a ideia da universidade e das classes médias - otto maria carpeaux

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Uma amostra dos Ensaios Reunidos de Otto Maria Carpeaux 3. A IDÉIA DA UNIVERSIDADE E AS IDÉIAS DAS CLASSES MÉDIAS OTTO MARIA CARPEAUX Jamais esquecerei o dia em que entrei pela primeira vez, com toda a ingenuidade dos meus dezoito anos, no solene recinto da Universidade da minha cidade natal. Um pórtico silencioso. Nas paredes viam-se os bustos dos professores que ali estudaram e ensinaram; no busto de um helenista lia-se a inscrição: "Ele acendeu e transmitiu a flâmula sagrada"; e no busto de um astrônomo: "O princípio que traz o seu nome ilumina-nos os espaços celestes." No meio do pátio, num pequeno jardim, sob o ameno sol de outono, erguia-se uma estátua de mulher nua, com olhos enigmáticos: a deusa da sabedoria. Silêncio. Não esquecerei nunca. A decepção foi muito grande. Via a biblioteca coberta de poeira, os auditórios barulhentos, estupidez e cinismo em cima e em baixo das cadeiras dos professores, exames fáceis e fraudulentos, brutalidades de bandos que gritavam os imbecis slogans políticos do dia, e que se chamavam "acadêmicos". A última vez que passei perto deste "templo das Musas", o edifício estava fechado; os estudantes haviam-se juntado a uma imensa manifestação popular. Sabia muito bem o que isso significava para mim: um adeus para sempre. Olhando pelas frestas das portas monumentais — estávamos na primavera — via sob a luz branda do sol os pórticos, as velhas pedras, o Página 1 de 12 A idéia da universidade e as idéias das classes médias 08/05/2015 file:///C:/Users/Fred/AppData/Local/Temp/Low/JIX65L7C.htm

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A Ideia Da Universidade e Das Classes Médias - Otto Maria Carpeaux - Texto retirado do site: Sapientiam Autem Non Vincit Malitia.

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  • Uma amostra dos Ensaios Reunidos de Otto Maria Carpeaux

    3. A IDIA DA UNIVERSIDADEE AS IDIAS DAS CLASSES MDIAS

    OTTO MARIA CARPEAUX

    Jamais esquecerei o dia em que entrei pela primeira vez, com

    toda a ingenuidade dos meus dezoito anos, no solene recinto da

    Universidade da minha cidade natal. Um prtico silencioso.

    Nas paredes viam-se os bustos dos professores que ali

    estudaram e ensinaram; no busto de um helenista lia-se a

    inscrio: "Ele acendeu e transmitiu a flmula sagrada"; e no

    busto de um astrnomo: "O princpio que traz o seu nome

    ilumina-nos os espaos celestes." No meio do ptio, num

    pequeno jardim, sob o ameno sol de outono, erguia-se uma

    esttua de mulher nua, com olhos enigmticos: a deusa da

    sabedoria. Silncio. No esquecerei nunca.

    A decepo foi muito grande. Via a biblioteca coberta de poeira,

    os auditrios barulhentos, estupidez e cinismo em cima e em

    baixo das cadeiras dos professores, exames fceis e

    fraudulentos, brutalidades de bandos que gritavam os imbecis

    slogans polticos do dia, e que se chamavam "acadmicos".

    A ltima vez que passei perto deste "templo das Musas", o

    edifcio estava fechado; os estudantes haviam-se juntado a uma

    imensa manifestao popular. Sabia muito bem o que isso

    significava para mim: um adeus para sempre. Olhando pelas

    frestas das portas monumentais estvamos na primavera

    via sob a luz branda do sol os prticos, as velhas pedras, o

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  • jardim, e a deusa nua, tendo nos lbios o sorriso enigmtico da

    morte. E reconheci um fim definitivo.

    Por toda parte, as universidades so doentes, seno

    moribundas, e isto grande coisa. Os iniciados bem sabem que

    no esta uma questo para os pedagogos especializados. Das

    universidades depende a vida espiritual das naes. O fim das

    universidades seria um fim definitivo. O abismo entre o

    progresso material e a cultura espiritual aumenta de dia para

    dia, e as armas desse progresso nas mos dos brbaros fato

    que clama aos cus. Os edifcios das universidades resistem

    ainda, e neles trabalha-se muito, demais, s vezes, mas o

    edifcio do esprito, esta catedral invisvel, est ameaado de

    cair em runas. Em tempos mais felizes a sueca Ellen Key dizia

    com sutileza: "Cultura o que nos resta depois de termos

    esquecido tudo quanto aprendemos." E, deste modo, somos

    riqussimos de saber e mendigos de cultura. Hoje em dia

    Herbert George Wells pode dizer: "We are entered in a race

    between education and catastrophe." "Entramos numa corrida

    entre educao e catstrofe." A est a questo da Universidade.

    Quem o culpado? Evidentemente, inadmissvel simplificar

    uma discusso de tal envergadura. Acusa-se o Estado por ter-se

    intrometido, e acusa-se o Estado por no se intrometer.

    Acusam-se os professores por mergulharem nos ensinos

    profissionais e descuidarem-se da cincia desinteressada, e

    acusam-se os professores por mergulharem na cincia pura

    sem saberem ensinar. Aqui, queixam-se de as universidades

    no fornecerem elites, de que a nao tem necessidade; ali,

    queixam-se de que as universidades fornecem elites demais,

    um proletariado intelectual. Abundam os remdios propostos.

    Desejam salvar as universidades pela separao entre as

    instituies puramente cientficas e os institutos de ensino, o

    que agravaria o problema em vez de o resolver: a cincia seria,

    assim, afastada da vida, e o ensino entregue rotina. Falham,

    igualmente, as tentativas mais bem pensadas de curar a doena

    infundindo uma nova crena ou uma velha f: teremos os

    mesmos estudantes, os mesmos bacharis, os mesmos doutores

    que antes, e as suas boas crenas no resolvero a doena da

    Universidade. Porque no cabe Universidade formar crentes

    nem sequer sugerir convices, mas dar ao estudante

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  • capacidade para escolher a sua convico. J abundam os

    homens cegamente convictos, muito "prticos", "teis" para os

    servios do Estado, da Igreja, dos partidos e das empresas

    comerciais. Pode ser que todas essas instituies lamentem, em

    breve, a abundncia de homens convictos e a falta de homens

    livres. Ento, acusar-se- amargamente o utilitarismo das

    universidades modernas. O utilitarismo o inimigo mortal da

    Universidade.

    Mas o que quer dizer "prtico", "til"? A resposta no to

    simples. Por felicidade os poderosos deste mundo introduziram

    um novo ponto de vista, ao qual julgo que devemos algumas

    perspectivas novas.

    Para a mentalidade mdia do nosso tempo a utilidade das

    cincias determinada segundo as aplicaes prticas: a fsica e

    a qumica, que nos forneceram a luz eltrica e os gases

    asfixiantes, so as cincias teis; a histria e a filosofia, que no

    nos fornecem nada, so cincias "inteis". Apelo desta sentena

    para a sabedoria de certos homens prticos, que disso

    entendem muito bem. Certos regimes, ditos totalitrios,

    acharam indispensvel regular pela fora o estudo das cincias,

    cujas conseqncias prticas poderiam abalar estes regimes.

    Ora, que vemos ns, com surpresa? Estes regimes no se

    ocupam, absolutamente, com as cincias "prticas", a fsica e a

    qumica, que continuam bem tranqilas. Mas as cincias

    totalmente inteis, a histria, a filosofia, os estudos literrios,

    so justamente as favoritas dos regimes totalitrios, que as

    abraam at sufoc-las. digno de nota.

    Mas o que ainda mais notvel uma certa coincidncia.

    Sabemos que a Universidade, Universitas Litterarum, uma

    criao da Idade Mdia. Ora, os ditos regimes no se ocupam

    com as cincias naturais, que a Idade Mdia conhecia pouco, e

    que se juntaram mais tarde Universidade. Tratam somente

    das "velhas" cincias, das Litterae, que na Idade Mdia j eram

    conhecidas, e que formam a verdadeira alma da Universidade.

    Est claro. Foram justamente estas Litterae que formaram os

    caracteres das naes; e aquele que desejar transformar uma

    nao dever transform-las integralmente. Eles sabem o que

    uma universidade.

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  • A histria das universidades a histria espiritual das naes.

    A Frana medieval a Sorbonne, cujo enfraquecimento

    coincide com a fundao renascentista do Collge de France, e

    cujo prolongamento moderno a cole Normale Suprieure. A

    Inglaterra, mais conservadora, sempre Oxford e Cambridge. A

    Alemanha luterana Wittenberg e Iena; a Alemanha moderna

    Bonn e Berlim. As velhas universidades so de utilidade muito

    reduzida. Elas no fornecem homens prticos; formam o tipo

    ideal da nao: o lettr, o gentleman, o Gebildeter. Elas

    formam os homens que substituem, nos tempos modernos, o

    clero das universidades medievais. Elas formam os clercs.

    As universidades americanas tm a mesma origem. As velhas

    universidades da Amrica Latina Lima, Mxico, Bogot,

    Crdova so fundaes da Coroa de Espanha; mas foram,

    desde o incio, confiadas aos frades, e j a primeira cdula de

    fundao, a ordem real do imperador Carlos V, de 21 de

    setembro de 1551, d claramente a entender o sentimento da

    responsabilidade perante o esprito, o esprito desinteressado

    da Universidade medieval: "Para servir a Deus, Nosso Senhor, e

    ao bem pblico de nossos reinos, convm que nossos vassalos,

    sditos e naturais tenham Universidades e Estudos Gerais em

    que sejam instrudos e titulados em todas as cincias e

    faculdades, e pelo muito amor e vontade que temos de honrar e

    favorecer aos de Nossas ndias, e desterrar deles as trevas da

    ignorncia, criamos, fundamos e constitumos na cidade de

    Lima dos reinos do Peru, e na cidade de Mxico da Nova

    Espanha, Universidades e Estudos Gerais." Nada mais

    eloqente, admirvel, do que semelhantes termos haverem sido

    empregados quando os puritanos fundaram, em 1636, a

    primeira universidade da Amrica inglesa, a de Harvard: "After

    God had carried us safe to New England, and we builded our

    houses and settled the Civil Government; one of the next things

    we looked after was to advance Learning and perpetuate it to

    Posterity, dreading to leave an illiterate Ministery to the

    Churches, when our present Ministers shall lie in the

    dust" (New Englands First Fruits, 1643). ("Depois que Deus

    nos tinha seguramente conduzido a Nova-Inglaterra, e que

    construmos as nossas casas e estabelecemos um governo civil,

    uma das nossas primeiras ocupaes foi estimular o ensino e

    perpetu-lo para a posteridade, com receio de deixar s igrejas

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  • um clero iletrado quando os nossos clrigos atuais jazerem em

    p.")

    O que resta destas Universitates Litterarum? O nome. J no

    formam lettrs, nem gentlemen, nem Gebildeter; formam

    mdicos, advogados, professores. As universidades tornaram-se

    lugares de investigaes cientficas; e um romantismo

    utilitrio que vem muni-las das asas do progresso. No h mais

    clercs, s h estudantes.

    Quem o culpado? Ainda uma vez apelo para aqueles que disso

    entendem. Por toda parte onde h aqueles regimes os

    estudantes esto nas vanguardas da violncia. No um acaso.

    Ouso responder: os estudantes so os culpados.

    H duas espcies de estudantes: cham-las-emos os "ricos" e os

    "pobres", sublinhando que h pobres entre os "ricos" e ricos

    entre os "pobres"; so apenas duas expresses cmodas para

    abraar uma generalizao inevitvel. Os estudantes "pobres"

    so aqueles que estudam "para a manteiga e para o po";

    estudam para se assegurarem um melhor sucesso na luta pela

    vida. Seria cruel e estpido censur-los. Antes, devemos

    admir-los, em virtude dos sacrifcios, muitas vezes imensos,

    feitos por eles e seus pais para melhorar um futuro incerto e

    tornar a existncia mais digna. Todavia, importa no se

    dissimularem os graves inconvenientes. Estudantes "pobres",

    h muitos deles: vivem embaraados pela misria, pelas

    ocupaes acessrias para ganhar a vida; sobretudo tm pressa

    de terminar os estudos. Junte-se a isto a benevolncia,

    plenamente justificvel, que os examinadores lhes devem como

    recompensa dos seus esforos. Em suma, o nvel baixa

    sensivelmente. O nvel baixa, dizemos, at o nvel dos

    estudantes "ricos". So estes os que tm necessidade de um

    grau acadmico, porque o pai tem um, porque isto d certa

    considerao na sociedade ou para adornar fortuna um pouco

    recente. Entre os estudantes "ricos" existem os pobres que

    desejam manter penosamente o standard de uma famlia em

    decadncia, o que , alis, muito louvvel. Existem outros

    verdadeiramente ricos, que no tm necessidade de estudar,

    mas que atravs dos estudos testemunham grande respeito s

    cincias; e estas, por sua vez, precisam deles, para subsistir

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  • materialmente. Em todo caso, os seus estudos no so de

    necessidade absoluta; eles no estudam mais do que o

    necessrio, o indispensvel para passar nos exames; os esforos

    ulteriores parecem-lhes ridculos. E so eles que, pela sua

    situao social, determinam o nvel geral. E esse nvel a morte

    da Universidade.

    Queixam-se de que as universidades j no fornecem elites.

    Sim, mas em compensao fornecem verdadeiras massas,

    porque as cincias modernas e suas investigaes tm menos

    necessidade de crebros que de batalhes de estudantes; e para

    isto eles satisfazem. A inteligncia que precisa para estudar

    uma profisso, mesmo acadmica, no to grande como os

    leigos imaginam. H vrios sculos um sbio ingls, o cnego

    dr. Copleston, fellow do Ariel College, em Oxford, predizia:

    "Ainda que a cincia seja favorecida por essas concentraes de

    inteligncia a seu servio, os homens que se encerram nas

    especializaes tm a inteligncia em regresso" (citado pelo

    cardeal Newman, The Idea of a University, p. 72). o regredir

    de uma elite condio de massa ornada de ttulos acadmicos.

    preciso que se digam, aqui, algumas verdades muito

    impopulares e muito desagradveis. Existe Inteligncia e

    existem "intelectuais". Intelectuais so os mdicos, os

    advogados, os funcionrios superiores de toda espcie, os

    especialistas cientficos de toda sorte. Mas deve-se dizer que

    somente uma parte desses "intelectuais" pertence

    Inteligncia, que , por seu lado, o resto dos clercs, da elite de

    outrora. Sejamos sinceros: podemos ser bom mdico, bom

    advogado, bom professor, e ter o esprito preso aos limites da

    profisso; e sabemos que o grau acadmico nem sequer

    sempre a garantia de boas qualidades profissionais. Mas ele

    confere sempre uma autoridade social. Jos Ortega y Gasset

    caracterizou essa nova espcie de intelectuais, violentamente,

    mas sinceramente: "Nuevo brbaro, retrasado con respecto a

    su poca, arcaico y primitivo en comparacin con la terrible

    actualidad de sus problemas. Este nuevo brbaro es

    principalmente el profesional ms sabio que nunca, pero ms

    inculto tambin el ingeniero, el mdico, el abogado, el

    cientfico" (Misin de la Universidad, Obras, p. 1289).

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  • O fato central da nossa poca a violncia generalizada a todos

    os setores da vida pblica, a violncia que pretende substituir o

    esprito no seu papel guiador das massas. Dessas massas que os

    pensadores polticos muitas vezes confundem com o

    proletariado econmico. Sim, mas o esprito proletrio, o

    esprito da reao violenta contra certas condies econmicas

    e sociais, no est exclusivamente ligado s massas obreiras;

    participam dele todas as "massas", como fenmenos

    sociolgicos, e a massa dos intelectuais tambm. o fato

    central da nossa poca: as classes mdias, mesmo antes de

    serem proletarizadas, mesmo justamente para evitar a ameaa

    da proletarizao, transformam-se em massas proletrias. E

    esta proletarizao interior um fenmeno da educao.

    Chama-se "classes mdias" o problema central da nossa poca.

    O livro mais bem documentado que conheo sobre o fascismo,

    Fascisme et grand capital, de Daniel Gurin, apresenta a tese

    de que o fascismo a ltima expresso do grande capitalismo.

    Tese errnea. Provando irrefutavelmente que o grande capital

    se serviu do fascismo para bater o movimento trabalhista,

    Gurin esquece-se de concluir que o instrumento se mostrou,

    enfim, mais forte do que o mestre, e que os operrios e os

    capitalistas perderam, juntos, a liberdade de movimento, pela

    ao deste inimigo de ambos as classes mdias. Fato

    fundamental do nosso tempo: o fascismo propaga-se e vence

    atravs das classes mdias, das quais a expresso triunfal.

    O fascismo foi impossvel na Rssia. tambm um fato

    fundamental que a Rssia no conheceu, no teve uma classe

    mdia. Ora, seguindo a corrente da poca, o bolchevismo criou

    uma classe mdia. A burocracia sovitica, os stakhanovistas e

    outras camadas privilegiadas do operariado no so outra coisa

    seno uma nova classe mdia. Considerando, nos outros pases,

    a ascenso de camadas igualmente novas, que o sculo XIX

    ainda no conhecia, verdadeiros exrcitos de empregados

    privados, de funcionrios pblicos, de pequenos empresrios,

    todos formados num regime de ensino secundrio ou superior

    muito facilitado, essas massas de homens, todos mais ou menos

    educados, essas multides de "pequenos intelectuais";

    considerando essas multides de homens novos, nem

    capitalistas nem trabalhistas, que Karl Marx no podia prever,

    deve-se precisar o pensamento: o fascismo e o bolchevismo tm

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  • o lado comum de serem expresses das novas classes mdias. E

    a ideologia que permite explicar o esprito das novas classes

    mdias a ideologia pequeno-burguesa, violentamente

    revolucionria e antiintelectualista.

    Explica-se, por isso, que Georges Sorel, o pai espiritual comum

    do fascismo e do bolchevismo, Georges Sorel, o idelogo da

    violncia, seja um homem profundamente pequeno-burgus,

    representante tpico das classes mdias francesas, preocupado

    com a decadncia das "autoridades sociais", que ele concebeu

    fielmente no esprito conservador de Le Play; preocupado,

    enfim, com a decadncia vital da raa latina, pela qual ele

    responsabiliza violentamente a Inteligncia; ao esprito ele

    prefere a vitalizao pelos instintos brbaros da massa.

    Fica-se a admirar que Sorel fale em decadncia, na Frana dos

    Taine e Bergson, dos Flaubert e Proust, dos Mallarm e

    Claudel, dos Degas e Czanne, dos Rodin e Debussy, dos

    Pasteur e Henri Poincar, numa das pocas mais magnficas do

    esprito francs. Mas por isso mesmo. Sorel violentamente

    antiintelectualista. V no esprito e suas obras o grande

    obstculo da volta ao primitivo. Neste ponto, Sorel parece

    sobretudo "moderno", contemporneo de ns outros. a

    hostilidade ao esprito que liga Sorel diretamente s novas

    classes mdias.

    No pensador revolucionrio Sorel no se viu o conservador, o

    representante das classes mdias. O mal-entendido

    correspondente no viu nas novas classes mdias as

    possibilidades revolucionrias. Durante um sculo, o sculo

    XIX, esqueceu-se que a classe mdia fizera a Grande

    Revoluo. Via-se na classe mdia a classe essencialmente

    conservadora, a portadora mesma das tradies humansticas,

    e ela o era enquanto os princpios consolidados da Revoluo

    Francesa abrigavam a classe mdia contra as ameaas do

    grande capitalismo e do movimento socialista. Isto, porm,

    acabou. Chegou o dia de uma nova classe mdia, pronta a

    vencer por uma nova revoluo violenta ou, como na Rssia,

    triunfar contra um regime obsoleto. Foi Sorel quem emprestou

    s novas classes mdias a ideologia revolucionria.

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  • Poder-se-ia acreditar que os grandes obstculos dessa

    revoluo fossem os capitalistas e os trabalhadores, ou, na

    Rssia, um regime milenrio e eclesiasticamente consolidado.

    Engano. Vimos a fraqueza incrvel do regime tzarista, a derrota

    fcil dos socialistas, o suicdio dos capitalistas. O verdadeiro

    obstculo e Sorel o previra bem era a Inteligncia. ela

    que merece as diatribes mais cruis dos chefes e dos caudilhos.

    Para a vitria final, precisa-se acabar com a Inteligncia.

    Como? No a classe mdia o principal agente dos movimentos

    espirituais? Sim, , ou melhor, foi. O sculo XIX, o sculo

    liberal, abre a todos todas as possibilidades. A educao

    superior o caminho da ascenso. A preeminncia da classe

    mdia no sculo XIX baseia-se na sua cultura universitria.

    Mas o sculo XX acaba com isso. O grande capitalismo precisa

    mais de exrcitos de pequenos empregados do que de self-

    made men; as profisses liberais esto superlotadas; o

    movimento socialista repele os que resistem proletarizao e

    suas humilhaes e privaes. Privada dos privilgios da

    Inteligncia, a classe mdia quebra furiosamente o

    instrumento, como uma criana quebra o brinquedo

    insubmisso. uma criana essa nova classe mdia; mas uma

    criana perigosa, cheia dos ressentimentos dos dclasss,

    furiosa contra os livros que j no sabe ler e cujas lies j no

    garantem a ascenso social. Est madura para a violncia.

    A violncia o fenmeno "espiritual" central das novas classes

    mdias e da nossa poca; significa a determinao de empregar

    todas as armas, todas as que o esforo do esprito criou, para

    conseguir um fim material: a salvao social da classe. No se

    admitem outros fins. Ridiculizam ou anatematizam todos os

    esforos independentes, desinteressados, do esprito. Admiram

    a especializao til do "intelectual de profisso", e banem o

    humanismo do "professor". A violncia antiintelectualista das

    novas classes mdias , afinal, uma falta de educao, ou, antes,

    o fruto de uma falsa educao. Fruto da falsa idia que as

    classes mdias formavam da Universidade: da nova

    Universidade, que fornece exrcitos de mdicos, advogados e

    tcnicos, em vez de clercs, de uma elite.

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  • O problema capital do nosso tempo, o problema da elite, , no

    fim das contas, um problema de pedagogia humanstica. Existe

    mesmo, hoje, poltica que consiste na exterminao das elites

    pelas armas dos especialistas. E foi bem preparada: da

    diminuio das lies latinas existe apenas um passo para a

    destruio dos livros e dos museus.

    O resultado mais freqente da moderna educao universitria

    um decidido adeus aos livros. Mais tarde, combatero as

    "lnguas mortas" na escola. Enfim, declararo intil todo o

    ensino secundrio, com as suas idias vagas e inteis duma

    "cultura geral"; talvez toquem, com isso, no ponto nevrlgico da

    discusso. Todo o problema espiritual dos nossos dias , pois,

    um problema de falta de educao humanstica, um problema

    pedaggico; e todo o problema pedaggico dos nossos dias

    um problema da escola especfica das classes mdias, da escola

    secundria.

    Segundo o regime escolar vigente em todos os pases, sem

    exceo, a Universidade dedica-se ao ensino profissional

    superior, enquanto a "cultura geral" fica reservada ao ensino

    secundrio, aos ginsios e aos liceus. Quer dizer: o ensino da

    cultura geral limita-se aos jovens de dez a dezoito anos. Depois,

    a "cultura" termina, e a medicina e a jurisprudncia comeam,

    sem nenhuma "cultura geral". Os conhecimentos do ensino

    secundrio empalidecem, naturalmente, com o tempo; mas

    ainda h coisa pior: todo esse ensino de "cultura geral" feito

    ao alcance de jovens de dez a dezoito anos: a histria, a

    filosofia, a literatura, amoldadas ad usum Delphini, e

    forosamente puerilizadas. E a fica. Nunca mais o jovem

    mdico ou engenheiro ouve falar em histria, filosofia,

    literatura, exceto pela imprensa ou pelo rdio, que se colocam

    ao alcance do esprito das grandes massas, pueris por natureza.

    Resultado: um esprito artificialmente preservado no estado

    pueril com uma formao profissional superposta. Conheo

    bem as numerosas excees que felizmente existem. Mas, em

    geral, estas massas graduadas se distinguem dos iletrados

    somente por uma autoridade profissional que as torna menos

    teis que perigosas. Ainda uma vez cito Ortega y Gasset: "La

    peculiarsima brutalidad y la agresiva estupidez con que se

    comporta un hombre, cuando sabe mucho de una cosa y

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  • ignora de raz todas las dems" (O. C., p. 1291). Eles, porm, os

    iletrados, tm sempre razo, porque so muitos e ocupam um

    lugar de elite, esse "proletariado intelectual", sem dinheiro ou

    com ele, isso no importa. Julgam tudo, e tudo deles depende.

    Lem os livros e decidem sobre os sucessos de livraria, criticam

    os quadros e as exposies, aplaudem e vaiam no teatro e nos

    concertos, dirigem as correntes das idias polticas, e tudo isto

    com a autoridade que o grau acadmico lhes confere. Em suma,

    desempenham o papel de elite. So os nouveaux matres, os

    seoritos arrogantes, graduados e violentos; e ns sofremos as

    conseqncias, amargamente, cruelmente.

    "We are entered in a race between education and

    catastrophe." Wells tem muita razo. Mas de grande

    importncia datar a desgraa. Esta catstrofe irrompeu sob o

    signo do progresso, e o progresso ilimitado, muito do gosto de

    um Wells, cavar mais profundamente o abismo. O verdadeiro

    caminho a volta.

    Temos mais uma vez "a disputa do medievalismo". Uma coisa

    fica, porm: a Universidade uma criao da Idade Mdia.

    Todas as universidades medievais so, por princpio,

    instituies "clericais": elas formam os clercs. O

    restabelecimento das universidades "clericais" uma

    restaurao de tradies.

    Quatro ou cinco faculdades reunidas no constituem ainda uma

    universidade. Elas no criam esta "convivence of sciences,

    which forms a philosophical habit of mind",1 de que fala o

    cardeal Newman. No se trata destas cincias ou daquelas

    profisses. Trata-se do esprito comum que as anima, do

    esprito filosfico, antiutilitrio, desinteressado, que as nossas

    universidades perderam, e que a prpria Idia de

    Universidade. Derrubemos, pois, este estado de coisas. ao

    ensino secundrio que cabe o preparo do ensino profissional,

    dispensado nos hospitais e na magistratura. Em concluso,

    Universidade que incumbe a formao do esprito da

    "clericatura".

    Voltemos aos estudantes: o seu utilitarismo, mais perigoso que

    o das cincias, perdurar enquanto a freqncia das

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  • universidades for a chave para as posies de mando na

    sociedade. Verdadeiramente, o oposto deste utilitarismo o

    desinteresse, no qual Newman via o esprito e a idia de

    universidade, o esprito do clero universitrio medieval, que se

    sentia independente do mundo e somente responsvel perante

    Deus. Sem tais padres o altar fica vazio e o culto abandonado.

    Poderia chegar o dia em que ningum compreenderia mais as

    frmulas nem os poemas, em que os quadros de Rembrandt

    seriam pedaos de tela e as partituras de Beethoven farrapos de

    papel; dia da barbaria, em que a histria humana se

    transformaria, pela sucesso de desgraas, num formigueiro

    mal organizado. E este dia talvez j esteja mais prximo do que

    realmente pensamos. "Somos a ltima reserva, fiquemos

    conscientes disto" dizia Hugo Ball. Fiquemos conscientes,

    "dreading to leave an illiterate Ministery to the Churches,

    when our present Ministers shall lie in the dust".

    NOTAS

    1. "Convivncia das cincias, que forma um hbito filosfico da mente." [N.E.] Voltar

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