a influência do contexto social na obra chapeuzinho vermelho

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A influncia do contexto social na obra Chapeuzinho Vermelho

Guilherme Argenta Souza Ceres Helena Ziegler Bevilaqua UFSM A obra Chapeuzinho Vermelho um clssico da literatura universal, apreciada por pessoas do mundo inteiro. Ela est presente no s no imaginrio infantil, mas tambm no pensamento reflexivo do adulto. A primeira verso foi publicada em 1697 por Charles Perrault (16281703), juntamente com mais sete contos na obra Histrias ou contos do tempo passado, com suas moralidades: contos da Me Gansa. Provavelmente, a origem de Chapeuzinho Vermelho tenha sido a mitologia grega, mais tarde incorporada cultura popular e contada oralmente. Mas foi Perrault que a editou e a tornou conhecida, usando uma linguagem clara, desembaraada e direta que agradou a adultos e a crianas do mundo inteiro. A literatura produzida no sculo XVII no era propriamente uma literatura dedicada a crianas, at porque no havia a distino entre adultos e crianas. Os contos de fada, nesse perodo, foram criados pensados em adultos. As crianas usavam o mesmo estilo de roupas que os adultos, alm de compartilharem os mesmos cmodos, os trabalhos e os ambientes sociais. Assim, ao circular nos mesmos lugares que os adultos, as crianas ouviam as mesmas histrias e contos de fada que os adultos escutavam. Quando editada, a obra Chapeuzinho Vermelho tornou-se conhecida mundialmente, pois possua uma linguagem clara, objetiva e enredo interessante. Porm, encontramos na obra um cunho moralista, pois serve para mostrar que as crianas no devem dar ateno a pessoas desconhecidas. Como podemos perceber no seguinte trecho, Perguntou-lhe o lobo aonde ia ela. A pobre criana no sabia como era perigoso dar ouvidos a um lobo. Na obra, o vilo era um lobo, mas ao transferir para a realidade poderia ser um homem, um bandido. Dois sculos aps a primeira edio de Chapeuzinho Vermelho, surge uma nova verso, desta vez feita pelos Irmos Grimm, Jacob (1785- 1863) e Wilhelm (1786- 1859). A nova verso produzida no perodo em que se

2 consolida a sociedade liberal-burguesa, na qual ocorre o apogeu da Era romntica. A verso feita pelos irmos Grimm j est em um contexto social em que a criana deixa de ser vista como um adulto e passa a ser tratada como criana que necessita de cuidados especficos. Segundo Nelly Novaes Coelho:Dentro desse processo renovador, a criana descoberta como um ser que precisa de cuidados especficos para a sua formao humanstica, cvica, espiritual, tica e intelectual. E os novos conceitos de Vida, Educao e Cultura abrem caminho para os novos e ainda tateantes procedimentos na rea pedaggica e na literria. Pode-se dizer que nesse momento que a criana entra como um valor a ser levado em considerao no processo social e no contexto humano. (COELHO, 1991, p.108).

Nesse perodo, a criana ainda vista como um adulto em miniatura, mas j de entendimento que sua mentalidade no a mesma de um adulto. Na verso dos Grimm, o final diferente da verso feita por Perrault. Na primeira, o lobo devora a menina e a av; na segunda, o caador abre a barriga do lobo, permitindo que as duas saiam vivas. Portanto, na verso dos Grimm j se traduz uma nova sociedade, na qual a violncia j pensada como algo que no pertinente e adequado para crianas. Nessa nova verso, tambm h o cunho moralista, no qual as crianas no devem dar ateno a desconhecidos. As obras de cunho moralista contribuem para a formao das crianas, que, no sculo XIX, ainda no tinham a quantidade de informaes que as crianas do sculo XXI possuem. Esse cunho moralista utilizado pelos pais como exemplo para os filhos, pois se a criana der ateno a um desconhecido, algo de ruim poder lhe acontecer. Neste caso, o vilo novamente o lobo-mau. As pocas em que Perrault e os irmos Grimm produziram suas obras so distintas, podemos perceber as transformaes sociais que houve dois sculos aps a primeira verso. Como no sculo XIX as pessoas j vem a criana diferente do adulto, isso se traduz em Chapeuzinho Vermelho, pois a obra de Perrault tem um final trgico que, para um adulto, pode no ser chocante, mas para uma criana assustador. Como a criana j passa a ser vista como criana, a qual precisa ser protegida da violncia, o final da obra dos Grimm diferente, ou seja, o

3 caador chega como heri e salva a menina Chapeuzinho e sua av, permitindo, dessa forma, um final feliz e menos traumtico para a criana. Assim, a moral prevalece, as crianas no devem dar ateno a desconhecidos, como consta na traduo da verso dos Grimm E contam tambm que, certa vez, Chapeuzinho Vermelho ia levando, novamente, um bolo sua avozinha e outro lobo tentou desvi-la do caminho. Mas a menina no lhe deu ouvidos. Assim, com o susto, a menina no conversou mais com lobos. Tambm, h uma preocupao para que o lobo no morra como ratifica Bruno Bettelheim:H razo para que o lobo no morra em conseqncia do corte no estomago para libertar aqueles que engoliu. O conto de fadas protege a criana de uma angstia desnecessria. Se o lobo morresse ao ter seu estmago aberto tal como uma operao cesariana, os ouvintes poderiam temer que uma criana, ao sair do corpo da me, a matasse. Mas, como o lobo sobrevive abertura do estmago e s morre porque pedras pesadas foram colocadas nele, no h razo para angstia a respeito do parto. (BETTELHEIM, 1975, p.247).

Com isso, a criana, ao ler ou ouvir a histria, at poder associar a abertura da barriga do lobo a um parto, mas que um corte na barriga no implica, necessariamente, morte. A obra dos Grimm respeita a sensibilidade da criana, permitindo que ela veja o mundo sem traumas, como algo natural. O contexto social em que a verso dos Grimm inserida um perodo em que os tericos e especialistas comeam a entender a mentalidade infantil, reconhecendo que as crianas so sensveis a certas situaes e que possuem medos. O que natural para um adulto, como o parto, pode ser transformado em um problema se no for bem compreendido pela criana. O texto dos irmos Grimm preserva a preocupao de no traumatizar o leitor infantil e entender a sua mentalidade. Dessa forma, a obra contribui para que as crianas, de uma maneira ldica, aprendam que perigoso falar com quem no conhecem, j que, no sculo XIX, no havia as informaes que h hoje, exemplos divulgados pela mdia nos quais crianas so vtimas de seqestros e maus tratos. Assim, os contos de fada, como Chapeuzinho Vermelho servem mais como instrumento

4 pedaggico do que arte literria, uma vez que mostram determinados valores que devem ser seguidos e respeitados pela sociedade. O final da histria dos Grimm permite que as crianas tenham certeza de que Chapeuzinho e sua av no morreram, pois, ao serem libertadas pelo caador as duas agem normalmente.A histria deixa bem claro que as duas no morreram ao serem engolidas. Isso evidenciado pelo comportamento de Chapeuzinho vermelho ao ser libertada. a menina pulou para fora gritando: Que medo que eu tive! Como estava escuro dentro do lobo! Ter sentido medo mostra que a pessoa estava bem viva, e significa um estado oposto morte, quando no se sente ou pensa mais. O medo de Chapeuzinho Vermelho era da escurido, porque devido a seu comportamento, ela havia perdido sua conscincia mais elevada, a qual havia lanado luz sobre o seu mundo. Como a cria que, sabendo que agiu errado, ou no se sentindo mais bem protegida pelos pais, sente cair sobre si a escurido da noite com seus terrores. (BETTELHEIM, 1975, p. 249).

Outro elemento que encontramos neste conto a importncia das relaes familiares. Embora haja muitas especulaes e estudos sobre o significado das personagens, h uma relao familiar estvel entre

chapeuzinho, a me e sua av. A me manda chapeuzinho ir at a casa da av para saber como ela est, Vai ver como est a sua av, pois me disseram que anda doente; leva-lhe uns pes e esta tigelinha de manteiga. Com isso, podemos perceber a proximidade e a boa relao que as personagens possuem. Se a relao no fosse boa, Chapeuzinho no iria feliz levar os pes av. Tambm, ao chegar residncia da senhora, a criana estranha a fisionomia da av, o que nos permite inferir que ela estava acostumada a v-la alegre e feliz. Esse pode ter sido um dos motivos do sucesso do conto Chapeuzinho Vermelho, j que no uma simples obra literria que rene, numa trama interessante, elementos do mundo fantstico maravilhoso, mas esse valor educativo, que capaz de transmitir elementos e valores de forma agradvel para a criana. A obra Chapeuzinho Vermelho teve vrias verses no decorrer dos sculos, sempre influenciada pelo contexto social de cada poca; traduzida em diversas lnguas, a obra continua no imaginrio infantil dos tempos atuais.

5 Em 1979, editada pela primeira vez a obra Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque de Holanda. Essa uma obra contempornea, uma adaptao do clssico Chapeuzinho Vermelho. Nessa obra, Chico Buarque escreve para o pblico infantil, pensando nas crianas, e isso difere das verses de Perrault e dos irmos Grimm. Nessa obra, Chico Buarque de Holanda se detm na criana contempornea, cheia de temores e restries. Em um primeiro momento, a personagem, Chapeuzinho Amarelo, tem vrios medos, quase no age por seus medos; sua fisionomia amarela por no sair de casa. Isso ocorre em um mbito social em que a criana j conhece os perigos, sabe as coisas horrveis que pode enfrentar ao sair de casa. Nos textos anteriores, Chapeuzinho Vermelho era inocente, pois no conhecia o lobo, nem as suas maldades, j Chapeuzinho Amarelo, no texto de Chico, conhece o lobo e seus perigos, suas traies. A criana dos dias atuais, que fica em casa, que possui meios de comunicao e informao, no mais uma criana inocente, que no conhece os perigos, mas uma criana que prefere ficar em casa a correr os perigos do cotidiano. Chapeuzinho Amarelo, diferente de Chapeuzinho Vermelho, nunca sai de casa, o que nos remete a um contexto social contemporneo, em que as crianas ficam presas em suas residncias. O medo da personagem de Chico Buarque de Holanda, tambm, remete atual violncia que a sociedade enfrente, pois as crianas tm livre acesso informao, dessa forma sabem dos perigos que correm ao sair de casa. A personagem, Chapeuzinho Amarelo, praticamente esttica, sem ao, pois tudo lhe d medo:Tinha medo de trovo/ minhoca para ela, era cobra/ E nunca apanhava sol/ porque tinha medo da sombra./ No ia pra fora pra no se sujar./ No tomava sopa pra no ensopar. / No tomava banho pra no descolar./ No falava nada pra no engasgar. No ficava em p com medo de cair./ Ento vivia parada, /deitada, mas sem dormir, com medo de pesadelo./ Era a chapeuzinho amarelo. (HOLANDA, 1997, p. 2)

6 Na pardia criada por Chico Buarque de Holanda, a personagem j conhece o lobo de outras histrias, atravs da intertextualidade. Percebemos que uma personagem que possui informao, pois j leu/ ouviu as antigas histrias de Chapeuzinho Vermelho. O Lobo imaginrio, no existe como nas verses antigas, um lobo virtual:

De todos os medos que tinha,/ o medo mais medonho/ era medo do tal LOBO,/ um LOBO que nunca se via,/ que morava l pra longe/ do outro lado da montanha/ numa terra to estranha,/ que vai ver que o tal LOBO/ nem existia. (HOLANDA, 1997, p. 4).

O lobo, o medo mais medonho, um lobo virtual, pois o narrador conclui que vai ver que o tal de lobo nem existia, alm de nunca ser visto. Como a menina tem medo de algo que ela nunca viu? Isso est no imaginrio da personagem, porque o lobo que ela tem medo o das histrias que ela j conhece. Ao passar o tempo, Chapeuzinho Amarelo encontrou o lobo, talvez tenha sido um sonho, e, ao encontr-lo, perdeu o medo no s do lobo, mas todos os outros medos. Passou a sair de casa e a agir. Dessa forma, a menina conquista a liberdade ao ver que o mundo no to perigoso e descobre os prazeres que as crianas sentem, uma vez que comea a brincar, correr, subir em rvores. O mesmo acontece a uma criana que fica presa horas do dia em casa, quando comea a freqentar parques, praas, a ter contato com a natureza, perde seus temores. Aps a menina perder o medo, h uma inverso dos sujeitos, ou seja, o lobo, de dominador, passa a passivo, como vemos no seguinte trecho:

E ele gritou: sou um LOBO!/ Mas a Chapeuzinho, nada./ E ele gritou: sou um LOBO!/ Chapeuzinho deu risada./ E ele berrou: EU SOU UM LOBO!!!/ Chapeuzinho, j meio enjoada, com vontade de brincar/ de outra coisa. / Ele ento gritou bem forte/ aquele seu nome de LOBO/ umas vinte e cinco vezes,/ que era pro medo ir voltando/ e a meninha saber/ com quem estava falando: EU SOU UM LOBO! (HOLANDA, 1997, p. 10)

7 O lobo passa a no ser mais objeto de medo da menina, e ela deixa de ser uma presa fcil de ser devorada, pois mesmo que ele tente assust-la, ela no v mais medo na personagem que maltratou a personagem de Perrault e dos irmos Grimm. Isso nos insere no contexto em que a criana, ao entrar em contato com a realidade, deixa de sentir certos medos. Ao sair rua, v quem nem todas as pessoas so ms, passando a conviver socialmente. Quando a imagem do medo desconstruda, tambm se desconstri a imagem de agressividade do lobo, ele se transforma em um ser inofensivo que pode ser comido pela menina, pois de LOBO transforma-se em BOLO. LO-BO LO- BOLO- BO LO- BO- LO- BO LO-BO LO- BO- LO (HOLANDA, 1997, p. 12).

Desse modo, a obra surgida atravs da oralidade, depois editada por Perrault, e feita uma nova verso pelos irmos Grimm, foi ganhando o mundo, lida e contada desde o sculo XVII at os dias atuais, logicamente que adaptada conforme o contexto social em que inserida. Na obra de Perrault, Chapeuzinho Vermelho ainda no visto como uma criana, pois na sociedade da poca no havia distino entre crianas e adultos, por isso o final trgico, e talvez assustador. J na verso dos Grimm, a sociedade do sculo XIX reconhece a diferena entre adulto e criana. H, assim, uma preocupao com o final da narrativa para que as personagens no decepcionem o imaginrio infantil atravs dos contos de fadas. Na pardia feita por Chico Buarque de Holanda, encontramos uma verso contempornea que traduz os problemas e situaes enfrentadas pelas crianas de hoje, alm de uma transformao da personagem. Assim, mesmo recebendo adaptaes, a obra continua servindo como recurso pedaggico e literrio.

Referncias COELHO, Nelly Novaes, Literatura infantil, So Paulo: tica, 1991. COELHO, Nelly Novaes. Panorama histrico da literatura infanto-juvenil/ das origens indoeuropias ao Brasil contemporneo. So Paulo: Quron, 1985.

8 BETTELHEIM, Bruno, A psicanlise dos contos de fadas, Rio de Janeiro: Paz e terra, 2007. GRIMM, Irmos, Chapeuzinho Vermelho, So Paulo: Cortez, 1985. CHARLES, Perrault, Chapeuzinho Vermelho, So Paulo: Cortez, 1985. HOLANDA, Chico Buarque, Chapeuzinho Amarelo, Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1997.