a historiografia da arquitetura brasileira no século xix e os conceitos de estilo e tipologia

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  • 7/25/2019 A Historiografia Da Arquitetura Brasileira No Sculo Xix e Os Conceitos de Estilo e Tipologia

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    Estudos Ibero-Americanos.PUCRS,v. XXXI,n. 2,p. 143-154,dezembro 2005

    A historiografia da arquiteturabrasileira no sculo XIX

    e os conceitos de estilo e tipologia

    SONIA GOMES PEREIRA*

    Resumo: Esse artigo analisa os conceitos de estilo e tipo,examinando as suas diferenasestruturais a base histrica e geogrfica do estilo em oposio relao entre soluoformal,gnero e funo no tipo ,e tentando evidenciar a operacionalidade de ambosna reavaliao crtica da produo artstica do sculo XIX.

    Abstract: The present article analyses he concepts of style and type ,by examining itsstructural differences the historical and geographical base of style as opposed to therelation between formal solution,genre and function concerning type and attempts toshow the operationality of both in the critical reevaluation of the artistic production of

    the 21stcentury.Palavras-chave: Estilo. Tipologia. Historiografia da arte. Sculo XIX.

    Key words: Style. Typology. Historiography of art. 19 stcentury.

    Grande parte da historiografia sobre a arquitetura brasileirado sculo XIX apresenta a tendncia dominante de trabalhar comdivises rgidas entre estilos, enfatizando a oposio entre barro-co/rococ e neoclassicismo no incio do sculo e, depois, entreneoclassicismo e ecletismo no final do sculo XIX/incio do XX.

    Essa postura decorre de uma outra noo generalizada na literatu-ra sobre arte brasileira: a idia de que h uma correspondncianaturalentre linguagens artsticas e perodos histricos;assim o

    barroco predominaria na Colnia,o neoclassicismo no Imprio e oecletismo na Primeira Repblica.

    * Sonia Gomes Pereira professora titular da Escola de Belas Artes da UFRJ. Fezmestrado na Universidade de Pennsylvania,doutorado na UFRJ e ps-doutorado noLaboratoire de Recherches sur le Patrimoine Franais/CNRS em Paris.

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    Estes esquemas redutores sobrevivem nesta historiografiatradicional, apoiados numa metodologia que est fundamentada

    basicamente na pinagem de alguns fatos histricos relevantes,tais como a chegada da Misso Francesa e a abertura da Academiade Belas Artes no Rio de Janeiro, ou de alguns arquitetos desta-cados, como Grandjean de Montigny, em torno dos quais toda anarrativa histrica construda.

    No entanto, suspendendo, mesmo que temporariamente, aquesto das atribuies ou as preocupaes meramente estilsticas,

    possvel observar na prtica arquitetnica do sculo XIX um con-junto muito mais complexo,em que vrios elementos esto imbri-cados: a persistncia de formas e tcnicas coloniais;a necessidadede novos programas e funes;a incorporao de materiais impor-tados;a diversificao dos agentes;os novos processos de forma-o profissional de arquitetos e engenheiros; alm da sincronici-dade de vrias linguagens formais a recorrncia aos estilos dopassado (barroco e rococ) e a apreenso dos estilos ento con-temporneos (o neoclassicismo e outros revivalismos, alm doecletismo e do art nouveau). Portanto, em lugar de uma s feiodominante, coexistem tcnicas, programas e estilos do passado edo presente, evidenciando a permanncia da tradio colonial,

    entrelaada no desejo de modernizao e na necessidade de cons-truo imaginria da nova nao.Entender essa diversidade estilstica da arquitetura do sculo

    XIX, tanto na Europa quanto no Brasil, tem sido um desafio paraos historiadores da arte e da arquitetura. Na verdade,essa dificul-dade tem razes profundas, relativas prpria constituio daHistria da Arte e a importncia primordial que a noo de estiloassumiu em sua definio como disciplina autnoma.

    Sabemos que etmologicamente a palavra estilo vem do latimstilus, que designava o instrumento usado para a escrita entre osromanos. Por metonmia,passou a designar tambm a maneira deescrever de um escritor. Toda essa discusso de estilo entre os an-tigos pertencia ao campo da retrica, que analisava sobretudo aescolha das palavras e sua pertinncia s diferentes ocasies, se-guindo a doutrina do decorum. Essas noes da retrica espalha-ram-se para outros campos,como a msica,a arquitetura e as artesplsticas.1 Mas a partir do renascimento que os termos estilo,

    1 Da mesma forma, a associao entre poesia e pintura a clebre Ut pictura poesis,estabelecida por Horcio no sculo I manteve-se praticamente inquestionvel,atser repelida por Lessing (1729-1781) em seu ensaio Laokon de 1766,que estabeleceuas fronteiras entreos dois campos e atribuindo s artes plsticas uma linguagem es-pecfica.

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    como o mais apropriado aos progressos do esprito e do gnio,graas temperatura amena e ditosa que reina ali durante as dife-rentes estaes do ano.2 Winckelmann no foi o inventor dessateoria que relaciona a cultura ao meio geogrfico,3mas essa relaotomou em seu sistema um relevo significativo. Mas, num outrotpico,Winckelmann toma uma posio nova: no considerava aarte grega em isolamento, mas, sim, no contexto da civilizaogrega tomada como uma totalidade.4

    Portanto, ao se constituir como disciplina, a histria da arte

    consolida uma srie de noes j esboadas anteriormente: teoriado belo ideal,estilo,evoluo e analogia com o ciclo vital. A elasacrescenta algumas idias contemporneas, tais como a influnciado clima, a concepo de povo e o interesse pela histria. Essasmesmas noes so retomadas ao longo do sculo XIX, servindode base a posturas bastante diferentes em relao a estilo e suaimportncia no estudo das artes visuais e da arquitetura.

    O arquiteto Gottfried Semper5 acredita que todas as formasartsticas, desde as artes decorativas at a arquitetura, obedecemaos mesmos princpios, que retiram sua lgica das aplicaes datcnica. Apia a sua teoria nas idias da biologia da poca, espe-cialmente nos princpios anatmicos de Cuvier e no evolucionismo

    2 A valorizao dos antigos como sendo os povos que tinham atingido o mais altograu de perfeio na construo do belo ideal era uma unanimidade entre pratica-mente todos os artistas e tericos desde o renascimento. Mas quase todos localiza-vam essa fase urea da antigidade entre os romanos,como vimos no exemplo deVasari. No sculo XVIII, sobretudo entre os romnticos alemes, cresce o interessepela Grcia. Goethe (1749-1832) j compartilhava desse mesmo sentimento: chegouat as praias da Siclia,onde,de p,nas margens do Mediterrneo,voltado para aGrcia,recitava os versos de Homero(Bornheim,op. cit.,p. 84).

    3 A idia da influncia do clima sobre a cultura dos povos j tinha sido formuladaantes. Aparece, por exemplo, em Montesquieu em Lesprit des lois de 1748. Direta-mente relacionada atividade artstica,j havia aparecido em 1719 em Reflxions cri-tiques sur la posie et la peinture,do padre Du Bos (Bazin,Germain.Histria da histriada arte. So Paulo: Martins Fontes,1989,p. 111-115).

    4Um sculo antes de Winckelmann,j aparecera uma histria das artes: em 1698 Pierre

    Monier escrevera aHistoire des arts qui sont rapport avec le dessin idivise en trois livres,o il est trait de son origine,de son progrs,de sa chute et de son rtablissment,incorpo-rando vrios povos: egpcios,hebreus, babilnios, gregos, romanos, decadncia daarte romana,gosto gtico,idade mdia e renasicmento (Bazin,op. cit.,p. 56). No h,entretanto em Monier o mesmo conceito de cultura global como em Winckelmann.

    5 Gottfried Semper (1803-1879) era arquiteto,terico e historiador da arte. Exilado daAlemanha,esteve na Frana e na Inglaterra ,onde visitou a 1Exposio Universal deLondres em 1551,que o impressionou muito. No ano seguinte,em 1552,publicaAr-quitetura e civilizao.De 1855 a 1871,dirigiu a seo de arquitetura da Escola Poli-tcnica de Zurique. Pretendia escrever uma obra bastante mais ampla,mas publicouapenas a primeira parte: os dois volumes de O estilo nas artes tcnicas e arquitetnicasde 1861 a 1863.

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    de Darwin.6Para Semper,por exemplo,o estilo geomtrico,encon-trado nos exemplos artsticos mais antigos ento conhecidos,seriadevido ao uso predominante das artes txteis na poca neoltica.Assim, a origem da arte puramente material, regulada apenaspelas questes prticas do avano tcnico.

    Hippolyte Taine7 tambm procura articular a arte a uma ex-plicao materialista,mas centra a sua teoria no meio fsico e so-cial. Constri todo um sistema histrico,cujo mtodo consiste emprocurar a causalidade da criao artstica nas reaes do meio

    sobre a arte. Taine no foi o inventor dessa teoria,pois,como vi-mos,Winckelmann j insistia nessa idia. Mas ele d s influnciasclimticas um carter imperativo, tentando impor histria e arte os mtodos prprios das cincias. De um lado, apia-se na

    biologia. Sua teoria do meio uma adaptao da teoria evolucio-nista darwiniana e do mtodo experimental de Claude Bernard.8Por outro lado, Taine d um destaque ainda maior ao dosagentes sociais sobre a produo da obra de arte, alinhando-se aidias que vo se consolidar na escola de Durkheim e nas cinciassociais.9Para Taine, todas as manifestaes artsticas, intelectuais,morais,religiosas e institucionais de uma poca guardam entre siuma certa relao: o que ele chama lei das dependncias mtuas.

    Estabeleceu entre estas manifestaes uma relao causal,em quea arte sempre conseqncia das outras manifestaes culturais. Aao individual do artista praticamente nula. Tanto o artistaquanto a arte so produtos moldados pelo meio. As teorias de Tai-

    6 Georges Cuvier (1769-1832) foi o criador da Anatomia Comparada. Criou vrios

    princpios: a lei da subordinao dos rgos e a lei da correlao das formas. CharlesDarwin (1809-1882),aps viagem Amrica do Sul em 1831-1836 ,escreveu Da ori-gem das espcies pela via da seleo natural,publicada em 1859 obra que teve,logo deimediato,imensa repercusso em vrios campos do conhecimento.

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    Hippolyte Taine (1828-1893) foi professor de histria da arte e esttica na cole desBeaux Artes de 1864 a 1874. Substituiu Viollet-le-Duc,que ficara nessa ctedra poucotempo (de 1863 a 1864). O seu livro Philosophie de lart de 1865 foi acolhido quase ge-nericamente em ambientes acadmicos na Frana.

    8 Antes de se dedicar aos estudos histricos,Taine freqentou por dois anos os cursosdo Museu de Histria Natural. Deve decorrer da a sua familiaridade com o mtodoexperimental de Claude Bernard (1813-1878) clebre fisiologista, que descobriufunes do pncreas,do fgado e do sistema nervoso,sendo o mais ilustre represen-tante da cincia experimental do final do sculo XIX.

    9 mile Durkheim (1858-1917) considerado o lder da sociologia francesa na correntedo naturalismo sociolgico. Foi diretor da Sorbonnne,escreveu vrias obras e foi di-retor de Lanne sociologique.

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    ne sobre a influncia do meio fsico e social sobre a arte deixaramuma marca profunda e duradoura na histria da arte.10

    Muito diferente a posio de Alois Riegl.11Formado no Ins-tituto de Pesquisas Histricas de Viena,Riegl apia-se no mtodode anlise histrica e comparativa,derivado da tradio filolgica.A seleo de seus objetos de estudo revela a preferncia por temaspolmicos e o objetivo de refutar teorias correntes em sua poca.Assim, publica Stilfragen (Questes de estilo) em 1893, em que sededica anlise do ornato vegetal,combatendo a teoria da prima-

    zia da tcnica de Semper,e ao mesmo tempo inserindo-se na po-lmica da poca entre oArt Nouveau (Jugendstil),muito atuante emViena,e as idias modernistas de combate ao ornamento,como asde Adolf Loos, que sero reunidas num manifesto logo depois.12Novamente em 1901,ao escrever As artes aplicadas na poca romanatardia segundo descobertas na ustria-Hungria,Riegl rejeita as noesde que a arte romana decorre da arte grega e que o romano tardiorepresenta o declnio da cultura latina. No aceita a idia de deca-dncia e acredita que os romanos,assim como o perodo romanotardio,so culturas autnomas,sem estarem necessariamente rela-cionadas entre si numa seqncia evolutiva. Por esses motivos,Damisch questiona a crtica posterior que considerava Riegl sim-

    plesmente um evolucionista e um determinista, acreditando que

    10 Sua influncia foi tambm grande no Brasil, devendo ser a referncia terica maisimportante no final de XIX / incio do XX,em autores como Duque Estrada e ArajoViana. O contraponto a essas interpretaes materialistas da arte demoraria a apa-recer na crtica das artes visuais no Brasil. A influncia dos tericos da chamada Es-cola de Viena s despontam nos anos 1940 ,sobretudo atravs do interesse na valori-zao do barroco entre os pesquisadores do SPHAN. Este deve ser um dos motivosda acolhida Hanna Levy e o espao que foi aberto a ela nas publicaes dessa insti-tuio.

    11 Alois Riegl (1858-1905) foi formado no Instituto de Pesquisas Histricas de Viena,que mantinha estreita ligao com a filologia e a Escola Francesa de Chartres. Diri-

    giu o Departamente de Artes Txteis do Museu de Artes Decorativas durante 12anos (de 1885 a 1897). Assumiu a ctedra de histria da arte na Universidade deViena em 1897. Publicou vrias obras. Em 1893, Stilfragen (Questes de estilo). Em1901,As artes aplicadas na poca romana tardia segundo as descobertas na ustria-Hungria.Em 1902,O retrato de grupo na Holanda do sculo XVII. Deixou manuscrita a GramticaHistrica das artes plsticas, escrito em 1897-1898, e publicada por Swoboda e OttoPcht em 1963.

    12 Em Stilfragen,combate a tese de primazia da tcnica exatamente em cima das artestxteis,que tinham, como foi visto antes,uma importncia fundadora na teoria deSemper. As crticas ao ornamento feitas pelo modernismo tm em Adolf Loos o seuverdadeiro manifesto: Ornament und Verbrechen (Ornamento e crime) , redigido em1908 e publicado em 1912 na revista Der Sturm.

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    Riegl cita Darwin justamente para manter distncia, pois rejeitatotalmente a noo de seleo natural.13

    Mas, certamente, a teoria de Riegl est centrada na idia decontinuidade, e no na de ruptura. Para ele, h uma criatividadecontnua, identificada por uma srie de transformaes, menospelo desejo de imitar a natureza,e muito mais pelas possibilidadesvirtuais das formas, que constituem as leis do estilo. Para Riegl,no h imperativo tcnico, mas sim uma Kuntswollen, que OttoPcht traduz por aquilo que determina a arte: muito mais do que

    vontade,como normalmente traduzido, trata-se de uma pulso,como no conceito freudiano.14

    Outros tericos poderiam ser aqui mencionados, mas essestrs autores Semper,Taine e Riegl j nos bastam para eviden-ciar a diversidade de abordagens, em que a noo de estilo to-mada no sculo XIX.

    bastante significativo que o problema do estilo e suas im-plicaes para a histria e crtica da arte sejam retomados nos anos1950 e 1960, justamente quando se avolumam as crticas ao mo-dernismo e comea a se constituir o ps-modernismo.

    Meyer Schapiro escreve em 1955 o artigo Styleque se tornouclssico na rea.15 Nele, Schapiro enumera as vrias dimenses e

    conotaes da palavra estilo,finalizando por reafirmar aquela queconstitui, na sua opinio, a abordagem mais importante: muitomais do que o material,ou o meio, a anlise da forma como ex-presso que distingue a obra de arte. O conceito colocado emtermos individuais ou no mximo em termos de escolas artsticas,mas no estende a noo para nenhum idia de cultura global.Relaciona essa abordagem diretamente com a teoria de arte mo-derna,o que parece coerente numa dcada em que o informalismose revigora,tanto na Europa quanto nos Estados Unidos.

    13 Damisch, Hubert. Le texte mis nu. In: Riegl, Alois. Les questions de style. Paris:Hazan,1992. Prefcio p. IX-XXI. Damisch acredita que Riegl esteja mais prximo deLamarck (1744-1820), que apresentou a teoria da vontade animal, que foi tambm

    examinada por Freud.14 Assim como Alberti,Riegl enfatiza o ornato como arte de superfcie. A passagem dasartes plsticas para as artes de superfcie sempre implica numa maneira de projeo ,na acepo geomtrica do termo: representao grfica de linhas. Essas linhas noexistem na natureza,com exceo dos vegetais,como nas folhas,por exemplo. Maisdo que a inveno do contorno,do trao e da impresso, o ato de traar que impor-ta em todo o desenho: indcio de uma pulso artstica. Essa dimenso pulsional estnaturalmente sempre sujeita a limitaes e observncisa de regras e princpios ,quecaracterizam o estilo.

    15 Meyer Schapiro (1994-1995) foi professor da Columbia University em Nova York.Esse artigo foi publicado pela primeira vez em Kroeber ,Alfred,ed.Anthropology to-day. Chicago: University of Chicago Press,1953.

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    Ernst Gombrich publica um artigo tambm chamado Style em1968.16 Sua posio de intenso questionamento das teorias doestilo,tanto as materialistas quanto as idealistas. Na verdade,o seuargumento est centrado no carter holstico dessas teorias, queimplicam sempre num a priori, que d sentido arte e culturacomo um todo, submetidas, assim, a um determinismo inexor-vel.17 No aceita as tentativas de determinar a lgica interna deuma evoluo, tomando-a como inevitvel e genrica, pois, paraele,os estilos traados numa evoluo so sempre recortes arbitr-

    rios Recusa tambm as tentativas de caracterizaes sincrnicas,que vem o estilo como expresso do esprito coletivo,criticando oKunstwollen (vontadeda arte),o Zeistgeist(esprito de poca) e oVolksgeist (esprito do povo). Identifica em Hegel a origem destaidia e acredita que toda a historiografia do XIX e parte do XX tentouse livrar dos traos embaraosos da metafsica de Hegel,sem sacrificar suaviso unitria. Assim, todas essas teorias, que tm um carter a

    priori, fundam-se sobre uma presumida interdependncia entreestilo e sociedade, constituindo, na sua opinio, generalizaesquestionveis. Para Gombrich o futuro est sempre aberto e o ar-tista est sempre compelido a fazer escolhas. A questo central detoda a teoria da expressividade ,portanto,o conceito de escolha,

    estando a sinonmia na raiz de todo o problema de estilo. Logica-mente essas escolhas no so ilimitadas: h restries impostaspelas diversas situaes pessoais ou do meio, mas o artista temsempre um grau de latitude para escolhas. Na opinio de Gombri-ch, so exatamente essas limitaes e escolhas que devem ser ob-servadas. A maneira de identificar os estilos decorre em parte dafamiliaridade com as suas convenes e o preenchimento ou nodessas expectativas. Apesar dos esforos de uma morfologia cient-fica,que pretende dar conta da constituio dos estilos,a tomadaintuitiva do especialista ainda o melhor caminho, embora noinfalvel.

    A superao do modernismo e a confrontao com a arte e acrtica ps-modernas tm obrigado os historiadores da arte a revi-ses profundas em seus embasamentos tericos e metodologias.Superar a pretenso de que seria possvel reconstituir o passadototalmente e com a mxima verdade possvel. Compreender a sin-16 Ernst Gombrich foi professor do Warburg Institute em Londres e seu diretor de 1959

    a 1976. Foi tambm professor nas Universidades de Oxford e Cambridge. Esse artigoStyle foi publicado na International Encyclopaedia of the Social Sciences. New York:Marmillan,1968,tomo 15.

    17 Gombrich foi muito influenciado por K. R. Popper, especialmente pela sua obraPobreza do Historicismode 1957,em que critica e refuta o holismo cultural.

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    cronicidade de processos de longa,mdia e curta durao,em lu-gar da sucesso e superao dos estilos. Entender tambm a sin-cronicidade de tendncias estticas opostas (clssicas e anti-clssicas,por exemplo),em lugar da sua ocorrncia cclica. Todosesses passos tm sido um desafio para o historiador da arte nestapassagem do sculo XX para o sculo XXI. Outras categorias pas-sam a ter importncia ao lado do estilo na tentativa de entender aproduo artstica em sua complexidade.

    Muito se avanou nas pesquisas sobre a arquitetura do sculo

    XIX a partir de alguns trabalhos de reavaliao crtica do ecletis-mo, como os de Franois Loyer e de Luciano Patetta. 18 Suspen-dendo o ponto de vista modernista, esses estudos retomavam oecletismo como um sistema diferenciado de valores e prticas,emque se destacava, entre outros, a funo do ornamento comoelemento que daria carter arquitetura. Seria uma verdadeiraarchitecture parlante,em que sobretudo o ornamento teria um valorassociativo, conotando certas linguagens a determinadas funes.Assim, um dos traos recorrentes da arquitetura historicista aassociao entre determinados programas e estilos, tais como osprdios religiosos e os estilos medievais; ou os monumentospblicos e o neoclssico ou o neo-renascimento; ou os pavilhes

    voltados para o lazer e os estilos exticos. Seria uma verdadeiratipologia definida pela relao entre estilo e funo.Mas a tipologia era tambm um recurso historiogrfico. A

    partir do sculo XVIII, tornaram-se bastante comuns os levanta-mentos de monumentos histricos, agrupando-os por tipologias,que tanto podiam ser ditadas pela funo comum, quanto pelarecorrncia a um mesmo padro formal. Certamente esse proce-dimento era sugerido pelos novos mtodos cientficos da poca,em que a exposio conjunta dos espcimes era fundamental paraa identificao de semelhanas e diferenas levando suaclassificao.

    18 Loyer,Franois. Ornement et caracterre. In: Le sicle de leclectisme: Lille 1830-1930.Paris/Bruxelles: Archives darchitecture moderne,1977;Patetta,Luciano. Conside-raes sobre o ecletismo na Europa. In: Fabris,Annateresa,org. Ecletismo na arquite-tura brasileira. So Paulo: Nobel / Edusp,1987.

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    Capa do livro Rcueil et parallle des difices de tout genre, anciens etmodernes,remarquables par leur grandeur ou par leur singularit,et dessinssur une mme chelle, de Jean-Nicholas-Louis Durand (1760-1834),

    publicado em Paris em 1799-1801. As vinhetas nos ngulos representam osquatro continentes. H vrios monumentos da sia (China) ,um da Amrica(Templo do sol em Cuzco) e vrios da Europa (reunindo obras clssicasantigas e do renascimento,e tambm medievais).

    nessa direo que se pode analisar o uso que Durand 19fezda tipologia. Ele no aceitava mais a idia da arquitetura comoimitao da natureza ou dos antigos;ao contrrio,acreditava queas ordens e demais formas histricas eram importantes pela forado hbito e do costume. Assim, sua tipologia apoiava-se nolevantamento histrico e concretizava-se em catlogos de prdioscom funes ou partidos similares, em que ficavam evidenciadosos padres comuns. Para Durand, o tipo era uma composio

    19 Durand,Jean-Nicholas-Louis (1760-1834) era arquiteto formado pela Academia Realde Arquitetura de Paris. Foi professor de arquitetura na Escola Poletcnica a partirde 1796. Escreveu duas obras que se tornaram manuais obrigatrios para osestudantes de arquitetura e engenharia em todo o sculo XIX: Recueil et parallle desdifices en tout genre,anciens et modernes,remarquables par leur beaut,par leur grandeurou par leur singularit,et dessins sur une mme chelle. Paris,1799-1801. Durand,Jean-Nicholas-Louis. Prcis des leons darchitecture donnes lcole Polytechnique., Paris:1802-1805. 2 v.

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    caracterstica de projeto,que,apesar de no ter mais a autoridadede um cnone,concentrava a fora de uma tradio histrica.

    Durand,Rcueil et parallle,prancha Temples gyptiens et grecs. Aqui,en-contram-se reunidas sries do tipo templo,com obras da Antigidade no Egitoe na Grcia. Assim,essa tipologia tem carter funcional e est submetida aocritrio histrico e geogrfico.

    Durand,Rcueil et parallle, prancha Temples Ronds. J essa srie foi for-mada por templos de vrias pocas e lugares (Grcia e Roma antigas,renas-cimento italiano) em torno de um tipo de soluo espacial (templo redondo).Trata-se,portanto,de uma tipologia fundamentada na funo e no partido eacima da histria e da geografia.

    importante assinalar que essas pranchas, apesar de decor-rentes de um conhecimento histrico, acabavam gerando umatipologia acima da histria e da geografia,exatamente o contrrioda noo de estilo. Pois, se o estilo era determinado temporal e

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    espacialmente, tal no acontecia com o tipo, que se ancorava emcaractersticas comuns, em termos de funo ou partido. Diantedessas pranchas, como se o arquiteto tivesse exposto diante de sitoda uma tradio arquitetnica sua disposio para ser reuti-lizada nos prdios contemporneos. Mais do que imitar simples-mente o passado,trata-se de aproveitar de sua notvel experincia.A sua exemplaridade avaliza as escolhas do arquiteto e garante alegitimidade de sua arquitetura. Temos aqui, tambm, todo umprocesso de escolha entre alternativas possveis,como aquela que

    Gombrich indica como sendo especfica do trabalho artstico.

    Durand,Rcueil et parallle,prancha Maisons-de-ville,Palais de Justice.Paraesse tipo,a srie incorpora exemplos medievais,que certamente tinham valorsimblico na tradio das cidades europias. Aqui, o critrio foi funcional etambm acima da histria e da geografia. tTT.

    Ao contrrio de Durand,

    Quatremre de Quincy20

    aceitava avalidade da tradio clssica,acreditando na permanncia de umaessncia na arquitetura,que estaria localizada em suas origens. Adiferena que essa origem no estaria apenas na cabana primi-tiva, como se afirmava antes, mas em trs elementos a grutausada pelos caadores,a tenda dos pastores e a cabana dos campo-

    20 Quatremre de Quincy (1755-1849) foi secretrio da classe das Belas Artes, depois

    Academia de Belas Ares de 1816 1 1839. O verbete Type foi publicado originalmentena Encyclopdie mthodique: Architecture. Paris: Panckoucke,1788-1825.

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    154 Estudos Ibero-Americanos. PUCRS,v. XXXI,n. 2,p. 143-154,dezembro 2005

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    neses tendo esses elementos sido desenvolvidos por diferentespovos: a gruta pelos egpcios, a tenda pelos chineses e a cabanapelos gregos. Fica, assim evidenciado que Quatremre, apesar deainda atrelado ao pensamento clssico, j incorporara uma visohistrica e relativista. Tambm em relao imitao, possvelverificar essa historicizao do classicismo. Quatremre estabele-ceu uma diferena entre modelo, que uma coisa, e tipo, que uma idia e que constituiu a nica base vlida para imitao. Aessncia do tipo um princpio elementar,espcie de ncleo,mas

    apresenta-se diferente em cada pas.21 Retomada por Argan nosanos 1960,a noo de tipologia tornou-se tema central do discursoarquitetnico. Argan adotou a distino entre tipo e modelo deQuatremre,enfatizando que apenas o tipo deveria ser o ponto departida para o projeto. Passando para o campo do urbanismo e dapreservao do patrimnio, Aldo Rossi propunha o tipo comocontendo idias, que so os elementos irredutveis nas cidades elementos culturais que deveriam ser preservados. Posterior-mente, apesar da diferena de contexto, essas idias obtiveram

    bastante aceitao entre os arquitetos nos Estados Unidos.22Acreditamos,portanto,que esta relao tipo/estilo lana uma

    luz nova no entendimento das opes formais dessa arquitetura,

    evidenciando que,muito mais do que escolhas estilsticas,tratam-se em grande parte de escolhas tipolgicas,que devem ter sido degrande operacionalidade nos embates entre tradio emodernidade na Europa e, no caso brasileiro, nos projetos demodernizao e de construo da nao no sculo XIX.

    21 Carol W. Westfall afirma que,durante a tradio clssica, tipo uma terminologiaimprecisa,mas de qualquer maneira circunscrita ao campo da arquitetura. Mais ou

    menos em 1800, h uma ruptura. Nova epistemologia relativista e historicista vaiproceder classificao dos prdios segundo categorias de estilo e carter. No entan-to,duas noes de tipo sobreviveram,formuladas mais ou menos em 1800: a de Du-rand e a de Quatremre. So noes diferentes ,mas ambas alternativas tentativarelativista e historicista dominante de reduzir o conhecimento da arquitetura hist-ria dos estilos arquitetnicos. As noes mais antigas de tipo no sobreviveram: otermo passou a ser usado para referir alguma coisa fora do corpo tradicional da ar-quitetrua. (Westfall,Carol S. & Van Pelt,Robert J.Architectural principles in the age ofhistoricism.New Haven and London: Yale University Press ,1993,p. 145-148).

    22 Argan,Giulio Carlo. El concepto del espacio arquitectnico desde el barroco a nuestrosdias. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visin,1973. p. 29-36. Rossi,Aldo. The architec-ture of the city. Cambridge: MIT Press,1942. p. 41.