diálogos entre nietzsche e artaud em o nascimento da tragédia e o teatro e seu duplo
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A pesquisa tem por objetivo investigar cruzamentos, diferenciações e tensões entre proposições de Friedrich Nietzsche (1844 – 1900) e Antonin Artaud (1896 - 1948), respectivamente presentes nas obras O Nascimento da Tragédia e O Teatro e seu Duplo. Como objetivo específico, prioriza-se os conceitos de apolíneo e dionisíaco e Teatro da Crueldade, de modo a investigar a crítica que esses autores realizam em relação a arte do seu tempo, mostrando também as estratégias diferenciadas que utilizam paraaproximar vida, arte e cultura. O que a investigação encontra como um cruzamento entre ambos é uma “visão trágica de mundo”, na qual a arteseria o “remédio” tanto para eles próprios quanto para o mundo. Para tanto, realiza-se uma leitura minuciosa dessas obras, apoiada em diversos comentadores. Os resultados deste trabalho apontam que tanto Nietzschecomo Artaud continuam sendo de extrema importância para o universo artístico e filosófico, especialmente quando há uma preocupação com a noção de arte, filosofia e vida, ou seja, quando compreende-se a arte e a filosofia também como forma de exercer e lidar com a vida.TRANSCRIPT
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes
Curso de Comunicação das Artes do Corpo
Trabalho de Conclusão de Curso
Isadora Raquel Petry
Diálogos entre Nietzsche e Artaud em O Nascimento da Tragédia e O Teatro e seu Duplo:
conversações em um café da tarde
Orientadora:
Profª Drª Yolanda Gloria Gamboa Muñoz
São Paulo, novembro de 2011
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Isadora Raquel Petry
Diálogos entre Nietzsche e Artaud em O Nascimento da Tragédia e O Teatro e seu Duplo:
conversações em um café da tarde
Monografia apresentada ao Curso de Comunicação das Artes do Corpo, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, para a obtenção do título de Bacharel em Comunicação e Artes do Corpo, com Habilitação em Teatro.
Orientadora:
Profª Drª Yolanda Gloria Gamboa Muñoz
São Paulo, novembro de 2011
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Isadora Raquel Petry
Trabalho de Conclusão de Curso de Comunicação das Artes do Corpo com título –
Diálogos entre Nietzsche e Artaud em O Nascimento da Tragédia e O Teatro e seu Duplo:
conversações em um café da tarde, submetido ao corpo docente da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como requisito necessário para a obtenção do grau
de Bacharel em Comunicação e Artes do Corpo com Habilitação em Teatro.
Banca Examinadora:
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AGRADECIMENTOS:
À minha orientadora, Prof. Dra. Yolanda Gloria Gamboa Muñoz, com a qual tive a minha primeira estimulante aula de filosofia e meu primeiro contato com Nietzsche: pelo seu entusiasmo e alegria diante do filosofar.
Ao Prof. Dr. Cassiano Sydow Quilici, pelo primeiro contato com Artaud, pelo estímulo no diálogo com a filosofia, pelo carinho e pela alegre serenidade.
A Nietzsche e a Artaud, por terem vivido e feito das suas inquietações, obras com as quais podemos dialogar e nos afetar.
Aos meus pais, por sempre me incentivarem ao espanto, pelos debates na hora do café e pelo estímulo a criar.
A Rodrigo Bianchini; pela forte-fragilidade, pelo cuidado, pela rotina, mas, antes de qualquer coisa, pelo inaudito.
À aquela que verdadeiramente posso chamar de amiga: Tainá Félix, obrigada pelos momentos regados à chá, filosofia, artes, e alhures.
Às minhas avós e ao meu falecido avô Eurico, pelo arroz de leite com canela, pela birne, pelo bibi, por me dizer que eu tinha dois narizes, pela cultura, pela força e alegria de vida.
Às minhas tias Vanice e Rosane, pelo apoio, pela boa companhia e por estarem sempre presentes.
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Resumo:A pesquisa tem por objetivo investigar cruzamentos, diferenciações e tensões entre proposições de Friedrich Nietzsche (1844 – 1900) e Antonin Artaud (1896 - 1948), respectivamente presentes nas obras O Nascimento da Tragédia e O Teatro e seu Duplo. Como objetivo específico, prioriza-se os conceitos de apolíneo e dionisíaco e Teatro da Crueldade, de modo a investigar a crítica que esses autores realizam em relação a arte do seu tempo, mostrando também as estratégias diferenciadas que utilizam para aproximar vida, arte e cultura. O que a investigação encontra como um cruzamento entre ambos é uma “visão trágica de mundo”, na qual a arte seria o “remédio” tanto para eles próprios quanto para o mundo. Para tanto, realiza-se uma leitura minuciosa dessas obras, apoiada em diversos comentadores. Os resultados deste trabalho apontam que tanto Nietzsche como Artaud continuam sendo de extrema importância para o universo artístico e filosófico, especialmente quando há uma preocupação com a noção de arte, filosofia e vida, ou seja, quando compreende-se a arte e a filosofia também como forma de exercer e lidar com a vida.
Palavras-chave: Apolíneo. Dionisíaco. Necessidade. Crueldade. Artaud e Nietzsche.
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Sumário:
Introdução: ou como começar o que já começou? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
1. Por uma Potência dos Antagonismos: Apolo, Dionísio e o Duplo . . . . . . . . . . . . . . . 17
1.1. Aproximando . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
1.2. Apolo e Dionísio em O Nascimento da Tragédia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
1.3. Luta de Forças entre Apolo e Dionísio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
1.4. Duplos de Artaud e os Duplos em Artaud . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28
2. Vida, Arte, Cultura: uma Crítica . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
2.1. Aproximando . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
2.2. Vida, Uno-Primordial em O Nascimento da Tragédia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
2.3. Crítica da Arte da Tragédia, Crítica da Cultura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44
2.4. Vida e Cultura em Artaud . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
3. Necessidade, Crueldade ou “Teria dito vida” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
3.1. Aproximando . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
3.2. Arte como Necessidade em O Nascimento da Tragédia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60
3.3. Artaud e seu Teatro da Crueldade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
Conclusão: ou como terminar o que nunca termina? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80
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Introdução: ou como começar o que já começou?
Venho de uma família
do interior do Rio Grande do Sul que, sendo de
descendência alemã, os cafés da tarde eram diários.
Ou, fazendo jus à tradição regional: os chamados “cafés
coloniais”. Estes cafés, além de serem preparados com uma
grande variedade de pães, bolos e de schmier, eram sempre regados a muitas discussões
a respeito do ser no mundo, da filosofia, da arte e outros tantos assuntos “cabeludos”,
principalmente para uma criança que, desde que se conheça por
gente, presenciava tais debates .
Recordo-me de ficar admirada com tamanhas palavras
difíceis, e de sempre transitar entre o querer ir brincar e
querer ficar ali escutando aquele “papo de gente grande”
que já me deixava com uma “pulga atrás da orelha”. Essa
“pulga atrás da orelha”, reconheço hoje, é que era a
própria brincadeira. Nesse sentido, esta pesquisa se propõe a ser, bem como acontecia
em minha infância, uma conversação em um café da tarde.
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Não creio que a melhor forma para se tratar de assuntos sérios seja com
seriedade, no sentido literal da expressão. Mas sim, que ao tratar de temas “cabeludos”,
possamos fazê-lo bem como a criança: entre a “pulga atrás da orelha” e a vontade de
brincar. Que possamos fazer de assuntos sérios também o nosso riso e o nosso
divertimento. Que possamos tratar de Nietzsche e Artaud na academia, mas que também
possamos discuti-los com a alegria e o entusiasmo próprios de um café da tarde. Afinal,
se não me engano, o que esses dois pensadores realmente buscavam era ser na vida.
Que a pesquisa, então, possa ser singela e saborosa como uma mesa de café colonial (e
que mesa!). Mas como toda hora do café, há o momento em que tiramos a mesa e
lavamos a louça. Mãos à obra!
Filosofando como em uma mesa de café, a presente pesquisa pretende apontar
alguns dos cruzamentos e diferenças estudadas, neste um ano, entre Nietzsche e Artaud1.
O primeiro, filósofo alemão do final do século XIX, professor de letras clássicas,
filosofia grega e autor de um dos livros mais polêmicos de sua época: O Nascimento da
Tragédia (1871), sendo esta a primeira obra publicada de Friedrich Nietzsche (1844 –
1900). Ainda muito jovem, com apenas 26 anos, ele aparece para a Alemanha no
cenário dessa obra que, segundo o próprio filósofo, em sua Tentativa de Autocrítica,
nasce a partir de uma constatação de que os gregos, precisamente esse povo, tiveram
uma necessidade da tragédia, mais ainda, da arte.
Para tratar do momento em que nasce a tragédia, Nietzsche discorre sobre os
dois instintos primordiais da tragédia grega: o apolíneo e o dionisíaco. É sobre o
apolíneo-dionisíaco que o filósofo vai discorrer durante a maior parte do livro, dizendo-
nos que a existência do mundo só se justifica como fenômeno estético, ou, nas palavras
1 Respectivamente, nas obras O Nascimento da Tragédia e O Teatro e Seu Duplo.
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do próprio autor, que a arte seria a justificação estética da existência.
Nietzsche divide o livro em 25 aforismos, sendo que do primeiro ao quarto ele
discorre principalmente sobre o apolíneo e o dionisíaco. Do quinto ao oitavo, trata desde
a problemática da tragédia até a relação do espectador com a obra de arte. Do nono em
diante, começa a tratar sobre o fim da tragédia, a morte de Dionísio, o nascimento da
filosofia socrática, a cultura alemã, a ópera e o redespertar do dionisíaco. Vemos aí que
O Nascimento da Tragédia é um livro dotado de numerosas e complexas questões,
porém acreditamos haver uma que atravessa todo este livro de Nietzsche, que é,
precisamente, a relação de forças entre o apolíneo e o dionisíaco. No que diz respeito a
Nietzsche, o que nos interessa é pensar o apolíneo e o dionisíaco no âmbito da arte,
atuando conjuntamente como fruto de um ato da vontade e da necessidade que faz
nascer a tragédia.
Em 1886, O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música2 é re-editado por
Nietzsche com o título O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo3. Junto a
isso, o filósofo publica um prefácio tardio, ou, como ele mesmo diz, um posfácio. Após
já ter publicado as suas mais conhecidas obras, Nietzsche começa a escrever críticas
sobre as mesmas, realizando, como já mencionamos, a sua Tentativa de Autocrítica. O
que fazer então, quando nos deparamos logo nas primeiras páginas de O Nascimento da
Tragédia, com a seguinte frase do autor?:
“Dito mais uma vez, hoje ele é para mim um livro impossível – acho-o mal escrito, pesado, penoso, frenético e confuso nas imagens, sentimental, aqui e ali açucarado até o feminino, desigual no tempo [ritmo], sem vontade de limpeza lógica, muito convencido e, por isso, eximindo-se de dar demonstrações, desconfiando inclusive da conveniência do demonstrar [...]” (NIETZSCHE, 2010, p. 13-14).
2 Die Geburt der Tragödie aus dem Geist der Musik
3 Die Geburt der Tragödie oder Griechentum und Pessimismus
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De fato, estamos diante de uma obra dotada da complexidade de um pensamento
apolíneo-dionisíaco. Porém, ao ler as palavras do filósofo citadas anteriormente, nos
remetemos a Peter Sloterdijk, que em seu livro El Pensador em Escena4 (2000), escreve
sobre a obra de Nietzsche:
“O famoso prefácio de autocrítica datado em 1886 mostra, em parte, alguma luz sobre a questão, mas também a obscurece, porque o último Nietzsche já não é mais capaz de reconhecer em que medida era superior sua primeira obra, ainda que sua escritura fosse menos 'viril': a autocrítica é, além de estilisticamente brilhante, um exercício de retratação, pois aqui Nietzsche substitui a verdade de sua obra juvenil, a compreensão da dor primordial, pela 'verdade' do Nietzsche tardio, ou seja, a tese da vontade de poder [...]”5 (SLOTERDIJK, 2000, p. 35).
O que percebemos com esta conclusão de Sloterdijk é que já havia em O
Nascimento da Tragédia questionamentos que iriam perpassar toda a obra de Nietzsche.
Apesar de terem sido extremamente elaboradas e transformadas ao longo de sua vida,
ainda há a “verdade”, ou o “velho ideal” daquele primeiro Nietzsche; apenas muda-se o
nome. Questões sobre a arte e a vida, por exemplo, se fazem presentes de alguma forma
em toda a obra do filósofo, tendo surgido suas “raízes” em O Nascimento da Tragédia.
Em sua Tentativa de Autocrítica reconhecemos um Nietzsche maduro, porém, tendo
passado dezesseis anos, o próprio filósofo já não é mais capaz de reconhecer o valor e a
importância de sua obra - o que se tratando de Nietzsche, o “filósofo da suspeita”, não é
muito difícil de imaginarmos. Há também outra importante proposição de Sloterdijk que
4 Este livro se trata de uma tradução espanhola do livro: Das Philosophische Quartett
5 Sempre que utilizarmos traduções em português da tradução espanhola se tratarão de traduções livres realizadas por nós: “El famoso prefacio de autocrítica fechado en 1886 arroja, en parte, algo de luz sobre la cuestión, aunque también, dicho sea de paso, la oscurece, porque el último Nietzsche no es capaz ya de reconocer en qué medida era superior su primera obra, aun cuando su escritura fuera menos “viril”: la autocrítica es, además de estilisticamente brillante, un ejercicio de retratación, pues aquí Nietzsche sustituye la verdade de su obra juvenil, la comprensión del dolor primordial, por la “verdad” del Nietzsche tardío, a saber, la tesis de la voluntad de poder [...]”
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nos ajuda a reconhecer a relevância desse texto juvenil de Nietzsche:
“Pode compreender-se facilmente quão necessário era para o autor demonstrar que sua nomeação [quando foi convidado para dar aulas na Universidade da Basiléia] – diante de candidatos com mais crédito – não respondia simplesmente a um tratamento de favor, mas sim, que havia uma razão em sua legítima superioridade como extraordinário científico e pensador”6 (SLOTERDIJK, 2000, p. 35).
Assim, na primeira oportunidade que Nietzsche teve de publicar um livro e
aparecer para a Alemanha e para um grande público de leitores, escolheu, não mais do
que conscientemente, falar sobre um universo do qual possuía um grande conhecimento
e uma extraordinária visão. Ou seja, Nietzsche escolheu em que cenário gostaria de ser
visto pelo mundo, e foi precisamente, O Nascimento da Tragédia. Nesse sentido, não
devemos levar Nietzsche tão à sério quando este nos fala em sua Tentativa de
Autocrítica, pois o filósofo, agora tomado pelas suas novas “verdades”, despreza a sua
obra juvenil e não reconhece mais a importância de seu primeiro texto.
Entretanto, é precisamente no momento em que Nietzsche passa a desprezar a
sua obra e, consequentemente alguns leitores, que O Nascimento da Tragédia pode
retomar sua força e ser visto de uma outra maneira, num novo contexto. Sloterdijk
novamente nos presenteia com um pensamento acerca desta questão na obra
nietzschiana:
“Quando todo mundo deixou de acreditar neles [textos clássicos], eles começam a nos falar com uma nova voz. Quando se deixou de dar-lhes crédito, começam a nos enriquecer de modo mais surpreendente. Quando decidimos que eles não tem nenhum sentido para nós, começam a nos chamar discretamente. Justamente quando pensamos que lhes demos às costas definitivamente e nos libertamos deles de uma vez por todas, começam, lenta, porém irresistivelmente, a nos pisar os calcanhares – mas não como perseguidores ou como mestres inoportunos, senão como discretos antecessores e espíritos protetores, com cuja generosidade e discrição já não estávamos acostumados a
6 “Puede comprenderse fácilmente cuán necesario era para el autor demostrar que su nombramiento - por delante de aspirantes mejor acreditados - no respondía simplesmente a un tratamiento de favor, sino que tenía una razón en su genuina superioridad como extraordinario científico y pensador.”
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contar [...]”7 (SLOTERDIJK, 2000, p. 27).
É dessa forma, portanto, que deveríamos – e que tentaremos - ler Nietzsche:
“[...] como um pensador com o qual nos encontramos porque sua causa – inclusive
depois de ser despachada – segue estando presente: incômoda, deslumbrante,
estimulante, teatral [...]”8 (SLOTERDIJK, 2000, p. 28). Assim, tentaremos farejar9
algumas das questões em O Nascimento da Tragédia e encontrar algum lugar para elas
no momento em que vivemos hoje.
Tendo elucidado algumas das dificuldades de lidarmos com um livro “pesado”
como O Nascimento da Tragédia, passamos agora a Artaud (1896 - 1948), francês do
século XX. Conviveu desde muito cedo com a morte, sendo que seis de seus irmãos
morreram ainda criança. Contraiu meningite aos cinco anos de idade, sendo salvo por
“milagre” (LINS, 1999). Ator, escritor, dramaturgo, poeta e revolucionário do teatro,
ainda permanece para muitos como indecifrável. É de grande dificuldade encontrar um
“lugar” para Artaud, tendo em vista que este esbarra com os limites de diversas áreas do
pensamento-criação. Para alguns, o que Artaud faz é poesia, literatura. Para outros,
filosofia. E para outros ainda, apenas delírios de um esquizofrênico. Assim como O
Nascimento da Tragédia foi um dos livros mais polêmicos do século XIX na cultura
7 “Cuando todo el mundo ha dejado de creer en ellos, ellos empiezan a hablarnos con una nueva voz. Cuando se ha dejado de darles créditos, comienzan a enriquecernos del modo más sorprendente. Cuando hemos decidido que ellos no tienen ningún sentido para nosotros, empiezan a apelarnos discretamente. Y justo cuando pensamos que les hemos dado la espalda definitivamente y nos hemos liberado de ellos de una vez por todas, empiezan, lenta pero irresistiblemente, a pisarnos los talones – mas no como perseguidores o como maestros inoportunos, sino como discretos antecesores y espíritus protectores, con cuya generosidad y discreción ya no estábamos acostumbrados a contar.”
8 “[...] como un pensador con el que nos encontramos porque su causa – incluso después de ser despachada – sigue estando presente: incómoda, deslumbrante, estimulante, teatral [...]”
9 Para Nietzsche, o filósofo do porvir deveria filosofar com o nariz, e não mais com os olhos, tendo sido o sentido da visão sempre priorizado por estes: “O nariz, por exemplo, do qual nenhum filósofo falou com veneração e gratidão, o nariz é mesmo provisoriamente o instrumento mais delicado que temos a nosso serviço: é capaz de registrar diferenças mínimas no movimento, diferenças que nem o espectroscópio registra” (2008, p. 36 – 37).
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alemã, podemos dizer que O Teatro e Seu Duplo provocou semelhante impacto na
cultura francesa do século XX. Tendo sido concluído em 1935, em O Teatro e Seu
Duplo Artaud escreve acerca de um teatro que se mostraria como um duplo de uma
outra realidade, “perigosa” e “terrível”, que não se confundiria com o exterior dos fatos
e da qual o teatro de sua época já havia se afastado há muito tempo. Para se aproximar
desta realidade e do que ele considera como a arte “ideal”, Artaud se utiliza de algumas
analogias para o teatro como a peste, a alquimia, a metafísica, a crueldade e o atletismo
afetivo. Segundo Artaud, tais analogias são necessárias para que se possa reconduzir o
teatro e a cultura a uma relação imanente com a vida, chegando a dizer: “No ponto de
desgaste a que chegou nossa sensibilidade, certamente precisamos antes de mais nada
de um teatro que nos desperte: nervos e coração” (ARTAUD, 2006, p. 95).
Nesse sentido, acreditamos haver entre Nietzsche e Artaud grandes diálogos,
principalmente na importante relação que ambos estabelecem entre arte e vida, e o
teatro (ou a tragédia), precisamente, como o lugar em que a vida se refaz. Segundo
Camille Dumollié, as semelhanças entre Artaud e Nietzsche se iniciam pelo caráter
biográfico, quando esta nos diz que:
“A experiência comum da loucura impressiona em primeiro lugar; ainda que para Artaud seja uma travessia e, jamais, um afundamento irremediável, a imaginação vê ali algo que faz signo […] A dor igualmente e, a doença, são indissociáveis de suas vidas e de suas apreensões da existência10” (DUMOULIÉ, 1992, p. 09-10 ).
Porém, por maiores que sejam as aproximações biográficas, elas não seriam
suficientes para justificar um diálogo entre os autores. O que Nietzsche e Artaud
possuem em comum, muito mais do que suas vidas, é o desejo de encontrar na arte e,
10 Esta como as demais traduções deste livro foram realizadas por Luís Carlos Petry (tradução de caráter livre): “L'expérience commune de la folie frappe en premmier lieu; quoique pour Artaud ce fût une traversée et non un effrondrement irrémédiable, l'imagination voit là quelque chose qui fait signe [...] La douleur aussi, et la maladie sont indissociables de leur vie et de leur appréhension de l'existence.”
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especificamente, no teatro, um “remédio” para si e para o mundo. Por segundo, porém
não menos importante, é a relação que ambos estabelecem com a dor, o sofrimento e a
crueldade, sempre presentes em suas obras e em suas vidas, de forma indissociável uma
da outra. A obra, para ambos, não é apenas um lugar onde se despejam pensamentos e
desejos, mas sim, um espaço de combate. Um lugar onde o homem é capaz de refazer a
si mesmo e de colocar o mundo e aquele diante da obra, em movimento. O que os
aproxima, nesse sentido, muito mais do que as semelhanças biográficas,
“É antes uma visão de homem e do mundo, uma reflexão sobre nossa civilização considerada como aquela da decadência, uma recusa da metafísica e da ontologia tradicionais, da religião e da moral, a vontade de encontrar na arte e, no teatro em particular, o remédio para nossos males; é enfim, uma prática original da escritura, que fazem entre Artaud e Nietzsche os pontos de convergência. Se as aproximações biográficas podem fazer sentido, serão na medida em que se inscrevem naquilo que Roland Barthes chama 'estrutura de uma existência', quer dizer, 'uma temática, se queremos, ou melhor ainda: um conjunto de obsessões' que determina a obra e que a obra determina11” (DUMOULIÉ, 1992, p. 10 ).
A partir da pesquisa de autores como Camille Dumolié, Jacques Derrida, Gilles
Deleuze, Alain Virmaux, Suzan Sontag, Vera Felício, entre outros12, é possível
percebermos que Artaud leu Nietzsche - ou terá dialogado com ele num café da tarde?
Nos escritos do pensador francês já é possível notarmos, em meio às suas
convulsionantes ideias, os ecos nietzschianos. Em O Teatro e Seu Duplo não chegamos
a encontrar referências diretas à Nietzsche, porém, é possível percebermos a forte
presença que esse exerce sobre o pensamento de Artaud, principalmente no que diz
11 “C'est plutôt une vision de l'homme e du monde, une réflexion sur notre civilisation considérée comme celle de la décadence, un refus de la métaphysique et de l'ontologie traditionnelles, de la religion et de la morale, la volonté de trouver nas l'art, et dans le théâtre en particulier, le remède à nos maux, c'est enfim une pratique originale de l'écriture, qui sont entre Artaud e Nietzsche des points de convergence. Si les rapprochements biographiques peuvent faire sens, ce sera dans la mesure où ils s'inscrivent dans ce que Roland Barthes appelle “la structure d'une existence”, c'ést-à-dire “une thématique, si l'on veut, ou mieux encore: un réseau d'obsessions” (6) qui détermine l'oeuvre et que l'oeuvre détermine”
12 Demais autores que nos indicam uma possível aproximação entre Nietzsche e Artaud constam nas Referências Bibliográficas.
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respeito à importância da crueldade e, também da arte, especificamente o teatro, como o
lugar onde o homem é capaz de refazer a si mesmo.
Entretanto, mais do que insistirmos na questão de que Artaud foi marcado pelos
escritos nietzschianos, podemos pensar que Artaud apenas foi “influenciado” pelo
filósofo por já haver, na estrutura de sua existência algo que lhe fazia gritar diante de
Nietzsche.
“Para ambos, pareceria, o conjunto no qual se entrelaça obra e existência vêm anelar-se em um ponto, por sua vez secreto e exótico ao redor do problema da crueldade, experiência obsedante para cada um deles e noção central em seus escritos. Revela-se, assim, como o lugar de uma intriga onde se joga mesmo o próprio drama do pensamento13” (DUMOULIÉ, 1992, p. 10).
O que há, portanto, é uma certa “visão de mundo” que interpela Nietzsche e
Artaud. Visão esta, que tentaremos abordar na pesquisa a partir de algumas ideias que
encontramos, ou melhor, “farejamos” em determinados escritos: O Nascimento da
Tragédia e O Teatro e Seu Duplo. Acreditamos haver no pensamento de ambos -
principalmente de Nietzsche - uma “filosofia dos antagonismos”, que se manifesta na
obra em questão do filósofo alemão através de Apolo e Dionísio e, em Artaud, pela sua
ideia de Duplo. Além disso, ambos possuem uma forte relação entre vida, arte, cultura,
crueldade e sofrimento, sendo estes temas pensados como indissociáveis uns dos outros.
Esta pesquisa divide-se em três capítulos, sendo o primeiro nomeado Por Uma
Potência dos Antagonismos: Apolo, Dionísio e o Duplo, o segundo Vida, Arte e
Cultura: Uma Crítica, e o terceiro Necessidade, Crueldade ou “Teria dito Vida”. Em
13 “Pour tous deux, semble-t-il, ce réseau, oùs s'entremêlent l´oeuvre et l´existence, vient se nouer em un point à la fois secret et exotérique autour du problème de la cruauté, expérience obsédante pour chacun d´eux et notion centrale dans leurs écrits. Elle se révèle ainsi comme le lieu d´une intrigue où se joue le drame même de la pensée”.
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todos estes capítulos realizaremos uma abordagem de modo a mostrar como esses temas
se desenvolvem nos escritos em questão de Nietzsche e de Artaud.
Este estudo não se propõe a ser, de forma alguma, uma análise detalhada dos
livros em questão, mas sim, como um pincel com aquarela que realça aquilo que chama
a devida atenção aos olhos, destacar pontos nos textos em estudo. Ou realçar o que é
percebido pelo nariz: o cheiro da tinta, que deixa rastros a serem seguidos. Nesse
sentido, é sempre necessário saber escolher o que cheirar, que rastro se vai seguir.
Assim tentaremos, nessa pesquisa, realizar uma escolha acerca daquilo que farejamos
em Nietzsche e em Artaud. Talvez o nosso passo tenha sido maior que nossas pernas,
mas não nos amedrontamos diante disso, pois há sempre uma montanha para aquele que
quer sucumbir14.
14 A questão da montanha e do sucumbir em Nietzsche é, em sua maior parte, elaborada na obra Assim Falava Zaratustra. Vemos na montanha justamente a imagem da duplicidade que encontramos sempre presente em Nietzsche, pois nela encontra-se exatamente no mesmo ponto (o cume) a possibilidade de maior ascensão e também de maior declínio, onde a queda é mais alta.
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1. Por uma Potência dos Antagonismos: Apolo, Dionísio e o
Duplo
1.1 Aproximando...
“E esse duplo é mais do que um eco, é a lembrança de uma linguagem cujo segredo o teatro perdeu” (ARTAUD, 2006, p. 171).
A afirmação de Artaud com que iniciamos este
capítulo, nos remete claramente à crítica que tanto
este, como Nietzsche, realizaram da arte de suas
respectivas épocas. Para ambos, o teatro havia perdido
sua dimensão de magia, se tornando uma arte do
logos, como diria Nietzsche, uma arte apenas
apolínea. A crítica de Nietzsche se dá em relação à
tragédia (e também à cultura) ter perdido sua
dimensão apolínea-dionisíaca e, a tragédia,
consequentemente, acabaria por se tornar uma arte do logos, inaugurando Sócrates
como o novo personagem e eliminando a música e o coro, que proporcionariam o
esquecimento de si dionisíaco.
Artaud também critica o teatro psicológico Ocidental, como ele mesmo o
chama, onde se deseja exprimir razões de tudo, esquecendo-se da mímica do corpo, dos
gestos, dos sons, das palavras e de tantos outros elementos, colocando o texto, portanto,
no topo de uma hierarquia.
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Para realizar uma crítica da arte - que é impossível ser desvinculada da
cultura e, consequentemente, da vida -, ambos os autores partem de uma certa ideia de
dualidade. Tanto em O Nascimento da Tragédia, no caso de Nietzsche como em O
Teatro e Seu Duplo, no caso de Artaud, se faz presente, nas camadas mais profundas ou
superficiais, a relação que estabelecem com as dualidades, opostos, contrários,
antagonismos...
Segundo Camille Dumollié (1992, p. 49), ambos pensam o teatro “a
partir da dualidade e da divisão sexual” . No caso de Nietzsche, Apolo e Dionísio; no
caso de Artaud, ele se utiliza de diversas metáforas para exprimir a dualidade, como o
Feminino e o Masculino e analogias do teatro com a Peste, a Alquimia, a Metafísica, o
Atletismo e a Crueldade. Para Artaud (2006, p.49), “[...] o teatro deve ser considerado
como o Duplo não dessa realidade cotidiana e direta” , mas de uma outra realidade. É
nesse sentido, num jogo de opostos - que não são tão opostos assim - , que
começaremos a discutir a respeito da filosofia dos antagonismos em Nietzsche e em
Artaud.
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1.2. Apolo e Dionísio em O Nascimento da Tragédia
Segundo Nietzsche, na arte da tragédia estão presentes tanto o apolíneo como o
dionisíaco. Primeiramente, vamos pensá-los separadamente, para em seguida,
entendermos como se dá o jogo em que atuam esses dois instintos de forma conjunta.
Vimos em O Nascimento da Tragédia que o apolíneo e o dionisíaco eram,
primeiramente, instintos separados entre si. Para os gregos, Apolo era o Deus da arte
plástica, figurativa, e Dionísio, da arte não figurativa, da música15. Porém, quando surge
a tragédia ática, ambos os impulsos passam a atuar de forma conjunta, incitando-se para
novas criações.
“[...] ambos os impulsos, tão diversos, caminham lado a lado, na maioria das vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente a produções sempre novas, para perpetuar nelas a luta daquela contraposição sobre a qual a palavra comum 'arte' lançava apenas aparentemente a ponte; até que, por fim, através de um miraculoso ato metafísico da 'vontade' helênica, apareceram emparelhados um com o outro, e nesse emparelhamento tanto a obra de arte dionisíaca quanto a apolínea gerara a tragédia ática” (2010, p. 24).
Segundo Jean-Pierre Vernant (2008) a tragédia surge na Grécia no fim do século
VI, justamente no momento em que os gregos passam a assumir um certo
distanciamento dos seus mitos de heróis, mas ao invés de negá-los e rejeitá-los, passam
a questioná-los. A tragédia se inspira nesses mitos, porém, coloca justamente a
possibilidade de ação do homem diante deste universo mítico.
“Confronta os valores heroicos, as representações religiosas antigas com os novos modos de pensamento que marcam o advento do direito no quadro da cidade [...] O
15 Por outro lado, a música também era vista como apolínea na medida em que ela operava como uma arquitetura dos sons, mas apenas daqueles próprios da cítara. Entretanto, o elemento da música que nos leva para estados mais violentos e dilacerados era o Dionisíaco. O elemento musical que estava preocupado com uma certa noção de forma era apolíneo, enquanto o elemento que nos leva a um frenesi, a um êxtase, era dionisíaco. Precisamente esta música dionisíaca continha nos rituais a Dionísio que Nietzsche diz fazer parte da tragédia.
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momento da tragédia é, pois, aquele em que se abre, no coração da experiência social, uma distância bastante grande para que, entre o pensamento jurídico e social de um lado e as tradições míticas e heroicas de outro, as oposições se delineiem claramente; bastante curta, entretanto, para que os conflitos de valor sejam ainda dolorosamente sentidos e para que o confronto não deixe de efetuar-se” (VERNANT, 2008, p. 4).
Para compreendermos melhor esse acontecimento da tragédia, discutiremos
primeiramente o apolíneo. Nietzsche, logo no princípio de O Nascimento da Tragédia,
assemelha o apolíneo ao universo do sonho. Todo sonho é composto de imagem e
aparência16 , e vivenciamos tais imagens não apenas como um “jogo de sombras”, pois
se vive e se sofre durante um sonho. Nietzsche compara, inclusive, a experiência do
filósofo com a realidade da existência à experiência do artista com a realidade do sonho,
dizendo-nos que:
“Assim como o filósofo procede para com a realidade da existência [Dasein], do mesmo modo se comporta a pessoa suscetível ao artístico, em face da realidade do sonho; observa-o precisa e prazerosamente, pois a partir dessas imagens interpreta a vida e com base nessas ocorrências exercita-se para a vida” (2010, p. 25).
Vivencia-se de tal modo o sonho que muitas vezes, diz Nietzsche, quando
acordamos sobressaltados durante um sonho e percebemos que de fato aquilo era apenas
um sonho, sentimos exclamar dentro de nós: “Quero continuar a sonhá-lo!”. Isto se dá
porque vivenciamos a experiência do sonho no nosso ser mais íntimo, “fundo comum a
todos nós”, uma experiência de “profundo prazer e jubilosa necessidade” (2010, p. 26).
O sonho faz parte de um mundo de aparência, belas ilusões, fantasias e figuras
plásticas. Considerando-se o sonho dessa forma é possível compreendermos o fato de os
gregos terem atribuído a Apolo a qualidade do sonho. De acordo com Nietzsche, o
sonho possui uma natureza reparadora e sanadora, bem como o apolíneo na tragédia
16 Nietzsche muitas vezes assemelha o significado de “aparência” com o de “ilusão”.
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grega, que encobre com seu véu17 o caos dionisíaco, de modo a tornar a vida - e o
espetáculo da tragédia - possível de ser vivida.
Para compreendermos o apolíneo nietzschiano, além de sua analogia com o
sonho, devemos ter em mente a questão do principium individuationis (princípio de
individuação). Nietzsche (2010, p. 27) nos diz, inclusive, que é possível caracterizar
Apolo “com a esplêndida imagem divina do principium individuationis” . O princípio
de individuação faz com que o sujeito, em meio ao caos, se volte para si mesmo. Esse
voltar-se para si mesmo tem relação com um “conhece-te a ti mesmo”.
O que Apolo busca é a serenidade, que só se alcança no conhecimento de si.
Esse conhecimento atuaria como um espelhamento, segundo Machado. Ou seja, o
homem é capaz de conhecer a si mesmo quando se vê como um reflexo dos deuses que
ele mesmo criou. Se o apolíneo atua num conhecimento de si, é possível pensarmos o
dionisíaco pelo seu oposto: no esquecimento de si. É o dionisíaco, com a sua analogia à
embriaguez, que rompe o véu do principium individuationis. Tal analogia à embriaguez
não se dá simplesmente pelo fato da bebida em excesso, mas também pela época em
que se dava o culto a Dionísio: na primavera. Época de renovações, na qual a natureza
nasce novamente. Período capaz de gerar nos indivíduos uma alegria extasiante,
fazendo com que se esquecessem de si e selassem a sua união com a natureza.
“sob a magia do dionisíaco torna a selar-se não apenas o laço de pessoa a pessoa, mas também a natureza alheada, inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliação com seu filho perdido, o homem” (NIETZSCHE, 2010, p. 28).
17 Nietzsche nos diz que Schopenhauer, na primeira parte de O mundo como vontade e representação realiza uma analogia do apolíneo com o véu de maia: “Tal como, em meio ao mar enfurecido que, ilimitado em todos os quadrantes, ergue e afunda vagalhões bramantes, um barqueiro está sentado em seu bote, confiando na frágil embarcação; da mesma maneira, em meio a um mundo de tormentos, o homem individual permanece calmamente sentado, apoiado e confiante no principium individuationis [princípio de individuação]” (2010, p. 27).
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O filósofo também nos diz que sob o hino do dionisíaco, até o escravo é homem
livre, pois rompe todas aquelas “rígidas e hostis delimitações que a necessidade, a
arbitrariedade ou a 'moda imprudente' estabeleceram entre os homens” (2010, p. 28).
Sob o dionisíaco, o homem não age segundo a norma dos homens, mas segundo
a sua própria norma. O dionisíaco não sabe mais falar nem andar, mas sim, cantar e
dançar. Nietzsche chega a dizer-nos, inclusive, que o homem não é mais artista, mas
sim, obra de arte, pois atua como uma grande criação artística da natureza.
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1.3. Luta de Forças Entre Apolo e Dionísio
Sendo entendida a analogia que Nietzsche realiza do apolíneo com o universo do
sonho e com o principium individuationis, e a analogia do dionisíaco com a embriaguez
e o Uno-Primordial18, passamos a discorrer agora sobre como se dão esses dois instintos
quando atuam juntos, como na tragédia grega.
Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche nos fala sobre o momento em que há
a reconciliação do apolíneo com o dionisíaco:
“[...] por fim, das raízes profundas do helenismo começaram a irromper impulsos parecidos: agora a ação do deus délfico19 restringiu-se a tirar das mãos de seu poderoso oponente as armas destruidoras, mediante uma reconciliação concluída no devido tempo. Essa reconciliação é o momento mais importante do culto grego: para onde quer que se olhe, são visíveis as revoluções causadas por este acontecimento. Era a reconciliação de dois adversários, com a rigorosa determinação de respeitar doravante as respectivas linhas fronteiriças e com o periódico envio mútuo de presentes honoríficos: no fundo, o abismo não fora transposto por ponte nenhuma” (2010, p. 31).
Mas Nietzsche nos diz que esta reconciliação entre o apolíneo e o dionisíaco só é
possível quando o homem já houver se desprendido de si próprio.
“Para captar esse desencadeamento simultâneo de todas as forças simbólicas [dionisíacas], o homem já deve ter arribado ao nível de desprendimento de si próprio que deseja exprimir-se simbolicamente naquelas forças: o servidor ditirâmbico de Dionísio só é portanto entendido por seus iguais!” (2010, p. 32).
O grego apolíneo, contrário ao dionisíaco, mirava com assombro esse mundo das
forças simbólicas, de modo que não era possível compreendê-lo. Atentamos para
quando Nietzsche escreve que o impulso que se materializou em Apolo engendrou todo
o mundo olímpico e que neste sentido, Apolo deveria ser visto como o pai desse mundo.
18 Sobre o Uno-Primordial, ver o capítulo “Vida, Arte, Cultura: Uma Crítica”.
19 Dionísio, deus que retorna sempre na primavera.
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Mas o que fez com que os gregos, justamente este povo, criasse toda uma sociedade de
seres olímpicos, qual foi a necessidade? Para Nietzsche, a mesma necessidade que
chama a arte à vida.
Segundo o filósofo, na religião politeísta do povo grego não havia nada que
lembrasse elevação moral, “ascese, espiritualidade e dever, aqui só nos fala uma
opulenta e triunfante existência, onde tudo o que se faz presente é divinizado, não
importando que seja bom ou mau” (2010, p. 33). Mais do que nunca, tinham os gregos
uma Vontade de vida20 e, portanto, necessidade de arte. A sabedoria de sileno para este
povo, seria: “A pior coisa de todas é para eles morrer logo; a segunda pior é morrer um
dia” (2010, p. 34). Viviam em meio a um império de titãs, conheceram e sentiram os
temores do existir: “para que lhe fosse possível de algum modo viver, teve de colocar
ali, entre ele e a vida, a resplendente criação onírica dos deuses olímpicos” (2010, p.
33).
Tudo o que imperava fortemente no mundo grego, como a desconfiança diante
das forças da natureza, a influência ou o controle do destino sobre os seres, as trágicas
histórias de Prometeu, Édipo, entre outras, havia de ser encoberto através daquele
“artístico mundo intermédio dos Olímpicos, constantemente sobrepujado de novo pelos
gregos ou, pelo menos, encoberto e subtraído ao olhar. Para poderem viver, tiveram os
gregos, levados pela mais profunda necessidade, de criar tais deuses [...]”
(NIETZSCHE, 2010, p. 34).
Nietzsche se pergunta de que forma poderia viver o povo grego, um povo tão
20 Anos após a publicação de O Nascimento da Tragédia, Nietzsche critica essa Vontade de Vida em Assim Falava Zaratustra, no aforismo Da Superação de Si, dizendo que não há vontade de vida, mas sim, vontade de mais vida, ou, vontade de potência: Aquele que vive, que está na existência, não pode querer vir a existência. Há vontade de exercer mais vida sobre a existência. O que há, assim, é vontade de potência, e não vontade de vida.
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apto ao sensível e ao sofrimento, se não criasse todo um mundo de deuses olímpicos e,
consequentemente, uma arte tão valorosa, próxima à vida? É importante salientarmos,
mais uma vez, que o mesmo impulso que criou os deuses olímpicos se manifesta em
Apolo, impulso esse, que é o de proteger da existência, cobrindo o trágico da vida com
o véu de maia. Contrário a esse impulso, temos o Dionisíaco, que deseja aniquilar a
existência do homem como indivíduo de modo a reconciliá-lo com a natureza e com o
Uno-primordial.
Mas a relação de forças entre Apolo e Dionísio é mais ambígua do que parece. À
medida que adentramos mais nessa luta percebemos saliências que em seguida nos
escapam. Escapam-nos por ser precisamente do nível do impossível fechar em um
conceito o que o filósofo nos propõe. O apolíneo e o dionisíaco nietzschiano só podem
ser compreendidos de fato na ação, se houver o movimento no corpo, na carne e no
espírito do que é essa luta agonística entre ambos os instintos. Nietzsche não exalta o
dionisíaco nem rejeita o apolíneo. Nesse sentido, seguimos pegadas de que o dionisíaco
de Nietzsche seja “apolinizado”. Trata-se, portanto, de um Dionisíaco com forma. Diz-
nos Nietzsche que
“A tragédia interpõe, entre o valimento universal de sua música e o ouvinte dionisicamente suscetível, um símile sublime, o mito21, e desperta naquele a aparência, como se a música fosse unicamente o mais elevado meio de representação para vivificar o mundo plástico do mito. Confiando nessa nobre ilusão, ela pode agora agitar seus membros na dança ditirâmbica e entregar-se sem receio a um orgiástico sentimento de liberdade, no qual ela, enquanto música em si, não poderia atrever-se, sem aquele engano, a regalar-se. O mito nos protege da música, assim como, de outro lado, lhe dá suprema liberdade” (2010, p. 123).
Ao que nos parece, Nietzsche quer dizer-nos que à medida que o dionisíaco se
exerce, obrigatoriamente ele chama o apolíneo, que dá forma a esta “potência artística
21 O mito para Nietzsche, por ser do âmbito das figuras plásticas, pertenceria ao apolíneo.
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eterna e originária”. É Apolo, portanto, que faz possível vivermos o dionisíaco. “Eis o
verdadeiro desígnio de Apolo: sob o seu nome reunimos todas aquelas inumeráveis
ilusões da bela aparência que, a cada instante, tornam de algum modo a existência digna
de ser vivida e impelem a viver o momento seguinte” (NIETZSCHE, 2010, p. 141).
Roberto Machado, em seu livro O Nascimento do Trágico, nos diz que para
Nietzsche o saber trágico é muito mais importante e profundo do que o saber apolíneo.
Diz-nos, inclusive, que o dionisíaco nietzschiano é fundamentalmente o culto das
bacantes. Porém, é possível percebermos que apenas na página 125 de O Nascimento da
Tragédia , quase no fim do livro, Nietzsche nos mostra uma outra visão de Apolo. De
acordo com Machado, o filósofo alemão reconhece os limites de uma visão apolínea;
porém, é possível percebermos também o outro oposto de Nietzsche, quando ele diz-nos
que:
“o compadecer-se ante o sofrimento primordial do mundo, como imagem similiforme, nos salva da contemplação imediata da suprema idéia do universo, assim como o pensamento e a palavra nos salvam da efusão irrepresentada do querer inconsciente. Graças a essa esplêndida ilusão apolínea se nos afigura como se o próprio reino dos sons viesse ao nosso coração qual um mundo plástico [...] Assim, o apolíneo nos arranca da universalidade dionisíaca e nos encanta para os indivíduos: neles encadeia o nosso sentimento de compaixão22, através deles satisfaz o nosso senso de beleza sedento de grandes e sublimes formas; faz desfilar ante nós imagens de vida e nos incita a apreender com o pensamento o cerne vital nelas contido” (2010, p. 125).
Deparamo-nos aí com a visão de um Nietzsche não tão abordada atualmente. De
fato, o filósofo reconhece os limites do apolíneo e discorre em grande parte do livro
sobre isso, mas da metade do mesmo em diante, Nietzsche passa a reconhecer também
22 Ao falar de compaixão (esta citação se refere à anos depois da publicação de O Nascimento da Tragédia, portanto, outro período da obra nietzschiana), Nietzsche não nos fala da noção cristã de “compaixão pelo próximo”, mas de uma compaixão que atua como um princípio seletivo, que escolhe. O diz: “Esse problema do valor da compaixão e da moral da piedade [...] parece ser, à primeira vista, uma questão isolada, uma interrogação à parte; mas quem se detiver um pouco, quem souber interrogar, verá, como aconteceu comigo, abrir-se uma formidável perspectiva nova [...] Necessitamos de uma crítica dos valores morais e, antes de tudo, deve-se discutir o valor desses valores [...]” (A Genealogia da Moral, 2009, p. 20, § 6) .
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os limites de uma visão dionisíaca do mundo. Segundo Peter Sloterdijk, “a posição de
Nietzsche a favor da simetria e [...] sua opção pelo submetimento do Dionisíaco sob a
construção simbólica apolínea, reforça a tese de que no século XIX existam poucos
livros tão apolíneos como O Nascimento da Tragédia”23 (2000, p. 13).
Sloterdijk também percebe, em O Nascimento da Tragédia, que a predominância
temática do dionisíaco não pode se dar sem a supremacia de Apolo. Na introdução do
livro traduzido para o espanhol, El Pensador em Escena, Germán Cano nos diz que esta
obra nos oferece, ou melhor, nos presenteia, com uma interpretação de O Nascimento
da Tragédia não como um manifesto dionisíaco - como é comumente visto - , mas sim,
como uma “abertura” apolínea para o fenômeno do trágico. Apenas recentemente
tivemos conhecimento de tais ideias de Sloterdijk acerca da obra nietzschiana, porém, já
nos sentimos interessados em investigar mais “profundamente” suas hipóteses acerca do
apolíneo/dionisíaco nietzschiano. Diferentemente do que havíamos estudado até então
sobre interpretações de O Nascimento da Tragédia, Sloterdijk (2000, p. 14) nos mostra
um Nietzsche “preocupado com a medida e o controle das paixões, com a capacidade de
dominar o caos, de criar uma vontade, de configurar, em resumo, um estilo de vida”24 .
23 “[...] la posición de Nietzsche a favor de la simetría y [...] su opción por el sometimiento de lo dionisíaco bajo a la construcción simbólica apolínea, refuerzan la tesis de que en el siglo XIX existen pocos libros tan apolíneos como El nascimiento de la tragédia”.
24 “preocupado por la mesura y el control de las pasiones, por la capacidad de dominar el caos, por crearse una voluntad, por configurar, en suma, un estilo de vida”.
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1. 4. Duplos de Artaud e os Duplos em Artaud
Como vimos em Nietzsche, o filósofo trata do apolíneo e do dionisíaco de modo
a formarem uma unidade e, a tragédia, é justamente fruto dessa união entre Apolo e
Dionísio. Para Artaud, o Duplo é experiência de desordem (cruel e necessária) e deve o
teatro nos colocar em relação com esta. Nietzsche também vê a duplicidade como
desordem. Não é por acaso que fala da luta agonística entre Apolo e Dionísio, porém,
enquanto Nietzsche pensa por fim, a tragédia como uma unidade entre ambos, em que
se deixa o oponente retirar as armas de suas mãos, essa mesma desordem, proveniente
do Duplo, deve permanecer manifesta no Teatro da Crueldade de Artaud.
Para pensar a questão do Duplo, Artaud parte de diversas metáforas nas quais o
livro O Teatro e Seu Duplo é dividido, como: O teatro e a peste, o teatro e a alquimia, o
teatro e a metafísica, o teatro e o atletismo e, por fim, o teatro da crueldade, questão que,
como veremos, é um dos núcleos centrais na obra de Artaud. Neste capítulo, nos
deteremos em algumas dessas metáforas.
Em relação ao Feminino e o Masculino, Artaud também nos fala de um terceiro,
o Neutro, que Artaud (2006, p. 168) diz ser “[...] às vezes inexistente. É um Neutro de
repouso, de luz, de espaço enfim” . Tal relação com o Neutro já nos mostra a influência
da cultura Oriental em Artaud, onde o vazio é existente, mesmo que seja em repouso.
Mas, como princípios ativos, pensa no Feminino e Masculino. Para pensar o Feminino e
o Masculino, Artaud parte, primeiramente, da respiração. Diz-nos que o Feminino é
“tonitruante e terrível, como o uivo de um fabuloso molosso, atarracado como as
colunas cavernosas, compacto como o ar que mura as abóbodas gigantescas do
subterrâneo” (ARTAUD, 2006, p. 169).
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Quanto ao Masculino, Artaud (2006, p. 170) nos diz que ele “não é nada”. “Ele
mantém força, mas me sepulta na força” . Nesse sentido, Artaud reconhece maior
importância ao Feminino, dizendo-nos inclusive que “é pelo ventre que o silêncio deve
começar” (p. 167).
Mas como o próprio título do livro sugere, O Teatro e Seu Duplo trata de
diversos aspectos que Artaud enxerga como sendo os Duplos do próprio teatro, não
restringindo-se, ao que acreditamos, à duplicidade sexual, tema este que se encontra a
maior parte contido em O Teatro de Séraphin. Mas esse duplo não é uma imagem, nem
um reflexo (VIRMAUX, 2009). Na obra em questão, Artaud realiza uma analogia do
teatro com a Peste, a Alquimia, a Metafísica, o Atletismo e, principalmente, a
Crueldade. Mas em todos esses aspectos, não há um reflexo do que pode ser o teatro,
mas sim, o que é o teatro. É nesse sentido que para Artaud “A peste, por exemplo, não é
a imagem do teatro, ela é o teatro” (VIRMAUX, 2009, p. 45).
Quando Artaud realiza, ao nosso ver comum, “metáforas” do teatro, ele está, na
verdade, à procura de uma “identidade” do teatro, de como este pode re-encontrar a si
mesmo e renovar suas forças, seja através da Peste, da Alquimia, da Crueldade, enfim.
“Se o teatro é um duplo da vida, a vida é um duplo do verdadeiro teatro” (ARTAUD
apud VIRMAUX, 2009, p. 45).
É assim, portanto, que o teatro se faz a melhor forma de experienciar a vida e,
também, o seu oposto: A verdadeira vida como a melhor forma de experienciar o
verdadeiro teatro.
Apesar de Artaud insistir na ideia de manter a contradição manifesta e recusar a
unidade como esvaziamento da crueldade que é oriunda da contradição, deseja uma
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“reconciliação necessária da mente e do corpo, reconhecimento global de todo o seu
ser, do qual o palco seria o lugar privilegiado” (VIRMAUX, 2009, p. 15). Segundo
Virmaux (2009, p. 15), Artaud escolhe o teatro por, entre outras numerosas coisas, lhe
permitir “manifestar seus diversos talentos de cenógrafo, de ator, de diretor, de poeta”.
Nesse sentido é que Artaud procura uma unidade entre as diversas “partes” de seu ser,
entre corpo e mente, e entre as múltiplas aptidões que possui. É no teatro, precisamente,
que Artaud encontraria a possibilidade de exercer-se na sua plenitude e de transpor à
arte a sua vivência do sofrimento e da doença, que mostraram a ele desde sua infância
que mente e corpo são inseparáveis. Mais do que isso, o corpo também é mente e a
mente também é corpo.
O teatro, portanto, “torna-se o ´duplo`, não da realidade cotidiana e sensível, mas
de uma realidade invisível, ´perigosa e típica`. O teatro da crueldade pretende assim
ampliar nossa experiência do real” (QUILICI, 2004, p. 77).
Diferentemente de Nietzsche, em que o duplo tem como finalidade a ocasião de
uma síntese ou de uma colocação à distância, um distanciamento da violência e da
morte como superação, para Artaud o duplo é a marca de uma anarquia exacerbada
(VIRMAUX, 2009). Mas essa anarquia que ele deseja manter manifesta é uma anarquia
que se organiza (ARTAUD, 2006, p. 52). Na base de toda criação há o Caos, pois “[...]
onde reinam a simplicidade e a ordem não pode haver nem drama nem teatro” (2006, p
52). Mas para que essa “necessidade primordial do teatro” (ARTAUD, p. 51) se
materialize é preciso existir uma “Vontade Una – e sem conflito” (ARTAUD, p. 52)25.
Nesse sentido, inclinamo-nos a pensar que Artaud talvez não esteja tão afastado
25 É possível reconhecermos, nesta citação e na anterior, grandes traços do pensamento nietzschiano do qual Artaud se aproxima.
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da ideia de Unidade quanto parece. Principalmente quando este nos diz que as lutas
filosóficas são “o lado apaixonante” dessas primitivas unificações que chamamos de
drama, teatro ou poesia. É evidente que o cerne da preocupação de Artaud é sempre
deixar a contradição e a luta manifestas, mas isso não exclui de modo algum que este
pense que a unidade não deve se fazer presente na criação.
Assim, vemos a ideia da Unidade em Artaud bem como a vemos expressa no
Nietzsche de O Nascimento da Tragédia26. Esta unidade da qual Nietzsche nos fala nada
tem a ver com uma ideia acabada. É, na realidade, um desejo de unidade, uma unidade
que quer exercer-se o tempo todo. O que há, nesse sentido, é uma manutenção da tensão
- e não a sua eliminação -, que se dá a partir desse desejo de tornar-se unidade, de vir-a-
ser. Mas uma vez e sempre que ela é encontrada, Apolo ou Dionísio (ou as lutas das
quais Artaud nos fala, sejam expressas por qual duplo do teatro for), que haviam cedido
as armas a seu oponente, roubam-nas mais uma vez de suas mãos, recomeçando a luta
agonística até o ponto em que a unidade deseje se exercer novamente. E novamente, e
novamente...
Desse modo, cremos que ao mesmo tempo em que Artaud deseja manter a
contradição sempre manifesta também procura romper com as fronteiras, quando, por
exemplo, estabelece uma relação de imbricação entre obra e vida, corpo e mente,
loucura e sanidade, dentro e fora. Para Artaud, não há mais superfície. Tudo é corpo,
tudo é penetrado. Tudo lhe invade, tudo o que acontece lhe afeta no corpo, não havendo
divisão entre exterior e interior: Tudo é corporal.
26 Apesar de tal semelhança, a ideia de Unidade diferencia-se entre ambos na medida em que para Nietzsche ela possui como finalidade um distanciamento, enquanto Artaud pensa que apesar da unidade, que é inevitável, quem quer que participe do espetáculo deve ser invadido por ele, sem distanciamentos ou mediações.
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Essa imbricação não é resultado de uma unidade que visa um distanciamento do
cruel e do terrível da vida, pelo contrário. Ela é justamente a afirmação da crueldade.
Como veremos mais adiante27, para Artaud o mal é a lei permanente, e o bem é sempre
um esforço, sendo, portanto, uma crueldade acrescida à outra.
“Nessa dualidade afirmativa, onde o caos é condição necessária da produção da forma o caos reduz-se perigosamente, até o ponto em que todas as formas oscilam no limite de retorno ao caos. A crueldade é o rigor absoluto dessa lei cósmica, pela qual uma forma, ao se afirmar, afirma também sua negação – e é ainda a consciência aplicada e lúcida desse modo de exercício de vida” (ARANTES, 1988, p. 129).
Esse “modo de exercício de vida” advém da visão cosmológica artaudiana que
concebe o mundo na sua dualidade, mas que, contrário a Nietzsche, não procura como
resultado uma unidade que vise o distanciamento, pois “[...] Artaud, homem moderno,
já não pode mais cindir a experiência real da experiência possível. Mas tampouco pode
tomá-las como uma unidade dada e realizada” (ARANTES, 1988, p. 130). A metáfora
que Artaud realiza do teatro com a peste, por exemplo, não busca obter um terceiro (que
seria a síntese da contradição, a unidade), como no caso da luta entre Apolo e Dionísio
em que há o nascimento da tragédia grega a partir de uma vontade una e primordial. O
que há, no caso de Artaud, é que “o teatro e a peste são idênticos e diferentes [ao mesmo
tempo]” (ARANTES, 1988, p. 22), sendo o teatro o duplo de uma outra realidade, que
poderia ser a da peste, basta que não seja desta realidade cotidiana reconhecida pelo
exterior dos fatos (ARTAUD, 2006, p. 8).
A peste é o duplo do verdadeiro teatro pois ela também acorda multidões
adormecidas e traz um novo estado de consciência: vigia e alerta, como se houvesse
sempre algo prestes a atacar. Bem como a peste, o teatro não é um caminho para a
27 Para tal, ver o capítulo Necessidade, Crueldade ou “Teria dito Vida”.
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verdade, mas a própria verdade (ARANTES, p. 13). Nesse sentido, o teatro para Artaud
não é uma mediação, um caminho para que o homem possa se refazer, mas é o próprio
corpo-lugar onde o homem se refaz. Vemos isso mais claramente quando Artaud nos
fala que o teatro deve ser um acontecimento (2006), ou, mais precisamente, quando este
nos diz acerca das pinturas de Van Gogh, dizendo-nos que este não é apenas uma
pessoa, mas um acontecimento (2007). Bem como ocorre com Van Gogh, o teatro não é
apenas uma forma, mas um acontecimento que se insere nos corpos, no intelecto, na
carne de quem dele participa. Não se assiste mais ao espetáculo da crueldade. Nesse
ponto, podemos dizer que difere-se bastante do pensamento nietzschiano, no qual o
público assiste e louva o artista trágico. No teatro de Artaud quase não há mais distinção
entre público e ator. O espectador não é mais espectador, alguém que assiste do lado de
fora de uma vitrine. Há um coro de pessoas chamadas a agir aqui, agora, no exato
momento da ação teatral. O teatro da crueldade é, dessa forma, muito mais próximo do
ditirambo dionisíaco do que da tragédia grega. É muito mais uma festa, um rito, pois
“[...] ele deve provocar 'um desastre social completo, uma desordem orgânica' em que todas as estruturas habituais da vida serão lançadas ao choque explosivo (estilhaçadas). É uma festa no sentido mais profundo do termo; à imagem de uma crise sacrificial, cujo resultado seria, não o sacrifício ritual de uma vítima emissária mas o aniquilamento dos protagonistas, a hecatombe dos participantes na presença do público. Assim compreendemos a disposição cênica proposta por Artaud: o espetáculo de circundar (envolver) o público, tomado no seio do conflito e da violência, fechado no círculo da crueldade do qual ele se torna a vítima. Ali igualmente se encontra justificada a comparação entre o teatro e a peste: trata-se de uma epidemia, de um transbordamento que o dionisíaco é capaz de impedir” (DUMOULIÉ, 1992, p. 53)28.
Nesse sentido a peste, assim como o teatro, faz vir à tona aquilo que estava
28 “[…] puisqu'il doit provoquer “un désastre social si complet, un tel désordre organique” (IV, 26), que toutes les structures habituelles de la vie seront vouées à l'éclatement. Il est une fête dans le sens o plus profond du terme, à l'image d'une crise sacrificielle dont l'issue serait, non le sacrifice rituel d'une victime émissaire, mais l'anéantissement des protagonistes, l'hécatombe des participants, on l'occurence du public. Ainsi se comprend la disposition scénique proposée par Artaud: le spectacle doit entourner le public, pris au sein du conflict et de la violence, enfermé dans le cercle de la cruauté dont il devient la victime (93-92). Par là aussi est justifiée la camparaison entre le théâtre et la peste: il s'agit bien d'une épidémie, d'un débordement dionysiaque que rien ne peut enrayer”.
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submerso:
“O filho, até então submisso e virtuoso, mata o pai; o casto sodomiza seus parentes. O libertino torna-se puro. O avarento joga seu ouro aos punhados pela janela. O herói guerreiro incendeia a cidade por cuja salvação outrora se sacrificou. O elegante se enfeita e vai passear nos ossários” (ARTAUD, 2006, p. 20).
O teatro bem como a peste trazem à tona as contradições que até então estavam
mascaradas. Rompem as divisões entre o público e o individual, quebram as aparências
e as ilusões, fazendo-nos ver embaixo da pele. “Para Artaud, a peste instala o teatro,
assim como o teatro deve instalar a peste” (ARANTES, 1988, p. 16). Artaud nos diz que
se há algo semelhante entre o ator e o pestífero é o fato de que a peste ataca o corpo e
este pode morrer sem nenhuma destruição da matéria, bem como o ator, que é capaz de
reunir toda a força necessária para uma ação e, no entanto, “nada” acontecer. Mas a
diferença, neste mesmo ponto, é que a peste reúne suas forças e as esgota, enquanto o
ator reúne suas forças e não as esgota, podendo ser, dessa forma, muito mais potente do
que a própria força da peste, pois a ação teatral dá de beber à força que a produziu ao
invés de esgotá-la, como ocorre na peste.
“Uma vez lançado em seu furor, é preciso muito mais virtude ao ator para impedir-se de cometer um crime do que coragem ao assassino para executar seu crime, e é aqui que, em sua gratuidade, a ação de um sentimento no teatro surge como algo infinitamente mais válido do que a ação de um sentimento realizado” (ARTAUD, 2006, p. 21).
Além da analogia do teatro com a peste, Artaud também realiza uma importante
metáfora do teatro com o atletismo, dizendo-nos que o ator é o “atleta do coração”
(2006, p. 151), sendo este um atleta afetivo. O ator, assim como o atleta, deve ter
consciência de seu corpo, sua respiração e seus músculos. Mas além dos músculos que o
atleta tem consciência e exercita, deve fazer o mesmo com outro músculo específico,
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que age como um esforço duplo, pois além de criar a força no corpo o ator deve
exercitar o coração.
“Isso significa que no teatro, mais do que em qualquer outro lugar, é do mundo afetivo que o ator deve tomar consciência, mas atribuindo a esse mundo virtudes que não são as de uma imagem, e que comportam um sentido material” (ARTAUD, 2006, p. 153).
Para que o ator tenha consciência de seu mundo afetivo é necessário pensar o ser
humano como um duplo, “como o Kha dos Embalsamadores do Egito, como um
espectro perpétuo em que se irradiam as forças da afetividade” (ARTAUD, 2006, p.
153). O trabalho do ator, portanto, requer ele ser capaz de ter consciência do seu mundo
afetivo e fazer disso imagens e formas, pintando o espaço com os afetos.
“A crença em uma materialidade fluídica da alma é indispensável ao ofício do ator. Saber que uma paixão é matéria, que ela está sujeita às flutuações plásticas da matéria, dá sobre as paixões um domínio que amplia nossa soberania” (ARTAUD, 2006, p. 154).
Segundo Artaud, o teatro ocidental perdeu a sua dimensão de magia no sentido
de que não é capaz de reconhecer a força das paixões, dos afetos, vendo-os como meras
abstrações e realizando um teatro “psicológico”29 demais. É precisamente através da
respiração que Artaud nos diz ser possível re-encontrar o “tempo das paixões” (2006, p.
154). O que ele pretende é justamente que o ator possa tomar conhecimento de sua
respiração e ser capaz de descobrir nela novos mecanismos para assim, provocar e
despertar os afetos necessários. A respiração, portanto, deve acompanhar e servir como
estímulo para o mundo dos afetos.
“Não há dúvida de que, se a respiração acompanha o esforço, a produção mecânica da respiração provocará o nascimento, no organismo que trabalha, de uma qualidade
29 Ao falar de um “teatro psicológico Ocidental” Artaud está criticando o uso exacerbado da razão. Como Nietzsche, diz que o ser humano Ocidental há muito tempo esqueceu-se do corpo, confiando apenas no exercício da razão como aquele possível para adquirir compreensão e conhecimento.
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correspondente de esforço. O esforço terá a cor e o ritmo da respiração artificialmente produzida” (ARTAUD, 2006, p. 155).
Mas Artaud vai mais longe ao nos falar da respiração, e é aí que ela se encontra
como um duplo do ator, quando diz-nos que ao saber ativar a respiração necessária, que
pode ser Masculina ou Feminina - ou também, Andrógina -, o ator atua com o Yin
Yang , com “o segredo do cheio e do vazio”:
“O homem que levanta pesos, é com os rins que o faz, é com um desancamento dos rins que ele sustenta a força multiplicada de seus braços, e é curioso constatar que, inversamente, todo sentimento feminino que cala fundo, o soluço, a desolação, a respiração espasmódica, o transe, é na altura dos rins que ele realiza seu vazio, nesse mesmo lugar onde a acupuntura chinesa dilui a obstrução do rim” (ARTAUD, 2006, p. 158).
Nesse sentido, Artaud está nos dizendo que ao atuar com a respiração o ator
também está adquirindo consciência do seu duplo, pois atua através do cheio e do vazio,
masculino e feminino.“O ponto de heroísmo e do sublime é também o da culpa. É onde
batemos no peito. O lugar onde se recalca a raiva, aquela que consome e não avança”
(ARTAUD, 2006, p. 159).
É esse, portanto, o “atletismo da alma” (p. 159), o duplo do qual nos fala Artaud.
Uma anarquia organizada que acontece na crise, que deve
“liberar a violência libidinal, provocar o choque dos contrários para um conflito igualmente terrível tal como 'o primeiro nascimento das essências'. Longe de oferecer, tal como a tragédia, a imagem da harmonia, ele será 'a imagem da carnificina' da qual surge a criação”30 (DUMOULIÉ, 1992, p. 50).
Após termos tratado de alguns duplos do teatro em Artaud, levantamos a
hipótese de que essa ideia artaudiana da duplicidade aproxima-se do dionisíaco
30 “libérer la violence libidinale, provoquer le heurt des contraires par un conflit aussi terrible que 'le premier partage des essences'. Lion d´offrir, comme la tragédie, l´image de l´harmonie, il sera 'à l`image de ce carnage' d´où est issue la création”.
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nietzschiano. É possível percebermos que todas as analogias em questão que Artaud
realiza seja do teatro com a peste, com a alquimia, o atletismo afetivo e a crueldade,
possuem na sua profundidade o Caos, o momento em que as formas se perdem. Nesse
sentido, e talvez até ousadamente - mas o que é o filosofar se não, entre outras coisas,
ousadia? -, pensamos que o dionisíaco em Artaud esteja mascarado pela figura das
metáforas citadas acima.
Na profundeza de tudo, há o mal e a destruição, nos diz Artaud, e o bem é
também um mal pois é um esforço, uma crueldade acrescida à outra (2006). E, no fundo
da peste, da alquimia, do atletismo, da crueldade e de todas as metáforas que Artaud
realiza com o teatro o que há é sempre esse Caos, esse desejo de aniquilação que é, ao
mesmo tempo, propulsor da Criação.
Nesse ponto, já é possível percebermos o quão “dupla” é a ideia de duplo em
Artaud. Se podemos levantar mais uma hipótese, digamos: ao mesmo tempo em que o
duplo é uma anarquia exacerbada e ele deseja manter manifesta a contradição, também
procura eliminar os esboroamentos, como se tudo fizesse parte de um único organismo
vivo. Mas talvez a contradição em Artaud é tão presente que ambos os desejos ocorrem
juntos e ao mesmo tempo, e isso se dá justamente porque ele não pode ser de outra
forma. Artaud deseja ser múltiplo, e o é na sua totalidade.
Em relação a Nietzsche, encontramos a duplicidade expressa pelos deuses Apolo
e Dionísio fortemente enraizada em conceitos. Artaud, entretanto, embora tenha tratado
dos “duplos do teatro”, em momento algum nos deixa claro (ou nós que não fomos
capazes de compreender seu pensamento?) qual a sua ideia acerca da duplicidade:
Anarquia exacerbada ou Unidade? Unidade seria a anarquia que se organiza? Bem, o
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fato é que quando finalmente acreditamos ter encontrado uma resposta viramos a página
seguinte e ela já se desfaz com novas perguntas acerca da questão.
Cremos ser esta uma pesquisa que precise de tempo para degustar o sabor de
cada variedade à mesa, e esperamos que neste antagônico capítulo, tenhamos sido
capazes de não sermos tão antagônicos quanto a própria questão. Ou, seria justamente a
marca do antagonismo, o esperado de uma conversa entre Nietzsche e Artaud?
Talvez, não tratar tais questões de forma antagônica seria reduzi-las e mascará-
las em algo que não as sustenta. Como nos diz Müller-Lauter (2009, p. 36), Nietzsche, e
talvez possamos pensar em Artaud também, “[...]buscou sustentar o antagonismo como
sendo constitutivo do mundo” e “quanto mais de maneira decidida busca superar os
antagonismos, mais claramente eles vêm à tona”. E, assim, lavamos nossas mãos para a
próxima parte!
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2. Vida, Arte, Cultura: uma Crítica
2.1 Aproximando...
Nietzsche e Artaud, ao realizarem
uma crítica da cultura,
estão fazendo uma crítica
da arte e, consequente-
mente, da vida. Vida, arte
e cultura são sempre
pensadas como inseparáveis na obra
desses pensadores. Se existe algo que podemos afirmar como
um cruzamento em relação a ambos é a forma como se relacionam com a arte. Tanto
Nietzsche como Artaud possuem o mesmo desejo de encontrar na arte o “remédio” para
si e para o mundo, expressando na obra a sua vontade de combate. Um lugar onde o
homem, a vida e a cultura encontrariam a possibilidade de se refazer. Artaud (2006, p.
1) diz-nos que quando se fala tanto em cultura é justamente no momento em que a vida
se esvai, sendo que vemos este pensamento também presente na obra de Nietzsche.
Para ambos, o Ocidente vive um momento em que já afastou-se dos mitos, e
dessa forma, “[...] toda cultura perde sua força natural sadia e criadora” (NIETZSCHE,
2010, p. 133). A saída que ambos encontram para que a cultura possa nascer novamente
é, precisamente, a arte. Se Artaud vê o teatro como um “'estado' existencial, não
limitado a circunstâncias e espaços definidos” (QUILICI, 2006, p. 1), podemos dizer o
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mesmo do jovem Nietzsche, para quem a tragédia se estende para um plano muito além
da própria arte, passando a designar um modo trágico de vida.
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2.2 Vida, Uno-Primordial em O Nascimento da Tragédia
Segundo Márcio Benchimol (2002, p. 31), em O Nascimento da Tragédia, “[...]
Nietzsche atribui o status ontológico de coisa-em-si e origem de todo o mundo
fenomenal ao Uno-Primordial (das Ur-Eine), o qual, por isso mesmo, desempenha na
obra um papel semelhante ao da Vontade31 em Schopenhauer”. Porém, em Fragmentos
Póstumos, Benchimol nos mostra que Nietzsche, ao tratar do Uno-Primordial, havia
tentado dar conta da solução de alguns problemas apresentados pela doutrina
schopenhaueriana da Vontade como coisa-em-si: “'Solução do problema
Schopenhaueriano: a nostalgia pelo nada. [...] Aquela auto-supressão da Vontade [...] é
possível porque a própria Vontade nada mais é que aparência e o Uno-Primordial apenas
tem nela um fenômeno […]” (NIETZSCHE apud BENCHIMOL, 2002, p. 31).
Benchimol nos coloca, mais claramente, uma observação de Georg Simmel
sobre a diferença entre Nietzsche e Schopenhauer na questão da Vontade e do Uno-
Primordial:
“É interessante notar que assim como em Nietzsche o processo da vida se apodera da vontade como de seu órgão e meio, em Schopenhauer, pelo contrário, a vontade adquire aquele significado absoluto segundo o qual a própria vida não é mais que uma de suas manifestações, um meio para expressar-se a si mesma e de achar seu caminho. Para Nietzsche, queremos porque vivemos; para Schopenhauer, vivemos porque queremos” ( SIMMEL apud BENCHIMOL, 2002, p. 32).
Nesse sentido, a vida para Schopenhauer é uma escolha, ou seja, vivemos porque
queremos. A solução da vida seria, portanto, eliminar esse querer incessante, como diz o
31 Segundo Marcio Benchimol, a Vontade para Schopenhauer atua como “potência orgânica cega da qual o mundo dos fenômenos, assim como a razão e a consciência, [...] são apenas manifestações” (2002, p. 30). Estudaremos a noção de Vontade em Schopenhauer apenas na medida em que isto possa nos remeter à noção de Vontade para o próprio Nietzsche.
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próprio filósofo, essa “vontade cega”. Enquanto em Nietzsche queremos porque
vivemos: não há como eliminar o querer. É uma questão de necessidade. O querer é
inerente à vida. É evidente que Schopenhauer está presente no pensamento de
Nietzsche, sendo esse um desafio no que concerne a sua busca pela noção de Vontade.
Porém, eles se diferem em grande parte na medida em que Schopenhauer defende a
negação da Vontade. Ele via a Vontade como a causadora de toda a dor e desprazer
humano. Isto porque ela é um querer contínuo, uma sucessão de desejos, que quando
satisfeitos, imediatamente outro sobrepõe-se no lugar. A saída, portanto, seria negar
esta Vontade, o que coloca o homem na figura de “santo”, pois rejeita esse querer.
Mas Nietzsche concorda com Schopenhauer quando nos diz, em relação a
Vontade, que é ela que nos proporciona dor e desprazer. A diferença está no fato de que
Nietzsche não vê a dor e o desprazer como algo negativo, compreendendo o sofrimento
também como saúde. Nietzsche enxerga na dor, no declínio, no sucumbir e no erro, uma
grande importância. Tal característica é fortemente marcada por um pensamento trágico,
muito presente na filosofia nietzschiana. O que Nietzsche estabelece em O Nascimento
da Tragédia a partir do apolíneo e do dionisíaco como forças fundamentais do
fenômeno trágico, irá desenvolver no decorrer de seu percurso, porém, com diferentes
máscaras. O importante é que o filósofo sempre se coloca no abismo diante de questões
acerca dos grandes opostos complementares: vida e morte, doença e saúde, felicidade e
sofrimento, bem e mal. E, no caso de O Nascimento da Tragédia, - obra de um jovem
professor de literatura clássica grega -, apolo e dionísio.
A noção de vida, que irá atravessar toda a obra de Nietzsche pode ser
compreendida como intrinsecamente ligada à noção do Uno-Primordial dionisíaco. O
Uno-Primordial não seria propriamente a vida, mas o uno vivente, nos diz Benchimol.
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Segundo sua leitura:
“[...] a vida é pensada não como fenômeno (Erscheinung) ou acidente, mas como atributo primeiro e essencial, cuja negação implicaria a negação do próprio Uno-Primordial. É a vida, e não a Vontade que Nietzsche diz existir no 'fundo das coisas” (BENCHIMOL, 2002, p. 32).
Nesse sentido, entendemos que a Vontade pode ser negada porque ela não
implica a negação da vida. Mas a questão mais primordial é que mesmo a negação da
Vontade está à serviço dos interesses da vida. A vida, portanto, exerce no pensamento de
Nietzsche um papel fundamental e, é justamente a partir desta importância que é
possível pensarmos o Uno-Primordial nietzschiano. Para o filósofo, existe apenas uma
vida, e ela se manifesta como dor e contradição, onde quer que se manifeste. É a partir
daí que se desenvolve a noção de uno vivente, ou Uno-Primordial. Todos os indivíduos
estão ligados por uma unidade, que é a vida, sendo que esta se manifesta em cada um
deles. Seria a ideia de um mundo que age como um único organismo. “O Uno-
Primordial como uno vivente representa a totalidade da força vital da natureza
concebida como um único ser vivo não individualizado” (BENCHIMOL, 2002, p. 32).
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2.3 Crítica da Arte da Tragédia, Crítica da Cultura
A noção nietzschiana de vida é característica de seu pensamento trágico, pois no
fundo de todas as coisas, o que há é sempre dor e contradição que jamais podem ser
eliminadas, pois são intrínsecas à vida. Nesse ponto, é possível nos remetermos
novamente à Apolo e Dionísio e à crítica que Nietzsche realiza da perda do dionisíaco
na tragédia grega para, assim, refletirmos acerca do problema da cultura.
Nietzsche critica o fato de a tragédia, ao se separar do rito e se tornar um evento
do estado, perde a sua dimensão apolínea-dionisíaca. Com a morte da tragédia grega,
instaura-se um vazio, diferenciando-se completamente da morte das outras artes gregas
mais antigas, que morreram felizes e tranquilas (NIETZSCHE, 2010), dando espaço
para novas formas surgirem. A tragédia, nos diz Nietzsche, morreu de suicídio, mas
“nela continuou a viver a figura degenerada da tragédia” [...], conhecido como nova
comédia ática”32 (NIETZSCHE, 2010, p. 70).
Tal acontecimento Nietzsche relaciona, primeiramente, à Eurípedes:
“Excisar da tragédia aquele elemento dionisíaco originário e onipotente e voltar a construí-la de novo puramente sobre uma arte, uma moral e uma visão do mundo não dionisíacas – tal é a tendência de Eurípedes […] Dionísio já havia sido afugentado do palco trágico e o fora através de um poder demoníaco que fala pela boca de Eurípedes33” (NIETZSCHE, 2010, p. 76).
32 “A evolução do gênero cômico, entre os gregos, é dividida, em termos da produção dramatúrgica, em três fases consecutivas, a saber, a Comédia Antiga, cujo nome exponencial é o de Aristófanes (448-380 a.C), a Comédia Intermediária, representada por Antífanes e Aléxis, e a Comédia Nova. Esta começou a prevalecer por volta de 336 a.C; seus traços característicos encontram-se na representação da vida contemporânea por meio de pessoas imaginárias dela extraídas, no desenvolvimento do enredo e das personagens, na substituição do lance de espírito pelo humor a na introdução temática do amor romântico. Assemelha-se à tragédia de Eurípedes (o Íon, por exemplo) mais do que à comédia de Artistófanes. Do coro, só resta um bando de músico e dançarinos cujas apresentações pontuam os intervalos da peça. A Comédia Nova é de fato um progenitor óbvio do drama moderno. Mas o seu padrão moral é surpreendentemente baixo... Filemon e Menandro foram os principais poetas da Comédia Nova” (NIETZSCHE, 2010, p. 148: nota do tradutor).
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Ao praticamente aniquilar o coro da tragédia grega, Eurípedes está enterrando,
com isso, Dionísio. Assim, almeja falar a um outro espectador; este, que vê a si mesmo
afastado da embriaguez dionisíaca à medida que se aproxima, como um novo sol,
daquela Ideia relativamente esperta, singela, convincente34, mas sob uma nova máscara,
que não é nem mais sequer Apolo, mas sim, Sócrates.“Eis a nova contradição: o
dionisíaco e o socrático, e por causa dela a obra de arte da tragédia grega foi abaixo”
(NIETZSCHE, 2010, p. 76-77).
Portanto, o efeito trágico passa a não ser mais concebido à medida que com o
surgimento de Sócrates, os dois impulsos artísticos são expulsos da tragédia grega: o
apolíneo e o dionisíaco. Resta, portanto, uma arte que não é sequer apolínea, pois
Eurípedes não foi capaz de “fundar o drama unicamente no apolíneo, [...] sua tendência
antidionisíaca se perdeu antes em uma via naturalista e inartística: o socratismo
estético” (NIETZSCHE, 2010, p. 78).
O socratismo estético, diz-nos Nietzsche (2010, p. 78), “[...] soa mais ou menos
assim: 'Tudo deve ser inteligível para ser belo', como sentença paralela à sentença
socrática: 'Só o sabedor é virtuoso'”. Neste sentido, vemos que a crítica do filósofo não
se esgota apenas no que concerne à tragédia. Ao realizar uma crítica da tragédia grega,
Nietzsche também faz uma crítica – ou mais, um diagnóstico - da cultura. Com o
despertar da era Socrática, passa a não haver mais espaço para o esquecimento de si
dionisíaco. Há apenas uma escolha: “ser absurdamente racionais” (MUÑOZ, 2005, p.
215). Tal racionalidade passa a se manifestar na tragédia a partir da visão de Sócrates,
33 Levantamos a hipótese de que ao falar de um “poder demoníaco que fala pela boca de Eurípedes” o filósofo está tratando, precisamente, de Sócrates. Inclusive quando Nietzsche nos diz que em determinado momento, o dionisíaco passa a atuar na tragédia grega com máscaras (2007), acreditamos que esta máscara seria a máscara de Sócrates.
34 Crepúsculo dos Ídolos, In: Os Pensadores, 1974
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pois com Apolo, Dionísio era capaz de lutar? Com isso, tendemo-nos a nos inclinar na
direção de um Nietzsche dionísicamente embriagado, que defende a desmedida de si.
Porém, trata-se do jovem Nietzsche de O Nascimento da Tragédia, devendo
então, levar em conta que o Dionísio do filósofo desse período também sucumbirá sem
Apolo, restando apenas o Caos. Para que a tragédia seja um espetáculo teatral, no
sentido literal da expressão, é necessário dar as mãos à Apolo, e para que anteriormente
ao espetáculo se possua essa faísca criadora, dá-se as mãos a Dionísio.
Para que se possa avançar no degrau é necessário saber entrar no movimento
dionisíaco da vida, o momento da criação. É justamente por isso que Nietzsche
aproxima o dionisíaco ao Uno-Primordial, pois ele é o momento entre o nada e o tudo, é
esse momento em que se está em criação, em acontecimento. Mas não basta apenas que
esse acontecimento ocorra na carne, deve ser também liberado da carne. Em algum
determinado momento é necessário sair da criação, voltar o olhar do mundo para dentro
de si, o princípio de individuação. Assim, o caráter apolíneo faz, talvez, com que
Nietzsche seja capaz de dizer que a arte é a justificação estética da existência.
Em todo caso, a arte move o artista, seus desejos, seu pulso, tornados
conscientes, moldados e pensados para um outro, que pode ser o público ou quem quer
que se aventure nesse espetáculo-vida: A vida se disfarça – máscara - de arte para tratar
dela mesma. Segundo o filósofo, o vivente não pode falar da vida, pois é parte
interessada. A saída, talvez, seria a arte, como diz-nos Nietzsche no § 24 de Crepúsculo
dos Ídolos35, que está à serviço da vida?
Nesse momento, é possível relembrarmo-nos da leitura de Peter Sloterdijk, que
35 Ver Capítulo 3.
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inaugura uma visão de um Nietzsche um tanto peculiar, dizendo que o que nos aproxima
desse filósofo do século XIX não é a sua força em relação a vida, mas sim, a sua
fraqueza, a sua debilidade.
“De acordo com esta hipótese, a nova presença de Nietzsche se explicaria não tanto por sua inegável competência de crítico da cultura, psicológica e filosófica, cujo brilho seria efetivo até os dias de hoje, mas por uma debilidade que nos comove mais irresistivelmente que qualquer força”36 (SLOTERDIJK, 2000, p. 29).
Tal debilidade de Nietzsche consistiria no fato de que ele não pode ser um
especialista de nada, que nunca se contentou em fazer algo corretamente segundo os
critérios de uma única técnica. Diferentemente do que parece, isso não se dava pelo
filósofo ser incapaz de satisfazer os critérios de uma disciplina, pelo contrário: “A
miséria de Nietzsche começa e termina na sua incapacidade de conformar-se em fazer
uma e única coisa segundo as regras de uma técnica”37 (p. 30).
O que acontecia, segundo Sloterdijk, era que enquanto Nietzsche realizava
brilhantemente uma atividade, sempre praticava ao lado uma segunda, sendo, dessa
forma, suspeito de dispersão. Porém Nietzsche não era daquele tipo que possuía muitas
habilidades justapostas, elas não tinham o caráter de uma acumulação. Com o filósofo,
o que ocorria é que uma força atuava sempre através da outra. Ele não era filósofo e
músico, escritor e produtor, mas sim, era músico enquanto escritor, criador enquanto
filósofo, produtor enquanto teórico... O que permitia que Nietzsche realizasse uma
faculdade era justamente a outra que ele fazia enquanto. Não realizava uma atividade ao
lado da outra, mas sim, realizava uma atividade enquanto fazia a outra.
36 “Según dicha hipótesis, la nueva presencia de Nietzsche se explicaría no tanto por su innegable competencia crítico-cultural, psicológica y filosófica, cuyo fulgor sería siendo efectivo hasta hoy, cuanto por una debilidad que nos conmueve más irresistiblemente que cualquier fortaleza.”
37 “La miseria de Nietzsche comienza y finaliza en su incapacidad de conformarse con hacer una y única cosa según las reglas de una técnica”.
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Sloterdijk diz-nos, inclusive, que é em face desta “plástica imbricação de
linguagens e forças” que Nietzsche exige tanto de seu leitor. Não é possível
compreender Nietzsche se simplesmente se consideram seus escritos pelo conteúdo,
tomando-os ao pé da letra. A aproximação real da ação nietzschiana seria a única forma
capaz de compreender o que diz esse pensador. Se seguimos as pegadas de Sloterdijk
este nos traz a seguinte pergunta: Será possível separar a verdadeira leitura nietzschiana
de uma forma de ação, de vida? Obra nietzschiana e vida são inseparáveis? Talvez a
resposta não importe, mas sim, permanecer no contínuo movimento de espanto diante
da questão. Se podemos falar agora de uma forma mais concreta, diríamos que
Sloterdijk (2000 p. 32) defende a importância de O Nascimento da Tragédia como “uma
leitura obrigatória para todo aquele que pretenda salvar a vida da arte até o ponto em
que não seja mais possível ser um simples estudioso”38 .
38 “Una lectura obligatoria para todo aquel que pretenda salva la vida del arte hasta el punto de volverse imposible como simple estudioso”.
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2.4 Vida e Cultura em Artaud
Assim como a vida, a cultura perdeu a sua dimensão de crueldade, e é
justamente a partir do teatro que ela pode ser capaz de retomar suas forças. De acordo
com QUILICI (2004, p. 76), a crueldade artaudiana operaria justamente no sentido de
recobrar o homem à vida.
“Recorrer a uma linguagem que se dirija, em primeiro lugar, à sensibilidade, de modo cru e direto, sem muitas mediações, é também uma estratégia necessária em função de um determinado estado de coisas, ou seja, de uma cultura que se perdeu numa multiplicidade de 'sistemas de signos' que não aderem mais à vida” (QUILICI, 2004, p. 76).
A relação que Artaud estabelece do teatro com a cultura (que nesse caso pode ser
entendida como a vida) se dá na medida em que ele pensa que ambos perderam a
relação com o sagrado, restando apenas uma cultura e, portanto, um teatro que sofre do
excesso de mediações. Nesse sentido, Artaud estabelece uma analogia da fome com a
cultura, dizendo-nos que esta deveria operar no mecanismo da fome: Não deve ser luxo,
deve ser urgente, necessidade colada com a força da vida. A relação com a cultura,
portanto, deve ser da ordem da fome.
“O mais urgente não me parece tanto defender uma cultura cuja existência nunca salvou qualquer ser-humano de ter fome e da preocupação de viver melhor, mas extrair, daquilo que se chama cultura, ideias cuja força viva é idêntica à da fome” (ARTAUD, 2006, p. 1).
Essa fome da qual Artaud nos fala não é simplesmente uma fome de comida,
mas sim, que possui uma relação maior com a questão do apetite. O ser-humano deve
ser capaz de saber como e para onde redirecionar os seus apetites, não devendo
desperdiçá-los apenas na satisfação de suas necessidades “estomacais” e “sexuais”
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(QUILICI, 2006). Há, portanto, um direcionamento dos apetites e o teatro deve ser o
lugar onde se crie um novo sentido para estes, “despertando suas potencialidades
adormecidas” (QUILICI, 2006, p. 4). A fome
“'faz emergir os buracos vazios do corpo', ou seja, aquilo que possibilita uma experiência do corpo liberta dos códigos, das redes de significados, dos automatismos que o preenchem. Os espaços vazios do corpo encontram-se nos 'entre-órgãos', nas regiões que margeiam aquilo que no corpo é funcional e estruturado (os órgãos)” (KIFER apud QUILICI, 2006, p. 7).
Ao realizar uma crítica da cultura, Artaud está, bem como Nietzsche,
desenvolvendo uma crítica da arte. Para pensar o teatro, especificamente, é necessário
anteriormente voltar-se para a cultura e reconhecer nesta os sinais de decadência ou
saúde. Neste sentido, diz-nos Artaud (2006, p. 2), há uma ruptura entre as palavras e os
gestos, “[...] entre as coisas e as palavras, as ideias, os signos que são a representação
dessas coisas” . Artaud defende a ideia de que há um excesso de sistemas filosóficos na
nossa cultura e que estes sistemas estão mortos, pois se descolam das nossas ações,
sendo “[...] preciso insistir nessa ideia da cultura em ação” (2006, p. 2).
“Não diria que os sistemas filosóficos sejam coisas para se aplicar direta e imediatamente; mas de duas, uma: Ou esses sistemas estão em nós e estamos impregnados por eles a ponto de viver deles, e então que importam os livros? Ou não estamos impregnados por eles, e nesse caso não mereciam nos fazer viver; e, de todo modo, o que importa que desapareçam?” (ARTAUD, 2006, p. 2).
Vemos ai mais um traço do pensamento anárquico de Artaud, colocando em
cheque a importância dos sistemas de pensamentos. O que ele reivindica, nesse caso, é
uma relação imanente da vida com o pensamento, precisamente uma “cultura em ação”,
pois o que importa é que os sistemas estejam impregnados no nosso corpo de modo que
não se descolem de nossos atos: “É um monstro que se desenvolveu até o absurdo a
faculdade que temos de extrair pensamentos de nossos atos em vez de identificar nossos
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atos com nossos pensamentos” (ARTAUD, 2006, p. 3).
Mas o que fica evidente para nós, nesse caso, é o desejo cruel de Artaud que visa
aniquilar certos sistemas, principalmente quando ele nos diz que
“Pode-se queimar a biblioteca de Alexandria. Acima e além dos papiros existem forças: a faculdade de reencontrá-las nos será tirada por algum tempo, mas não se suprimirá a energia delas. E é bom que desapareçam algumas facilidades exageradas e que certas formas caiam no esquecimento[...]” (ARTAUD, 2006, p. 4).
O desejo de Artaud não se dá por um simples sentimento de destruição vazia,
pelo contrário. Acredita ele que é necessário que “certas formas caiam no
esquecimento” para que possamos recobrar a verdadeira cultura da qual nos
descolamos. É necessário que certos sistemas sejam aniquilados para atribuirmos ao
mundo um sentido que não dependa deles, mas que surja, antes de mais nada, da vida:
“[...] como se a verdadeira cultura não fosse um meio refinado de compreender e
exercer a vida” (ARTAUD, 2006, p. 4).
A esse descolamento da verdadeira cultura, Artaud atribui, em grande parte, à
perda do sagrado. Quando o ser humano cria um único Deus e apropria todo o sagrado a
ele, o divino passa a não fazer mais parte do mundo, mas sim, a ser exclusivo de Deus.
Porém, com o “fim do juízo de Deus”, o homem coloca-se em seu lugar, deixando,
assim, o divino reservado exclusivamente ao homem. Nesse sentido, Artaud pensa que a
morte de Deus é também a morte do homem. Quando Deus morre (ou quando o homem
mata o Deus) o divino se espalha pelo mundo, e é assim que deveria continuar, sem que
o homem se colocasse na figura do divino.
“O divino foi estragado por Deus. Isto é, pelo homem que, deixando-se separar da Vida por Deus, deixando que usurpassem o seu próprio nascimento, se tornou homem por manchar a divindade do divino” (DERRIDA, 2002, p. 166).
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Bem como a cultura, que está descolada da vida, Artaud pensa que a palavra
também descolou-se, perdendo sua dimensão de gesto e tornando-se, assim, apenas
representativa. Defende a ideia de que a palavra, assim como o pensamento, não
representa, ela é. Palavra e pensamento são um acontecimento, sendo indissociáveis do
corpo. Há fisicalidade nas palavras, elas devem trazer a complexidade e intensidade do
nosso sistema nervoso. A palavra portanto, é como um corpo, tratando inclusive da
linguagem de hieróglifo, na qual cada palavra não exprime um sentido de algo que é
exterior a ela, mas sim, possuindo nela mesma um sentido, uma palavra que seja
anterior às palavras (DERRIDA, 2002, p. 161).
Assim, levantamos a hipótese de que a escrita artaudiana aproxima-se de uma
ideia da relação de forças apolínea-dionisíaca, pois para Artaud a palavra ao mesmo
tempo em que é som e música antes de ser significado, deve ser como uma “[...] escrita
hieroglífica, escrita na qual os elementos fonéticos se coordenam a elementos visuais,
picturais, plásticos” (DERRIDA, 2002, p. 162).
Nesse sentido, podemos dizer que a noção de palavra e escrita artaudiana
aproxima-se tanto de Apolo quanto de Dionísio. Aproxima-se justamente do momento
em que a luta entre ambos se exerce, pois o que o ator precisa no teatro da crueldade é
primeiro tomar consciência do universo de sons, música e luzes das palavras para assim,
organizá-las no espaço:
“Tendo tomado consciência dessa linguagem no espaço, linguagem de sons, de gritos, de luzes, de onomatopeias, o teatro deve organizá-la, fazendo com as personagens e os objetos verdadeiros hieróglifos, servindo-se do simbolismo deles e de suas correspondências com relação a todos os órgãos e em todos os planos” (ARTAUD, 2006, p. 102).
Por meio do verdadeiro teatro (teatro que o Ocidente já desconhecia), desse
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Teatro da Crueldade, todas essas formas que caíram no esquecimento poderiam ser
retomadas. O teatro é o lugar onde a cultura, as formas, os signos e o próprio homem
tem a possibilidade de se refazer, ou, mais precisamente, de nascer de novo. Artaud
acreditava que o contato do homem com o teatro deveria provocar um novo nascimento,
que é justamente a noção de vida artaudiana39. A vida do homem, muito mais do que a
biológica, é a possibilidade que ele tem de se refazer a cada instante e o teatro,
precisamente, seria o lugar propício para esse acontecimento.
O teatro deveria ser capaz de “fazer nascer” tudo aquilo que a cultura perdeu e
corrompeu, corrompendo também a si mesma. Nos últimos dois anos de sua vida,
Artaud já não via mais o teatro apenas como um ofício de ator, mas sim, como um modo
de vida. Fazer teatro não se restringiria mais aos palcos, e é ai o momento em que teatro
e vida poderiam ser quase o mesmo (ARTAUD, 2006). Mais do que um ofício ou uma
forma, o teatro passa a ser um modo de viver a vida, numa relação em que sempre se
está a nascer de novo, a gerar um novo corpo. É ai, precisamente, que Artaud consegue
finalmente realizar o seu teatro da crueldade que tanto havia lhe gerado frustrações nos
palcos. Agora, o teatro da crueldade é realizado em si próprio, no seu corpo.
Nesse sentido, remetemo-nos à Virmaux (2009, p. 2) quando este diz-nos que
Artaud não é mais o “homem de teatro”, mas sim, o “homem-teatro” .
“A palavra 'teatro' continuará tendo uma importância fundamental, passando a designar um certo 'estado' existencial, não limitado a circunstâncias e espaços definidos. Designará também um poder, o próprio poder da gênese e da criação, capaz de propiciar ao homem a possibilidade de 'nascer de novo'” (QUILICI, 2006, p.1).
Teatro não é mais apenas espetáculo que acontece no palco, bem como obra de
arte não é mais objeto. Ambos passam a ser vistos como um acontecimento, um duplo 39 Para a noção de vida artaudiana, ver o capítulo: Necessidade, Crueldade, ou “Teria dito Vida”.
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da vida. A obra no seu estatuto de objeto seria inútil em si mesma. O seu valor estaria,
portanto, na capacidade de ela ser um acontecimento. Um acontecimento,
diferentemente de um objeto, jamais pode pertencer a alguém. Há algo no
acontecimento que produz sempre uma “dessubjetivação”, que é sempre impessoal.
Podemos perceber melhor este aspecto na passagem de Artaud (2006, p 5) em que ele
nos fala da importância de certos acontecimentos: “E é justo que de tempos em tempos
se produzam cataclismos que nos incitem a retornar à natureza, isto é, a reencontrar a
vida”. Desta forma, é possível pensarmos que há, na vida, uma necessidade de que
certas coisas aconteçam. Quando se diz que um acontecimento me aconteceu, não é
porque o acontecimento pertence a alguém, e sim porque ele atinge dimensões capazes
de modificar o sujeito pelo qual o acontecimento passou.
Segundo Deleuze (1974), os acontecimentos se efetuam em nós, mas não
pertencem a nós. O que há, de antemão, é uma vontade individual que faz com que o
acontecimento, “cidadão do mundo”, torne-se a “quase-causa” do que se produz em nós.
Nesse sentido, o acontecimento não é o que acontece, mas ele é “no que acontece o puro
expresso que nos dá sinal e nos espera“ (DELEUZE, 1974, p. 152). Portanto, o
acontecimento não é o que acontece como acidente, mas algo que já está no mundo “à
espera” desta vontade individual para que ele torne-se em nós. Porém, essa vontade
sobre o acontecimento, esse querer o acontecimento é, no fundo, um querer tornar-se
digno daquilo que nos ocorre,
“[...] por conseguinte, querer e capturar o acontecimento, tornar-se o filho de seus próprios acontecimentos e por aí renascer, refazer para si mesmo um nascimento, romper com seu nascimento da carne. Filho de seus acontecimentos e não mais de suas obras, pois a própria obra não é produzida senão pelo filho do acontecimento” (DELEUZE, 1974, p. 152).
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Isso fica mais claro quando Artaud (2009) nos fala de Van Gogh, por exemplo.
Van Gogh não é uma pessoa, mas um acontecimento, e isto se dá na medida em que
“[...] nem mesmo a natureza exterior, com seus climas, marés e tempestades
equinociais, pode manter, depois da passagem de Van Gogh, a mesma gravitação de
antes” (p. 29). Van Gogh é alguém que acontece ao mundo na medida em que suas
pinturas são capazes de “abalar gravemente o conformismo larvar da burguesia do
Segundo Império e os esbirros de Thiers, de Gambetta, de Félix Faure, como os de
Napoleão III” (ARTAUD, 2009, p. 29).
O acontecimento, portanto, inaugura sempre uma mudança, seja ela em um
indivíduo, na natureza, ou em uma sociedade. É precisamente esse acontecimento do
qual Artaud nos fala quando se dirige ao âmbito teatral. O teatro que Artaud desejava
realizar não se propunha apenas a entreter o público, mas criar um acontecimento teatral
que instigasse os sentidos e o intelecto, e que através de suas manifestações fosse
possível retomar a vida, Pelo teatro, não só o homem, mas a sociedade, a cultura e a
vida - que jamais devem ser separadas -, encontrariam um espaço possível de serem
refeitas. Como diz Artaud apud Virmaux (2009, p. 320), “O teatro jamais foi feito para
descrever o homem e o que ele faz, mas para nos constituir um ser de homem que possa
nos permitir avançar no caminho, sem supurar e sem feder” .
Quando Artaud nos diz que o teatro deve ser um acontecimento (2006), é porque
ele deve ser capaz de provocar mudanças no nível de cataclismos e da peste. Ao realizar
uma analogia entre o teatro e a peste, Artaud nos fala de Santo Agostinho, que em A
Cidade de Deus “acusa essa semelhança de ação entre a peste que mata sem destruir
órgãos e o teatro que, sem matar, provoca no espírito não apenas de um indivíduo, mas
de um povo, as mais misteriosas alterações” (SANTO AGOSTINHO apud ARTAUD,
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2006, p. 22).
Mas a questão da peste e do teatro vão ainda mais longe para Artaud. Segundo
ele (2006, p. 23) “[...] o teatro é como a peste, não apenas porque ele age sobre
importantes coletividades e as transtorna no mesmo sentido. Há no teatro, como na
peste, algo de vitorioso e de vingativo ao mesmo tempo”. Na peste há algo de vitorioso
e vingativo pois ela se instala sobre os corpos como numa batalha. Ela quer vencer
sobre a carne e a carne quer expurgar-se dela; ela se apodera não só de um indivíduo,
mas de multidões. Ela age como um mal, é cruel na medida em que vêm para trazer algo
que estava submerso, em uma inerte convulsão, à tona.
No teatro, esse mesmo aspecto vitorioso e vingativo se encontra na medida em
que o acontecimento teatral é capaz de reconduzir o espírito à origem de seus conflitos.
Ele faz vir à tona aquilo que se escondia sob máscaras, ele é “[...] a revelação, a
afirmação, a exteriorização de um fundo de crueldade latente através do qual se
localizam num indivíduo ou num povo todas as possibilidades perversas do espírito”
(ARTAUD, 2006, p. 27).
A crueldade artaudiana possui esse mesmo aspecto vitorioso e vingativo,
podendo ser entendida também como um apetite de vida que, para existir, é necessário
que algo de cruel se manifeste. O acontecimento possui uma imbricação com a noção
artaudiana de crueldade, pois, para ele, um pensamento que não nos machuque não
possui valor algum. Este machucar é entendido por ele no mesmo nível em que
entendemos a crueldade: no nível do acontecimento. Tanto a crueldade como o
acontecimento estão no mundo, o que basta é um sujeito apropriar-se desse
acontecimento, tornando-se filho de seu acontecimento, e este tornar-se filho é sempre
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um esforço, portanto, um mal, que é necessidade inerente à vida.
Nesse sentido, é possível relembrar das aulas na graduação com Peter Pal Pélbart
e de uma em particular em que ele nos diz que Artaud é aquele que mais combate o
pensamento como representação. Artaud reivindica uma relação imanente da vida com o
pensamento, uma cultura que opere na vida ao invés de “ilustrar” a vida, sendo esse o
seu grande ponto de combate. Tanto que, ao final de sua vida, chega a fazer-nos uma
confissão:
“E agora, vou dizer uma coisa que vai talvez deixar muitas pessoas estupefatas. Sou inimigo do teatro.Sempre o fui.Amo muito o teatro,e por essa mesma razão sou seu grande inimigo” (ARTAUD apud DERRIDA, 2002, p. 175).
Artaud é inimigo do teatro porque o ama, e não apenas inimigo do teatro ao
mesmo tempo em que o ama. Amar o teatro e ser seu inimigo é a melhor forma de
atacá-lo, de colocá-lo diante do abismo para que ele possa “nascer novamente”. Nesse
sentido, o teatro (e toda obra) está sempre no limiar entre ser vingada ou anular-se. Essa
visão de mundo pode ser percebida em Artaud também quando este nos diz acerca de
Van Gogh que é justamente no momento em que ele adquire uma espécie de consciência
“sobrenatural” (que é corpo) e se percebe disso, que já não pode mais suportar a si
mesmo e se suicida. Há algo em Artaud que sempre se solapa à medida que vence, bem
como algo que vence à medida que se solapa: Para ele, não é na realidade Van Gogh que
se suicida, mas a sociedade, numa convulsão que o mata após ter adquirido uma
consciência “sobrenatural”.
É aí que a vida, a arte e a cultura se encontram sempre imbricadas em Artaud.
Um artista, como Van Gogh, não pode ser desvinculado de sua cultura, de sua época,
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bem como de suas obras. Mas estas, podem permanecer eternas na medida em que ele
foi capaz de transfigurar a natureza com seus quadros e de proporcionar um universo de
acontecimentos para aquele que interage com a obra. É nesse sutil momento que uma
obra pode permanecer viva e quando falamos de vida “deve-se entender que não se trata
da vida reconhecida pelo exterior dos fatos, mas dessa espécie de centro frágil e
turbulento que as formas alcançam” (ARTAUD, 2006, p. 8).
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3. Necessidade, Crueldade ou “Teria dito vida”
3.1 Aproximando...
A questão da crueldade se faz muito presente nas
obras de Nietzsche e Artaud. Tema este, que ao
se encontrar na obra se desdobra também na
vida. É impossível dissociar suas obras
de suas vidas. Isto, não apenas na medida
em que a vida constitui a obra e a obra
constitui a vida, mas também, onde já
não se encontram mais fronteiras. Nietzsche
e Artaud possuem um mesmo desejo: lançar-se aos abismos40 da vida, e o teatro seria,
para ambos, a melhor forma de experienciá-los.
A busca por uma afirmação (que vai ao encontro dos abismos) da vida
pressupõe, para Nietzsche e Artaud, o encontro com a crueldade. Pensar (e, assim,
viver) os cruéis abismos da vida não nos remete a uma valorização do sofrimento e do
horror propriamente ditos, pelo contrário. Artaud e Nietzsche viam o mundo a partir da
ótica da crueldade pois para eles não havia outra escolha41.
40 Ao falarmos de abismo nos referimos a ideia de Nietzsche presente principalmente em Assim Falava Zaratustra, mas que é uma marcante característica do seu pensamento trágico, encontrado primeiramente em O Nascimento da Tragédia quando o filósofo nos fala que o herói trágico vê no seu aniquilamento, no seu declínio (sucumbir) uma vitória.
41 Acerca da questão da escolha em Nietzsche, trataremos mais adiante neste capítulo
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3.2 Arte como Necessidade em O Nascimento da Tragédia
O filósofo, já no prefácio de O Nascimento da Tragédia, em Tentativa de
Autocrítica, nos pergunta: “Precisamente tiveram eles [os gregos] necessidade da
tragédia? Mais ainda – da arte?” (NIETZSCHE, 2010, p. 11).
Ainda Nietzsche (2010, p. 11) nos diz que, para os gregos, a arte era o “lugar
[em que] era colocado, com isso, o grande ponto de interrogação sobre o valor da
existência”. Diz também, em sua Tentativa de Autocrítica (p. 16), que O Nascimento da
Tragédia “retorna múltiplas vezes a sugestiva proposição de que a existência do mundo
só se justifica como fenômeno estético” . Qual era, para os gregos42, o principal
fenômeno estético, a sua principal manifestação artística? A resposta é precisamente
esta: a tragédia.
Observamos diversas vezes a palavra necessidade em O Nascimento da
Tragédia, inclusive quando o filósofo nos diz que a “alegre necessidade da experiência
onírica foi do mesmo modo expressa pelos gregos em Apolo” (NIETZSCHE, 2010, p.
26). Ora, tendo em vista que todo ser humano sonha e para Nietzsche o sonho, bem
como a arte, são uma necessidade, uma alegre necessidade, é possível pensarmos que
esta necessidade tenha relação com uma questão instintiva, de forças. Yolanda Muñoz,
em seu livro Escolher a Montanha (2005), nos fala em um dos capítulos sobre a questão
do princípio seletivo em Nietzsche: “Pertencemos a uma civilização cristã-ocidental
sem escolha, cuja história da verdade se impôs como “a” interpretação” (p. 215). Muñoz
42 Deve-se ter em mente que nesta pesquisa, ao falarmos dos gregos no âmbito da tragédia, estamos nos referindo ao período que o próprio Nietzsche aborda em O Nascimento da Tragédia, que seria, precisamente, o período helênico.
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nos diz que Nietzsche, ao tratar da questão da escolha, coloca-nos diante do problema
da décadence, sendo situado a partir de Sócrates. Com o surgimento do pensamento
socrático, passa a não haver escolha, ou melhor, a haver apenas uma escolha: “ou
perecer (afundar) ou ser absurdamente racionais” (NIETZSCHE apud MUÑOZ, 2005,
p. 215). A racionalidade, portanto, seria o único “remédio” para aquele que não quisesse
perecer, o único caminho para não cair na décadence. Entretanto, Nietzsche nos diz que
jamais podemos sair dela, que é um “auto-engano” acreditar que se sai dela, e “[...]
mesmo aquilo que escolhem como remédio e salvação seria apenas uma alteração na
expressão da 'décadence', mas não a eliminaria propriamente” (2005, p. 216).
De acordo com Nietzsche, nos diz Muñoz, o que seria a maior fórmula para a
décadence é justamente ter que combater os instintos: “quando a vida se intensifica,
felicidade é igual a instinto”43 (2005, p. 216). Mas Nietzsche não nos fala de um puro
instinto, desvario, mas de um saber escolher a qual instinto iremos obedecer. O próprio
filósofo se dirá ser um “selecionador instintivo”, escreve Muñoz (2005, p. 217), pois faz
de tudo que “vê, ouve, vive, uma soma”. Ele é um princípio seletivo pois muitas coisas
também deixa de lado e o que Nietzsche reforça é que essa escolha é sempre guiada por
uma necessidade de conservar determinada espécie de vida.
Com relação a saber escolher quais instintos iremos obedecer, Nietzsche nos
fala que há uma certa “ordenação hierárquica dos instintos”, que difere da “absurda
racionalidade” a partir de Sócrates. Segundo Muñoz (2005), apesar de Nietzsche ter
escolhido pensar a pluralidade de caminhos há sempre uma escolha nisto que é plural,
uma ordenação hierárquica dos instintos, mas que difere da racionalidade cristã-
43 É possível percebermos nessa passagem de Nietzsche um grande traço do trágico em seu pensamento, no qual é proclamada a intensificação da vida e dos instintos.
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ocidental que tenta fixar-se em um único ponto de vista. Essa ordenação hierárquica
dos instintos se daria na efetivação de uma determinada ordenação de forças, como uma
única vontade fundamental que prioriza determinados instintos. Percebemos isso no
próprio Nietzsche quando, por exemplo, em A Genealogia da Moral, no § 2 do prefácio,
expõe-nos como surgiram nele os pensamentos acerca da “procedência de nossos
preconceitos morais”:
“Que eu, porém, ainda hoje estou firmado neles, que eles próprios desde então se firmaram, cada vez mais entre si, e até mesmo cresceram juntos e se entrelaçaram, é o que fortalece em mim a alegre confiança de que poderiam, desde o começo, não ter nascido em mim isolados, nem arbitrariamente, nem esporadicamente, mas sim a partir de uma raiz comum, de algo que dita ordens em profundeza, que fala cada vez com mais determinação, que reclama algo cada vez mais determinado: de uma vontade fundamental de conhecimento” (2009, p. 297).
Encontramos, nesta passagem do filósofo, palavras como maduros, firmaram,
fortalece e raiz comum. Todas estas palavras, muito bem construídas, fazem alusão à
metáfora que Nietzsche explicitará a seguir:
“[...] com a mesma necessidade com que uma árvore dá seus frutos, crescem em nós nossos pensamentos, nossos valores, nossos sins e nãos e quandos e ses - aparentados e referidos todos eles entre si e testemunhas de uma única vontade44, de uma única saúde, de um único terreno, de um único sol” (p. 297).
A partir daí, creio ser possível compreendermos melhor a ordenação hierárquica
dos instintos em Nietzsche. Há uma “exigência orientada” de forças que nos leva a um
determinado caminho, a seguir um determinado instinto que comanda. É-se uma
necessidade, e não um acaso, e é justamente porque se sabe que se é uma necessidade e
não um acaso que a ordenação torna-se firme (MUÑOZ, 2005). É justamente dessa
necessidade, deste princípio seletivo que Nietzsche nos fala, anos após a publicação de
O Nascimento da Tragédia, mas que é de grande ajuda para compreendermos a questão
44 Grifo nosso.
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acerca da necessidade de arte da qual o filósofo nos fala em sua primeira obra
publicada.
Realizando um salto de O Nascimento da Tragédia (1871) para Crepúsculo dos
Ídolos (1888), referente ao último período nietzschiano, vemos o filósofo já não mais
tão preocupado acerca de questões helênicas no que diz respeito à arte. Deparamo-nos
com um Nietzsche pensando a arte relacionada diretamente com a vida45 e, também,
com a moral, tema que o filósofo diria em sua Genealogia da Moral, estar presente
desde o princípio em suas obras. No § 24 de Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche nos fala
sobre a finalidade da arte. Todo o combate contra a finalidade da arte, diz ele, se trata do
combate contra a tendência moralizante na arte, que prega a moral e tenta melhorar a
humanidade. Com esse combate vencido, o que se tem é uma art pour l'art. Ou seja,
uma arte sem finalidade, sem fim, sem alvo. Mas Nietzsche (1978, p. 337) se pergunta,
como psicólogo: “Seu instinto mais básico visa à arte, ou não visaria antes ao sentido da
arte, à vida? - A arte é o grande estimulante a viver: como se poderia entendê-la sem
finalidade, sem alvo, como l'art pour l'art?”. Para o filósofo, não se trata de moralizar a
arte nem de pensar a arte sem finalidade, como l'art pour l'art. Trata-se, na verdade, de
pensar a arte a serviço da vida, pois ela é “o grande estimulante a viver”. Seria
impossível, desse modo, pensar a arte descolada da vida.
Mas Nietzsche vai mais longe ao nos colocar a problemática do duro, do
horrendo e do cruel na arte. Se a arte é o grande estimulante a viver, se ela afirma a
vida, como poderia esta tratar também do cruel da vida? Não traria isso um desgosto
45 Não diremos que Nietzsche não estivesse preocupado com a arte no que ela se relaciona com a vida em O Nascimento da Tragédia, pelo contrário. Como vimos, ao realizar uma crítica da arte o filósofo também realiza uma crítica da cultura, supondo que ambas são inseparáveis. Porém, na primeira obra do jovem Nietzsche ele se utiliza do universo da tragédia grega para realizar essa crítica, enquanto em O Crepúsculo dos Ídolos, o filósofo trágico aparentemente se afasta do Velho Ideal, dizendo-nos inclusive que esta última obra não trata mais de conceitos mas sim, de decisões.
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pela vida? Nietzsche nos diz que não, e que para isto, precisamos olhar para os artistas.
Diante do terrível da existência, o que o artista trágico nos mostra é justamente a
possibilidade do sem medo diante do temível, reconhecendo no seu aniquilamento uma
vitória. Trata-se de uma alta desejabilidade de vida, ninguém quer mais a vida e a
celebra do que o artista trágico. Quem assiste a isto (o público), “louva com a tragédia
sua existência – a ele somente o artista trágico dá de beber essa dulcíssima crueldade”
(NIETZSCHE, 1978, p. 339).
Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche conferia ao dionisíaco o caráter da
crueldade. Em meio a serenidade apolínea, Dionísio era aquele que com sua embriaguez
rompia com o véu de maia, despertando os indivíduos do principium individuationis e
levando-os a um êxtase, a uma voluptuosidade na relação entre os homens e entre os
indivíduos e a natureza.
O filósofo (2010, p. 27) nos descrevia o momento em que se rompia com o véu
de maia como “violência dionisíaca”. “Agora […], cada qual se sente não só unificado,
conciliado, fundido com seu próximo, mas um só, como se o véu de Maia tivesse sido
rasgado e, reduzido a tiras, esvoaçasse diante do misterioso Uno-primordial”
(NIETZSCHE, 2010, p. 28).
Nesse sentido, o dionisíaco era cruel na medida em que ele era capaz de
despertar multidões, de tirar o homem do seu estado individual e levá-lo a recobrar a
relação entre os homens e dos homens com a natureza. Vemos, porém, que em O
Nascimento da Tragédia Nietzsche nos fala de dois tipos de dionisíaco: Havia o
dionisíaco das festas, dos rituais das Bacantes e o dionisíaco da tragédia grega. O
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dionisíaco dos ritos será o que contém, como veremos mais adiante, a crueldade que
mais se aproxima da noção de Artaud. Este dionisíaco não tem freios nem forma, é uma
“beberagem mágica de volúpia e crueldade” (NIETZSCHE, 2010, p. 31). Por outro
lado, haveria o dionisíaco da tragédia e que é interceptado por Apolo e, segundo o
filósofo, era apenas assim que a natureza alcançava o júbilo artístico. Assim, podemos
pensar que o dionisíaco do qual Nietzsche nos fala ser presente na tragédia ática só é
possível de existir sob a mediação de Apolo, pois caso o contrário, restringiria-se ao
Dionisíaco das festas e dos rituais. O filósofo via a tragédia, nesse sentido, não como
uma festa e um ritual, mas sim, como um espetáculo do dionisíaco, com forma,
organizado e interceptado por Apolo.
“Aquela repugnante beberagem mágica de volúpia e crueldade viu-se aqui impotente: somente a maravilhosa mistura e duplicidade dos afetos do entusiasta dionisíaco lembram – como um remédio lembra remédios letais – aquele fenômeno, segundo o qual os sofrimentos despertam o prazer e o júbilo arranca do coração sonidos dolorosos. Da mais elevada alegria soa o grito de horror ou o lamento anelante por uma perda irreparável” (NIETZSCHE, 2010, p. 31).
A música ditirâmbica que fazia parte da tragédia era um forte elemento da
crueldade, pois com o seu caráter violento do som incitava o homem “à máxima
intensificação de todas as suas capacidades simbólicas” (NIETZSCHE, 2010, p. 32).
Nesse instante, a arte da tragédia não é expressa pelas figuras plásticas dos mitos, mas
sim, pelo simbolismo do corpo, dos sons, das palavras e de todos os movimentos.
Porém, segundo o jovem Nietzsche, é o apolíneo que possibilita vivermos o dionisíaco
na tragédia, pois uma vez diante da embriaguez e do esquecimento de si dionisíaco,
Apolo, com seu universo das formas, recobra aos homens a consciência de si mesmos.
É assim que ao falar da crueldade em O Nascimento da Tragédia podemos
perceber diferenças entre a crueldade do dionisíaco de onde ela provém, dos ritos,
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necessariamente do ritual das Bacantes, e do dionisíaco da tragédia grega, que se
encontra sempre na relação com Apolo, sendo, portanto, uma crueldade que se organiza
pelo universo apolíneo.
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3.3 Artaud e o seu Teatro da Crueldade
Quando se fala a respeito do Teatro da Crueldade de Artaud tende-se a associar a
um teatro de horrores, com atores voando por entre o público com serras elétricas,
cordas e outros mecanismos que fariam sentir-nos dentro de um filme de terror.
Transformar as ideias de um pensador em grandes clichês é, infelizmente, muito
comum. Embora muitos insistam nisso, Artaud deixa claro para o leitor do texto em
discussão que ao falar de crueldade ele trata de algo muito diferente disso.
“Não cultivo sistematicamente o horror. A palavra crueldade deve ser considerada num sentido amplo e não no sentido material e rapace que geralmente lhe é atribuído. E com isso reivindico o direito usual da linguagem, de romper de vez a armadura, arrebentar a golilha, voltar enfim às origens etimológicas da língua que, através dos conceitos abstratos, evocam sempre uma noção concreta” (ARTAUD, 2006, p. 117-118).
Alaix Virmaux (2009, p. 43) nos diz que “não se trata absolutamente de uma
crueldade física ou mesmo moral, mas, antes de tudo, de uma crueldade ontológica,
ligada ao sofrimento de existir e à miséria do corpo humano”. Após pesquisarmos em
vários dicionários, descobrimos que a palavra crueldade provêm da língua latina e
significa etimologicamente “horror, ato de fazer mal a alguém” mas também “rigor” e
“cru”. É justamente desses dois últimos significados que Artaud nos fala. Artaud
pensava que pela simples ação, pelo simples colocar-se em movimento, a crueldade se
faria presente, inevitavelmente. Percebemos isso mais claramente quando ele nos fala
acerca do ato da criação divina, dizendo-nos que:
“Quando cria, o deus oculto obedece à necessidade cruel da criação que lhe é imposta a ele mesmo, e não pode deixar de criar, portanto não pode deixar de admitir no centro do turbilhão voluntário do bem um núcleo de mal cada vez mais reduzido, cada vez mais corroído” (ARTAUD, 2006, p. 119)
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A crueldade é, portanto, uma necessidade, assim como tudo o que é necessário é
cruel, pois é determinado e implacável. O mal e o cruel se deslocam do seu sentido
usual na linguagem e nos abrem para uma significação menos restrita aos clichês das
palavras. A crueldade é má pois ela é seletiva46, é sempre aquilo que age e de forma
determinada, rigorosa e consciente. A questão da consciência é, inclusive, muito
importante para compreendermos a crueldade em Artaud. Diz-nos que para que exista
crueldade é necessário, antes de mais nada, consciência.
“A crueldade é antes de mais nada lúcida, é uma espécie de direção rígida, submissão à necessidade. Não há crueldade sem consciência, sem uma espécie de consciência aplicada. É a consciência que dá ao exercício de todo ato da vida sua cor de sangue, sua nuance cruel [...]” (ARTAUD, 2006, p. 118).
Mas como é esta consciência da qual Artaud nos fala? Em primeiro lugar, nada
tem a ver com aquela ideia socrática da razão que prioriza o seu uso e deseja excluir
qualquer tipo de afeto. Esta consciência da qual Artaud nos fala pode ser entendida a
partir do processo seletivo47 nietzschiano, em que a escolha se dá a partir de uma
necessidade que prioriza determinada espécie de vida. Essa escolha pode não ser
racional, mas isso não significa que ela não possua uma certa consciência. Se
trouxermos um exemplo mais próximo da vida – pois afinal é disto que esta pesquisa
trata -, talvez compreenderemos melhor de que tipo de consciência estamos discutindo.
Joseph Campbell48 conta-nos uma história (e isso ele o faz muito bem) dizendo-nos que,
em frente a sua casa e de sua mulher, no Hawaí, há uma árvore e, nessa árvore, cresce
46 Em uma primeira aproximação, a diferença com a seletividade nietzschiana (Ecce Homo, aforismo 2, Porque Sou Tão Sábio) é que esta é instintiva. Porém, não se trata de um instinto que oponha a racionalidade, mas sim, constantemente formado por uma determinada configuração de forças. É, assim, um instinto que exige trabalho para que possa ser fácil, necessário e leve: “talhado em uma madeira que é dura, delicada e bem cheirosa ao mesmo tempo” (1978, p. 371).
47 MUÑOZ, 2005, p. 214-222.
48 Documentário: O Poder do Mito, Vol 1.
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uma trepadeira. Em certas épocas do ano, uma espécie de flor cresce na trepadeira de
modo a se manter agarrada à arvore. Todo dia pela manhã, ao desabrochar, ela se abre
voltada para o lado do sol. “Isto é uma espécie de consciência”, nos diz Campbell. A
flor sabe que deve nascer para aquele lado, pois ela deseja sobreviver, conservar o seu
ser-flor. A flor não possui consciência – no estrito senso da palavra – do seu ato, porém,
se pensarmos a partir de Artaud (e talvez de Nietzsche), há uma espécie de consciência
que faz com que a flor saiba que deve buscar o sol. Esta consciência seria própria de
todo ser vivo, pois todo ser, toda célula, quer expandir-se o quanto pode.
É justamente dessa “determinada espécie de consciência” que Artaud nos fala. É
essa a consciência que age na crueldade. Uma consciência que não compreende apenas
razão, ou, que haja uma razão no corpo, no sangue, na pele, no pulso: uma razão dos
afetos.
Percebemos que a crueldade da qual Artaud nos fala não é uma destruição
negativa e vazia, longe disso. Se for um vazio, é um vazio que afirma, que “produz a
própria afirmação no seu rigor pleno e necessário” (DERRIDA, 2002, p. 150). A
crueldade é, portanto, aquilo que provém de uma necessidade, ela é rigor, e a vida só
seria possível com uma “espécie de rigor, portanto de crueldade básica” (ARTAUD,
2006, p. 120). Mas esta vida da qual Artaud nos fala não é apenas aquela biológica, a
vida que nos é dada. Ele concebe essa vida de uma outra forma: o homem deveria parir,
na sua própria vida (biológica) novas vidas e diversas vezes, num movimento cíclico. O
homem deveria procurar nascer, se refazer, na sua própria vida que lhe foi dada pelo
nascimento biológico. A vida, muito mais do que biológica é simbólica. E o teatro,
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precisamente, seria o lugar onde o homem poderia parir essa nova vida, se refazer
múltiplas vezes.
A vida é cruel pois no seu próprio impulso há uma vontade e uma necessidade
capaz de aniquilar tudo aquilo que não seja afirmativo a si mesma: “[...] o termo 'vida'
nos remete, de forma mais genérica, a um universo de forças em conflito” (QUILICI,
2004, p. 72). É cruel pois a vida não pode deixar de se exercer, ela necessita exercer-se a
todo momento, caso contrário, não seria vida. Isto é a crueldade da qual Artaud nos fala:
“Disse portanto 'crueldade' como teria dito 'vida'” (ARTAUD apud DERRIDA, 2002, p.
152).
“No fogo de vida, no apetite de vida, no impulso irracional para a vida há uma espécie de maldade inicial: o desejo de Eros é uma crueldade, pois passa por cima das contingências […] uma ascensão é um dilaceramento, pois o espaço fechado é alimentado de vidas e cada vida mais forte passa através das outras, portanto as devora num massacre que é uma transfiguração e um bem” (ARTAUD, 2006, p. 120).
Mas ao nos falar da crueldade, Artaud não a emprega apenas num sentido
generalizado. Diz-nos ele que existem diversos tipos de crueldade. Há, como já vimos, a
crueldade que é inerente à natureza, a todo ato de criação, à vida, há também a
crueldade sádica e há a crueldade do trabalho do ator, do “espectador” e do próprio
teatro. É precisamente desses três últimos tipos de crueldade que Artaud nos fala em
seus manifestos do Teatro da Crueldade.
No ofício do ator a crueldade é exercida na medida em que é um trabalho ao
mesmo tempo, criativo e seletivo, pois muitas coisas deve-se deixar de lado. Há,
portanto, um trabalho de adquirir essa consciência seletiva, e tal trabalho é sempre um
esforço, um rigor. É, portanto, uma crueldade que se organiza; mas para Artaud, o
simples fato de ter que se organizar já é uma crueldade acrescida à outra.
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Em relação ao espectador, Artaud (2006, p. 104) nos fala ser necessário saber
despertar neste suas “[...] obsessões eróticas, sua selvageria, suas quimeras, seu sentido
utópico da vida e das coisas [...]” . Saber aplicar a crueldade no espectador se trata,
nesse sentido, de fazer vir à tona aquilo que estava submerso, de agir como a peste, que
destrói os corpos e os mata (e nesse caso, os mata para que possam nascer de novo) sem
a destruição da matéria.
O teatro deve ser um acontecimento49 pois cercado dos elementos necessários é
capaz de reconduzir o espírito e a carne, a um estado de percepção apurado. Mas para
tal, é necessário saber como e onde pegar o espectador. É rigoroso no sentido de que é
necessário saber quais determinados elementos50 utilizar para despertar aqueles
envolvidos. Nesse sentido, aplica-se a crueldade pois também, na criação do espetáculo,
deve-se saber selecionar, deixar de lado.
Ao empregar a palavra crueldade para designar seu teatro e o que o teatro
Ocidental deveria retomar Artaud não está, portanto, utilizando a palavra no seu sentido
comum. O próprio, em suas Cartas Sobre a Linguagem51 escreve-nos sobre a sua
preocupação acerca das más interpretações que a palavra poderia causar:
“Eu deveria ter especificado o uso muito particular que faço dessa palavra e dizer que a emprego não num sentido episódico, acessório, por gosto sádico e perversão de espírito, por amor dos sentimentos estranhos e das atitudes malsãs, portanto de modo nenhum num sentido circunstancial; não se trata de modo algum da crueldade vício, da crueldade erupção de apetites perversos e que se expressam através de gestos
49 Sobre o acontecimento, ver capítulo “Vida, Arte, Cultura: Uma Crítica”.
50 Em O Teatro da Crueldade (Primeiro Manifesto), presente em O Teatro e Seu Duplo, encontram-se detalhes acerca destes elementos: a técnica, a temática, o espetáculo, a encenação, a linguagem da cena, os instrumentos musicais, a luz, a roupa, a cena – a sala, os objetos – as máscaras - os acessórios, o cenário, a atualidade, as obras, o ator, a interpretação, o cinema, a crueldade, o público, o programa. Fez-se a escolha de não entrarmos nesta questão devido ao tempo que seria necessário para tratarmos de cada elemento da devida forma e também porque nosso interesse se concentra, principalmente, nos diferentes tipos de crueldade, sendo estes elementos, detalhes de um tipo específico de crueldade, que é a do espetáculo.
51 Texto presente em O Teatro e Seu Duplo.
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sangrentos, como excrescências doentias numa carne já contaminada; mas, pelo contrário, de um sentimento desprendido e puro, um verdadeiro movimento do espírito, que seria calcado sobre o gesto da própria vida; e na ideia de que a vida, metafisicamente falando e pelo fato de admitir a extensão, a espessura, o adensamento e a matéria, admite, por consequência direta, o mal e tudo o que é inerente ao mal, ao espaço, à extensão e à matéria” (ARTAUD, 2006, p. 134).
Mas se Artaud, como visto anteriormente, fala-nos tão claramente acerca do que
é, e mais ainda, do que não é o teatro da crueldade, por que tantos mal entendidos
circundam a expressão? Prosseguindo com Cartas Sobre a Linguagem, escrito no qual
Artaud expõe-nos sua crítica ao seu Manifesto da Crueldade, diz-nos reconhecer que a
redação deste é “abrupta e falha” (2006, p. 134).
“Afirmo princípios rigorosos, inesperados, de aspecto rebarbativo e terrível, e, no momento em que se espera que os justifique, passo ao princípio seguinte. Em suma, a dialética do Manifesto é fraca. Pulo sem transição de uma ideia para outra. Nenhuma necessidade interior justifica a disposição adotada” (2006, p 134).
Assim, inclinamo-nos a pensar que Artaud, ao escrever sobre o Manifesto, era
consciente dos limites dessa escrita, principalmente quando Maurice Blanchot, em O
Livro por Vir, fala-nos acerca da impossibilidade de pensar em Artaud:
“Não lhe importa 'pensar corretamente, ver corretamente', ter pensamentos bem encadeados, apropriados e bem expressos, aptidões que ele sabe ter […] Ele sabe, com a profundidade que a experiência da dor lhe confere, que pensar não é ter pensamentos, e que os pensamentos que tem fazem-no somente sentir que 'ainda não começou a pensar´” (BLANCHOT, 2005, p. 50).
Artaud discute consigo mesmo e em cartas à Jacques Riviére a respeito da
impotência do pensar. Bem como vemos em suas Cartas Sobre a Linguagem, possui
Artaud uma clara consciência dessa falta do pensamento, dessa faísca que sempre nos
escapa. Por um lado, ele se queixa disso, sofre diante da impotência do pensar, apegado
ao mais puro idealismo filosófico52, dizendo que “a verdadeira dor […] é sentir o
52 SONTAG, 1986, p. 19.
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próprio pensamento mudar dentro de nós mesmos” (SONTAG, 1986, p. 19). Em
contrapartida, é um homem da ação, crendo que “só tem o direito de se dizer autor, isto
é, criador, aquele a quem cabe o manejo direto da cena” (ARTAUD, 2006, p. 138),
aquele que é capaz de tornar as ideais efetivas .
Artaud encontra-se constantemente em combate, seja na busca por um Teatro da
Crueldade onde ele mesmo se coloca diante do “[...] medo de uma vida que se
desenvolvesse inteiramente sob o signo da verdadeira magia” (ARTAUD, 2006, p. 3),
seja por uma tentativa de superar a impotência do pensamento, mas também sabendo
que “[...] a impotência nunca é impotente o bastante, o impossível não é o impossível”
(BLANCHOT, 2005, p. 55). Porém não temos, em O Teatro e Seu Duplo, uma
consistente explicação de Artaud de porque a escrita do Manifesto seria fraca, segundo
ele mesmo o diz. Diz-nos apenas que nenhuma necessidade interior justifica a
disposição adotada. Nesse sentido, talvez Artaud esteja justamente nos falando dessa
impotência do pensamento, a qual discute nas cartas com Jacques Riviére. Em O Teatro
e Seu Duplo, não nos parece de fato muito preocupado em ser compreendido acerca das
questões sobre a crueldade. Em algumas passagens, chega a dizer que deveria ter se
expressado melhor, mas, em outras, diz-nos que
“[...] por mais caótico, impenetrável e rebarbativo que seja nosso Manifesto, ele não se esquiva da verdadeira questão, pelo contrário, ataca-a de frente, o que há muito tempo nenhum homem de teatro ousou fazer” (2006, p. 135).
Talvez isso aconteça justamente porque falar do Teatro da Crueldade só seja
possível com um mínimo de caos. Compreender o que Artaud pretendia que o Teatro
fosse, de fato, cremos não ser o mais importante e permanecer nessa busca talvez seria
considerado um equívoco por ele. Do Teatro da Crueldade, o que deve interessar-nos é
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justamente compreender os seus mecanismos no sentido de extrair a sua força
propulsora e encontrar um lugar para ela no momento atual. Mas se podemos terminar
(pelo menos por ora,) esta discussão sobre a crueldade, resta-nos lembrar da seguinte
frase de Quilicci que diz respeito à Artaud:
“'Crueldade'” [...] Trata-se evidentemente de uma perspectiva trágica: a existência vista como um 'espessamento', que traz em si, necessariamente, o mal” (2004, p. 73).
Com isso, o eterno ciclo da crueldade, da vida e do conflito primordial se
encerra... E, assim, se abre novamente...
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Conclusão: ou como terminar o que nunca termina?
O que no início da pesquisa se
manifestava para nós apenas como uma hipótese agora se
manifesta como uma efetividade. Não há dúvidas de que as relações entre Nietzsche e
Artaud são imensas e caberiam num círculo infinito de questões. Gostaríamos de ter tido
tempo para retomarmos algumas das aproximações e também diferenças encontradas
entre ambos no final de cada capítulo, porém só ouvíamos o Coelho Branco de Alice
nos dizendo: “É tarde, é tarde, é tarde é tarde é tarde!”. Mas uma pesquisa que nos
interpela jamais é abandonada, apenas deixada de lado – para Nietzsche o que se deixa
de escolher é de grande importância - por questões burocráticas e para que assim,
possamos seguir a nossa viagem.
Deparando-nos neste momento com a pesquisa, ao olhar para trás somos capazes
de perceber que este trabalho se constituiu como um percurso não necessariamente
demonstrativo, e tampouco, com o intuito de desenvolver argumentações lógicas.
Tentamos enfrentar as problemáticas que foram surgindo com o decorrer das leituras,
bem como se faz em um caminho: se surge uma pedra, um buraco ou um desvio, deixa-
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se desafiar por estes, mas sem a pretensão de imaginar que eles não mais irão retornar.
Cada pedra é uma pedra. Sendo assim, tentamos enfrentar as problemáticas desta
pesquisa como desafios, porém, nunca acabados, pois sabemos que aquelas poderão ser
retomadas posteriormente. Talvez – não conscientemente -, já sabíamos disso e, por esse
motivo, pensamos em conversações num café da tarde. Sem saber que sabíamos, talvez
tivéssemos pretendido que essa pesquisa não fosse uma busca por argumentações
lógicas, mas sim, um percurso, um caminho pelo qual nos deixamos atravessar.
Pedimos desculpas ao leitor que espera, nesta conclusão, que se retome cada
capítulo tratado na pesquisa. Em relação aos cruzamentos problemáticos e as
diferenciações entre Nietzsche e Artaud, talvez agora só nos reste ruminar. Nesse
momento de concluir, que na realidade é para nós apenas a hora de um novo início,
vemo-nos diante da impossibilidade de conclusão, diante da impossibilidade de aparar
quaisquer arestas, de tornar este estudo conciso e finalizado. É justamente no momento
em que nos vemos prestes a escrever o ponto final que a interrogação retorna a nós.
Dessa vez, com mais força do que no início. O que ocorre é que ao nos depararmos com
a reta final da pesquisa, surgem, como que espontaneamente, novas perguntas, novas
hipóteses. Hipóteses estas que são novas, mas, também, que podem ser apenas
diferentes formas de perguntar o já perguntado, de apropriarmo-nos de uma outra forma
acerca do já estudado.
Se podemos tratar de algo neste momento, é apenas do nosso percurso para
compreender os autores trabalhados na pesquisa. As interpretações de Nietzsche e
Artaud seguem até hoje um tanto incompreendidas. Nietzsche é visto por muitos como
não-filósofo, mas sim poeta ou escritor. O Nascimento da Tragédia, inclusive, é lido em
muitos casos apenas como uma “exaltação ao dionisíaco”, não levando em conta, como
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já havia nos mostrado Sloteridjk, o caráter apolíneo que se encontra neste escrito, bem
como a preocupação de Nietzsche com a forma e a simetria. Em relação a Artaud, pode-
se dizer que no campo das artes ele é lido em demasiado ao pé da letra, sendo que
muitos identificam a questão da crueldade em uma relação direta com sangue e sadismo,
sendo muitas vezes uma crueldade gratuita. Mas a questão maior é que Artaud e
Nietzsche sabiam da dificuldade de serem compreendidos da forma correta, pois
reconheciam perfeitamente a impotência do pensamento.
“Sou aquele que melhor sentiu a estupefaciente perturbação da língua, em sua relações com o pensamento... Na verdade, perco-me em meu pensamento como quem sonha, como quem volta subitamente para dentro de seu pensamento. Sou aquele que conhece os recantos da perda” (ARTAUD apud BLANCHOT, 2005, p. 50).
Ambos sabiam que sempre haveria algo que escaparia ao autor da obra e,
consequentemente, àquele que tivesse contato com ela. Artaud, por outro lado, também
não se conformava com isso, vivendo num embate constante entre querer ser
compreendido e saber que a compreensão total seria impossível, pois a consciência é
constantemente atravessada pelos afetos. Artaud sabia que a falta, esse “impoder”, era
núcleo essencial do pensamento, mas transformava-se numa “falta extremamente
dolorosa, uma falha que brilha a partir desse centro e, consumindo a substância física do
que ele pensa, dividi-se em todos os níveis como impossibilidades particulares”
(BLANCHOT, 2005, p. 50).
Diante de que escolha encontramo-nos aí? Dois grandes pensadores que estão
sempre à margem; quão difícil é expressar-se acerca deles! Se é-se preciso demais, se
procura-se fechar seus escritos em conceitos bem acabados estamos justamente não
lendo Nietzsche, nem lendo Artaud. Mas também deve-se ter muita cautela ao tratar de
pensadores tão “grandiosos”, e vistos como grandiosos podem ter se tornado para
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alguns, em algum lugar, um “consensus sapientium”53. Como ler Nietzsche e Artaud,
então? Se procurarmos por conceitos bem acabados pode ser considerado um equívoco,
e se não considerarmos a importância destes e não agirmos com cautela sobre o que se
diz, também é um equívoco (e disso os meios estão cheios), qual caminho nos resta?
Talvez - e aqui gostaríamos de permanecer no âmbito do “talvez” -, nosso caminho seja
o mesmo que estes pensadores encontraram para lidar com as suas obras e, quem sabe,
esse seja o motivo pelo qual Nietzsche é visto como o filósofo dos antagonismos e
Artaud como aquele que não sabe expressar-se. Ambos possuem a consciência de que
ao mesmo tempo que toda obra é um exercício de potência encontra-se nela um abismo,
sendo justamente sob esse abismo que a obra é criada.
Se nos enganamos em demasiado, buscamos consolo em Cocteau citado por
Susan Sontag (1986, p. 18) quando diz: “a única obra bem-sucedida é aquela que
falha”. Nesse sentido, acreditamos que há sempre algo na obra que solapa a si mesma,
algo que faz com que ela se veja diante da possibilidade de não vingar, pois é sempre
construída sob um abismo. Abismo este, que jamais é transposto, pois é núcleo
primordial a partir do qual toda obra nasce, se desenvolve e permeia.
Há sempre uma ruína da obra, o desabamento de uma obra que é grito, grito que
expressa visceralmente a impotência do pensamento. Ao mesmo tempo, é precisamente
isso que nos escapa o que também nos interpela. É esse aspecto duplo e contraditório
que faz com que exista obra. Diante desta constatação, vemo-nos impossibilitados de
concluir esta pesquisa, pois ela nem começou. Não começou pois não há um começo,
não há uma origem que nos situe, tampouco um fim que nos alivie. Esta pesquisa pode
ter surgido nos cafés coloniais de minha infância, ou na quarta série, quando comecei a
53 O Crepúsculo dos Ídolos, In: Os Pensadores, 1978, p. 330.
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desenvolver o gosto pela escrita. Pode ter sido, também, quando tive o meu primeiro
contato com Nietzsche e Artaud - pois ambos se deram ao mesmo tempo -, pode ter sido
em algum olhar lançado furtivamente a algo, ou, quem sabe quando? Não houve,
jamais, apenas uma origem, mas sim, determinadas forças, comandos que foram se
organizando para que assim, esta pesquisa se desenvolvesse.
Assim, “conclui-se” com a seguinte indagação: Para quê continuar falando?
Levando em conta a importância do ruminar para Nietzsche e, também, a importância
que tem o vazio para Artaud, agora chegou a hora de silenciar.
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