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A IDEOLOGIA DOS GENERAIS DO ESTADO NOVO E A PRIMEIRA MANIFESTAÇÃO DA DIREITA MILITAR NO BRASIL GUILLAUME AZEVEDO MARQUES DE SAES O nosso objetivo aqui nesta comunicação é analisar um fenômeno político-militar brasileiro que mais recentemente caiu em relativo esquecimento devido ao impacto político e ao maior apelo midiático que veio adquirir posteriormente o Regime Militar de 1964: o projeto político e a ideologia nacionalista de direita cujo grande expoente foi a alta oficialidade que dividiu o poder com Getúlio Vargas durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945), regime autoritário durante o qual foi iniciado efetivamente o processo de industrialização do Brasil. O espaço privilegiado que o Regime Militar de 1964-1985 ganhou na mídia e no imaginário político dos brasileiros por exemplo, para muitos militantes de extrema-direita no Brasil de hoje o mencionado regime é a sua única referência histórica fez com que um regime autoritário altamente militarizado que existiu anteriormente e que foi muito mais decisivo que o Regime de 64 para o processo de industrialização brasileira fosse relegado a um segundo plano, para não dizer ao esquecimento. A nossa proposta neste trabalho é, portanto, a de resgatar o tema do Estado Novo enquanto primeira manifestação da direita militar no Brasil, direita militar cujos grandes representantes foram os generais Dutra e Góes Monteiro, líderes da cúpula militar do regime; usaremos como material de base uma parte de nossa pesquisa de Doutorado realizada no Programa de Pós-Graduação em História Econômica da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) durante o período 2007-2011, pesquisa que foi publicada posteriormente em livro (SAES, 2015). A linha de pensamento que caracterizou a direita militar no poder durante o regime do Estado Novo se apoiava num nacionalismo militarista industrializador, elitista, anticomunista e antioligárquico, assim como numa ideologia de guerra que serviria como justificativa para a política autoritária e modernizadora do regime varguista (o Estado forte e a industrialização como imperativos para a sobrevivência do país numa era de imperialismos e de guerra total). Doutor em História Econômica pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Para a pesquisa com base na qual fizemos este texto contamos com o auxílio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), entre junho de 2008 e março de 2011, e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em abril e maio de 2008.

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A IDEOLOGIA DOS GENERAIS DO ESTADO NOVO E A PRIMEIRA

MANIFESTAÇÃO DA DIREITA MILITAR NO BRASIL

GUILLAUME AZEVEDO MARQUES DE SAES

O nosso objetivo aqui nesta comunicação é analisar um fenômeno político-militar

brasileiro que mais recentemente caiu em relativo esquecimento devido ao impacto político e

ao maior apelo midiático que veio adquirir posteriormente o Regime Militar de 1964: o projeto

político e a ideologia nacionalista de direita cujo grande expoente foi a alta oficialidade que

dividiu o poder com Getúlio Vargas durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945), regime

autoritário durante o qual foi iniciado efetivamente o processo de industrialização do Brasil. O

espaço privilegiado que o Regime Militar de 1964-1985 ganhou na mídia e no imaginário

político dos brasileiros – por exemplo, para muitos militantes de extrema-direita no Brasil de

hoje o mencionado regime é a sua única referência histórica – fez com que um regime

autoritário altamente militarizado que existiu anteriormente e que foi muito mais decisivo que

o Regime de 64 para o processo de industrialização brasileira fosse relegado a um segundo

plano, para não dizer ao esquecimento. A nossa proposta neste trabalho é, portanto, a de resgatar

o tema do Estado Novo enquanto primeira manifestação da direita militar no Brasil, direita

militar cujos grandes representantes foram os generais Dutra e Góes Monteiro, líderes da cúpula

militar do regime; usaremos como material de base uma parte de nossa pesquisa de Doutorado

realizada no Programa de Pós-Graduação em História Econômica da Faculdade de Filosofia,

Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) durante o período

2007-2011, pesquisa que foi publicada posteriormente em livro (SAES, 2015).

A linha de pensamento que caracterizou a direita militar no poder durante o regime do

Estado Novo se apoiava num nacionalismo militarista industrializador, elitista, anticomunista

e antioligárquico, assim como numa ideologia de guerra que serviria como justificativa para a

política autoritária e modernizadora do regime varguista (o Estado forte e a industrialização

como imperativos para a sobrevivência do país numa era de imperialismos e de guerra total).

Doutor em História Econômica pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São

Paulo. Para a pesquisa com base na qual fizemos este texto contamos com o auxílio financeiro da Fundação de

Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), entre junho de 2008 e março de 2011, e do Conselho

Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em abril e maio de 2008.

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Esta direita militar, que se impôs com o colapso final do tenentismo e cuja componente

nacionalista (e de certa forma até anti-imperialista) a diferencia da direita militar pró-americana

que surgiu no Brasil no pós-1945, apareceu no contexto político conturbado da década de 1930,

quando a polarização direita/esquerda se manifestou de fato pela primeira vez nas Forças

Armadas brasileiras: a efervescência política daquela década, na qual surgiram movimentos

políticos das mais diferentes tendências (integralismo, ANL, comunistas, liberais, etc.), não

poupou o meio militar, em si mesmo marcado pela experiência tenentista e pela dissidência de

esquerda de Luís Carlos Prestes.

O Estado Novo surgiu com um golpe militar liderado pela alta oficialidade do Exército.

A Marinha, coadjuvante nos episódios político-militares da década de 1930, aceitou

passivamente a mudança de regime, e, apesar de seu maior conservadorismo e do vínculo de

parte de sua oficialidade com o movimento integralista, acabou por se submeter à política do

Exército (SILVEIRA, 2001). É preciso esclarecer, entretanto, qual foi o Exército que esteve na

origem da instauração do regime, melhor dizendo que grupo conquistou a posição hegemônica

dentro da corporação para liderá-la em seguida no estabelecimento da ditadura.

Como observa José Augusto Drummond (1986), estudioso do tenentismo, o Exército

passava no início da década de 1930 por um processo de desagregação devido ao quadro de

cisão militar iniciado com os levantes tenentistas da década anterior, quadro que inviabilizava

naquele momento uma ação política em bloco dos militares. Esta divisão política do Exército

teve consequências na atuação política dos militares nos primeiros anos do governo Vargas, o

que tornou necessária uma série de expurgos e de processos de depuração para surgir o Exército

suficientemente unificado que promoveria o golpe de Estado de 10 de novembro de 1937.

Primeiramente foi preciso um expurgo da oficialidade comprometida com o regime deposto em

1930 ou com a oposição liberal-oligárquica à nova ordem revolucionária. A reconstituição da

cúpula militar em torno do grupo vencedor em 1930 foi facilitada inicialmente com a rápida

ascensão hierárquica de Góes Monteiro, comandante militar da revolução. Com um oficial

revolucionário no topo da hierarquia do Exército, o trabalho de depuração da organização

militar brasileira pelos novos detentores do poder foi facilitado. O expurgo dos elementos mais

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conservadores e hostis à ordem pós-30 dentro do Exército pode ser completado devido ao apoio

de muitos desses militares à Revolução Constitucionalista de 1932 em São Paulo, o que

permitiu, com a vitória governamental, a substituição de quadros não só na cúpula como

também nos escalões intermediários (CARVALHO, 2005). A alta oficialidade

contrarrevolucionária ou cuja lealdade à ordem do pós-1930 era no mínimo duvidosa, foi,

portanto, erradicada do Exército e não representava mais um perigo real para o regime.

O segundo obstáculo a ser removido para o Exército readquirir a sua há muito tempo

perdida coesão era o próprio tenentismo, movimento revolucionário de baixa oficialidade,

constituído basicamente de tenentes e capitães, e que, apesar de ser um dos principais

sustentáculos da nova ordem do pós-30, representava duas ameaças. A primeira delas consistia

numa radicalização do processo revolucionário iniciado em 1930, já que os tenentes chegavam

a contestar a estrutura fundiária brasileira (condenação do latifúndio) e apresentavam um

discurso antiburguês, antiplutocrático e antimonopolista que assustava as classes dominantes

(SANTA ROSA, 1976; FAUSTO, 1997; FORJAZ, 1988). A segunda era uma ameaça de cisão

hierárquica dentro das Forças Armadas, na medida em que os tenentes formavam um grupo

político autônomo em relação à alta oficialidade, com baixos oficiais assumindo altos cargos

políticos e administrativos dentro do aparelho de Estado e se colocando desta forma acima da

própria cúpula militar na esfera política (DRUMMOND, 1986). A neutralização do grupo

tenentista, pelo menos da sua vertente principal, a nacionalista (Juarez Távora, João Alberto)1,

se deu devido ao seu próprio desgaste após quatro anos no poder – mesmo com a vitória de

algumas de suas bandeiras no Governo Provisório e na elaboração constitucional de 1933-1934

– e a sua permanência no cenário político brasileiro não resistiu à reconstitucionalização do

país. Assim, o período “termidoriano” iniciado em 16 de julho de 1934 assistiu à reintegração

dos tenentes nos quadros hierárquicos das Forças Armadas e à sua anulação enquanto facção

1 O fenômeno tenentista durou de 1922 a 1935 e teve, ao longo destes treze anos, três vertentes: a primeira seria

uma vertente liberal, dominante durante os levantes militares da década de 1920, e que consistia na defesa de uma

reforma política moralizadora do regime republicano, então dominado por uma oligarquia autoritária e corrupta; a

segunda seria uma vertente nacionalista, dominante no período 1930-1934, e que se apoiaria na defesa de uma

reforma modernizadora e centralizadora do Estado brasileiro, e de reformas sociais e econômicas como a

industrialização, a reforma agrária, a legislação operária e a estatização de recursos naturais; a terceira, surgida

com a dissidência de Luís Carlos Prestes em 1930, seria uma vertente de esquerda, já comprometida com uma

revolução popular contra o latifúndio e as potências imperialistas e contrária a qualquer compromisso com o

reformismo nacionalista burguês (SAES, 1984; CARONE, 1982; FAUSTO, 1997).

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política autônoma. Restava à cúpula militar derrotar o tenentismo de esquerda (Luís Carlos

Prestes, Agildo Barata), e este, com a intentona mal preparada e mal articulada de novembro de

1935, proporcionou não somente àquela uma grande vitória final sobre os remanescentes do

tenentismo, como também a possibilidade de unificar as Forças Armadas em torno do

anticomunismo: a ameaça comunista surgida de dentro dos próprios meios militares levou o

conjunto da oficialidade, inclusive a ligada ao tenentismo nacionalista, a deixar as suas

diferenças de lado e a se unir em torno da cúpula militar para o combate à subversão de esquerda

(DRUMMOND, 1986).

O culto da ameaça comunista continuaria, mesmo após a vitória governamental sobre a

Intentona de 1935, a ser explorado pela alta oficialidade como ideologia aglutinadora para um

golpe de Estado e a instauração de um regime ditatorial. O expurgo da oficialidade esquerdista

completou, portanto, a reconstituição do Exército enquanto bloco politicamente coeso e

hierarquicamente disciplinado. Toda ação política independente em relação à cúpula militar

seria vista como prejudicial à missão sagrada das Forças Armadas de defender a Pátria diante

de seus inimigos, especialmente diante da subversão comunista que estaria agindo com base

nas diretrizes de Moscou. Com o Exército depurado de seus elementos reacionários e

esquerdistas e reorganizado com o enquadramento da maioria de seus elementos tenentistas,

estavam assentadas as condições para uma ditadura baseada nas Forças Armadas. Para Getúlio

Vargas, esta nova aliança militar era mais desejável do que a aliança com os tenentes do início

da década de 1930, na medida em que agora podia se apoiar em Forças Armadas unificadas sob

a liderança de uma alta oficialidade cujo projeto político era mais próximo ao seu: como

liderança política originária dos quadros oligárquicos da República Velha, Vargas certamente

via com desconfiança o reformismo social acentuado dos tenentes e preferia uma política de

modernização do país que evitasse ao máximo qualquer rompimento brusco com a ordem social

vigente.

Podemos dizer que o Estado Novo foi uma ditadura civil-militar liderada por Getúlio

Vargas, um político civil originário de um dos ramos mais progressistas da antiga oligarquia

republicana, o grupo castilhista, e apoiada na alta oficialidade do Exército. Esta ditadura era de

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caráter industrializante e modernizador e tinha como principal objetivo completar a obra

política e econômica da Revolução de 1930, isto é a transformação do Brasil de país agrícola

e exportador de produtos primários em país industrial. Foi no período do Estado Novo que foi

completada a organização necessária para a concretização de uma política de desenvolvimento

acelerado do país, com a modernização e a racionalização da burocracia federal, a unificação

do mercado interno, a difusão do ensino profissional e o surgimento de órgãos voltados para o

estudo e o planejamento do desenvolvimento econômico (CARONE, 1976; FONSECA, 1999;

SKIDMORE, 1969; SOLA, 1968). Dentro desta política de desenvolvimento tinha função

importante a legislação trabalhista, criada a partir de 1931 e consolidada durante o Estado Novo,

e cujo objetivo, ao proporcionar melhores condições de vida e de trabalho para o operariado e

ao garantir a docilidade política da mão de obra e subordiná-la ao Estado, era o de antecipar a

intensificação da luta de classes e trazer a estabilidade social necessária a um esforço

industrializante de grandes proporções (SAES, 1984). Finalmente, foi no Estado Novo que foi

criada no país a siderurgia em larga escala (Companhia Siderúrgica Nacional, empresa mista

fundada em 1941), que foi iniciada de forma mais sistemática pelo Estado a extração de

minérios de ferro para fins industriais (Companhia Vale do Rio Doce, empresa mista fundada

em 1942) e que foi encaminhado, com a criação do Conselho Nacional do Petróleo (1938) e

com a legislação relativa à exploração das riquezas minerais (2º Código de Minas, 1940), o

problema da exploração petrolífera, que seria, entretanto, resolvido apenas na década de 1950.

A política e o discurso do Estado Novo se apoiaram e estiveram sempre associadas ao

contexto de guerra mundial, que era uma ameaça quando do advento do regime em 1937 e que

se tornou uma realidade a partir de 1939. Apesar de o Brasil estar situado fora das zonas de

tensão geopolítica da época e de em nenhum momento ter sido ameaçado pela guerra, a ditadura

varguista usou sistematicamente este contexto internacional como justificativa para a vigência

de um regime autoritário e industrializador. Pedro Cezar Dutra Fonseca, estudioso da obra

política e econômica dos governos varguistas, sintetiza bem esta ideia:

Grande parte do êxito do regime do Estado Novo na economia e na política deve ser

atribuído ao contexto de guerra no qual ele se inseriu. A ditadura precedeu à

deflagração do conflito mundial, mas desde seu nascedouro apelou à união de todos

os brasileiros em torno da figura de Vargas, dada a iminência de nova guerra

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mundial. Esta iniciada, com mais razão e frequência tornou-se um dos pilares da

legislação do governo. Tão presa está a ideologia do Estado Novo à época da guerra

que é impossível entendê-la fora deste contexto, como não é simples coincidência que

a ditadura de Vargas não pode sobreviver ao armistício. (FONSECA, 1999: 277-278)

A importância do grupo militar neste contexto e na formulação deste discurso foi

decisiva: a ideologia de guerra, cujos principais expoentes eram os generais Eurico Gaspar

Dutra, Ministro da Guerra, e (sobretudo) Pedro Aurélio de Góes Monteiro, Chefe do Estado-

Maior do Exército, constituiria um dos pilares ideológicos do regime.

No que consistiu a ideologia de guerra da cúpula militar do Estado Novo? Esta questão

foi abordada por autores como Oliveiros S. Ferreira (2000), Edmundo Campos Coelho (2000),

Marcelo José Ferraz Suano (1997), Décio Saes (1984) e José Murilo de Carvalho (2005). Com

base nestes autores e nos textos de Dutra e Góes Monteiro, constatamos que esta ideologia de

guerra se apoiava num militarismo defensivo, no qual não encontramos projetos de expansão

territorial, e o qual via o Brasil numa posição vulnerável num contexto de guerra mundial e de

políticas imperialistas por parte das grandes potências. O Brasil, país com território gigantesco

e rico em recursos naturais cobiçados pelas grandes potências, mas ao mesmo tempo país

militarmente fraco e atrasado do ponto de vista industrial, estava destinado a ser uma vítima da

cobiça das nações imperialistas, e, por esta razão, precisava rever a sua organização política e

o seu modelo de desenvolvimento: a industrialização acelerada realizada por um Estado forte

e militarizado seria a única solução para os problemas brasileiros naquele contexto geopolítico.

Esta ideia, como dissemos, está presente em força nos discursos de Dutra e Góes Monteiro na

época, com destaque para o livro de autoria deste último intitulado A Revolução de 30 e a

finalidade política do Exército (GÓES MONTEIRO, [1934?]), no qual estão presentes o que

então eram as principais posições de Góes Monteiro relativas à organização do Estado e ao

papel político das Forças Armadas.

Crítico da ordem política oligárquica da Primeira República, vista como responsável

pela desunião nacional e pelo consequente enfraquecimento do país, Góes Monteiro defendia a

instauração de um Estado forte e centralizado, o único tipo de Estado capaz, segundo ele, de

garantir a montagem de uma organização militar (e também econômica) suficientemente sólida

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para a missão de proteger o território brasileiro na era da guerra total.2 Este novo de tipo de

Estado, mais adequado à realidade e às necessidades nacionais, garantiria a formação de uma

estrutura militar defensiva mais eficiente por meio de uma política de industrialização acelerada

voltada para setores avançados da atividade industrial (siderurgia, indústria química, indústrias

militares, etc.), de uma reorganização das forças militares e de uma ação política estimulando

o patriotismo e as energias nacionais e combatendo os inimigos da unidade nacional

(regionalismos, movimentos de esquerda, luta de classes) (GÓES MONTEIRO, [1934?]; 1934).

Em discurso de dezembro de 1940, por exemplo, Dutra defendia posições idênticas (DUTRA,

1941). Segundo a cúpula militar do Estado Novo, todos os setores vitais da sociedade e da

atividade econômica deveriam estar a serviço da organização militar brasileira, isto é, a

indústria, os transportes, as vias de comunicação, a escola e a imprensa – estes dois últimos

desde que comprometidos com ideais patrióticos e livres de ideias perniciosas ao

desenvolvimento do sentimento nacional.3 Neste sentido, ideias socialistas, liberais, pacifistas

e internacionalistas deveriam ser banidas do ensino e dos meios de comunicação. No que diz

respeito ao programa econômico propriamente dito, os discursos de Dutra e Góes Monteiro não

entravam em maiores detalhes, limitando-se a defender o desenvolvimento dos setores mais

avançados da atividade industrial na época (siderurgia, indústria química, petróleo,

equipamento militar, etc.) e a defender o dirigismo econômico (e a condenar, por conseguinte,

a economia de mercado e a criticar a burguesia brasileira por sua falta de patriotismo e

envergadura). O estudo e a atuação nos programas econômicos do Estado Novo ficará nas mão

de uma outra categoria de militar, o oficial-engenheiro especialista em questões industriais,

como Edmundo de Macedo Soares no caso da siderurgia e Horta Barbosa no caso do petróleo:

diferentemente de Dutra e Góes Monteiro, Macedo Soares e Horta Barbosa seriam herdeiros da

2 A defesa de um Estado forte e centralizado não significa que Góes Monteiro se manifestasse pela instauração de

uma ditadura militar, isto é, pelo controle direto do poder político pelas Forças Armadas. Partidário de uma maior

autonomia do Estado-Maior do Exército em relação ao Poder Executivo (MOTTA, 2001), Góes Monteiro concebia

a nova ordem nacionalista com Forças Armadas transformadas numa espécie de “quarto poder”, com a função de

garantir e monitorar o governo. Em outras palavras, defendia um Estado militarizado que não fosse

necessariamente uma ditadura militar. 3 Para não ultrapassarmos o limite de espaço exigido para os textos completos deste evento, optamos por não

transcrever aqui os trechos dos discursos de Dutra e Góes Monteiro, que serviriam apenas para fins de ilustração

e não acrescentariam nada ao que dissemos aqui. Para os interessados, remetemos à leitura do nosso livro (SAES,

2015) ou da nossa tese de Doutoramento, disponível na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP.

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ideologia modernizadora e industrializadora do republicanismo militar do final do século XIX

(Horta Barbosa era, inclusive, membro da Igreja Positivista).

Por mais exagerado (e mesmo cômico) que pareça este discurso visto dos dias de hoje,

levando-se em conta o fato de que o território brasileiro não era ameaçado naquele contexto

histórico, ele foi decisivo para a legitimação da política industrializadora e para a própria

existência do Estado Novo. Num país com elites agrárias, que nada obrigava a apoiar uma

política de industrialização acelerada por meio de um Estado autoritário – uma política de

industrialização queimando etapas implica sempre algum sacrifício para o setor agrícola, que

deixa então de ser privilegiado pela política estatal –, a “ameaça externa” era um fator capaz de

desmobilizar uma oposição mais séria vinda das classes dominantes: se a “ameaça comunista”

fora decisiva para a legitimação do golpe de Estado de novembro de 19374, a continuidade do

regime precisava contar com outros elementos de pressão ideológica, e o contexto da guerra

mundial serviu a este fim. Aliás, é preciso notar como a justificativa ideológica para uma ação

política dificilmente retrata a realidade; no caso da instauração do Estado Novo, o discurso

anticomunista serviu para maquiar o verdadeiro alvo da ação golpista, que era na verdade as

elites agroexportadoras de São Paulo, que preparavam um retorno ao poder pela via eleitoral

(candidatura de Armando de Salles Oliveira nas eleições presidenciais de 1938) depois de quase

uma década apeadas do governo federal. No caso da guerra mundial, o verdadeiro inimigo não

era nem a Alemanha hitlerista, nem a Rússia stalinista, nem qualquer potência imperialista

ocidental, e sim as próprias elites conservadoras brasileiras que se sentiam obrigadas a tolerar,

devido ao pretenso perigo externo, um regime ditatorial que não correspondia de fato às suas

aspirações e aos seus interesses. Em outras palavras, o Estado Novo, apesar de se autoproclamar

anticomunista e “regime de guerra”, foi sobretudo uma ditadura antioligárquica, cujo objetivo

era neutralizar politicamente as elites agroexportadoras mais poderosas (especialmente as elites

cafeeiras paulistas), e de completar, como dissemos atrás, o processo político e econômico

4 Na verdade, quando houve o golpe de Estado de 10 de novembro de 1937, a extrema-esquerda, já neutralizada e

com as suas lideranças na prisão desde a derrota da Intentona de 1935, não representava uma real ameaça à ordem

vigente. Todo a ação repressiva do governo varguista, que dirigiu o país em estado de sítio durante praticamente

todo o período situado entre novembro de 1935 e o golpe do Estado Novo, é descrita detalhadamente por Edgard

Carone (1982).

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iniciado em 1930, que é o da transformação do Brasil de nação agrário-exportadora em nação

industrial.

Este discurso da cúpula militar do Estado Novo que acabamos de descrever corresponde

a uma ideologia nacionalista de direita, que, mesmo contendo elementos progressistas

(sobretudo no tocante à industrialização, à defesa da legislação social e trabalhista e à

condenação do regionalismo oligárquico da Primeira República), está inequivocamente

identificado com o campo conservador. A defesa da ordem política e social e a condenação da

liberal-democracia, do comunismo e do pacifismo, estes últimos sendo vistos como um

empecilho para a segurança militar do Brasil, evidenciam a componente conservadora do

discurso militar estadonovista. A própria defesa da industrialização possui aqui um caráter

sombrio e conservador ao apresentar o desenvolvimento industrial, não como fator de

progresso, e sim como instrumento de proteção contra as inevitáveis agressões externas:

diferentemente dos militares positivistas da época da Proclamação da República, que exaltavam

a industrialização e a sociedade industrial como fatores de progresso, os generais

estadonovistas a viam como uma medida emergencial contra o perigo externo, num contexto

internacional similar a um mundo de trevas. O programa econômico defendido por Dutra e

Góes Monteiro contrastava também com o reformismo acentuado do grupo tenentista que

esteve no poder durante o período 1930-1934, e que defendia abertamente a reforma agrária

(difusão da pequena propriedade no campo), a participação dos trabalhadores nos lucros das

empresas e uma tributação mais alta das classes dominantes (SAES, 2015). Quando os generais

estadonovistas criticavam as oligarquias regionais, tratava-se de uma crítica essencialmente

política (as oligarquias regionais como ameaça à unidade nacional), crítica que não envolvia

uma contestação da estrutura fundiária do país: em nenhum momento encontramos, no discurso

da cúpula militar do Estado Novo, a defesa da reforma agrária, e nem uma contestação precisa

e efetiva do modelo agrário-exportador (por exemplo, nenhuma defesa de uma reorientação da

agricultura brasileira no sentido da produção de alimentos destinados ao mercado interno). José

Murilo de Carvalho aponta a diferença entre a intervenção militar de 1930, que se deu sob o

domínio ideológico dos tenentes e possuía forte caráter revolucionário e social, e a intervenção

golpista de 1937, mais autoritária e conservadora, embora também comprometida com a

modernização do país:

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Se sete anos antes, uma parcela do Exército liderara o movimento de destruição da

velha ordem, agora a instituição servia de parteira da nova ordem, diferente da

imaginada pelos revolucionários de 1930. A ênfase agora não estava nas reformas

sociais, na representação classista, no combate ao latifúndio, mas no

desenvolvimento econômico, na indústria de base, na dívida externa, na exportação,

nas estradas de ferro, no fortalecimento das Forças Armadas, na segurança interna

e na defesa externa.

Desaparecera totalmente a ideia de Exército como vanguarda do povo e firmava-se

a do Exército coexistindo com a estrutura do Estado, como elemento dinâmico deste

[...]. (CARVALHO, 2005: 99)

O surgimento desta direita militar ocorreu no contexto do combate governamental à

Intentona de 1935; o combate à insurreição militar de esquerda liderada por Luís Carlos Prestes

fez nascer efetivamente o anticomunismo militar no Brasil, assim como provocou a aparição,

pela primeira vez na história brasileira, da polarização direita/esquerda nas Forças Armadas.

Não acreditamos que a polarização direita/esquerda existisse nos meios militares brasileiros

antes da década de 1930, e pensamos que falar de esquerda e direita antes do surgimento de

grupos militares comprometidos com projetos socialistas e de revolução popular pode levar a

um anacronismo.5 Para designar as correntes mais avançadas das Forças Armadas antes da

década de 1930, como, por exemplo, a oficialidade republicana e abolicionista que derrubou a

Monarquia em 1889 ou os tenentes revolucionários que se sublevaram contra a República

Oligárquica na década de 1920, preferimos usar o termo progressista, mais adequado para

designar correntes reformistas comprometidas com a modernização e o desenvolvimento, sem

defenderem um rompimento com a ordem burguesa. Para nós, é somente com a dissidência de

esquerda de Luís Carlos Prestes em maio de 1930 – Prestes rompia então com a maioria dos

seus companheiros do movimento tenentista em nome do marxismo e de um projeto de

5 João Quartim de Moraes (2005, 1994) apresenta a oficialidade republicana e abolicionista do final do século

XIX, o tenentismo das décadas de 1920 e 1930 e os generais nacionalistas e democratas da década de 1950 como

representantes da esquerda militar no Brasil. Embora entendamos a argumentação do autor, para quem os termos

esquerda e direita possuem um significado relativo – isto é, as questões em torno das quais gira a polarização

esquerda X direita dependem do contexto histórico dentro do qual a polarização se dá –, achamos que o uso do

termo esquerda militar para correntes comprometidas com a modernização e o desenvolvimento sem rompimento

com a ordem burguesa poderia induzir em erro: na medida em que o termo esquerda acabou por ser associado

dentro do imaginário político ao socialismo e à luta proletária contra a dominação burguesa, pensamos que a

denominação esquerda militar caberia melhor na caracterização de fenômenos políticos assumidamente

esquerdistas, como a intentona de 1935 e a ação de Carlos Lamarca contra o Regime Militar na década de 1960.

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revolução popular contra a burguesia, o latifúndio e o imperialismo – que surge a esquerda

militar no Brasil, e é em decorrência do surgimento desta esquerda militar que nascerá a direita

militar anticomunista liderada por altos oficiais como Dutra e Góes Monteiro. Antes de 1930

houve tensões e conflitos entre uma oficialidade progressista, em geral golpista e insurrecional

e defensora de reformas econômicas e sociais modernizadoras (abolição da escravidão,

Proclamação da República, industrialização e mesmo uma reforma agrária moderada em alguns

casos etc.), e uma oficialidade conservadora comprometida com a ordem vigente (oficialidade

monarquista na década de 1880, oficialidade legalista na década de 1920) e, em alguns casos,

com tentativas golpistas (por exemplo, Revolta da Armada, em 1893-1894).

A direita militar no Brasil nasceu, portanto, no contexto dos conflitos político-militares

da década de 1930, e mais especificamente com o combate das forças governamentais à

Intentona de 1935, quando o anticomunismo se consolidou como tópico permanente da

ideologia militar: a partir de então o anticomunismo cresceria em importância nos meios

militares, para se tornar a pedra angular do discurso das facções político-militares mais atuantes

no campo da direita no pós-1945. Entretanto, a direita militar que surgiu em 1935 e que dividiu

o poder com Getúlio Vargas durante a ditadura do Estado Novo se diferencia em alguns

aspectos, de grande importância por sinal, da direita militar do pós-1945: enquanto esta última

viria a assumir no geral uma postura ideológica pró-americana (defesa de um alinhamento

automático com os Estados Unidos e com o Bloco Ocidental contra o comunismo totalitário

soviético), a direita militar estadonovista se voltava para um nacionalismo com aspectos anti-

imperialistas, contrário ao alinhamento com potências estrangeiras, nacionalismo que

apresentava estas últimas, em conjunto, como ameaças potenciais à soberania brasileira.6 Com

a queda do Estado Novo em 1945 (regime deposto pelos mesmos militares que o haviam

instaurado), o nacionalismo de direita praticamente desaparecia como tendência importante nas

Forças Armadas brasileiras; os próprios representantes da cúpula militar do regime deposto se

6 É preciso lembrar, entretanto, que os Estados Unidos consolidaram de fato a sua hegemonia no continente

americano a partir de 1945 (embora a sua presença já estivesse forte no Brasil a partir da entrada deste na Segunda

Guerra Mundial), e que, devido à crise de hegemonia das potências estrangeiras no Brasil durante o período 1930-

1945 (declínio da Inglaterra sem ascensão imediata dos Estados Unidos), era mais fácil assumir uma postura

autonomista durante o Estado Novo do que no pós-1945.

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inseririam de alguma forma no campo pró-americano.7 O cenário político-militar do pós-1945

passaria agora a ser disputado por duas facções modernizadoras dentro das Forças Armadas:

uma nacionalista centrista democrática e legalista voltada para um projeto de desenvolvimento

autônomo, para uma política externa independente e para uma aliança política com o populismo

varguista; uma pró-americana voltada para uma política externa alinhada com os Estados

Unidos, para um discurso liberal, anticomunista e antipopulista e para um projeto de

desenvolvimento associado ao capital estrangeiro. Esta última tendência estaria na origem da

criação da Escola Superior de Guerra em 1949 e do golpe de Estado de 31 de março de 1964,

que colocou Castelo Branco, um representante típico desta orientação, no poder (PEIXOTO,

1980; SODRÉ, 1979). Algumas manifestações posteriores que poderiam ser encaixadas dentro

de um modelo de direita militar nacionalista, como as tendências lideradas por Albuquerque

Lima e Sílvio Heck na segunda metade da década de 1960, ou mesmo a política externa

independente do Governo Geisel na segunda metade da década de 1970, não levaram ao

ressurgimento efetivo e durável de uma tendência nacionalista de direita como a que

caracterizou a cúpula militar do Estado Novo.

Finalmente, uma última questão que queremos abordar aqui, e que é de grande

relevância em decorrência das associações que foram feitas entre o Estado Novo e os regimes

nacionalistas totalitários europeus surgidos no entreguerras (e mais especificamente a Itália

mussoliniana e a Alemanha hitlerista), é a da possibilidade (ou não) de caracterizarmos o

nacionalismo de direita da cúpula militar do Estado Novo – assim como o próprio regime em

questão – como uma manifestação de tipo fascista. Com base no que pesquisamos durante o

período do Doutorado, nem o Estado Novo e nem a ideologia de sua cúpula militar podem ser

confundidos com o fascismo, apesar de haver algumas semelhanças, como o nacionalismo, o

militarismo, o autoritarismo, o anticomunismo e a condenação do liberalismo econômico; a

própria concepção darwinista que Dutra e Góes Monteiro tinham das relações internacionais

(triunfo dos mais fortes, submissão dos mais fracos) se aproximava das concepções

nazifascistas, mesmo que, ao contrário do nazifascismo, o Estado Novo nunca tenha

patrocinado projetos de expansão territorial. De qualquer forma, o nacionalismo autoritário,

7 O próprio governo presidencial de Eurico Gaspar Dutra (1946-1951) se notabilizaria por um pró-americanismo

expressivo.

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anticomunista e antiliberal não são monopólio do fascismo, e não seriam suficientes, em si, para

caracterizar um regime como sendo de tipo fascista. Além do mais, outras características do

fascismo (e nem estamos nos referindo ao racismo e ao antissemitismo mais característicos do

nacional-socialismo na Alemanha) faltavam ao Estado Novo: a existência de um partido

político forte, um partido único capaz de arregimentar as massas e de controlar as próprias

Forças Armadas; uma doutrina bem definida norteando o regime, uma doutrina que implicasse

não somente uma concepção de Estado, mas também uma nova concepção da vida humana (a

formação de um “novo homem”, ideal comum nos regimes totalitários, tanto os de direita como

os de esquerda). O Estado Novo, por apoiar a sua estrutura ditatorial nas Forças Armadas,

dispensou a organização de um partido único de massa; quanto à sua ideologia, o regime se

apoiava em princípios fortes (Estado forte, desenvolvimento industrial, conciliação entre capital

e trabalho, anticomunismo), mas não num verdadeiro sistema doutrinário. Lourdes Sola, autora

de importante ensaio sobre o Estado Novo, define bem a natureza deste regime:

Das características mais específicas do golpe de 10 de Novembro – e que o

diferenciam daqueles ocorridos na Europa na mesma década, com os quais

erradamente certos autores o identificam – algumas são negativas. Isto é, ele não

representou a vitória de um partido organizado (a participação dos integralistas era

adjetiva), nem teve apoio ativo de massas. A carência de unidade e de estrutura

ideológicas, outro traço distintivo, não era compensada pelas afirmações de seus

principais autores, que procuravam legitimá-lo em nome do programa e das

reivindicações da revolução de 30: como se sabe, esta resultara de forças sociais, de

expectativas e mesmo de ideologias bastante díspares, e essa heterogeneidade se

revelara logo em seguida sob a forma de divergências políticas; não podia por isso,

servir de referência unitária.

Esta falta de mediações organizatórias entre Vargas e o País, salvo a das Forças

Armadas, explica a eficácia daquela representação personalista do novo regime. A

ausência de mobilização política ampla que lhe servisse de base, permite que a

instauração do Estado Novo apareça como um golpe de elites político-militares

contra elites político-econômicas. (SOLA, 1968: 289)

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O caráter não fascista da ditadura do Estado Novo8 explica o porquê da proscrição do

movimento integralista, movimento de tipo fascista, logo após o golpe de Estado: se os

integralistas haviam sido utilizados pelos golpistas de 1937 na mobilização ideológica para um

golpe anticomunista, não havia espaço, dentro da ordem ditatorial do Estado Novo, para uma

grande organização política de massa, com um líder próprio (Plínio Salgado), uma ideologia

própria (a doutrina integralista) e que apresentava características paramilitares (as milícias

integralistas) que poderiam significar a futura existência de uma força paralela ao Exército. Isto

explica o porquê, apesar de o movimento contar com muitos simpatizantes nos meios militares,

e em especial na mais conservadora Marinha, do fechamento da Ação Integralista Brasileira

logo após o golpe de Estado, assim como a fracassada tentativa de derrubada do governo por

parte de um grupo de integralistas (aliados a um grupo de liberais) em maio de 1938, e o

consequente exílio de Plínio Salgado em Portugal. Segundo José Murilo de Carvalho:

Se ideologicamente o integralismo tinha posições próximas das que predominavam

na cúpula militar, o pertencimento simultâneo a duas organizações tão absorventes

criava conflitos de lealdade que terminavam por minar a disciplina militar. Além

disso, o integralismo mobilizava as massas e provocava reações mantendo, assim,

viva a atividade política. Isso era exatamente o que não interessava à cúpula militar,

que via a oportunidade de extirpar de vez a atividade política e conseguir assim

eliminar também as perturbações disciplinares motivadas pelo partidarismo.

(CARVALHO, 2005: 98)

O próprio Getúlio Vargas, enquanto liderança de tipo bonapartista – liderança

autoritária que se coloca acima dos partidos e das tendências, assumindo uma posição centrista

ao reprimir os dois extremos dependendo da conjuntura – nunca se encaixaria no perfil de

liderança fascista. E nem à própria cúpula militar do Estado Novo, pelas razões que apontamos

acima, interessaria a instauração de um regime fascista controlado por uma grande estrutura

partidária de massa. O Estado Novo seria, portanto, um regime autoritário, mas não totalitário,

e a ideologia da cúpula militar poderia ser caracterizada como sendo de direita, mas não de

8 Não se deve atribuir muita importância ao fato de o autor da Constituição do Estado Novo, Francisco Campos,

ser um admirador dos regimes fascistas europeus. A Constituição de 10 de novembro de 1937, que estabelecia um

regime republicano presidencial, federativo e representativo, com um Presidente da República eleito por um

período de seis anos, nunca foi aplicada, já que Vargas governou durante todo o período 1937-1945 em estado de

emergência.

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extrema-direita, o próprio radicalismo de massas característico do fascismo sendo desprezado

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