partir de sua lógica estrita de só visar o ganho em cima da tecnologia (a visão utilitarista), esquecendo a dimensão da paixão dos usuários/desenvolvedores pela tecnologia (a dimensão lúdica), O trabalho de Benkler (2001) já é elucidativo nesse sentido quando defende que o processo de desenvolvimento de softwares de código aberto baseado no mecanismo de produção peering não guarda similaridades com o modelo do mercado e das empresas. Se partirmos do entendimento de Iannacci (2005, p 48) de que a “produção transparente, baseada em comunidade, com um modelo de gestão colaborativa foi a maior inovação do Linux”, então a lógica estrita do mercado pode se constituir o corte antagônico que define o “outro”, a diferença que tem uma relação dicotômica com as demandas do discurso da comunidade Python de Pernambuco como pode ser constatado nos recortes a seguir.

Eu vejo como uma ameaça futura para determinado tipo comunidade são as empresas. Mas para o Python eu acho isso difícil de acontecer porque a comunidade em si é formada por muitas pessoas e não tem uma empresa controlando tudo que acontece. Mas nunca se sabe do dia de amanhã, nê? (E2, §3R3) O uso do software livre ou a questão de participar de comunidades, ao contrário da maioria das pessoas pensam, não é só o pinguinsinho, mas eu vou à essência disso. Então hoje eu uso software livre, e passo isso nas aulas que eu dou, sem gerar e alimentar as disparidades que estão ai no mercado (E4, §2R1)

A questão de definir a identidade do PUG como sendo também diferente das outras comunidades era aparente nas outras entrevistas, como pode ser observado no recorte a seguir: “O PUG-PE é uma comunidade de software livre porque a gente defende essa bandeira, se diverte, divulga. O problema é que quando são [outras comunidades] xiitas você não conversa com o outro lado.” (E1, §2R2)

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Sob essa lógica, a condição da diferença é o que permite que a prática articulatória se dê a partir das mesmas diferenças que se unem, de forma precária e contingente, num ponto nodal que possui a característica de expressar um sentido comum a elas. Uma vez mais, é diferença que permite a articulação.

A universalidade dessa lógica da diferença extrapola o campo político para chegar ao campo normativo. Marcel Caraciolo argumenta que o PUG é diferente dos outras comunidades com base em determinados dados como número de encontros mensais, quantidade de membros, quantidade de empresas start-ups que usam Python, número de universidades que estabeleceram parcerias, número de filmagens nos seu canal de vídeos, quantidade de projetos no GitHubiv.

As demandas normativas desse discurso são uma justifica para a existência do PUG-PE como centro mediador da inteligência em Python para empresas, universidades e curiosos. Em vista disso, a proposta tem sido articular tais demandas como estratégia para preservar a comunidade como lócus de inovação com software livre e um exemplo para outras comunidades open-source. Nesse sentido, a "comunidade" demanda também a projeção do PUG como "centro irradiador de inteligência em Python", uma vez que tem o mesmo inimigo que são as empresas ou o Estado e “a sua forma rasteira” de conduzir o uso de software livre e projetos open source.

Esse achado nos esclarece que o conhecimento não pode ser considerado um recurso neutro, uma vez que nesse processo de inovação entram aspectos políticos e sociais que vão emergindo ao serem criadas tensões entre criadores e utilizadores, principalmente que se oferece aos últimos a oportunidade de participarem da continuação de um processo inovador, como defendem (LEE E COLE, 2003). Em meio às análises das entrevistas e diálogos da lista de discussão online, constatamos que as diferenças individuais, por sua vez se tornam mais claras por meio dos posicionamentos e motivações políticas de cada usuário/desenvolvedor, colocando numa segunda ordem o discurso das equivalências das suas demandas de proteção e fortalecimento da comunidade (Cf. Figura 1).

Figura 1 – Lógica da diferença

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Fonte: Elaborado pelos autores, 2013. No discurso comunitário, a proposta política do grupo diz respeito à iniciativa de

identificar o inimigo comum que corresponde a outras linguagens de programação, comunidades que não adotam a abordagem open-source ou que “se vendem”, mas também de cobrir as diferenças que existem entre seus membros. Isso vai depender, em parte, da capacidade de produzir uma cadeia de fantasia. Assim, as coalizões de discursos vão reunir atores com diferentes histórias pessoais em que os elementos das diversas ideias, conceitos e categorias são combinados em um todo mais ou menos coerente ou simplificado (JEFFARES, 2007; HOWARTH, 1995).

No entanto, essas particularidades individuais só podem mantidas juntas a partir da produção de discursos fantasmáticos que são imagens ou frases que são enredos diferentes por causa da falte de significação e, portanto, pode permitir a articulação das diferenças internas e, simultaneamente, mostrar os limites da identidade do grupo e sua dependência da oposição a outros grupos (HOWARTH, 1995). Nesse caso, a colaboração online não é só uma questão de coordenação de tarefas, mas principalmente uma questão de superação das tensões resultantes do alinhamento entre as atividades estratégicas e a ação individual em grupos dispersos (HEMETSBERGER; REINHARDT, 2009). 6.1.3 A Lógica da Fantasia forjando um ambiente colaborativo inclusivo

A lógica da fantasia fornece suporte para os projetos políticos da comunidade e para as

escolhas individuais dos usuários/desenvolvedores. As fantasias são basicamente sustentadas pelos discursos de: busca de um ambiente colaborativo inclusivo ----- livre compartilhamento de conhecimento e informação para a geração de ideias criativas e inovadoras ----- suporte comunitário superior da linguagem Python ------ nutrição de uma inteligência coletiva para a geração de soluções no âmbito das empresas ----- o código aberto gera mais inovação. Essas são formas obvias de se pensar no modo como a comunidade é afetada e sustentada pelas fantasias.

Esses desejos estruturados fantasmaticamente moldam a natureza e o conteúdo das demandas dos usuários desenvolvedores, assim como a forma como são respondidas. Os dois trechos abaixo são indicativos disso quando se referem à linguagem de programação Python:

É uma linguagem de alto nível usada em vários ambiente como Linux, Windows, Mac. É o que se chama interoperabilidade, multiplataforma. Outra chave importante que eu gosto de chamar atenção em Python é que ela está sendo usada muito nas universidades para ensinar programação. Então é uma coisa fantástica (E2, §1R1).

O interessante a notar aqui é que o artefato (a linguagem de programação Python) é investido com propriedades que excedem as suas propriedades puramente técnicas – quando, por exemplo, essa linguagem de programação aparece nas narrativas individuais como sendo algo fantástico, superior, divertido, inovador e competitivo – torna-se o objeto a partir do qual os usuários/programadores experienciam heroísmo, liberdade e autonomia no esforço de controlar sua performance.

Assim, a fantasia, joga um papel fundamental na construção e sustentação do discurso da comunidade e nas relações estabelecidas entre os integrantes. E na visão de Glynos (2008), nesse processo existem, ou convivem, tantos aspectos ideológicos como normativos, feições que são frequentemente confundidas. O ideológico estaria no discurso da comunidade que tenta apresentar o PUG-PE como uma totalidade fechada e homogenia, por meio da fixação de um ponto nodal e no não reconhecimento do jogo infinito das diferenças (LACLAU, 2001), ou seja, a ideologia estaria no desejo de construir o discurso da totalidade. Já o

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significante normativo da dimensão ideológica da fantasia estaria na função de manter o caráter político das relações na comunidade, atrelados ao processo de produção, apropriação e distribuição do conhecimento e informação. A fantasia promete uma resolução harmoniosa dos antagonismos sociais, uma vez que representa um enchimento para os vazios do discurso. Para Stavrakakis (2005), somente assim o discurso pode se constituir como um objeto desejável de identificação como mostra o trecho abaixo:

A comunidade realmente atrai muitas pessoas. E nem todo o mundo está lá necessariamente pelo interesse no Python. Você vai ver pessoas que vão lá porque têm uma idéia e querem compartilhar, têm um problema e procuram uma solução e acham que a comunidade pode ajudá-lo. Então a comunidade sai do âmbito da tecnologia e começa a se expandir (E2, §6R4).

Portanto, o cenário da fantasia organiza e apoia a aparente multiplicidade de

identidades, alinhando-se, assim, ao estudo de Glynos (2008) quando explora as práticas do local de trabalho sob o ponto de vista das fantasias. E os resultados indicaram que uma das fantasias estruturantes do local de trabalho era a de liderança, nomeadamente as individuais sobre os superiores hierárquicos: exemplos disso seriam: o líder cuidadoso, o acessível, o onipotente. E a motivação para os programadores desejarem estabilizar o discurso da comunidade pelo suporte da fantasia não deve ser confundida com atores racionais procurando satisfazer seus interesses, mas sim com aqueles atores cuja identidade é dependente do discurso e a incompletude do discurso lhes obriga a construir uma identidade completamente ilusória por meio de atos de identificação (TORFING, 2005). Nesse sentido, os atores, são estratégicos e não racionais. Além disso, a lógica fantasmática do discurso opera quando o sujeito se encontra investido de alguma fantasia, de forma que qualquer coisa que venha desestabilizar a narrativa fantasmática do sujeito é vista como uma ameaça. Logo, esses resultados indicam que a organização dos desenvolvedores numa comunidade open-source demarca a inovação com software livre como um processo político uma vez que demanda a construção de um discurso que coloque a lógica comunitária com sentidos positivos que evidenciem particularidades, que o demarca da lógica estritamente empresarial de produção de inovação. Nesse sentido, o discurso precisa ser fortalecido pelo estabelecimento de uma cadeia equivalencial que inclua outros atores externos que compartilhem do discurso de inovação a partir de comunidades open-source. Com base nessas análises compreendemos que o PUG-PE ilustra o funcionamento de uma articulação discursiva complexa que envolve estudantes, pesquisadores, professores, empresários, hackers, agentes reguladores na construção de significados que permita ver o Python como um produto acrescido de valor. Conclusão

Este estudo teve como objetivo desvelar o componente hegemônico presente nas lógicas de construção discursiva dos desenvolvedores do PUG-PE. Esses agentes querem posicionar a produção coletiva e imaterial no circuito de produção de inovação, mas sem se sucumbirem à lógica estrita da inovação linear do mercado e do regime de propriedade intelectual vigente. Na prática, a questão é construir um discurso que efetive métodos de concepção e desenvolvimento de ideias inovadoras, os quais possam vir a permitir a incorporação da perspectiva do usuário/desenvolvedor. Nesse sentido, recapitulamos a questão norteadora do estudo “como ocorre o discurso hegemônico dos desenvolvedores da comunidade PUG-PE no âmbito do processo de inovação com software livre?

A lógica fantasmática desempenha um papel chave na proteção contra os

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deslocamentos ao fortalecer a identidade e articular parte da estratégia retórica do grupo. Nesse sentido, tendo em vista a necessidade de sobrevivência do PUG-PE foi necessário construir um discurso que apresentasse as particularidades do grupo como tendo condições para satisfazer as demandas de diferentes usuários/programadores nos seus esforços para satisfazer sua paixão pela linguagem de programação Python, aperfeiçoar suas competências, trabalhar num projeto, adquirir habilidades requeridas no mercado de trabalho, montar uma startup de TIC e explorar uma idéia inovadora. Essas questões que se destacam no discurso hegemonizante dos desenvolvedores a partir das lógicas discursivas apelam para novos modelos de gerenciamento da inovação e de constituição de novas identidades coletivas que vão de encontro às hierarquias rígidas da era industrial.

A lógica da fantasia nos auxiliou na compreensão da forma como ocorre o processo de produção de inovação na comunidade PUG-PE, uma vez que essa lógica revela a ideologia da comunidade e, desse modo, esclarece como é desenvolvido o esforço para se inserirem e transformarem a lógica social existente de produção, apropriação e distribuição dos bens simbólicos (informação e conhecimento).

Assim, a comunidade PUG-PE se apresenta como um corpo dividido entre seu discurso particular de se diferenciarem da lógica empresarial e a significação mais universal de não cessarem de receber novas significações. Essa expansão da cadeia equivalencial é a operação da hegemonia. Esse cenário confirmou a hipótese de que o êxito da comunidade PUG-PE depende da agregação de sujeitos curiosos pela tecnologia, que procuram se diferenciar nas suas habilidades e se orientarem pela qualidade nos processos de inovação. Isso representa uma forma a participarem de projetos inovadores que chamem a atenção do mercado, e, eventualmente, venham a competir com as distribuições do mercado a partir da criação das suas próprias startups.

A contribuição do estudo reside em ter trazido a abordagem da teoria do discurso como ótica teórico-metodológica de análise das tensões e mudanças constantes e dotadas de significados que contemplam o universo dos desenvolvedores do PUG-PE. Isso pode representar um passo além do reducionismo das determinações estruturais, como as leituras economicistas pautadas tão somente pela lógica do mercado e preterindo o componente sociopolítico, que provoca frequentes tensões no cotidiano desses agentes.

A teoria do discurso também se propõe a questionar as visões utópicas das novas TIC que apregoam transformações benéficas para a sociedade, pondo esse discurso em perspectiva e enxergando apenas as demandas particulares que o encobrem. Assim, essa teoria fornece a oportunidade para entendermos os projetos de software livre como uma construção política e socialmente localizada, abordagem ainda incipiente nos estudos organizacionais e em reflexões interdisciplinares dos discursos das comunidades de desenvolvimento de software livre. Paralelamente, esse olhar epistemológico permite pensar a inovação como um processo relacionado a questões de disputas políticas e formulações de estratégias discursivas.

Finalmente, o discurso do PUG-PE funciona pela simbolização de uma presença ainda por vir, dada a contingência das demandas que adiam a sua constituição plena. Dessa forma, cada um dos integrantes dessa comunidade está abstratamente relacionado, uma vez que suas demandas e questionamentos estão simbolicamente diluídos em uma cadeia equivalência de comunidade que tem de se esvaziar de parte dos seus significados para que possa abarcar um maior número de reivindicações, fazendo com que a lógica de construção desse discurso possa ser compreendido basicamente pela identificação das demandas, equivalentes gerais e fantasias.

Embora o estudo tenha sido realizado com uma comunidade de desenvolvimento de software livre essa abordagem do discurso pode ser utilizada para revelar as outras tensões que emergem em decorrência das transformações que a economia informacional e seus efeitos na indústria do software, da musica, do cinema, do livro, e outros setores onde as divergências

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superem as convergências. Os setores tradicionais interpelados por questões de negociação e conflito e cujas posturas não se encontram numa relação inquestionável, permitindo enxergar o jogo das diferenças. Além disso, seria interessante a realização de estudos em outras tradições de pesquisa de modo a permitir uma posterior meta análise do tema em futuras investigações.

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