a idade média foi muito mais uma idade da luz do que das trevas - aleteia

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Rafael de Mesquita Diehl EDUCAÇÃO 21.07.2015 A Idade Média foi muito mais uma idade da luz do que das trevas Conheça as luzes que o seu professor anticlerical e marxista escondeu de você na escola Imagem: Vitrais da Abadia de St-Dennis e o efeito da luz sobre eles. Os vitrais das catedrais medievais representavam a Teologia da Luz e simbolizavam a Criação, com suas múltiplas formas e cores. A longa noite dos mil anos. Assim muitos haviam pintado com pesadas tintas o período que se estende da queda do Império Romano do Ocidente nas mãos dos bárbaros hérulos em 476 à queda do Império Romano do Oriente com a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos em 1453. Outros marcos divisórios foram propostos, é verdade, mas fundamentalmente a Idade Média é considerada o período contido entre os séculos V e XV da era cristã. O termo nasceu de forma pejorativa. Esses mil anos seriam uma época mediana, separada por duas gloriosas épocas de esplendor cultural, a Antiguidade Clássica e os tempos da Renascença. O Iluminismo aumentou a carga pejorativa com seu característico anticlericalismo, criando a imagem de uma era estagnada, onde o dogmatismo clerical tudo dominava e impedia a liberdade e o progresso do conhecimento humano. Nem é necessário deter-se longamente na igualmente conhecida simplificação anacrônica feita pelo marxismo, no qual a Idade Média seria uma época de senhores feudais exploradores e de servos explorados, conformados pelo “ópio” que lhes era fornecido através do discurso religioso da Igreja. Por outro lado, o romantismo fantasiou essa época com cavaleiros e damas quase imaculados e castelos e armaduras engenhosamente desprovidos de qualquer praticidade. A verdade é que geralmente vemos uma dessas duas imagens de Idade Média. O pessimismo de uma época imobilista sem liberdade e progresso ou o fantasioso cotidiano de cavaleiros sempre heróicos com uma longa rotina de salvar donzelas, rodeados por criaturas fantásticas. Permitam-me dizer-lhes que a Idade Média é uma construção artificial, uma forma de classificar o tempo conforme determinados critérios, que os homens usam para diferenciar um determinado tempo de outro. Seja como for, o nome “Idade Média” se consolidou, tendo sido adotado por historiadores e homens de toda sorte, sejam eles anacrônicos, idealistas ou devotados a entender a época que estudam dentro de seu próprio contexto. Como História diz respeito não somente ao tempo, mas também ao espaço, é preciso recordar que a catalogação do período medieval refere-se com maior propriedade ao ambiente da Europa Ocidental e parte do Mediterrâneo. Contudo, mil anos são muita coisa. Para melhor estudar a Idade Média, os estudiosos a subdividiram. Baseando no sistema socioeconômico do feudalismo (atualmente os historiadores já distinguem entre feudalismo e senhorio, abandonando o critério marxista), dividiram o período medieval entre Alta Idade Média (desenvolvimento e apogeu do feudalismo) e Baixa Idade Média (crise e desestruturação do feudalismo), no qual o século XI apareceria como um marco divisório. Posteriormente, os historiadores adotaram uma nova divisão, levando em conta aspectos mais complexos: Antiguidade Tardia (do século V ao VII, ou mesmo iniciando-se nos séculos II-III, no qual se observam a desestruturação do Império Romano do Ocidente e a formação dos reinos romano-bárbaros), Alta Idade Média (séculos VIII-X, característicos pelo ressurgimento da idéia de Império na Cristandade ocidental com as dinastias carolíngia e otônida, surgimento e formação do senhorio e do feudalismo), Idade Média Plena ou Central (séculos XI-XIII, marcados pelo surgimento e auge da Cavalaria, pelo ápice do poder temporal pontifício, surgimento das universidades, crescimento da vida urbana e comercial, Cruzadas, etc.) e Baixa Idade Média (séculos XIV-XV, onde se destacariam a crise e desestruturação do feudalismo, uma maior

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A Idade Média Foi Muito Mais Uma Idade Da Luz Do Que Das Trevas - Aleteia

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  • Rafael de Mesquita Diehl

    EDUCAO 21.07.2015

    AIdadeMdiafoimuitomaisumaidadedaluzdoquedastrevasConhea as luzes que o seu professor anticlerical e marxista escondeu de voc na

    escola

    Imagem: Vitrais da Abadia de St-Dennis e o efeito da luz sobre eles. Os vitrais das catedrais medievaisrepresentavam a Teologia da Luz e simbolizavam a Criao, com suas mltiplas formas e cores.

    A longa noite dos mil anos. Assim muitos haviam pintado com pesadas tintas o perodo que seestende da queda do Imprio Romano do Ocidente nas mos dos brbaros hrulos em 476 quedado Imprio Romano do Oriente com a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos em 1453.Outros marcos divisrios foram propostos, verdade, mas fundamentalmente a Idade Mdia considerada o perodo contido entre os sculos V e XV da era crist.

    O termo nasceu de forma pejorativa. Esses mil anos seriam uma poca mediana, separada porduas gloriosas pocas de esplendor cultural, a Antiguidade Clssica e os tempos da Renascena. OIluminismo aumentou a carga pejorativa com seu caracterstico anticlericalismo, criando a imagemde uma era estagnada, onde o dogmatismo clerical tudo dominava e impedia a liberdade e oprogresso do conhecimento humano. Nem necessrio deter-se longamente na igualmenteconhecida simplificao anacrnica feita pelo marxismo, no qual a Idade Mdia seria uma poca desenhores feudais exploradores e de servos explorados, conformados pelo pio que lhes erafornecido atravs do discurso religioso da Igreja. Por outro lado, o romantismo fantasiou essapoca com cavaleiros e damas quase imaculados e castelos e armaduras engenhosamentedesprovidos de qualquer praticidade.

    A verdade que geralmente vemos uma dessas duas imagens de Idade Mdia. O pessimismo deuma poca imobilista sem liberdade e progresso ou o fantasioso cotidiano de cavaleiros semprehericos com uma longa rotina de salvar donzelas, rodeados por criaturas fantsticas.

    Permitam-me dizer-lhes que a Idade Mdia uma construo artificial, uma forma de classificar otempo conforme determinados critrios, que os homens usam para diferenciar um determinadotempo de outro. Seja como for, o nome Idade Mdia se consolidou, tendo sido adotado porhistoriadores e homens de toda sorte, sejam eles anacrnicos, idealistas ou devotados a entender apoca que estudam dentro de seu prprio contexto. Como Histria diz respeito no somente aotempo, mas tambm ao espao, preciso recordar que a catalogao do perodo medieval refere-secom maior propriedade ao ambiente da Europa Ocidental e parte do Mediterrneo.

    Contudo, mil anos so muita coisa. Para melhor estudar a Idade Mdia, os estudiosos asubdividiram. Baseando no sistema socioeconmico do feudalismo (atualmente os historiadores jdistinguem entre feudalismo e senhorio, abandonando o critrio marxista), dividiram o perodomedieval entre Alta Idade Mdia (desenvolvimento e apogeu do feudalismo) e Baixa Idade Mdia(crise e desestruturao do feudalismo), no qual o sculo XI apareceria como um marco divisrio.

    Posteriormente, os historiadores adotaram uma nova diviso, levando em conta aspectos maiscomplexos: Antiguidade Tardia (do sculo V ao VII, ou mesmo iniciando-se nos sculos II-III, noqual se observam a desestruturao do Imprio Romano do Ocidente e a formao dos reinosromano-brbaros), Alta Idade Mdia (sculos VIII-X, caractersticos pelo ressurgimento da idia deImprio na Cristandade ocidental com as dinastias carolngia e otnida, surgimento e formao dosenhorio e do feudalismo), Idade Mdia Plena ou Central (sculos XI-XIII, marcados pelosurgimento e auge da Cavalaria, pelo pice do poder temporal pontifcio, surgimento dasuniversidades, crescimento da vida urbana e comercial, Cruzadas, etc.) e Baixa Idade Mdia(sculos XIV-XV, onde se destacariam a crise e desestruturao do feudalismo, uma maior

  • centralizao do poder nos reinos, o declnio do poder temporal do Papado e novas formas depensamento que conduziriam chamada Renascena ou Renascimento. Tambm poderamosnotar nesse perodo a expanso ultramarina europia e a queda do Imprio Romano do Oriente).

    As luzes de que no falam

    Tendo explicado brevemente em que consiste a Idade Mdia, gostaria agora de apontar quatrocaractersticas dessa longa poca que no se coadunam com a imagem de uma Idade das Trevas.

    Interesse pelo saber: No ano de 1277 morria um homem em um acidente causado pelodesabamento de um balco para estudos e observaes cientficas que havia feito em suaresidncia: essa residncia era o palcio papal de Viterbo e esse homem era Pedro Hispano, JooXXI, o nico papa portugus da Histria. O conhecimento era valorizado por grande parte doshomens da Idade Mdia, especialmente pelos clrigos, que julgavam a instruo dos demais comouma de suas funes. Desde a Antiguidade Tardia os mosteiros foram centros de preservao doconhecimento antigo dos gregos e romanos. Mas esses mosteiros no somente preservavam ecopiavam as obras antigas, como tambm refletiam sobre elas e teciam comentrios sobre asmesmas. J entre os sculos VI e VII, o Livro das Etimologias fora escrito pelo bispo Isidoro deSevilha, buscando compilar todo o conhecimento de seu tempo. No sculo XII, o cnego Hugo daAbadia de So Vctor, na Frana, escrevia em uma de suas obras exortando seus alunos a buscaremo estudo, sem desprezar nenhuma forma de conhecimento. Com o surgimento das universidades, atroca de informaes e escritos e o debate de idias, frequentemente acalorado, se intensificou.Esse interesse pelo saber traduziu-se tambm no mbito prtico: os estudos jurdicos em DireitoRomano e Cannico produziram cdigos de leis e o sculo XIV, famoso pela tenebrosa Peste Negra,nos legou dois artefatos de atual utilidade: o relgio mecnico e os culos.

  • Imagem: Catedral de Chartres, Frana, construda em 1145

    Amor Beleza: A Idade Mdia teve vrios estilos artsticos e amou a beleza como reflexo da ordeme da bondade divinas. Lembravam-se os homens do medievo de Santo Agostinho ao dizer que Deustudo havia feito com nmero, peso e medida. A Criao era vista como uma construo ordenada,fruto da inteligncia divina. A Criao tambm era vista como uma bela polifonia, onde todas ascriaturas cantavam, em suas distintas vozes, a Glria de Deus. Um dos homens mais austeros daIgreja, o monge Bernardo de Claraval, escreveu em um sermo o mais encantador elogio da belezado corpo humano. A beleza das igrejas romnicas e gticas ainda hoje nos impressiona pelamonumentalidade e doce harmonia da unidade de suas formas. Mesmo em suas pocas de maiordificuldade, o perodo medieval produziu obras artsticas de incrvel sensibilidade e beleza.

    Dinamismo: Dinamismo uma palavra que, a meu ver, define a essncia da Idade Mdia. A comearpelas cortes itinerantes de seus monarcas que tardaram a se fixar em capitais. Na poltica, nasartes, no meio erudito predominam as transformaes. Quando no sculo XII o abade Suger decidefazer uma reforma para ampliar sua abadia de St-Dennis, na Frana, gera uma arquiteturacompletamente nova, visando expressar em suas linhas e em sua obsesso pela entrada de luz noedifcio a Teologia da Luz, fruto da redescoberta dos tratados de influncia neoplatnica doPseudo-Dionsio Areopagita. Pela mesma poca, a sobreposio de vozes em cima da tradicionalmelodia do cantocho gregoriano abria o caminho para a polifonia na msica. Se pensarmos emambientes bastante heterogneos como os reinos da Pennsula Ibrica ou as cidades italianas, essedinamismo torna-se ainda mais notvel. Entretanto, o dinamismo mais caracterstico foi o dasuniversidades: o homem de saber medieval era um cidado da Cristandade, deslocando-sefrequentemente em busca do conhecimento e dos mestres famosos.

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    Incorfomismo: Em muitos livros didticos vemos aquela viso herdada pelo marxismo de que ohomem medieval era conformado com os males e injustias que sofreria por resignar-se vontadeda Providncia Divina. No apenas uma notao estulta de Providncia e aceitao da vontadedivina, como tambm um desconhecimento de alguns fatos e elementos da Idade Mdia. Os topropagados abusos do clero recebiam na poca crticas de homens da Igreja mais cidas do que demuitos reformadores protestantes, como as crticas escritas no sculo XI pelo cardeal e mongebeneditino Pedro Damio. A jovem Catarina de Siena criticava os vcios da Cria Pontifcia e arelutncia de Gregrio XI em retornar Roma na frente do prprio papa e seu Colgio Cardinalcio.A conscincia de que a moral e a tica deveriam ser tambm vividas no mbito da poltica era algobastante conhecido dos homens de saber medievais. Uma farta literatura de Espelhos de Prncipes,tratados moralizantes destinados aos monarcas, floresceu ao longo de toda a Idade Mdia. Osvcios dos homens, especialmente os de poder, eram apontados por eclesisticos e exploradoscomo argumento pelos movimentos herticos. As danas da morte, a qual o povo igualmente tinhaacesso, escarnecia dos pecados dos homens de todas as condies que esqueciam-sefrequentemente de que a morte um dia lhes pediria contas.

    A Idade da Luz?

    A medievalista Rgine Pernoud, desejosa de desmistificar a Idade Mdia enquanto um perodotenebroso, chamou-a de Idade da Luz. Naturalmente, a historiadora no era ingnua para acharque o medievo fora perfeito e nem mesmo o papa Leo XIII nutria tal suposio quandoindiretamente referiu-se ao perodo medieval como um tempo em que a filosofia do Evangelhogovernava as naes.

    importante que, ao refutarmos o mito da Idade das Trevas, no cultivemos uma mentalidadearqueologista e romntica como a dos criadores da arte neogtica, que viam na Idade Mdia aperfeio crist, tratando tudo o que a antecedera como mera preparao e tudo o que a sucedera,lamentvel decadncia. A Idade Mdia foi um perodo com qualidades e defeitos como os demais. Oque a diferencia de outros tempos uma maior influncia que os valores cristos exerceram sobreo mbito social e institucional, tendo isso contribudo para muitas melhorias, embora no fossepossvel, naturalmente, erradicar todos os males nesse campo onde joio e trigo se misturam at quechegue a colheita.

    bom sempre termos diante de nossas conscincias que a melhor poca que h aquela na qualestamos inseridos, pois foi aquela na qual Deus nos colocou e aquela na qual temos a capacidade detrabalhar por mudanas e melhorias. Essas melhorias no nascem de grandes aes, mas sim denossa conduta diria, que pode fazer a diferena.

    Texto de Rafael de Mesquita Diehl, professor e historiador formado pela Universidade Federal do Paran(UFPR) e mestrando pela mesma universidade. Publicado pelo site Revista Vila Nova(http://revistavilanova.com/idade-media-luz-em-meio-de-trevas/).

    http://revistavilanova.com/idade-media-luz-em-meio-de-trevas/