a identificação do jongo na zona da mata mineira
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Trabalho apresentado no I ENCONTRO DE PESQUISADORES DA HISTÓRIA DA ZONA DA MATA MINEIRATRANSCRIPT
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I ENCONTRO DE PESQUISADORES DA HISTRIA DA ZONA DA MATA MINEIRA
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Identificao do Jongo na Zona da Mata Mineira Corina Maria Rodrigues Moreira
Mestre em Cincias Sociais Coordenadora de Patrimnio Imaterial da
Superintendncia do IPHAN em Minas Gerais
O Jongo uma manifestao da cultura afro-brasileira que envolve canto, dana e
percusso de tambores e desenvolveu-se, sobretudo, nas regies cafeeiras do Sudeste, a
partir das ltimas dcadas do sculo XIX. Registrado como Patrimnio Cultural Brasileiro
no Livro das Formas de Expresso em dezembro de 2005, o Jongo no Sudeste apresentou-
se, a partir de ento, como foco de ateno das polticas pblicas federais de patrimnio
que, desde 2007, so realizadas pelo IPHAN e pelo Ministrio da Cultura, atravs da
criao do Ponto de Cultura do Jongo.1
Ainda que registrado como Jongo no Sudeste, em Minas Gerais havia sido
identificada apenas uma comunidade jongueira em Carangola no abrangida pelo
Inventrio que deu origem ao registro2 desta Forma de Expresso. No entanto, a partir de
julho de 2008, quando a Superintendncia do IPHAN em Minas Gerais comeou a
acompanhar efetivamente as atividades do Plano de Salvaguarda do Jongo, constatou-se a
necessidade de ampliao dos conhecimentos sobre essa manifestao cultural no Estado.
Pretendia-se, assim, ampliar e aprofundar a atuao da Superintendncia junto s
comunidades jongueiras de Minas Gerais, objetivando sua divulgao e salvaguarda.
Foi proposta, nesse sentido, uma pesquisa de identificao do Jongo na Zona da
Mata mineira, levando em considerao as indicaes de existncia de mestres jongueiros
nesta regio. Para tanto, foi contratada empresa de pesquisa de Belo Horizonte,3 que entre
setembro de 2009 e maro de 2010 realizou diagnstico da existncia de comunidades e
mestres jongueiros na Zona da Mata mineira.
Desenvolvidas em seis etapas, as investigaes tiveram incio atravs de pesquisa
bibliogrfica e levantamento de fontes de consulta, com vistas a orientar a realizao da
pesquisa de campo, foco do trabalho desenvolvido. Para tanto, foram feitos contatos com
todas as 142 prefeituras das sete microrregies da Zona da Mata, bem como com todas as
fontes fornecidas pelos prprios jongueiros. H que se destacar, tambm, que toda a
pesquisa de campo foi acompanhada pelo mestre Louzada, de Carangola, tendo em vista
1 Elaborador e executor do Plano de Salvaguarda do Jongo, numa parceria entre o IPHAN e a Universidade Federal Fluminense, atravs da Fundao Euclides da Cunha. 2 O Registro o instrumento legal de reconhecimento e valorizao do patrimnio imaterial, institudo pelo Decreto n. 3551/2000. 3 CP2 Consultoria, Pesquisa e Planejamento Ltda.
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que se considerou que a presena de um mestre jongueiro favoreceria como favoreceu
de fato a aproximao entre os pesquisadores e os mestres e grupos/comunidades
investigados.
No decorrer de toda a pesquisa a equipe contratada apresentou fichas de campo,
bem como relatrios parciais do trabalho e, ao final, sistematizou os resultados de suas
investigaes em um relatrio de carter monogrfico, que identifica os locais onde o
Jongo j esteve presente e as comunidades que ainda mantm essa manifestao de
forma permanente na regio. Alm disso, apresenta os mestres jongueiros atuais, os
desafios e as possibilidades para se conservar o Jongo vivo (RELATRIO final, p. 3). O
texto que ora apresentamos fundamenta-se, portanto, neste material, apresentando alguns
dos resultados da pesquisa e levantando algumas questes frente realidade atual do
Jongo na regio.
O Jongo
Conhecida na regio pesquisada principalmente como Caxambu,4 esta
manifestao cultural caracteriza-se como dana coletiva com coreografia de roda
(RELATRIO final, p. 8), acompanhada por tambores e msicas os pontos que so
marcadas pelo carter de desafio e provocao ao oponente, alm de vrios outros tipos, a
depender do objetivo do jongueiro: saudao aos componentes da roda, louvor s
divindades e pedido de licena para entrar ou sair da roda, por exemplo.
Com uma caracterstica essencialmente metafrica, os pontos podem ser
considerados expresses representativas da cultura advinda da escravido: no podendo
se manifestar livremente, os escravos criavam formas de comunicao que no fossem
compreendidas por seus senhores. Como afirma a mestre Maria Nossa, de Carangola:
[O Jongo] Surgiu atravs de sofrimento. Terminavam o trabalho, eram presos dentro das senzalas pra no fugir. Ali eles se reuniam e comeavam cantar, principalmente no final de panha de caf pra comemorar aquele ano de fartura pros senhores, e eles cantavam, danavam. Mas eles [os senhores] muitas vezes no entendiam o que estava sendo cantado. Podiam estar sendo programado uma fuga, um passando recado pro outro. Outro dando dicas de qual era o feitor que ia tomar conta, qual no ia tomar conta. E eles prprios faziam a cachaa deles, e um falava pro outro onde estava. Ento, aquilo era a comunicao deles. (Mestre Maria Nossa)5
4 O Jongo tambm conhecido pelos nomes de tambu ou tambor, alm de caxambu. 5 Entrevista realizada em 12/12/2009, na cidade de Carangola, Minas Gerais.
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Centrado na figura do mestre jongueiro, o Caxambu guarda como uma de suas
principais marcas o respeito aos antigos e aos mestres do passado. No decorrer da
pesquisa, quatro desses mestres foram identificados na regio: Bastiana Homem, Bastio
Mulher e Madrinha Eva, em Carangola, e Dona Emlia, em Patrocnio do Muria.
Outra caracterstica marcante do Jongo, tambm reafirmada no decorrer da
pesquisa, diz respeito a sua ntima relao com a dimenso da religiosidade: lado a lado
uns dos outros, santos catlicos e orixs se fazem presentes em vrios pontos e no
cotidiano dos jongueiros, reafirmando o hibridismo da religiosidade brasileira. A maioria dos
mestres entrevistados tem algum envolvimento com religies espritas e afro-brasileiras,
como o candombl e a umbanda, muitos deles sendo, inclusive, coordenadores de
terreiros, mes ou pais de santo. O ponto abaixo ilustra bem a situao:
Eu tenho Ogum em minha companhia Ogum meu pai, Ogum meu guia Ogum meu orix Eu ando com Deus e a Virgem Maria. (Grupo Filhos de Eva, Carangola)
Tanto os pontos quanto a relao com a dimenso de religiosidade encontrada no
Jongo reafirmam o carter de mistrio e magia que envolve esta manifestao cultural. Este
carter inclusive visto, por vrios dos entrevistados, como um dos principais motivos para
o preconceito sofrido pelos jongueiros ao longo do tempo. Considerados macumbeiros,
bruxos e coisas do gnero, muitas vezes eles foram perseguidos pela sociedade e pela
polcia, no podendo executar a roda de Jongo em suas cidades:
Falavam que a gente estava batendo macumba no meio da rua. No deixavam as crianas participarem, no vinham, no participavam. Eram poucas pessoas que iam ver a gente danar. Era to chato, a gente ficava to aborrecido com aquilo (Mestre Maria Nossa)6
Essas perseguies podem ser consideradas como um dos motivos para que a
prtica do Caxambu ainda seja bastante velada na regio pesquisada, o que dificultou
bastante a prpria realizao da pesquisa, com muitos jongueiros temendo falar sobre o
assunto. Mas esse temor no se deve apenas ao histrico de perseguio sofrido pelos
jongueiros: com cdigos internos prprios, em cada grupo existem segredos que no
6 Entrevista realizada em 12/12/2009, na cidade de Carangola, Minas Gerais.
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podem ser explicitados, pois dizem respeito ao conhecimento espiritual que, segundo suas
crenas, mantm o grupo.
O Jongo na Zona da Mata mineira
Ah, eu plantei caf de meia, eu plantei Canavial Caf de meia no deu lucro, sinh moa,
O Jongo pode d. Deixa o Jongo melhorar.
Oh, deixa o Jongo melhorar. Oh Sinh Dona, at o sol raiar.7
Tendo chegado Zona da Mata mineira no sculo XIX, junto com os escravos
trazidos para trabalharem nas lavouras de caf, o Jongo praticado hoje em algumas
poucas cidades da regio, conforme identificado na pesquisa. H, no entanto, uma forte
memria da manifestao mesmo em cidades onde ela no mais existe, e o desejo de seu
resgate em algumas delas.
Todas as cidades onde existem comunidades ativas, e onde o Jongo foi prtica
comum mas hoje no existe mais, foram visitadas pela equipe de pesquisa, que escutou
histrias e conheceu experincias do mundo jongueiro na regio. As pessoas
entrevistadas, que participam ou participaram do Caxambu, no geral possuem idade acima
de 60 anos, moram nas localidades h bastante tempo e tm ou tiveram relao de
trabalho nas fazendas da regio (RELATRIO final, p.25).
QUADRO 1 O Jongo na Zona da Mata mineira hoje
Grupos Ativos Grupos extintos Grupo em criao
Carangola Antnio Prado de Minas Recreio Patrocnio do Muria Baro de Monte Alto Bias Fortes Caiana Espera Feliz Eugenpolis Faria Lemos Tombos
Em Bias Fortes o Jongo existe h muitos anos, e h 15 est sob responsabilidade
do Mestre Ren. Muito ligado religiosidade, h uma absoro, pelo grupo, de elementos
relacionados ao Congado e a experincias espirituais de cura, com presena marcante dos
santos catlicos. J em Patrocnio do Muria o grupo liderado pelo Mestre Geraldo
Navalha que tem um terreiro e quase no faz mais apresentaes.
7 Jongo cantado pelo grupo Filhos de Eva, em Carangola MG.
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Dentre as cidades com grupos ativos, a de Carangola se destaca como a que possui
o grupo melhor estruturado o que pode explicar, inclusive, o fato de ser o nico grupo de
Minas Gerais que participa do Ponto de Cultura do Jongo. O grupo que tem o nome de
Filhos de Eva em homenagem falecida mestre caxambuzeira da cidade comandado
por quatro mestres que, h cerca de oito anos, se uniram para conseguir manter a tradio
do Caxambu viva na cidade: mestre Arlindo, mestre Louzada, mestre Maria Nossa e mestre
Sebastio da Catarina. O grupo tem feito vrias apresentaes na cidade e na regio, atua
junto a escolas do municpio e participa ativamente das atividades do Ponto do Jongo,
adquirindo maior visibilidade e contribuindo significativamente para a divulgao desta
manifestao cultural na regio.
J em Recreio existem algumas pessoas que, j tendo praticado o Caxambu em
outras pocas e em outras localidades, desejam criar um grupo de Jongo na cidade,
dedicado especialmente prtica artstica e cultural. Essas pessoas so capitaneadas por
Maria das Graas Lau Silva (Cicinha), que teve seu primeiro contato com o Jongo h
aproximadamente quatro anos e, desde ento, tem se esforado por inaugurar a
manifestao na cidade.
A partir das entrevistas realizadas, a equipe de pesquisa pde identificar alguns dos
significados do Jongo para os entrevistados, bem como as permanncias e transformaes
que caracterizam a manifestao na regio. Considerado como forma de divertimento e de
culto s divindades que os cercam, alguns jongueiros veem no Caxambu uma misso para
toda a vida, e persistem em seu desejo de manter viva a tradio do Jongo na regio.
No entanto, se no passado eram os adultos que participavam das rodas de Jongo,
em razo dos rituais e mistrios que as envolviam, hoje em dia passou-se a permitir a
presena de crianas como participantes, e no apenas como expectadores. Isto no s
porque a prtica da magia e as disputas entre os mestres vm diminuindo
consideravelmente nas rodas de Jongo, mas tambm porque h a percepo da
necessidade de transmisso dos saberes ligados ao Caxambu aos mais jovens, como
forma de garantir sua continuidade.
O respeito ancestralidade mantm-se como uma sua caracterstica marcante, e a
religiosidade continua tendo grande presena nas rodas de Jongo, mas percebe-se uma
tendncia sua transformao em prtica artstico-cultural, ainda que o respeito e o
compromisso dos praticantes continue sendo levado muito a srio, assim como a
preocupao com o resgate da memria e da histria do Caxambu na regio:
Pra mim uma misso. uma misso e uma coisa muito sria, e eu acho que eu no devo deixar morrer comigo. Porque se eu morro, se uma
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pessoa no passa para outra, a perde o conhecimento, vai acabar. (Mestre Ren, Bias Fortes)
As entrevistas evidenciaram, no entanto, que os maiores problemas vivenciados atualmente pelos grupos relacionam-se falta de estrutura e dificuldade financeira, bem
como distncia entre os grupos, que impede a troca de experincias e o apoio mtuo. A
morte de alguns mestres caxambuzeiros tambm um fator que contribui para o
esquecimento e a descontinuidade da prtica, pois se ele no deixa seu legado a algum, a
manifestao corre o risco de se extinguir naquele local.
H que se considerar, ainda, as especificidades da histria e da prtica de cada um
dos grupos, o que dever ser aprofundado em pesquisas posteriores o objetivo desta
investigao era unicamente o de identificar a existncia de grupos e mestres jongueiros na
regio que devero buscar a compreenso da realidade e reais necessidades desses
grupos, identificando suas principais caractersticas e as aes que podem ajud-las a
permanecerem vivas e se fortalecerem. Para finalizar, destacamos as palavras do mestre
Louzada, que traduzem, a nosso ver, as expectativas dos jongueiros frente perpetuao
de suas tradies: H um trabalho srio a. De resgate de histria. A gente precisa mostrar o bom, o bonito e o positivo que h. Que o negro no veio aqui s pra ser escravo, e bater em escola de samba, e danar forr. No. Ele veio com todo o conhecimento, toda base. E essa a cultura dele. Ns estamos a, ocupando o lugar que a gente plantou. E a gente vai crescendo. (Mestre Louzada)
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REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
RELATRIO final. Pesquisa realizada entre os meses de setembro de 2009 e maro de 2010 com o objetivo de identificar comunidades e mestres jongueiros na regio da Zona da Mata Mineira. Belo Horizonte: CP2 - Consultoria, Pesquisa e Planejamento Ltda, 2010. GARCIA, Marcus Vincius Carvalho. Registro do Jongo no Livro de Registro das Formas de Expresso do Patrimnio Cultural de Natureza Imaterial. Parecer n 001/GI/DPI/Iphan. Processo n 01450.005763/2004-43. Braslia: IPHAN, 2005.