a identidade do homem negro

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64 DEMOCRACIA VIVA Nº 22 ESPAÇO ESPAÇO ABERTO Osmundo Pinho* do  homem negro Neste artigo, 1 estão registrados alguns pon- tos sobre identidades de homens negros que têm sido colocados tanto no horizonte das práticas políticas como na esfera da re- flexão teórica crítica. Além de serem apre- sentados em inúmeros debates, encontros, conversas, leituras, atividades e lutas, dos quais pude participar – ou presenciá-los apenas –, tais pontos são reflexões media- das pela minha própria experiência pessoal como homem negro que tem atravessado algumas fronteiras sociais e simbólicas, entre a vivência cotidiana em nossa socie- dade racista e sexista e a formação acadê- mica em antropologia social, entre o  Nor- deste Patriarcal e o Sul Maravilha, entre a intervenção politizada das ONGs e a inves- tigação etnográfica relativista. O corpo central da experiência, que dá margem à costura dos pontos apresen- tados a seguir, define-se basicamente pela atividade desempenhada como bolsista do programa Gênero, Reprodução, Ação e Li- derança (Gral) da Fundação Carlos Chagas. Graças à bolsa, pude desenvolver o projeto “Homem com H: articulando subalternida- des masculinas”, uma iniciativa experimen- tal para colocar em diálogo experiências di- ferentes de masculinidades subalternizadas em função da raça/cor, classe ou orienta- ção sexual. No projeto, são realizadas diversas oficinas, sessões constantes de um grupo de estudos sobre raça e gênero, além de outras atividades. Há também o envolvimen- to em uma rede de debates e ações em torno da questão das masculinidades. Desse pon- to de vista, é preciso ressaltar a importân- cia de instituições como Noos – Instituto de Pesquisas Sistêmicas e Desenvolvimen- to de Redes Sociais, Promundo, Ecos – Co- municação em Sexualidade e Instituto Pa- pai, com seu pioneirismo na reflexão e intervenção nesse campo. Por outro lado, meu conhecimento e participação, ainda que acessórios, na lista de discussão de homens negros na Internet, é um marcador fundamental. A partir dessa trama de experiências, proponho a constru- ção de uma plataforma emaranhada e sutil, um ponto de partida ou de observação para interrogar a identidade dos homens negros brasileiros. Quem somos? Podemos formar – ou estamos formando – um sujeito políti- co novo e crítico? É desejável que tal for- mação ocorra? Qual o nosso  pr og ra ma ? 1 Parte das idéias desenvolvi- das aqui tem sido discutida na minicomunidade virtual formada por T aciana Gouveia, Joana Plaza Pinto e Cláudio H. Pedrosa, aos quais devo muito mais que agradecimentos. ? Qual  é a identidade

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64  DEMOCRACIA VIVA Nº 22

ESPAÇOE S P A Ç O A B E R T OOsmundo Pinho*

do homem negroNeste artigo,1 estão registrados alguns pon-tos sobre identidades de homens negrosque têm sido colocados tanto no horizontedas práticas políticas como na esfera da re-

flexão teórica crítica. Além de serem apre-sentados em inúmeros debates, encontros,conversas, leituras, atividades e lutas, dosquais pude participar – ou presenciá-losapenas –, tais pontos são reflexões media-das pela minha própria experiência pessoalcomo homem negro que tem atravessadoalgumas fronteiras sociais e simbólicas,entre a vivência cotidiana em nossa socie-dade racista e sexista e a formação acadê-mica em antropologia social, entre o  Nor-

deste Patriarcal e o Sul Maravilha, entre a

intervenção politizada das ONGs e a inves-tigação etnográfica relativista.O corpo central da experiência, que

dá margem à costura dos pontos apresen-tados a seguir, define-se basicamente pelaatividade desempenhada como bolsista doprograma Gênero, Reprodução, Ação e Li-derança (Gral) da Fundação Carlos Chagas.Graças à bolsa, pude desenvolver o projeto“Homem com H: articulando subalternida-des masculinas”, uma iniciativa experimen-tal para colocar em diálogo experiências di-

ferentes de masculinidades subalternizadasem função da raça/cor, classe ou orienta-ção sexual.

No projeto, são realizadas diversas

oficinas, sessões constantes de um grupode estudos sobre raça e gênero, além deoutras atividades. Há também o envolvimen-to em uma rede de debates e ações em tornoda questão das masculinidades. Desse pon-to de vista, é preciso ressaltar a importân-cia de instituições como Noos – Institutode Pesquisas Sistêmicas e Desenvolvimen-to de Redes Sociais, Promundo, Ecos – Co-municação em Sexualidade e Instituto Pa-pai, com seu pioneirismo na reflexão eintervenção nesse campo.

Por outro lado, meu conhecimento eparticipação, ainda que acessórios, na listade discussão de homens negros na Internet,é um marcador fundamental. A partir dessatrama de experiências, proponho a constru-ção de uma plataforma emaranhada e sutil,um ponto de partida ou de observação parainterrogar a identidade dos homens negrosbrasileiros. Quem somos? Podemos formar– ou estamos formando – um sujeito políti-co novo e crítico? É desejável que tal for-mação ocorra? Qual o nosso  programa?

1 Parte das idéias desenvolvi-das aqui tem sido discutidana minicomunidade virtualformada por Taciana Gouveia,Joana Plaza Pinto e Cláudio H.Pedrosa, aos quais devo muitomais que agradecimentos.

?Qual é a identidade

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ABERTOQuais as chances de articulação entre asdiferentes experiências de masculinidadeafrodescendente?

Posicionando a masculinidadeConvém uma breve recapitulação conceitualantes de centrar fogo na produção dessainterrogação, que é, ao fim e ao cabo, umadesconstrução. Nunca é demais ressaltar opapel que o movimento feminista teve nareconceituação das identidades sociais emtodo o mundo. Esse movimento, abalo sís-mico nas identidades e nas políticas de re-presentação – incluindo o espaço da mídia,a produção acadêmica, a literatura, as hu-manidades e artes etc. –, originou-se tanto

de uma reflexão baseada na universidade,que atacou os fundamentos masculinistase sexistas da produção de conhecimento,como das lutas políticas que tomaram asruas e os bairros populares, as praças e aesfera pública nas últimas décadas.

Não é meu objetivo reconstituir essahistória, com todas as suas nuanças, con-tradições e impasses. Quero apenas desta-car que a crítica feminista – assim como aluta pelas liberdades sexuais e direitos hu-manos de gays e lésbicas – provocou, lu-tando nas avenidas ou nos departamentos

universi tários, uma desconstrução oudesnaturalização da mulher como entidadeimóvel, ou melhor, imobilizada pelo peso dopatriarcalismo, das convenções e das es-truturas sociais opressivas. No bojo des-sas lutas, a categoria gênero emerge. Emprimeiro lugar, para favorecer um olhar so-bre a construção das diferenças sexuais queas reconheça como produzidas histórica eculturalmente, ou seja, que as revela em suaarbitrariedade. Em segundo lugar, paraexplicitar como a engenharia onipresente do

poder estruturou essas diferenças sob aforma de desigualdades.2

Ora, o passo seguinte – e a conse-qüência lógica e política desse processo –seria revelar que não apenas a mulher, esseser imaginário, foi desenhada na históriapela pena do poder e da dominação mascu-lina, mas o próprio homem descobriu-sesurpreso quando percebeu que também eraum artefato das estruturas de gênero. É im-possível não perceber uma curiosa inver-são nesse caso. A (auto)desconstrução da

mulher foi obra de um ator político – com-posto, híbrido, fraturado, problemático, válá, mas aproximado pelas lutas discursivasou não – a mulher como sujeito do feminis-mo. Mas essa desconstrução crítica do lu-

gar naturalizado do masculino não foi pro-duzida pela emergência de novos atoressociais, mas foi insinuada externamente pe-los interessados em amenizar o peso do ma-chismo. Não resta dúvida de que essa situ-ação guarda um impasse polí t ico eintelectual. Mas será que esse impasse in-teressa aos homens?

De um jeito ou de outro, principal-mente no campo da psicologia e da antro-pologia social, começou a se apresentaruma relativização histórica da figura mas-

culina, até então entronizada e vendidacomo monolítica, imutável, essencial, eter-na e, eventualmente, divina ou metafísica.O homem foi reconduzido à sua diversida-de e variação histórica. Aprendeu a perce-ber que existem muitas formas diferentes demasculinidades que se multiplicam pela his-tória e pelas culturas.

Também aprendeu a perceber as di-ferentes versões de masculinidades concor-rentes, ou ao menos coabitantes, no ambi-ente soc iocul tura l das soc iedadesmodernas. Algumas dessas versões são

identificadas com as estruturas sociais do-minantes, algumas apenas parcialmente eoutras francamente subordinadas às estru-turas e representações dominantes sobre omasculino ou delas marginalizadas. Nessecaso, seria possível falar em masculinida-des hegemônicas ou hegemonizadas e emsubalternas ou subalternizadas.

Sobre esse aspecto, é preciso desta-car dois pontos. Em primeiro lugar, quandose fala de hegemonia e subalternidade, fala-se de processos dinâmicos de construção e

reconstrução de hegemonias ou de consen-sos parciais sobre o sentido das relaçõessoc ia is , seus s igni f icados e prá t icasinstituintes. Ou seja, hegemônicos e subal-

ternos não estão definidos essencialmen-te , mas s im como suje i tos pol í t icosengajados em jogos de poder e dominaçãoque ocorrem em contextos sociaisestruturados, porém abertos à inovação.

Isso implica, em segundo lugar, aconsideração de hegemonias regionais –por exemplo, ligadas à vida doméstica ou

2 Ver Bruschini e Unbehaum,2002; Scott, 1994; Nicholson,1995; Butler, 2003.

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ao exercício da sexualidade – e umdescolamento entre sujeitos sociais de gê-nero e estruturas de gênero. Em outros ter-mos, um indivíduo masculino pode apresen-tar uma posição hegemônica em dadasituação e, em outra, estar colocado em si-tuação subordinada. Isso é muito importante

para entender como se produzem e susten-tam identidades masculinas subalternascomo um lugar da contradição entre siste-mas de poder diferentes – a estrutura dasclasses, o sistema dimórfico dos gêneros,

as práticas e discursosracializantes – que, aose combinarem inter-seccionalmente, produ-zem novas diferenças,desigualdades e vulne-rabilidades. Se essa in-

terseção é também ca-paz de produzir sujeitospara emancipação é ou-tra questão.

Tradicionalmen-te, e de um modo umtanto quanto esquemá-tico, seria possível dizerque o modelo de mascu-linidade hegemôniconas sociedades ociden-tais apresenta-se comum conteúdo determina-do: o homem, no plenogozo de suas prerroga-tivas, seria adulto, bran-co, de classe média eheterossexual. Outrosmodos específicos econcretos, localizados eestruturados de mascu-linidade estariam su-balternizados ou seriamconstituídos por formascontextuais de subalter-

nização. Essas formassão diferentes e se li-

gam a diferentes sistemas de poder-saber,como os já citados, e se combinam e articu-lam de modo diferenciado.

É óbvio também que, num país comoo Brasil, muitos poucos homens reais po-dem encontrar identidade com esse mode-lo. Isso não quer dizer que muitos homensnão tomem esse modelo, reposto continua-mente por diversas agências ou aparelhosideológicos, como parâmetro ou ideal a ser

alcançado ou contestado, ironizado ouadorado, sob as diversas situações socio-lógicas possíveis e já descritas pela litera-tura. Contra o macho adulto branco, pode-se observar a existência social de outrasposições de sujeito masculinas subal-ternizadas, que seriam, em termos gerais,

aquelas identificadas com homens negros,pobres ou homossexuais.

Convém ressaltar com ênfase quenão se pressupõe, neste texto, uma carto-grafia das identidades sociais estáveis ouidênticas a si mesmas nem mesmo nenhumtipo de taxonomia das identidades. É pre-ferível falar de posições de sujeito comolugares marcados no mapa socioculturalpara a fixação de performances , práticas ediscursos que justamente produzem essessujeitos como lugares de articulação des-

sa s  performances , práticas e discursos.Esses lugares são ocupados e desocupa-dos – ou encenados – cotidianamente porindivíduos concretos que se relacionamcom padrões culturais e estruturas soci-ais. Nesse relacionamento, atualizam e vi-vem esses padrões e estruturas. Quandoeles os vivem, interpretam-nos; quando osinterpretam, transformam-nos.3

 Desrepresentando o homem negro

Agora, deve-se discutir um pouco mais so-bre as posições de sujeito masculinasracializadas, brancos e negros, no contex-to brasileiro. As narrativas de fundação na-c iona l inst i tuem par te do contextodiscursivo de longa duração para a produ-ção de identidades raciais no Brasil e parasua articulação com as estruturas sociaise as formas hegemônicas de representaçãosobre as raças, os gêneros, a sexualidadee o poder em suas múltiplas e cambiantescomposições. Entre elas, citam-se a “fábu-la das três raças”, a miscigenação, os es-

tereótipos ligados à mulher negra, à mula-ta etc. O homem negro também tem sidorepresentado – na verdade, hiper-represen-tado – e produzido racialmente com o con-curso agressivo dessas representaçõesque funcionam, entre outras coisas, comoestruturas de sustentação para práticasconcretas de exclusão, marginalização e vi-olência. Ora, é preciso desrepresentá-lo

como um modo prático de desalienação ede reconstrução de possibilidades políti-cas e culturais.4

3 Sobre masculinidades, ver,por exemplo, Cornwal l eLindsfarne, 1994; Kimmel,1998; Nolasco, 2001; Arilha,Unbehaum e Medrado, 2001.

4 Sobre gênero e raça na so-ciedade brasileira, ver, porexemplo, Carneiro, 1995, 2002;Bairros, 1995; Gonzáles, 1983.

Contra o macho

adulto branco,

pode-se observara existência social

de outras

posições de

sujeito masculinas

subalternizadas,

que seriamaquelas

identificadas com

homens negros,

pobres ou

homossexuais

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Antes de tudo, o homem negro é re-presentado como um corpo negro, o seu pró-prio corpo. Paradoxalmente, esse corpo éconfigurado de forma alienada, como se fos-se separado da autoconsciência do negro.O corpo negro é outro corpo, lógica e his-toricamente deslocado de seu centro. Como

suporte ativo para a identidade, é o lugarde uma batalha pela reapropriação de si donegro como uma reinvenção do self negro ede seu lugar na história. Uma reapropriaçãodo corpo como plataforma ou base políticarevolucionária. Ora, essa base é contradi-tória porque tem sido definida pelasdiscursividades racializantes ou puramenteracistas que justamente aprisionam o negrona “geografia da pele e da cor”.5 Ser negroé ser o corpo negro, que emergiu simbolica-mente na história como o corpo para o ou-

tro, o branco dominante. Assim, o corponegro masculino é fundamentalmente cor-po-para-o-trabalho e corpo sexuado. Está,desse modo, decomposto ou fragmentadoem partes: a pele; as marcas corporais daraça (cabelo, feições, odores); os músculosou força física; o sexo, genital izadodimorficamente como o pênis, símbolofalocrático do  plus de sensualidade que onegro representaria e que, ironicamente, sig-nifica sua recondução ao reino dos fetichesanimados pelo olhar branco.

Mas o corpo negro também é umcampo de batalha que tem sido recompos-to e reunificado no âmbito das lutas raci-ais e das políticas de identidade. Os con-cursos de beleza negra e todas as formasinventivas de manipulação corporal afro-descendente dão testemunho desses con-flitos pulverizados em torno das pessoasnegras e de sua representação corpórea,que é também uma forma de produção e deluta. Nesse caso, vê-se, mais uma vez, comoas mulheres negras têm acumulado umaexperiência rica e carregada de alto grau

de reflexividade. Uma vez que as mulheresde um modo em geral, e as mulheres ne-gras de um modo muito específico, tiveramque lidar com o entulho ideológico que sedepositou, constituindo os espaços parasua identidade corporal, elas têm desen-volvido, com maior grau de consciênciacrítica, uma relação com o próprio corpo,para resguardá-lo, reinventá-lo, dignificá-lo, apropriar-se dele, negar significadosestereotipados, questionar os modelos deapresentação de si ocidentais etc.

E o homem negro? É claro que muitasformas vernáculas de políticas corporais têmsido levadas a efeito por homens negros,principalmente jovens das grandes cidades.Mas em que medida esses investimentos sim-bólicos-políticos incidem sobre os modelosestereotipados de masculinidade? Em que

medida se afastam das fantasias sexistas enaturalizantes ligadas ao corpo, à sexualida-de e às prerrogativas de poder de homensnegros? Em que medida têm contribuído paranovas alianças entre homens negros e mu-lheres negras? Para o caso das políticas cor-porais, surge a questão: o projeto político –e de reconstrução de si – dos homens ne-gros é um projeto para homens e mulheresafrodescendentes? Ou será um projeto ne-gro masculino (e heterossexual)?

Um outro tema dominante para os de-

bates sobre masculinidade – e que tem, oca-sionalmente, ocupado espaço nos debatespúblicos da mídia – se refere a uma supostacrise do masculino, usualmente considera-da como uma inadequação dos modelosmasculinos às mudanças causadas pelaemancipação das mulheres. Ou seja, essasuposta crise, que não existia antes, quan-do permanecia inquestionável a coincidên-cia entre estruturas de dominação de gêne-ro e identidades masculinas hegemônicas,deve-se à necessidade de o homem, presu-midamente heterossexual, adequar-se àsmudanças, um tanto desagradáveis, masinevitáveis, derivadas das conquistas femi-ninas. Agora, o homem precisaria tambémcompartilhar o cuidado das crianças, lavara louça e aceitar o trabalho feminino fora decasa. Por outro lado, essa crise se referetambém ao surgimento de um novo homem,ainda colado à norma heterossexual, massensibilizado pelos valores femininos: sen-sibilidade, vaidade e intuição.

Sem alargar os questionamentos so-bre essa suposta crise e todos os compo-

nentes normativos, heterossexistas e de clas-se que parecem constituir, deve-se ter emmente que, se existe uma crise do masculino,com essa configuração classe média, um tan-to psicologizante e, de modo claro, reativaàs conquistas das mulheres, é necessáriauma abordagem que, em suma, desconecte omasculino de suas amarras na estrutura dasclasses, do sistema de dominação de gêne-ro, do racismo, da normatividade heterosse-xual. Se essa crise existe e é real para ho-mens – que hoje se questionam como fazer 5 Cardoso, 1986, p. 66.

QUAL É A IDENTIDADE DO HOMEM NEGRO?

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bronzeamento artificial sem perder a virilida-de –, é também verdade que existe outra cri-se do masculino, que tem uma duração maislonga e que está fundamente definida pelarelação das posições de gênero com a estru-tura das classes, o racismo, a violência e as-pectos brutalizantes e alienadores do mer-

cado. Essa crise do masculino atinge, desdemuito tempo, homens negros, jovens e po-bres e está claramente definida pelo viés degênero presente nos números da violênciaurbana e suas cifras apocalípticas.

Os índices de violência e de abusosfísicos no Brasil são alarmantes e deveri-am assombrar a consciência liberal das eli-tes e das classes médias – o que parecenão ocorrer de fato. Recentes relatórios in-ternacionais têm apontado a presença qua-se institucional da tortura como método in-

vestigativo pelas polícias brasileiras.Segundo a Anistia Internacional e a HumanRigths Watch, execuções sumárias e o usoda tortura como método investigativo epunitivo são corriqueiros e aceitáveis nasdelegacias e nos presídios brasileiros,sendo o pau-de-arara instrumento usualde suplício, além de choques elétricos,afogamentos e mesmo exploração/abusosexual. Do mesmo modo, as polícias bra-sileiras têm sustentado recordes mundi-ais de assassinato de civis, até mesmomenores, embora a maioria das vítimas nãoapresentasse antecedentes criminais. Aviolência, entretanto, não se restringeapenas à ação inadequada das polícias, eos números de mortes por armas de fogosão impressionantes. Em 13 estados bra-sileiros, segundo pesquisa do Movimen-to Nac iona l de D i re i to s Humanos(MNDH), foram registrados 22.105 crimesde homicídio entre 1998 e 1997. Desse to-tal, 89,22% das vítimas eram do sexo mas-culino; 95,84% dos acusados são homens;56,08% das vítimas tinham entre 18 e 35

anos. Na Bahia, a situação é particular-mente perigosa para negros. Entre 1996 e1999, policiais mataram 881 pessoas. Se-gundo o MNDH, a maioria das vítimas é

 jovem, do sexo mascul ino, moradora debairros periféricos e, supõe-se facilmen-te, negra. O aparato policial do estado,segundo ainda o MNDH, mata três vezesmais negros que brancos. Enquanto asmortes por armas de fogo representavam2,8% dos óbitos entre brancos em 1995,entre negros esse percentual era de 7,5%.6

Parece ser essa a verdadeira – e si-nistra – face de uma crise do masculino quedeveria nos mobilizar intensamente. Essacrise não diz respeito às reações ao avançofeminino nem pretende expressar o descon-forto de homens brancos de classe médiadiante da sof is t icação do s ty le e da

mercadificação crescente da vida cotidia-na. Refere-se também à necessidade urgen-te de se comprometerem os homens, comohomens, na reinvenção das identidadesmasculinas, por um lado, e, por outro, nabatalha política por políticas públicas deinclusão para homens jovens, negros e po-bres. A crise implica, assim, um desafio àsnossas consciências individuais como ho-mens comprometidos ou interessados naemancipação e também implica a consciên-cia de que essa transformação subjetiva ne-

cessita vir acompanhada de mudanças naestrutura social, porque é dessa confluên-cia entre disposições culturais masculinas

incorporadas subjetivamente e estruturassociais de reprodução social desigual queessa crise descende.

Politizando masculinidadesafrodescendentes

Diante do exposto, é preciso encaminhar al-gumas questões que possam ajudar a con-cluir o quadro de interrogações sobre asidentidades masculinas afrodescendentes –efetivamente quais seriam as chances depolitização das identidades masculinas.Como os homens negros podem se tornarsujeitos de direitos como homens, oureconduzidos às suas particularidades, re-nunciando a pretensões universalistas egeneralizantes. Os homens negros não re-presentam todos os afrodescendentes bra-sileiros – essa é uma afirmação fácil de en-tender. Mas representam ao menos a simesmos? Ou intentam representar uma fan-

tasia que, ao fim e ao cabo, é masculinista,sexista, heteronormativa e que, no fundo,constitui uma armadilha para os homensnegros? Qual o grau e o sent ido dapolitização dos homens negros brasileiros,como homens e como negros?

É possível dizer que a politização dasidentidades masculinas pode ser pensadacomo a desagregação da identidade mascu-lina monolítica. Reconhecer a diversidadedas experiências e dos lugares do masculinoparece fundamental, e esse reconhecimento

6 Números e análises sobre aviolência podem ser encontra-dos em Amnesty International,2001; Barbosa, 1998; HumanRigths Watch, 2001 a, 2001 b;Machado, Noronha e Cardoso,1997; Oliveira, 1998; Waiselfisz,2002; Silva, 1999.

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ABERTO JUN 2004 / JUL 2004  69

* Osmundo Pinho

Antropólogo, doutor em

Ciências Sociais pela

Unicamp, diretor do

Centro de Estudos Afro-

Brasileiros da

Universidade Candido

[email protected]

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Transformação social

A verdadeira reforma do masculino não pode ser levada a efeito por ninguém senão peloshomens e não passa apenas por uma solidariedade para com as mulheres. Implica uma solidari-edade de novo tipo – não mais baseada na glorificação das prerrogativas masculinistas – entre oshomens. A violência masculina contra a mulher é brutal e covarde. Mas a violência entre os

homens tem as proporções de um cataclismo mítico de sexo, gênero e raça. A homofobia, asexualidade predatória, o gosto pela violência e pelo risco não precisam marcar para sempre osmundos masculinos. A reforma do masculino, que deveria se transformar num programa políticode transformação social, residiria, então, na exploração consciente das ligações entre estruturasde opressão internalizadas e incorporadas e as disposições para sua reprodução intersubjetivacomo um modo de reprodução desigual das estruturas de gênero. Somente a atividade consci-ente e reflexiva dos homens engajados na transformação das relações de gênero – e que, muitas

vezes, enxergam esse engajamento apenas como uma adesão bem-intencionada ao feminismo –poderá interromper essa cadeia infernal. Para isso, é preciso desapego, radicalidade, discernimentoe experimentação. 

passa longe dos multiculturalismos liberais,que incorporam a diferença para normalizá-la. O que se propõe é uma incorporação dadiferença que abale as fronteiras estáveisdo mesmo, que dissolva os limites clarosdas ident idades mascul inas (negras)hegemônicas e que exploda em seu poten-

cial crítico e desconstrutivo na mesma me-dida de sua marginalização social. Em se-gundo lugar, é impossível considerar a crisedo masculino, tal como foi qualificado an-

teriormente, sem levar em conta a articula-ção dos modelos de masculinidade com aestrutura das classes, o mercado, a divisãosocial do trabalho e a reprodução socialdesigual da sociedade. Em terceiro lugar, émais que urgente a promoção do homemcomo sujeito de direitos, principalmente di-

reitos sexuais e reprodutivos, associados àpaternidade, ao exercício da sexualidade, àprevenção de doenças sexualmente trans-missíveis e Aids, entre outras.

QUAL É A IDENTIDADE DO HOMEM NEGRO?