a ilusão da previsibilidade

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Probabilidades

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Page 1: A Ilusão Da Previsibilidade

Adonai Sant'Anna

Matemática e Sociedade

domingo, 23 de dezembro de 2012A Ilusão da Previsibilidade

Feliz Natal a todos!

Mantendo a tradição iniciada no ano passado, ofereço aos professores dos ensinosfundamental e médio mais uma atividade que pode servir de estímulo no aprendizadode matemática.

Considere, por exemplo, a sequência numérica a seguir:

00, 01, 02, 03, 04, 05, 06, 07, 08.

Digamos que alguém pergunte qual é o próximo número. Se o leitor responder 09, estácometendo um erro de raciocínio lógico-matemático. Para ilustrar este argumento,consideremos outra sequência:

01, 03, 00, 13, 02, 10, 15, 16, 06, 04, 07, 11, 05, 14, 09, 08.

Digamos agora que novamente se faça a pergunta: Qual é o próximo número?

Esta é mais difícil de responder do que a anterior? Não.

Muitos acham que a primeira sequência dada acima é, em algum sentido, ordenada edeterminística, enquanto a segunda é aleatória e imprevisível. Tanto é assim quesequências como a primeira já foram usadas em testes de QI, demonstrando a limitada

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inteligência de profissionais que elaboram tais testes. O fato é que apenas olhar paraas sequências numéricas, sem quaisquer informações adicionais, não permiteresponder à questão colocada: "Qual é o próximo número?"

A rigor, sequer é possível determinar se haverá um próximo número!

Considere a seguinte fórmula recursiva:

X(n+1) = [AX(n) + B]mod C,

sendo A, B, C, n e X(n) números naturais.

Esta é uma fórmula iterativa que permite obter um número natural X(n+1) a partir deum número natural X(n), dados os valores naturais de A, B e C. A função mod se lê"módulo". A expressão

[AX(n) + B]mod C

se lê, portanto, como "AX(n) + B módulo C" e corresponde ao resto natural da divisãoentre os números naturais AX(n) + B e C.

Consideremos agora o caso particular no qual A = 7, B = 13 e C = 17, ou seja,

X(n+1) = [7X(n) + 13]mod 17.

Imaginemos, ainda para fins de ilustração, que o primeiro valor do processo iterativo,X(0), seja 1. Isso significa que X(0) = 1.

Substituindo o valor escolhido para X(0) na equação acima, temos X(1) = 3. Issoporque (i) a soma entre o produto entre 7 e 1 e 13 é 20 (7 multiplicado por 1 e, emseguida, somado com 13, é igual a 20); e (ii) 20 dividido por 17 é 1, com resto 3 (ouseja, executamos a operação mod). Se substituirmos X(1) = 3 na mesma equação,obtemos X(2) = 0, usando exatamente o mesmo procedimento.

Repetindo o algoritmo, no qual X(2) gera X(3), X(3) gera X(4), X(4) gera X(5) e assimpor diante, obtemos a seguinte sequência de X(0) até X(15):

01, 03, 00, 13, 02, 10, 15, 16, 06, 04, 07, 11, 05, 14, 09, 08.

Esta é a mesma sequência que anteriormente poderia ser julgada por um espíritoprecipitado e pouco crítico como sendo aleatória. No entanto, ela pode ser tambémdeterminística.

Se calcularmos o valor de X(16), obtemos 1, o mesmo valor inicial dessa brincadeira.

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Ou seja, toda a sequência se repete de maneira determinística. A aleatoriedade erailusória. A informação que o leitor não dispunha no início da discussão era a origem dasequência que escolhi. Portanto, não há como responder qual é o próximo número. Atémesmo uma sequência como 1, 2, 3 pode ser originada de uma aula de dança desalão. Quem dança valsa repete certos movimentos periódicos: 1, 2, 3, 1, 2, 3, 1, 2, 3...

Já a primeira sequência que usei para ilustração poderia ser obtida a partir daequação:

X(n+1) = [1X(n) + 1] mod 9.

Portanto, do ponto de vista de quem a concebeu (eu!) neste contexto tambémescolhido por mim, o próximo número é 0.

Todas as sequências de números naturais obtidas a partir da equação

X(n+1) = [AX(n) + B]mod C

são determinísticas e periódicas. No entanto, este é o coração de um procedimentomuito empregado em computadores e certas calculadoras eletrônicas para gerarsequências aparentemente aleatórias. Tal procedimento faz parte do estudo dasfamosas sequências pseudo-aleatórias.

Quando vemos animações em computação gráfica de flocos de neve caindo ao chãoou pinguins que marcham aparentemente ao acaso para uma montanha de gelo, taisimagens dependem de dispositivos como este ou similares. Eles criam a ilusão dealeatoriedade. O que o programa de computação gráfica faz é traduzir os númerosgerados por esses algoritmos como cores, formas e posições em um sistema dereferência de duas ou três coordenadas (chamadas muitas vezes de dimensões).

Inúmeras simulações computacionais empregam geradores de sequências numéricaspseudo-aleatórias. Para a geração de grandes sequências, este procedimento é maisbarato e prático do que a construção, por exemplo, de mecanismos reais emlaboratórios que simulem o acaso.

A escolha dos parâmetros A, B e C no método apresentado acima é crítica e dependede um aparato teórico consideravelmente sofisticado, fora do alcance dos ensinosfundamental e médio. No entanto, sua aplicação em salas de aula do ensino básicodemanda apenas o domínio de operações elementares entre números naturais.

Em nosso primeiro exemplo, no qual C vale 17, a repetição começa a ficar evidentecom mais do que dezessete iterações. Para efeitos mais convincentes (do ponto devista intuitivo), valores maiores devem ser escolhidos para o parâmetro C. No entanto,se os parâmetros A e B não forem criteriosamente escolhidos também, mesmo para

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Adonai às 02:14

grandes valores de C podem ocorrer periodicidades em pequenas sequências denúmeros.

Já a escolha da semente X(0) pode depender de dados fornecidos pelo relógio docomputador. Assim, dependendo do ano, mês, dia, hora, minuto, segundo e fração desegundo em que o processo iterativo começar a ser executado pela máquina,poderemos ter diferentes valores iniciais para X(0). Isso ajuda a conferir uma maiorsensação de aleatoriedade para um mero espectador que apenas observa osresultados, sem conhecer a intimidade do processo de geração de dados. Como esteconteúdo pode ser explorado com criativas brincadeiras envolvendo nada além dasquatro operações elementares da aritmética, ele se torna perfeitamente acessível aosensinos fundamental e médio. O contexto computacional pode ser apenas descritopara fins de motivação.

É claro que o estímulo deve ser dado para além de meras contas. Os alunos precisamsaber que a escolha dos parâmetros A, B e C é, em geral, complicada; principalmentese queremos trabalhar com longas sequências de milhares ou milhões de números quepareçam aleatórias.

O fato de uma sequência de números ou movimentos de uma animação emcomputação gráfica parecer aleatória não significa que de fato o seja. Emcompensação, o fato de uma sequência de números parecer previsível, também nãosignifica que seja.

Para que os alunos efetivamente entendam as ideias aqui apresentadas, cabe aoprofessor instigá-los a criar outros mecanismos matemáticos que produzamsequências pseudo-aleatórias de números. Se tais sequências forem representadas naforma de imagens (via coordenadas em um plano cartesiano, por exemplo), teremos aoportunidade de visualizar a criatividade matemática de nossos jovens. Se tivermosum processo de geração de números pseudo-aleatórios para as abscissas e outro paraas ordenadas, teremos a chance de uma visualização de diferentes padrões deaparente caos. E se tais processos puderem ser implementados via programas decomputador, em função do caráter iterativo dos algoritmos, temos então a chance decasar matemática com programação de computadores.

Vale observar também que o método apresentado aqui (conhecido como método dacongruência), com a equação X(n+1) = [AX(n) + B]mod C, permite que os resultadosfinais após cada iteração possam ser normalizados, se dividirmos cada X(n+1) por C.Desse modo os resultados finais ficarão confinados ao intervalo fechado [0,1] dosnúmeros reais.

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Respostas

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9 comentários:

Francisco Valdir 23 de dezembro de 2012 11:17Olá, professor Adonai!!!!

É muito boa essa postagem!!!! Parabéns!!!!

Confesso que também, na previsão para o próximo número para aquelas sequencias numéricas noinício postagem, eu erraria feio, ao indica o 9 para a primeira (agora sei o porque do erro) e nemdesconfiava que na segunda, os valores agrupados ali, eram gerados por esse método de convergênciae assim, na certa, estaria até agora, tentando descobrir algum outro método lógico para dar sentido aoaparecimento sequencial daqueles números!!!! Interessante!!!!

Um abraço!!!!!Responder

Adonai 24 de dezembro de 2012 02:14Oi, Francisco

Anos atrás vi um anúncio de uma escola de informática sobre aulas de lógica para adultos ecrianças. Fui investigar. Perguntei à atendente como eram essas aulas. Ela disse que oobjetivo era estimular o raciocínio lógico das pessoas. Pedi por um exemplo. Ela entãorespondeu: "Considere a sequência 1, 2, 3. Qual é o próximo número?" Respondi que eu nãotinha a menor ideia. O olhar dessa atendente mudou completamente. Ela começou a metratar como seu eu fosse alguma espécie de deficiente mental. E então disse, muitolentamente: "1... 2... 3... o próximo número é... 4."

Agradeci pela demonstração e fui embora. A situação foi simplesmente hilária.

Enfim, legal que gostou do texto! Já observei que este tipo de postagem não fica entre asmais populares. É curioso como um blog de matemática atrai pouco interesse sobrematemática e bastante interesse sobre denúncias. Mas... é a vida.

Kynismós! 26 de dezembro de 2012 20:05Pensar dói...

Unknown 24 de dezembro de 2012 12:49Grande artigo. Penso que devem ter mentes brilhantes no E.M. que acabam sendo limitadas para seencaixarem no obvio da sociedade. Ha muito ainda a ser feito na Educaçao.Responder

Desmond David Hume 26 de dezembro de 2012 13:32

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Respostas

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Respostas

Parabéns por mais uma vez expandir meus pensamentos, professor!

Só gostaria de discutir as aplicações desse tipo de raciocínio nos testes inteligência (que vc mencionouno comecinho). Tais testes buscam investigar a capacidade do indivíduo em encontrar padrões emdeterminadas sequências. Essa capacidade tem sido associada a melhor capacidade na resolução deproblemas, dado que tudo no universo parece ter algum padrão. Sendo assim, um maior escore no testeindica um QI maior, que por sua vez está associado a melhor capacidade de solucionar problemas emoutras esferas da vida (há estudos que indicam até que o QI está associado a maior felicidade), etc.

Eu entendi o raciocínio que vc apresentou. Ainda que tenha um padrão evidente de estar aumentandode 1 em 1 na primeira sequência, nada quer dizer que o outro número será 9. Mas o teste não buscaprovas. Um indivíduo poderia responder "234". Se conseguisse justificar sua resposta, acho que nãoteria problemas. Mas o caderno de resposta de um desses testes possui 5 ou 6 alternativas, uma delasé a que representa o padrão que a pessoa que o elaborou o teste identificou (e a considera correta).Então supondo que as opções de resposta para a primeira sequência seja: a) 9; b) 10; c) 11; d) 20; e)234, é de se supor que a pessoa responda 9. Se responder outra, ou não foi capaz de enchergar opadrão e seria "menos capacitada" ou teria enchergado um padrão muito mais complexo e, mesmopontuando errado, provavelmente seria um "gênio em potencial".

O que vc acha?

abraçosResponder

Adonai 27 de dezembro de 2012 00:54Desmond

Existe um exemplo histórico muito famoso. O grande matemático francês Henri Poincaré fezum teste de QI e foi diagnosticado como débil mental. Uma das perguntas envolviajustamente uma sequência numérica parecida com aquela que inicia esta postagem. Outraquestão era a seguinte: um relógio analógico marca oito horas e vinte minutos; que horasmarcará se trocarmos as posições dos ponteiros? Poincaré respondeu que este relógio nãomarcará hora alguma. Esta resposta simplesmente não foi antecipada pela primária mente doelaborador da avaliação.

Testes de QI não são eficientes para medir inteligência de indivíduos genuinamente críticos.É como usar uma régua de trinta centímetros para medir a distância da Terra à Lua.Simplesmente não funciona.

SEBASTIÃO FRANCISCO DE PAULA VIANA 17 de abril de 2014 13:49

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Adonai 17 de abril de 2014 19:35

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Respostas a comentários dirigidos ao Administradorpodem demorar até três dias.

Sebastião

Esta é uma confusão muito comum entre alunos e até mesmo professores. Na geometriaeuclidiana retas paralelas no plano são aquelas que não têm interseção. Só isso. No entanto,em geometria projetiva, retas paralelas no plano têm interseção nos chamados pontosimpróprios (pontos no infinito). O segredo é não confundir geometria euclidiana comgeometria projetiva.

SEBASTIÃO FRANCISCO DE PAULA VIANA 17 de abril de 2014 21:26

Adonai

Professor Associado do Departamento de Matemática da UFPR. Autor de dois livros sobre lógicapublicados no Brasil, e de dezenas de artigos publicados em periódicos especializados dematemática, física e filosofia, no Brasil e no exterior. Atualmente está trabalhando em dois projetos

cinematográficos, sendo que um deles visa uma crítica inédita às universidades federais brasileiras. Para maisdetalhes ver a página "Sobre o autor do blog".Visualizar meu perfil completo

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