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  • 8/12/2019 A Influncia de Schopenhauer na Filosofia da Arte de Nietzsche em O Nascimento da Tragdia- Rosa Dias

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    A inf luncia de Schopenhauer na f ilosofia da arte de Nietzsche em O

    nascimento da t ragdia

    Rosa Maria DiasProfessora do Departamento de Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeirohttp://www.fflch.usp.br/df/gen/cn3_dias_p.htm

    Nietzsche descobre o livro de Schopenhauer O mundo como vontade e representaoem 1865. Ainfluncia desse livro em sua obra de juventude inegvel. O nascimento da tragdiaincorpora nos alguns princpios da metafsica de Schopenhauer como tambm aspectos de sua teoria da arte. Oque passvel de discusso se ele endossa o pessimismo schopenhaueriano. A anlise a serdesenvolvida visa a elucidar essa questo. Um cuidadoso estudo comparativo de O Mundo comoVontade e Representaoe O Nascimento da Tragdiarevelar a natureza e a extenso dessainfluncia. Desde j preciso salientar que Nietzsche oferece uma soluo para o problema dopessimismo; todavia preciso investigar se essa soluo se apresenta como uma verdadeirasuperao do pessimismo ou se uma tentativa frustrada, como apontam alguns comentadores deNietzsche, j que surge no mbito de uma filosofia marcadamente pessimista. Em outras palavras,ser que Nietzsche, utilizando-se de uma "roupagem schopenhaueriana", como ele mesmo revela em"Tentativa de Autocrtica", consegue escapar do que caracterstico dessa filosofia? Ser que adespeito das semelhanas no h algo em Nietzsche que no existe em Schopenhauer? Ser que

    por estarem desnudadas de ascetismo e de renncia, caractersticas da metafsicaschopenhaueriana, as concepes de Nietzsche no apontariam para uma nova metafsica da arte?Todas essas questes sero analisadas a partir da arte e pessimismo na filosofia de Schopenhauer eda arte e pessimismo na filosofia de Nietzsche.

    O ponto de partida do pensamento de Schopenhauer encontra-se na filosofia kantiana. Ele se utilizada distino feita por Kant entre mundo dos fenmenos e da coisa em-si e introduz, em suametafsica, algo que no existe no kantismo: o contraste entre a representao e a vontade, apluralidade e a unidade. O mundo como representao o mundo tal que nos aparece em suamultiplicidade e em suas numerosas particularidades. A diversidade que se apresenta nada tem decatica, regrada e articulada no espao e no tempo. Dois princpios compem o mundo e guardama sua ordem: o princpio de individuao e o de razo suficiente. Por princpio de individuao,Schopenhauer entende o espao e o tempo, que individuam, multiplicam e fazem suceder osfenmenos; por princpio de razo ou de causalidade, compreende o fato de todo fenmeno aparecer

    no espao-temporal como explicvel, como efeito de certas causas que do a razo de ser de umfenmeno, de ele se manifestar de um modo e no de outro.

    Apesar de toda essa ordenao, que caracteriza nosso campo da conscincia, de toda essaregularidade, que parece fazer do mundo da representao o lugar mesmo da verdade, tudo seriamesmo um sonho vazio ou uma insana quimera, se no houvesse uma coisa mais fundamental, maismetafisicamente real: o mundo da vontade. O mundo para Schopenhauer, sobretudo, vontade.

    Mas como perceber essa realidade que se encontra atrs das aparncias, que existe fora do espaoe do tempo? Segundo Schopenhauer, atravs do corpo que se tem acesso a essa realidade maisntima. atravs do corpo que o homem tem a conscincia interna de que ele vontade, um em-si.Agora, no do corpo visto de fora, no espao e no tempo, no como objetivao da vontade, comorepresentao, mas enquanto imediatamente experimentado em nossa vida afetiva. na alternnciaentre dores e prazeres, faltas e satisfaes, desejos e decepes que surge a vontade como

    essncia e princpio do mundo, como querer sem dono, transindividual, cego e sem razo, em suatenebrosa e abismal perpetuao.

    Essa vontade fora que age na natureza e desejo que move o homem. Mas antes de se objetivarem diversos fenmenos, de se exprimir na multiplicidade dos indivduos, a vontade se objetiva emformas eternas, imutveis, que no esto nem no espao nem no tempo. Schopenhauer chamaessas formas de idias platnicas. Elas so os modelos ou os arqutipos das coisas particulares, asprimeiras objetivaes do querer na natureza, realidades intermedirias entre a vontade una e amultiplicidade das individualidades:"A idia platnica", escreve Schopenhauer, " necessariamente objeto, algo reconhecido, umarepresentao e, justamente devido a isto, distinta da coisa-em-si. Ela se despojou apenas dasformas subordinadas do fenmeno, todas por ns compreendidas sob o princpio de razo, ou

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    melhor, ainda no as adotou, contudo manteve a forma primeira e mais geral, a da representao doser em geral, do ser objeto para o sujeito" (WWV/MVRIII).

    Aproximando agora o enunciado kantiano ao platnico, Schopenhauer mostra que, graas ao tempo,espao, causalidade, dispositivos do intelecto humano, "o ser nico de qualquer espcie", "a essnciagenrica dos objetos naturais" se apresenta como multiplicidade de seres da mesma espcie, num

    nascer e perecer incessantemente renovado, numa sucesso infinita. Resumindo o que foi dito sobrea compreenso que Schopenhauer tem da vontade, poder-se-ia dizer que, como impulso cego egratuito, como anseio vido de vida, a vontade se objetivaria imediatamente em idias emediatamente em fenmenos. Para saciar o seu desejo incessante de vida, a unidade primitiva davontade se multiplicaria por meio do princpio de individuao e de causalidade, espalhando-se emmirades de parcelas que constituiriam o mundo dos fenmenos, mas, at no menor e no maisisolado desses fragmentos, permaneceria inteiramente una, produto e expresso da vontade. Com afinalidade de se abrandar a caracterizao de Schopenhauer como filsofo do pessimismo, costuma-se dizer que ele primeiro um filsofo da vontade, s depois, o do pessimismo. Como bem observaThomas Mann, em seu ensaio "Schopenhauer", as duas coisas so, na realidade, uma s.Schopenhauer foi pessimista justamente porque pensou a vontade como fonte de todo o sofrimento:"Se encararmos", diz Thomas Mann, "como oposto da satisfao beata, a vontade em si mesmauma infelicidade fundamental: insatisfao, esforo em vista de algo, inteligncia, sede ardente,cobia, desejo, sofrimento. que, se tornando mundo, segundo o principio de individuao, pela sua

    fragmentao na multiplicidade, a vontade esquece a unidade primitiva e, no obstante todo o seuesmigalhamento, continue una, torna-se uma vontade que est milhes de vezes em luta consigomesma, que se combate e se desconhece a si prpria, que, em cada uma de suas manifestaes,procura seu bem estar, seu "lugar ao sol", s expensas de outra e, ainda mais, s expensas de todasas outras, no cessando, pois, de morder a prpria carne, como aquele habitante do Trtaro que,avidamente, devorava a si mesmo" (Mann 2, p. 311).

    Para deixar mais claro o seu ponto de vista de que o pessimismo e a vontade no se distinguem,Thomas Mann escreve: "as idias de Plato adquirem em Schopenhauer uma voracidade incurvel".Por que isso? Entendamos a afirmao de Thomas Mann. Para Schopenhauer, a vontade se objetivade vrios modos, ou melhor, em graus diferentes de claridade, que vo desde o mais inferior, aqueledas foras da natureza inanimada, ao mais elevado, que o homem, passando pelos mundos vegetale animal. Os diferentes graus correspondem a um progresso no devir-representao da vontade, mas no homem que ela representa a si mesma com mais clareza e perfeio. Essa hierarquia, porm, esttica e no evolutiva; todos os graus coexistem desde a eternidade. Agora, reencenados nomundo fenomnico, eles disputam entre si a matria, o espao e o tempo. O mundo vegetal serve dealimento para o mundo animal, este de presa e alimento para um outro animal, e, assim, a vontade devida no cessa de se devorar a si mesma. O homem, enfim, considera tudo o que criado como algoque existe para seu uso e contribui desse modo para movimentar ainda mais o combate de todoscontra todos. Segue-se ento que a dor e a destruio fazem parte da ordem das coisas, tudodecretado pelo mundo da vontade, criminalmente indiferente ao destino dos indivduos. Alm disso, avida humana dominada por egosmos rivais, a satisfao de um indivduo necessariamente acarretao sofrimento do outro. O egosmo uma postura natural de um ser em relao a outro. A razo dissoest no seguinte raciocnio: s um corpo habitado pela vontade, capaz de desejo e frustrao,suscetvel de prazer e dor; os outros, meros corpos, coisas inanimadas, podem ser usados comomeios para satisfazer determinados fins. O que resulta, para a natureza como um todo, fora ou dentroda sociedade, ser, essencialmente, o homem o lobo do homem.

    Essa concepo pessimista de Schopenhauer encontrou expresso no livro de Machado de Assis,Memrias pstumas de Brs Cubas. Nesse romance, Brs Cubas, o "defunto autor", resolve comeara escrever sua histria a partir do fim, narrando o delrio que o acometeu, antes de morrer. Nessedelrio, cavalga num hipoptamo que o leva ao fim dos tempos, a um campo muito branco, em que desbito aparece a figura gigantesca de uma mulher: Pandora. Ela quer lev-lo direto para a morte.Com a recusa de Brs, Pandora o pega pelos cabelos e o faz ver toda a histria universal dahumanidade at ento. o pessimismo de Schopenhauer que parece estar atrs dessa figura:"Imagina tu, leitor, uma reduo dos sculos, e um desfilar de todos eles, as raas todas, todas aspaixes, o tumulto dos imprios, a guerra dos apetites e dos dios, a destruio recproca dos seres edas cousas.Tal era o espetculo, acerbo e curioso espetculo. (...) Os sculos desfilavam umturbilho, e, no obstante, porque os olhos do delrio so outros, eu via tudo o que passava diante demim, flagelos e delcias, desde essa cousa que se chama glria at essa outra que se chama

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    misria, e via a misria agravando a debilidade. A vinham a cobia que devora, a clera que inflama,a inveja que baba, e a enxada e a pena midas de suor, e a ambio, a fome, a vaidade, amelancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, at destru-lo comoum farrapo. Eram as formas vrias de um mal, que ora mordia a vscera, ora mordia o pensamento, epasseava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espcie humana. A dor cediaalguma vez, mas cedia indiferena, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor

    bastarda. Ento o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das cousas, atrs de umafigura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpvel, outro de improvvel, outro deinvisvel, cosidos todos a ponto precrio, com a agulha da imaginao; e essa figura, nada menosque a quimera da felicidade, lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e ohomem a cingia ao peito, e ento ela ria, com um escrnio, e sumia-se, como iluso" (Machado deAssis 1, p. 522-523).

    Nessa viso de Brs Cubas, as desiluses, encadeando-se em cascata, fica revelado o cerne dacompreenso da vontade para Schopenhauer: ser uma vasta mquina repetidora incapaz de geriralgo novo. Condenada a recomear eternamente, e eternamente sem objetivo real, as mesmastarefas, traa circularmente a imagem do suplcio da humanidade. De um querer que se assemelha roda de Ixion, que no cessa de retornar, s Danaides, que pegam gua eternamente para encherseu cesto, e a Tntalo, que permanece sedento para todo o sempre.

    Mas a filosofia de Schopenhauer, para interromper esse oscilar da vida entre a dor e o tdio eescapar da temporalidade repetidora que se volta sobre si mesma, que no consegue passar e queno se pode mais suportar, aponta para dois caminhos: um temporrio, outro mais duradouro. Oprimeiro o caminho da contemplao esttica, o segundo, do ascetismo, o caminho do Nirvana, danegao da vontade. Esse aspecto encontra-se no quarto livro de O mundo como vontade erepresentao; dele no me ocuparei. Tratarei aqui apenas do primeiro aspecto que terrepercusses maiores na filosofia da arte de Nietzsche.

    Schopenhauer encontra na contemplao esttica a possibilidade para transcender o modo comumde se perceber o mundo, para se libertar do desejo, da vontade e apaziguar temporariamente a dor.Por meio da arte "nos subtramos, por um momento, odiosa presso da vontade, celebramos osab da servido do querer, a roda de Ixion se detm" (WWV/MVRIII). A percepo esttica visoimediata e direta, representao intuitiva pura na qual no intervm nem o entendimento nem arazo, sempre conceituais. O sujeito se perde no objeto da percepo. Torna-se um claro espelho doobjeto. Deixa de se preocupar consigo mesmo como um objeto espao-temporal, deixa de ver osobjetos em relao com a vontade individual e se torna repentinamente "sujeito puro deconhecimento", isto , destitudo de vontade. A subjetividade da conscincia comum desaparece, apercepo se torna objetiva. A conscincia, que est inteiramente no objeto da percepo, no sepreocupa mais nem com a disjuno entre a vontade e o mundo, nem com o fato de a vontade estarsem objetos.

    O sujeito puro de conhecimento, o gnio, arranca o objeto de sua contemplao da "corrente fugidiados fenmenos", contempla-o independentemente do princpio de razo e mergulha no intemporal. Omundo agora visto por ele do ngulo da eternidade. Sua percepo esttica no olha o presente tempo da paixo, da dor e do tdio , coisa relativa ao passado quanto ao arrependimento ou aofuturo quanto ao desejo; evoca sim o tempo da arte, da contemplao pura, do interldio desabedoria e paz. Fernando Pessoa, enquanto Alberto Caeiro, parece descrever com acuidade issoque Schopenhauer compreende como ausncia de temporalidade na percepo artstica. Diz Pessoa:No quero incluir o tempo no meu esquema.No quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar nelas como cousas.No quero separ-las de si prprias, tratando-as por presentes.Eu nem por reais as devia tratar.Eu no as devia tratar por nada.Eu devia v-las, apenas v-las;V-las at no poder pensar nelas,V-las sem tempo, nem espao.Ver podendo dispensar tudo menos o que se v. esta a cincia de ver, que no nenhuma. (Pessoa 5, p. 244-5).

    Ora, ao deixar de se preocupar com o aqui e o agora, com a localizao dos objetos no mundo

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    espao-temporal, o que percebe ento o gnio? o objeto de sua contemplao esttica so as idiasde Plato. Mas, ao usar a terminologia platnica das idias, Schopenhauer no pretende introduzir anoo de que o artista apreende ou faz o contedo da obra de arte a partir de um domnio de objetosontologicamente distintos da esfera dos indivduos comuns. Perceber ou representar um objeto comoidia trazer luz sua forma significante, sua forma essencial e desprezar tudo aquilo que estranhoe acidental. Para Schopenhauer, a beleza luz da idia que irradia do objeto particular,

    luminosidade que obscurece os traos individuais e as qualidades desse objeto e aponta para apossibilidade total de libertao da servido da realidade prtica, particular e concreta.

    Tendo feito essas observaes sobre a filosofia da arte de Schopenhauer com o objetivo de explicitara influncia desse filsofo em O nascimento da tragdia, iremos, primeiro, revelar a influncia deSchopenhauer na teoria da arte de Nietzsche, principalmente na formulao dos impulsos artsticos, oapolneo e o dionisaco; segundo, indicar os caminhos que sugerem ter Nietzsche escapado dasteses pessimistas de seu mestre.

    Nietzsche abre O nascimento da tragdiaapontando para dois "impulsos artsticos da natureza": oapolneo e o dionisaco. Apolo o princpio de individuao, o princpio de luz que faz surgir omundo a partir do caos originrio; o princpio ordenador que, tendo domado as foras cegas danatureza, submete-as a uma regra. D forma s coisas, delimitando-as com contornos precisos,fixando seu carter distintivo e determinado, seu sentido individual, modelando o movimento de todo

    elemento vital, imprimindo a cada um a cadncia a forma do tempo . Apolo impe ao devir uma lei,uma medida.

    Dioniso, o nome grego para o xtase, o deus do caos, da desmesura, da fria sexual e do fluxo devida; o deus da fecundidade da terra e da noite criadora do som: o deus da msica, arte universal,me de todas as artes. Seu espao est sob o mundo das aparncias, das formas, da beleza, da

    justa medida. Nascido da fome e da dor, perseguido e dilacerado pelos deuses hostis, Dionisorenasce a cada primavera, e a cria e espalha alegria. Despertadas as emoes dionisacas, ohomem, em xtase, sente que todas as barreiras entre ele e os outros homens esto rompidas, quetodas as formas voltam a ser reabsorvidas pela unidade mais originria e fundamental o Unoprimordial (das Ur-Eine) onde s existe lugar para a intensidade. Nesse mundo das emoesinconscientes, que abole a subjetividade, o homem perde a conscincia de si e se v ao mesmotempo no mundo da harmonia e da desarmonia, da consonncia e da dissonncia, do prazer e dador, da construo e da destruio, da vida e da morte.

    No necessria uma ateno redobrada para se ver que a distino do apolneo e do dionisaco, talcomo Nietzsche a concebe, apia-se certamente na oposio de Schopenhauer entre arepresentao e a vontade. Apolo, visto como deus do brilho, da aparncia, da bela aparncia e dailuso, simboliza o mundo da representao, isto , da individuao e da razo suficiente; Dioniso,identificado como deus da fria sexual e do fluxo de vida, como figura que rene em sua natureza dore prazer, manifesta o Uno Primordial, a vontade mesma para alm da representao.

    Embora se possa encontrar ainda muitos pontos de semelhana entre a concepo da arte deSchopenhauer e a de Nietzsche, interessa-nos aqui salientar que h tambm algo neste que noexiste naquele. Para ambos, a vontade caos, contradio e dor, mas, enquanto para Schopenhauera arte se apresenta como uma negao da vontade, opera uma espcie de redeno, uma fuga davoracidade do querer viver, para Nietzsche a prpria vontade artista, nela que se d a redeno. a vontade mesma que se redime na aparncia:"Com efeito, quanto mais percebo na natureza aqueles onipotentes impulsos artsticos e neles umfervoroso anseio pela aparncia (Schein), pela redeno atravs da aparncia, tanto mais me sintoimpelido suposio metafsica de que o verdadeiramente-existente (Wahrhaft-Seiende) e Unoprimordial, enquanto eterno sofredor e pleno de contradio, precisa, ao mesmo tempo, para a suaperptua redeno, da viso extasiante da aparncia prazerosa" (GT/NT 4).

    A vontade, o uno primordial, ou o querer um ser de natureza emotiva que no pode ser pensadocomo repousando em si mesmo, impassvel ou pacfico, mas que traz em si uma guerra sem limites.Vivendo em constante contradio consigo mesmo, em incessante dor, esse ser no podepermanecer por muito tempo indeterminado. Uma fora vinda dele mesmo obriga-o a fragmentar-se,a multiplicar-se em seres finitos, a fixar-se em imagens e a produzir o mundo das formas individuais,da realidade fenomnica.

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    O mundo fenomnico, como resultado desse movimento do querer, traz em si as marcas da dor, dodespedaamento do uno primordial e, para se libertar dessa dor, faz um segundo movimento, dessavez esttico, reproduzindo o movimento inicial que a vontade realizou em direo aparncia. Desseltimo, emana a aparncia da aparncia ou a bela aparncia do sonho, um blsamo para o querer,um remdio para libert-lo momentaneamente da dor pelo seu desmembramento em indivduos.

    dessa maneira que Nietzsche, no captulo IV de O nascimento da tragdia, explicita o processotransfigurador do Uno-primordial, que a "natureza artista" realiza por meio do sonho para criar a belaaparncia. Esse no o nico, nem o mais fundamental estado fisiolgico pelo qual a naturezarealiza seus impulsos artsticos. O mais essencial a embriaguez.

    As aparncias s adquirem sentido, quando relacionadas ao mundo dionisaco, que lhes metafisicamente anterior:"Na embriaguez dionisaca, no impetuoso percurso de todas as escalas anmicas, durante asexcitaes narcticas ou no desencadeamento dos impulsos primaveris, a natureza se manifesta emsua fora mais poderosa: ela rene novamente os indivduos e faz com que se sintam como uma sunidade, de tal modo que o principium individuationisaparece como um estado prolongado defraqueza da vontade. Quanto mais debilitada estiver a vontade, mais o todo se fragmentar em partesisoladas; quanto mais o indivduo for egosta e arbitrrio, mais fraco ser seu organismo. Por isso, em

    tais estados, apresenta-se um trao sentimental da vontade, um "soluo da criatura" pelas coisasperdidas; no prazer supremo, ressoa o grito de espanto, os gemidos nostlgicos de uma perdairreparvel. A natureza exuberante celebra, ao mesmo tempo, suas saturnais e suas exquias. (...) Asdores despertam prazer, o jbilo arranca do peito gritos cheios de dor. O deus, o liberador, desatou,em torno dele, todas as amarras, a tudo transformou" (DW/VD 1).

    Na embriaguez, o processo pelo qual a vontade satisfaz seus impulsos artsticos o inverso domovimento de produo das aparncias. Com o colapso do principium individuationispelaintensificao das emoes dionisacas, tudo volta a seu ponto de origem, unidade primeira. Com amorte ou aniquilao das individualidades, o homem retorna ao estado natural, reconcilia-se com anatureza. Essa reunificao gera um prazer supremo, um xtase delicioso que ascende desde ontimo de seu ser e mesmo da natureza, ressoando em "gritos de espanto" e "gemidos nostlgicos".Com cantos e danas, esse ser entusiasmado, possudo por Dioniso, manifesta seu jbilo. D voz emovimento natureza. Voz e movimento que no se acrescentam a ela como algo de artificial, masparecem vir de seu mago.

    Contudo, no apenas em relao ao tema da redeno que se pode distinguir Schopenhauer deNietzsche, em cujas afirmaes em O nascimento da tragdiaj se pode constatar um pensamentooposto ao pessimismo schopenhaueriano. Cite-se, por exemplo, que as artes apolneas "tornam avida digna e possvel de ser vivida" (GT/NT1); ou ainda, ao tratar do fenmeno dionisaco, naexperincia trgica, que "no obstante terror e piedade, conhecemos a felicidade de viver, no comoindivduos, mas como este vivente nico que engendra e procria e no orgasmo de quem nosconfundimos" (GT/NT 17). Essas pontuaes no texto de Nietzsche nos sugerem que ele encontranos gregos duas vias artsticas contrrias interpretao pessimista de Schopenhauer: uma, atravsda arte apolnea; outra, atravs da arte dionisaca.

    A profilaxia apolnea contra o pessimismo comeou, segundo Nietzsche, no perodo homrico. Osgregos desse perodo superaram o terror e o horror da existncia, produzindo em sua arte "umaradiante glorificao do mundo fenomenal" (GT/NT16). Interpuseram, entre eles e as realidades davida, "o radiante sonho de nascimento dos olmpicos". Em suas histrias dos deuses, glorificaram avida humana. desse modo que os gregos homricos seduziram a si mesmos para continuaremexistindo. A existncia sob o sol brilhante dos deuses olhada como desejvel em si mesma (cf.GT/NT 3). O mundo engendrado pela arte apolnea se coloca sobre a realidade, ilusrio, massugere que os gregos suplantaram o pessimismo, habitando o domnio da fantasia. O espelhotransfigurador da aparncia impedia o artista apolneo de transformar-se e fundir-se em suas figuras.Deslumbrados com a contemplao das formas e figuras, eles no viam a realidade ntima de todasas coisas, e, conseqentemente, o seu sofrimento.

    Os gregos sabem, porm, que o apolneo no oferece a total verdade sobre o mundo e que a suasoluo contra o pessimismo superficial. Se a soluo que oferece a arte apolnea superficial, o

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    que se pode dizer da soluo dada pela arte dionisaca? Para Nietzsche, a tragdia grega tem umaperspectiva melhor. Ela pertence ao mais alto estgio da cultura grega e "oferece uma viso maisprofunda do mundo que a arte apolnea" (GT/NT 10). Enquanto a arte apolnea tenta nos convencerda alegria da existncia pela glorificao da realidade fenomenal, a arte dionisaca nos ensina queno devemos buscar a alegria nos fenmenos, mas atrs deles (GT/NT 17). Mas como isso se d?Essa a questo a que Nietzsche pretende responder com o efeito trgico. Na arte dionisaca, na

    tragdia grega em particular, a destruio do heri trgico traz alegria. Os espectadores, emboraforados a testemunhar a catstrofe trgica, no ficam cheios de terror, mas, ao contrrio, tm um"consolo metafsico" que os arranca, momentaneamente, do alvoroo da mudana das figuras. Porum breve momento, a vida, no fundo das coisas, a despeito da mudana dos fenmenos, indestrutivelmente poderosa e alegre. Por um breve momento, identificam-se com o Uno Primordial.O consolo metafsico aparece com nitidez corporal com o coro de stiros, coro de seres naturais quevivem inextingivelmente por trs de toda a civilizao e que, a despeito da mudana das geraes eda histria dos povos, permanecem os mesmos. Com esse coro, consola-se o heleno profundo, onico igualmente apto para as dores mais suaves e mais cruis, que viu o horror da natureza e correperigo de aspirar a uma negao budista da existncia, que penetrou com olhar afiado at o fundo daterrvel tendncia ao aniquilamento, o qual move a chamada histria universal.

    A arte trgica demonstra uma notvel capacidade alqumica de transmudar o estado de nusea,"estado negador da vontade", em afirmao, de modo que esse horror possa ser experimentado no

    como um horror, mas como algo sublime, e esse absurdo possa ser vivenciado no como absurdomas como cmico.

    Essa funo teraputica da tragdia, que Nietzsche define como o poder que "excita, purifica edescarrega" a vida inteira de um povo, no vista da mesma forma por Aristteles, que, na Potica,atribui ao trgica um poder catrtico e paradoxal, que, ao mesmo tempo, desperta e purga ossentimentos de terror e piedade. Em Nietzsche, essa funo teraputica mais que um sedativo ouum calmante, um tnico. Ao lado desses sentimentos, que transformam o horror e o absurdo emsublime e cmico, gerado um mais poderoso, que est associado experncia esttica dionisaca o sentimento da alegria.

    A razo de ser da tragdia est na alegria. assim que Nietzsche se distancia da metafsica deSchopenhauer. Para o filsofo de O mundo como vontade e representao, a tragdia mensagemde renncia, de negao do querer viver. O verdadeiro sentido da tragdia, numa viso maisprofunda, mostra que o que expiado pelo heri no so os seus pecados particulares, mas sim opecado original a culpa pelo simples fato de existir. O conhecimento perfeito da essncia do mundo,enquanto misria, triunfo da maldade, suscita a resignao, a renncia no s do querer, mas daprpria vida. Para Nietzsche, ao contrrio, a tragdia mensagem de afirmao de vida. O heritrgico negado para nos convencer do eterno prazer do existir, pois, com a sua aniquilao, ficarestaurada a unidade originria a vida eterna da vontade. Nesse momento de xtase, de "vitriaalcanada na derrota", "a luta, a dor, a destruio dos fenmenos parecem necessrios para ns",porque deixam entrever algo de mais profundo que transcende qualquer heri individual, o eternovivente criador, eternamente lanado existncia. A arte em favor da vida, eis a chave dopensamento de Nietzsche. A arte transfigura todo existente, mas s a tragdia exprime a crena naeternidade da vida.

    Referncias Bibliogrficas

    1. MACHADO DE ASSIS, J. M. Memrias pstumas de Brs Cubas.Rio de Janeiro, Editora NovaAguilar, 1979.2. MANN, T. "Schopenhauer". In:Adel des Geistes. Oldenburg, Fischer,1967.3. NIETZSCHE, F. Werke. Kritische Studienausgabe. Edio organizada por Giogio Colli e MazzinoMontinari. 15 vols. Berlim, Walter de Gruyter & Co., 1988.4. _______. O nascimento da tragdia. Trad. de J. Guinsburg. So Paulo, Companhia das Letras,1992.5. PESSOA, F. Obra Potica. Rio de Janeiro, Companhia Jos Aguilar Editora, 1974.6. SCHOPENHAUER, A.Le Monde comme volont et comme rpresentation. Trad. de A. Burdeau.Paris, PUF, 1966.